O Equador ensaia a “revolução cidadã”
“É agora que começa o desafio da mudança”, dispara Rocío Peralbo, jornalista e conhecida militante dos direitos humanos. “Todas as condições são favoráveis, seremos os únicos culpados se fracassarmos.” A história do Equador jamais tinha visto triunfo eleitoral tão surpreendente. Em 30 de setembro, 70% dos eleitores depositaram sua confiança nos candidatos do movimento Alianza País [1], que compartilham o projeto do presidente Rafael Correa. Com 80 das 130 cadeiras, terão uma maioria confortável na Assembléia Constituinte, graças à qual o chefe de Estado quer “refundar a República” e pôr em marcha um modelo de desenvolvimento em ruptura com o neoliberalismo [2].
A Alianza País nasceu no final de 2005. “Não era um agrupamento de iluminados, mas um movimento que se nutria das lutas e dos esforços de diversos setores sociais e políticos”, explica Alberto Acosta, ex-ministro das Minas e Energia e futuro presidente da Assembléia Constituinte. Desse movimento saiu o candidato Correa, economista e professor universitário, vencedor da eleição presidencial em novembro de 2006. “Éramos especialistas em protestar. Chegando ao poder, tivemos de começar a construir.”
É em Quito, no Palácio de Carondelet, um monumento da arquitetura colonial, que se encontra a sede do governo. Em sua sóbria mesa de trabalho, o presidente Correa afirma: “Empreendemos uma ‘revolução cidadã’ que deve nos levar a transformar radical, profunda e rapidamente as estruturas deste país. As que existem hoje não funcionam mais”.
Motoristas de táxi, vendedoras de jornal, engraxates, escriturários, todos, ou ao menos muitos, acreditam nesse projeto conduzido pelo chefe de Estado. Num país que conheceu oito presidentes em dez anos, não depositam confiança alguma no Congresso, que consideram incompetente e corrupto. Uma recusa eloqüente da “partidocracia” — é assim que Correa chama os partidos, feudos e grupos dirigidos por caudilhos que dominavam até então a cena política. A tal ponto que, durante as eleições que o viram triunfar na presidência, seu movimento, Alianza País, não apresentou nenhum candidato aos cargos legislativos, deixando o Congresso nas mãos da oposição. Foi um investimento pesado na opção pela Assembléia Constituinte, que poderá substituir o Congresso atual.
Bispo de Esmeraldas, D. Eugenio Arellano vive, no Equador há mais de 30 anos, “sempre muito perto do povo”, o que o leva a garantir que conhece “90% de seus habitantes”. Ele declara: “Este novo governo gerou uma enorme esperança no seio da população, a esperança de melhorar radicalmente as condições de vida”. Afirmando que a Igreja equatoriana já fez sua escolha, acrescenta: “Devemos apoiar, acompanhar e nos tornar os propagadores dessa esperança”. Mas, como diz uma expressão popular, “o caminho está cheio de cobras”.
Um país empobrecido, onde o petróleo pode ser maldição
O Equador tem cerca de 13 milhões de habitantes. Em 2006, segundo o Inec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), 12,9% dos cidadãos não dispunham de um dólar por dia para garantir sua alimentação e figuravam na categoria dos “indigentes”. Em média, 38,3% dos equatorianos viviam numa pobreza crônica; 60% eram subempregados. Segundo a mesma fonte, 26% das famílias recorreram ao endividamento, em 2006, para enfrentar os gastos com saúde, alimentação, educação etc. Os demais dados sócio-econômicos vão na mesma direção.
Os projetos de desenvolvimento do governo de Correa têm sua fonte imediata de financiamento no petróleo, do qual o Equador é o quinto produtor na América Latina. As histórias de ambos — o Equador e o petróleo — estão intimamente ligadas.
Em 1972, um golpe de Estado levou ao poder “militares nacionalistas apegados à soberania do país”, conta o ex-contra-almirante Gustavo Jarrín, que, na época, foi nomeado ministro dos Recursos Naturais e Energéticos. Até então nas mãos de multinacionais norte-americanas, a exploração petrolífera passa ao controle do Estado. Várias empresas estrangeiras abandonam o país, outras aceitam as condições dos militares, inclusive a redução do prazo dos contratos de exploração, que passam de 50 para 20 anos. Em novembro de 1973, como o Equador passa a integrar a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), os Estados Unidos suspendem sua ajuda militar. Mas, desde então, o Estado recebe 90% das receitas com petróleo, no lugar dos cerca de 5%, o que acarreta uma período de prosperidade econômica.
