segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O holocausto palestino

A crônica de um fracasso anunciado não é pontuada por fatalidades, mas escrita há 40 anos, em um processo de colonização que inviabiliza qualquer saída possível. O silêncio da comunidade internacional é assustador.

Poucas vezes, os círculos diplomáticos e acadêmicos se uniram na constatação de uma farsa. A retomada das negociações de paz entre israelenses e palestinos é um ato ciníco encenado por parte dos três protagonistas: o presidente estadunidense, George W, Bush, o primeiro ministro de Israel, Ehud Olmert, e o presidente palestino, Mahoumad Abbas.

A expansão de assentamentos israelenses na Cisjordânia e a cisão entre Fatah e o Hamas apresentam-se como obstáculos imediatos a qualquer avanço que leve ao que a diplomacia ocidental chama de “Estado palestino viável e continuidade territorial em Israel". A crônica de um fracasso anunciado não é pontuada por fatalidades, mas escrita há 40 anos, em um processo de colonização que inviabiliza qualquer saída possível.

Há momentos históricos que, pela crueza, não comportam acomodação. Não requerem mais análises de conjuntura ou considerações de natureza antropológica. Não mais se trata de fazer considerações geopolíticas para justificar estratégias. O humanismo é radical ou nega a si próprio. Ponderações que prescrevam cautela são a leniência da barbárie. A recusa tem que ser total e contundente.

Desde o massacre no Sul do Líbano, em 82, passando pelo sufocamento de duas intifadas, não é o terrorismo de fanáticos que Israel persegue. No Oriente Médio, o movimento palestino era o mais progressista projeto de resistência, o mais prenhe de valores da modernidade. O mais rico em termos culturais. As pedras dos jovens árabes defenderam da insanidade uma herança cara ao Ocidente. Querer reduzi-los ao Hamas e outros grupos de motivação religiosa é, com apoio logístico da mídia internacional, distorcer a realidade para ocultar contradições mais profundas. Mentir com insistência até que a a inverdade assuma ares de realidade inconteste.

Com todo o respeito por vítimas de outra barbárie, o humanista radical deve indagar: Goebbels, de algoz, virou mestre? A generosidade original do sionismo virou fascismo? Os filhos da diáspora agora brincam de destruir seus próprios Guetos de Varsóvia? A debilidade do presidente palestino é uma fragilidade de origem. E disso sabiam israelenses e falcões de Washington.

A "vitória" de Abbas, há três anos, foi noticiada com destaque pela grande imprensa brasileira. Recorrendo a arquivos, podemos ler “Tiros para o alto, buzinaço e dança nas ruas". Festa como há muito tempo os palestinos não faziam. Foi pra comemorar a vitória de Abu Mazen. O homem que vai substituir Yasser Arafat recebeu 62,3 % dos votos, mais do que o suficiente, segundo os observadores internacionais, pra legitimar a vitória e dar ao novo presidente a força necessária pra negociar a paz com Israel. É o que o mundo inteiro espera, afirmou o ex-presidente americano, Jymmy Carter.

No primeiro discurso, depois de proclamada a vitória, Abu Mazen prometeu combater a corrupção na autoridade palestina. E garantiu que a prioridade será negociar a criação de um estado independente. A luta armada acabou. Chegou a hora de construir nosso próprio país com capital em Jerusalém.O governo israelense jamais concordou em dividir a cidade sagrada. Também não aceita a volta de 3 milhões de refugiados palestinos que fugiram da Terra Santa depois da criação de Israel, em 1948" (Edição de 10 de janeiro do maior telejornal brasileiro, o "Jornal Nacional", da TV Globo, emissora do maior conglomerado jornalístico brasileiro).

A farsa não se limitou a um veículo, ou mesmo, a um país apenas. Festejada nos círculos de poder do Ocidente, a derrota do povo palestino foi degustada com prazer pelas elites, e servida para a chamada "sociedade civil global" como momento festivo da vitória da razão sobre todos os fundamentalismos. As cinzas do patrimônio político , acumulado em décadas de resistência às forças sionistas, pôde, enfim ser apresentada como "festa que há muito os palestinos não faziam". São tempos inglórios para os que combatem por um mundo mais justo. Mas a dialética ensina que não há pontos finais quando se é forjado na luta.

A história política dos países modernos sempre foi marcada por avanços e retrocessos. Pontuada por revoluções seguidas de restaurações conservadoras, insurreições imprevistas, perda e resgate de soberanias e direitos fundamentais, a dinâmica histórica avança por linhas sinuosas, desmentindo,para desespero de não poucos, que obedeça a uma legalidade objetiva. Compreendê-la em seus acasos e formular um plano de intervenção estratégico é o que norteia a práxis transformadora.

