quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O vento de Yokohama

Por Daniel Ricci Araújo

Conta a lenda que isso ocorreu numa dessas noites medonhas, em dezembro de 2006. À espreita e sedenta, a besta-fera rondava e sorria.

Era uma madrugada de sábado para domingo. Deus havia mandado cair sob o Rio Grande uma penumbra que rivalizava com a escuridão mais distante do universo. Paralisou-se a luz e o tempo: na Porto Alegre quase sempre barulhenta e boemia, podia-se ouvir um alfinete cair no chão e o pensamento voar. O pampa anunciava uma treva tão profunda que a imensidão da planície fazia retorcer de vergonha o brilho das estrelas. Os mares da província, do Cassino a Torres, trocaram a vaga agitada de sempre por uma estranha quietude, como se pressentissem o que estava por vir. À noite, amiga da besta-fera, caía sobre nós.

De longe, jogada no sofá, a quinta estrela da camisa rubra me mandava acreditar piamente. Eu não conseguia. Mais perto, vendo meus olhos pesados, o pôster do Inter tricampeão invicto parecia sentir vergonha de mim. O passado e o presente colorados me oprimiam o peito, me incitavam o desejo, me desafiavam o orgulho. Não me davam o direito de temer. Mas eu hesitava: os detratores já comemoravam e anunciavam a vitória certa da besta-fera sulfúrea. A noite era escura. Havia silêncio. Eu tinha medo.

“Não contemplai os olhos noturnos”, dizia um poeta. Quem sabe o que é passar por uma noite dessas pode bater no peito e dizer “eu vivi”. No meio do vazio e do nada, o Barcelona era um ruído estridente que não saía da minha cabeça. Lúcifer, Satanás, Belzebu: a noite, com seus vários nomes, escarnecia da minha pretensão. Mas eu não me dava por vencido. Eu era Inter de cabo a rabo, de lado a lado, e queria crer no triunfo. Os cantos da fé me ajudavam a enfrentar a noite. “Nada vai nos separar”: voz da Guarda, voz de Deus.

A benção, Tesourinha. Esteja conosco, Figueroa. Zelai por mim, Librelato. Amparado nas glórias do passado, eu pedia pela vitória eterna que provaria nosso destino. A melodia da Popular fazia retumbar, no quarto escuro, todas as conjugações do verbo acreditar. A impotência dos times ruins, a espera quebrada da década de 90, as bolas que não entraram, os gols que eu não gritei e as derrotas que sofri, tudo pendia por um fio conforme os rumos da manhã que viria. Coragem, rapaz, coragem. A noite retrucava: silêncio, silêncio, silêncio. “Não contemplai os olhos noturnos”, dizia um poeta. Na imagem fresca da noite, a besta-fera azul-grená, camisa 10 às costas, sorria.

O silêncio continuava seu ritual maldito. Era inóspito, traiçoeiro, sepulcral. Mas cochichava. Amaldiçoava. Escarnecia. “É agora ou nunca”, sussurrava aos meus ouvidos a escuridão. “Só haverá uma vez”, eu ouvia minha voz. “Só haverá uma vez”, zombava o silêncio. Só haverá uma vez. Uma vez. Uma única vez. A quinta estrela da minha camisa rubra tinha vergonha de mim. Meu coração já reclamava. Queria deixar crescer uma tíbia e mansa coragem que fosse. Eu ainda tinha medo. Onde batesse um coração colorado, assim passaram-se as horas mais lentas de todas as horas do mundo.

Mas nenhum mal é tão ruim que sempre dure, e nenhuma noite é tão longa que não caia exausta perante o farol da manhã. Olhando para a frente, tal qual o raio de sol de Figueroa, vi surgir o primeiro traço da alvorada estampado na camisa vermelha. A noite divertia-se comigo e não queria ir embora, mas o dia a expulsava. O sol, espreguiçando-se, me encarava e, ainda contido, me dizia algo sem tradução conhecida. Eu queria entendê-lo, queria ouvi-lo, queria renascer com sua força para viver aquela manhã. “É agora ou nunca”, ainda me zombava a voz escondida da noite.

“Sócio patrimonial”. “Trinta dezenas de tijolos”. Já avançava a manhã, humilde e também silenciosa. Eu olhava aquele documento na parede e, por sua causa, meu avô estava ali comigo. Trezentos tijolos dele jaziam dentro do Gigante. No meu coração palpitava a mesma fé que fez meu avô e tantos outros construírem o templo às margens do Guaíba. Era o amor pelo Inter, que ultrapassava as décadas com a mansa sabedoria de um rio que sabe transcorrer seu leito. Era o meu sonho, o do meu pai, o dos meus filhos que ainda nem nasceram: “Gritar, a pleno pulmão, que o papai é que é o tal”. A Disparada já tocava mais alto e ensaiava criar, com o raiar do dia, o compasso e a partitura da esperança.