Jarrín se lembra com paixão que, em 1978, o sistema democrático foi restabelecido, com a chegada ao poder do candidato de um pequeno partido de centro-esquerda, Jaime Roldos. Esse morreu em 24 de maio de 1981, num acidente aéreo considerado suspeito. Em seguida, e em menos de 30 anos, a situação se inverte: novamente, 80% das receitas do petróleo caem nos bolsos das transnacionais. “Em alguns casos, os terrenos cedidos para a exploração do petróleo incluíam até mesmo a igreja e o parque da aldeia!”
“Incrível, mas legal”, confirma Acosta. “Está escrito na Constituição. O argumento? A liberdade para os investidores estrangeiros.” Ministro da energia no primeiro gabinete de Correa, e confrontado com a impossibilidade de poder mudar o que quer que seja no quadro das leis em vigor — já que o Congresso permanece nas mãos da oposição —, ele se demitiu em junho de sua função para poder se apresentar como candidato à Assembléia Constituinte. “O petróleo não tem sido garantia de desenvolvimento para o Equador, embora seja essencial para a economia.” De fato, as populações que conhecem o mais alto índice de pobreza — e de câncer! — se acham nas províncias petrolíferas. “A Amazônia foi destruída e dois povos nativos desapareceram por causa da falta de dignidade dos governos e da ação das transnacionais, que têm agido como empresas demolidoras.”
Para a mídia, qualquer mudança profunda é dispensável
A recuperação dos recursos petrolíferos foi posta na ordem do dia desde a campanha de Correa. Como na Venezuela e na Bolívia, os investidores estrangeiros serão bem-vindos, desde que se curvem aos interesses nacionais. “E a abertura comercial desregrada não será aceita”, precisa Acosta. “Nenhum dos países que se abriu dessa maneira saiu ganhando; ao contrário, perderam muito.”
Outra tarefa estratégica: a busca da soberania regional. “Temos de enterrar essa visão de abertura para o Império [Estados Unidos] e de fechamento para nossos vizinhos. É preciso lutar pela integração latino-americana.” Nesse campo, explica Correa, “sou um ‘operário’ a mais, ao lado dos presidentes Chávez e Evo Morales, sem esquecer os chefes de Estado do Brasil e da Argentina, que também partilham desse estado de espírito”. Assim, em agosto, Quito e Caracas assinaram um acordo de integração energética para a construção de uma refinaria em Manabí (Equador). Essa instalação evitará que o Equador exporte seu petróleo bruto para importá-lo depois de refinado. “A integração é necessária e inevitável”, prossegue o presidente. “Talvez muitas pessoas não se dêem conta disso, mas essa parte do mundo vive um momento extraordinário. Devemos contribuir para a construção da Grande Pátria sonhada por Simón Bolívar.”
Nem é preciso dizer que, nos ambientes conservadores, esse discurso novo não provoca grande entusiasmo. Jornalista, astro dos espaços políticos do canal Teleamazonas, Jorge Ortiz tem muitas dúvidas acerca do rumo que o projeto de Correa tomará. “É muito provável que ele escolha o modelo econômico ‘chavista’. Já copiou o conceito de ‘socialismo do século 21’, que ninguém sabe exatamente o que significa.” A proximidade com o colega venezuelano Hugo Chávez é o argumento mais usado para atacar o presidente Correa. A comparação não é nada fortuita. Há vários anos, a grande imprensa equatoriana matraqueia: Chávez é um “demônio”, um “louco”, um “comunista”, que empobreceu e dividiu seu povo. Não é preciso fazer nenhuma mudança estrutural no Equador, afirma Ortiz. “Por que não conservar o modelo econômico atual, já que funcionou até agora? Basta fortalecê-lo.”
Durante as entrevistas com o presidente, o passado não existe: é como se os problemas do país tivessem começado em 15 de janeiro de 2007, quando ele tomou posse. O objetivo de alguns jornalistas é, evidentemente, encurralá-lo, mas Correa os desarma graças à sua formação universitária, à sua excelente memória e porque está sempre bem informado. Ele lhes mostra que estão mentindo, que especulam com os números e os fatos. Desesperados, os opositores atacam com mais vigor. Jorge Ortiz sustenta que eles agem com Correa como faziam com seus predecessores. “A diferença é que os outros aceitavam a contradição, ao passo que ele é visceralmente intolerante. Ele desacredita a imprensa para se subtrair às críticas e poder, assim, destruir o sistema democrático existente.”