No entanto, a contribuição mais recente dos centros hegemônicos pretende embaçar a leitura crítica da realidade.O esforço empreendido pelas megacorporações midiáticas desses países apresenta retrocesso como expressão de avanço e, quando necessário, opera em sentido inverso.

Despida de suas conotações históricas, a palavra democracia presta-se a legitimar interesses expansionistas, não guardando qualquer relação com seus pressupostos institucionais clássicos que, mal ou bem, possibilitam a criação de um espaço público para o agenciamento de demandas conflitivas. Como destaca Norberto Bobbio em Estado, Governo, Sociedade ( Editora Paz e Terra) "qualquer discurso sobre democracia não pode prescindir de determinar as relações entre ela e as outras forma de governo, pois somente assim é possível individualizar o seu caráter específico". A astúcia da mistificação atual reside nesse ponto: negligenciar contextualizações e mediações fundamentais ao processo democrático. Trabalhar com o termo esvaziado de suas significações mais caras.

A eleição do ex-primeiro ministro Mahmud Abbas (Abu Mazen) para a presidência da Autoridade Nacional Palestina(ANP) com 62,32 % dos votos, contra 19,8% de seu principal rival, o candidato independente Mustafah Barghouti, era, antes de tudo, uma capitulação a regras impostas por Israel e Estados Unidos. A declaração do então premier israelense Ariel Sharon de que Mazen "será qualificado segundo a forma com que combater o terrorismo" não permitia que pairasse qualquer dúvida quanto a quem estava dando as cartas no jogo. A legitimidade não derivaria da soberania popular, mas da visão dos dirigentes das forças ocupantes.

Qual a verdade de um processo eleitoral realizado em uma região coalhada de postos de controle do exército israelense, cortando todo o território da Cisjordânia ? O que podíamos depreender das palavras de Benyamin Netanyahu, ex-dirigente do Likud, segundo as quais "a liderança palestina deve dar prova de sua coragem renunciando a reivindicação de retorno de milhares de refugiados" ? A ANP só conseguirá a paz se mantiver na diáspora o seu próprio povo. Eis o rescaldo do que setores da imprensa chamam de festa da democracia palestina. Irregularidades nas listas de votação e problemas de deslocamento impostos por soldados israelenses em Gaza e Jerusalém fizeram parte do que os mais de 800 observadores internacionais chamaram de "eleições limpas e transparentes".

Em sã consciência, alguém podia chamar isso de exercício de democracia interna? E face ao boicote dos dois grupos islâmicos mais expressivos (Hamas e Jihad), qual a representatividade de Mazen?

Segundo o portal mundoarabe.org, somente em 2004 foram assassinados, por soldados israelenses, 950 palestinos, incluindo 172 crianças e 36 mulheres. Se atualizarmos os dados, o holocausto palestino se acentua. Várias colônias ilegais e postos avançados têm sido criados ou ampliados à custa de expropriações da população local.

Sem fronteiras reconhecidas, com todas as ruas patrulhadas por um exército estrangeiro, sobre que base territorial legislaria o recém-eleito ? A realização do pleito coroava os esforços propagandísticos de Sharon/Bush. Os de justificar massacres por falta de instituições representativas do território ocupado. E o empenho recorrente em apresentar a miséria em Gaza e Cisjordânia, não como resultado do desmantelamento da infra-estrutura palestina, mas como evidência da incúria administrativa de dirigentes árabes.

Assustador é o silêncio da comunidade internacional. Não houve (como não há) qualquer manifestação de peso contra o extermínio em andamento. Um processo de purificação étnica acontecia sem que qualquer medida punitiva fosse aventada contra seus autores.

Sepultado em Ramala não está apenas Yasser Arafat, cuja causa da morte permanece um mistério. As eleições de 9 de janeiro de 2005 talvez comportem um enterro de proporções simbólicas amplas: o do sonho do grande estadista, expresso no mais rico movimento de resistência contemporâneo. Se sobrar como alternativa apenas o imaginário do Hamas, o pesadelo de Israel estará decretado como dado constitutivo da própria existência. Aos povos dos Livros restará a danação eterna. Apesar de historicamente datada. Assim se conta melhor a gestação de um acordo impossível. Não há fecundação quando o óvulo da história se reproduz como farsa


Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.

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