De Teté a Abel, de Bodinho a Fernandão, a descendência colorada agora me impelia à vida e ao combate da maior batalha de todas. O sol já expulsara por inteiro o negro horizonte daquela noite. A besta-fera se preparava. O relógio desgovernava-se ferozmente rumo ao eterno momento. Ali, de um instante para outro, como uma pomba do espírito santo, a grandeza do Internacional caía sobre a mesquinharia atroz da noite.

O sol brilhava, resplandecia. No último silêncio da manhã, o destino do Inter já circundava o mundo como se fosse o maior desígnio do Criador. Eu ouvia o campo da rua Arlindo e os Eucaliptos. Eu sentia o Beira-Rio. “Coragem, coragem, Daniel”, sussurrava meu avô. Eu ainda não sabia, mas estava pronto, sublimemente pronto para tudo. “Diante do fim da vida, não abro mão: quero bandeira do Inter no meu caixão”. Voz da Guarda? Voz de Deus. O sol cintilava com todas as luzes deste mundo e do outro, como se seu brilho servisse para iluminar a vista dos que, do céu, também se preparavam.

Então um vento distinto soprou, e aconteceu uma coisa maravilhosa: surgiu por todas as ruas, estradas e rincões essa força divina que anuncia a multidão colorada. Estava ali o povo escolhido, que tudo ocupa e tudo sustenta desde a aurora dos nossos primeiros tempos. Assustada, a noite despiu-se e morreu.

Desperta por um chamado secular, a massa vermelha tomava as ruas e adornava os semblantes com sua certeza ferrenha de ser feliz. Esse vento, que a embalava, circulava suave, tranqüilo, como se tivesse vida. Meu rosto o sentia e quase podia vê-lo, tocá-lo. Discreto, puro, inesquecível, aquilo era um vento parecido com o amor. Para mim, era o vento de Yokohama, fustigando quem ainda ousava duvidar do clube que nunca desiste.

Chegara o momento de toda uma vida. A besta-fera rugia. Reprimidos por uma escorchante distância, os corações reuniram-se, mesmo separados, sob a égide do destino a cumprir. No oriente profundo, onze camisetas brancas pareciam profetizar a vitória que viria: calem-se a noite e o silêncio, aqui está o Internacional. No átimo de um momento e pelo pé direito de Gabiru, afirmou-se perante a noite medonha a desforra do dia, e de todos os dias que vieram e ainda virão.

A alegria rompeu quinhões e esferas do céu e da Terra. Dizem até que o anjo Gabriel saiu para comunicar a notícia pelas abóbadas do paraíso. Calaram-se o inferno e o Diabo, e com eles a invejosa noite apodreceu, desfalecida pelo destino colorado. A besta-fera, surpresa e ferida, chorava. Ali estava o Internacional.

Por todas as ruas e caminhos, como nunca antes o mistério da torcida colorada pôde ser tão celebrado. Na caricatura do anonimato, no estrepitar da vitória a massa era una e interminável. Sua presença trazia a aura santa de uma dessas bondades litúrgicas, imprescindíveis. A massa se destacava como se fosse a pedra vital, a estrela de Belém, a primeira seiva da vida que faz crescerem as árvores e viverem os animais. “Abram alas pro povão, este é o Internacional”. Voltava aos meus ouvidos a voz profética da Disparada. A besta-fera silenciava.

Pintada de vermelho, a Terra cedeu. Periclitou. O solo foi o primeiro a sentir os pés, mãos e joelhos que o tocavam em agradecimento. O símbolo vermelho e branco das três letras pairou pelo globo como a crescente do Islã, a estrela de David e a cruz da cristandade. Todas as felicidades humanas sentiram-se menores perante o invencível estandarte alvi-rubro.

Tudo se pôde ver às claras: o silêncio do mar abalou-se com o grito profundo que ecoou por todas as querências do mundo, bastava que houvesse ali um colorado. O céu abriu-se como nunca e do ponto mais alto podia-se ver todos os braços, e todas as pernas, e todos os filhos, e pais, e mães, e irmãos, e vivos e mortos a aplaudir e se emocionar com o momento que ali iniciara e nunca terminará. Na nuvem mais distante do firmamento, meu avô e todos os outros avôs compartilhavam lágrimas que cairiam sobre nós com a chuva da madrugada. A comunhão estava completa, perfeita. Todas as gerações, presentes ou não, sentiam o enorme peso do mesmo amor. Assim como tantas vezes antes, a grandeza do Inter nos fizera atravessar a noite.

Ah, herança do Inter, história eterna do Inter! Abençoados são aqueles que te conhecem. Envergonhado, retorcido pela claridade do dia, o silêncio se rendera. A tristeza acabara e todas as bestas-feras da nossa história haviam sido derrotadas pelo tombo de uma só. Fazia um calor escaldante. Não havia mais dúvidas e eu já não tinha mais medo. Abençoado pelo vento de Yokohama, o dia nascera feliz.

E o Inter era campeão mundial.

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