Acaba relação promíscua entre governo e donos de jornais
Sem ser “correísta”, Rodrigo Santillán, ex-presidente da União Nacional dos Jornalistas e presidente de seu Tribunal de Honra, reconhece que, desde o momento em que Correa “começou a falar da necessidade de mudanças nas estruturas da nação”, ele sofreu uma avalancha de ataques e insultos “provenientes dos meios de comunicação mais importantes”. Santillán confessa que tem vergonha do espetáculo exibido por sua profissão: “Em vez de serem conduzidos diante do Tribunal de Honra, dois jornalistas que [durante uma entrevista coletiva] insultaram publicamente o presidente foram convertidos em heróis” [3]. A agressividade de um deles foi tamanha que o serviço de segurança do presidente teve de expulsá-lo.
Num país onde não existe nenhuma rede pública de televisão e de rádio, Correa — que pretende corrigir essa situação insólita — desloca-se todo sábado até uma cidade para, ali, “prestar contas” à população. A cada vez, convida dois ou três jornalistas. Rocío Peralbo constata que, pela primeira vez, os profissionais da mídia alternativa e regional estão ganhando voz. “Isso só faz aumentar o mal-estar da imprensa em relação ao presidente.” A resposta dele foi clara e nítida: “Nós democratizaremos a informação. Decidimos não conceder mais privilégios àqueles que, desde sempre, foram privilegiados”.
Ao longo do ano, em coordenação com os principais meios de comunicação equatorianos, algumas organizações internacionais de defesa da liberdade de expressão, deixando de reconhecer esse conluio entre mídia e poderes econômicos e financeiros, têm protestado contra a decisão presidencial de não conceder entrevistas a certos jornalistas. Lá, de novo, o chefe de Estado não teve papas na língua: “Se alguns me insultaram e deformaram minhas palavras, eu tenho, enquanto pessoa e presidente, a liberdade de expressão de lhes dizer que não me presto a esse jogo em nome da liberdade de imprensa”.
O ex-ministro Acosta vê outro motivo de tensão no fato de que, pela primeira vez, um governo “não tem relação incestuosa com a imprensa. Não somos o único país do mundo onde isso acontece, mas aqui era normal que os proprietários dos meios de comunicação fossem nomeados para cargos honoríficos que nada tinham a ver com a profissão”.
Na fronteira com a Colômbia, refugiados e tensão
No Equador, dos sete canais de televisão, seis pertencem a grupos bancários ou dependem de clãs financeiros. “A classe social formada por uma centena de famílias, a mesma que manteve as rédeas do poder”, afirma o bispo Arellano, “forjou a opinião pública e gerou uma espécie de filosofia social em seu favor, porque possuía os maiores meios de informação.”
“A democracia é boa”, enfatiza o presidente, “desde que os interesses do setor oligárquico não sejam ameaçados. Desde que um governo não pretenda redistribuir as riquezas nacionais. Nesse momento, a agressividade da imprensa desperta. Assim, ainda que a grande mídia e seus jornalistas não sejam responsáveis pelos males do país, eles contribuem seriamente para isso.” No que lhe diz respeito, o jornalista Santillán “sabe” que a embaixada americana em Quito age — discretamente, mas age. “Ela está cada vez mais mancomunada com os grandes meios de comunicação, que estão exultantes. Não falta muito para que se torne maciça a campanha de demonização do presidente. É um primeiro passo para tentar a desestabilização.”
A atual determinação do governo equatoriano entra, na perspectiva de Washington, na categoria da insubmissão. “Esperamos que os Estados Unidos, mas também a União Européia ou qualquer outra nação, nos respeitem”, declara com firmeza Correa, “e que ninguém tente nos ditar as políticas que devemos seguir, nem realizar qualquer tipo de intervenção.”
Todavia, mais que a ação dos Estados Unidos contra o governo, o que constitui atualmente uma fonte de preocupação em Quito é a guerra na Colômbia. Cerca de meio milhão de colombianos se instalaram no Equador, e muitos deles fazem parte dos “desalojados” que tiveram de fugir do conflito. A cada dia, centenas de pessoas buscam um refúgio temporário deste lado da fronteira. Nessa região limítrofe, a situação às vezes é tensa, ainda que o governo equatoriano e suas forças armadas venham agindo com prudência e humanidade.
Correa anunciou que não vai se imiscuir na guerra civil que assola o país vizinho. E que tampouco qualificaria de grupo “terrorista” a guerrilha das Forças Armadas Revolucionários da Colômbia (Farc). Tem repetido que seu governo está disposto a contribuir na busca de uma solução política do conflito. Mas permanece categórico ao afirmar que “o Plano Colômbia, implementado por Bogotá e Washington, é um plano militarista e violento que, em vez de ajudar a resolver a situação dramática, só serve para agravá-la”.
Velha torneira seca e sistema financeiro entra em pânico
Correa não somente exigiu de seu colega colombiano Alvaro Uribe que interrompesse as fumigações aéreas sobre as plantações de coca próximas da fronteira, como também advertiu que, se necessário, levaria o caso aos tribunais internacionais. Comissões governamentais e independentes têm reconhecido os graves efeitos dos produtos químicos sobre as pessoas, a água, os animais e as plantas. “Nosso vizinho é um país-irmão, mas temos de impor limites ao Plano Colômbia.”
Outra preocupação, aliás, existe em Quito: o governo colombiano poderia ser o cavalo de Tróia de Washington para sustentar uma tentativa de desestabilização do governo equatoriano. Em diversas ocasiões, ele agiu assim em relação à Venezuela.
Se o governo não gozasse de um apoio popular da ordem dos 80%, pensam muitos, “há muito tempo já teria havido uma tentativa de golpe de Estado”. Contudo, sempre em contato com os oficiais de alta patente, o contra-almirante Jarrín garante: “Não percebi a menor intenção entre eles de participar de uma aventura do gênero”.
É verdade que o governo está ganhando a simpatia dos militares graças às medidas que tomou em favor deles. Com condições de trabalho e de vida deploráveis, militares e policiais não foram bem tratados no passado. Além disso, importantes projetos de desenvolvimento nacional são confiados aos corpos de engenheiros das forças armadas. A iniciativa não agrada as empresas privadas e estrangeiras, mas o governo defende a capacidade desses profissionais e lembra que, com toda lógica, uma parte do dinheiro investido dessa maneira será recuperada pelo Estado.
Até o momento, afirma-se no Palácio de Carondelet, “tudo era feito em função do capital financeiro especulativo, e não dos geradores de riqueza”. No Equador, as contradições chegaram a tal ponto que, enquanto o setor produtivo se achava em crise, o setor financeiro, que o administra, batia todos os recordes de lucro. “O problema é que muitos presidentes de empresa fraudam: não pagam impostos, exploram seus trabalhadores, não respeitam o meio ambiente etc. Esses realmente têm o que temer com nosso projeto de um novo Estado. Eles gostariam de assistir à desestabilização deste governo, que não poderão dominar.”
O jornalista Jorge Ortiz vê o futuro com um olhar pessimista, para não dizer catastrofista: “Vão ocorrer grandes enfrentamentos, principalmente porque o presidente Correa se tornou um homem que provoca o ódio, as rivalidades, as divisões entre os equatorianos”. Em contrapartida, o bispo Arellano propõe outra explicação para as dificuldades futuras: “A minoria de privilegiados se empenha em dar fim a este projeto de vida. O choque virá do lado deles, pois serão atacados em seus privilégios desmedidos. Eles se sentem como a criança de quem se retira o seio em que mamava: eles choram”.
[1] Ao qual se juntam alguns aliados como o Movimento Popular Democrático (MPD) e o movimento indígena Pachakutik.
[2] Dirigido pelo ex-presidente Lucio Gutiérrez, demitido de suas funções por uma mobilização popular em abril de 2005, o Partido Sociedade Patriótica (PSP) mal ultrapassou os 7% dos votos. O Partido Renovador Institucional-Ação Nacional (PRIAN), do magnata da banana Alvaro Noboa, obteve 6,5% dos votos. O quarto lugar coube ao Partido Social Cristão (PSC, 3,7%), que dirigiu a política equatoriana durante duas décadas.
[3] Emilio Palacios, do diário El Universal, e Alfonso Espinosa de los Monteros, diretor dos jornais televisivos do canal Ecuavisa. Este recusou o lugar de vice-presidente que lhe foi proposto no PSC durante as eleições de 2006.
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