O jornalista Élio Gaspari publicou há poucos dias um artigo que gerou muita indignação entre os veteranos militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura militar no Brasil. O jornalista Alípio Freire é um deles. Neste artigo, ele desanca o texto de Gaspari --que tentava qualificar como terroristas os militantes de 68-- e diz que "as mandracarias do jornalista que se propõe expert sobre a ditadura, a respeito da qual já publicou alguns livros que, com esse artigo publicado na Folha, tornam-se, na melhor das hipóteses, fontes absolutamente suspeitas". Veja abaixo a íntegra do artigo de Alípio Freire, publicado no jornal Brasil de Fato.
por Alipio Freire (*)
O que leva alguém a escrever e publicar, a partir de uma série de mentiras,
um artigo com o título Em 2008 remunera-se o terrorista de 1968, nos dias da
visita da senhorita Condoleezza Rice ao Brasil, poucos depois da invasão e
bombardeio do território equatoriano pelas forças do narco-presidente Álvaro
Uribe, para assassinar militantes das Farc?
O que se pretende ao retomar a expressão "terrorista" no título e corpo de
um texto, repetida ad nauseam, quando todos sabem dos esforços de Miss
Condie para tentar nos convencer de que invasões de fronteiras e desrespeito
a soberanias nacionais devem ser considerados "legítima defesa" desde que se
trate de perseguir o que o governo a que serve considere unilateralmente
como "terroristas"?
Essas perguntas, pelo menos por enquanto, ficarão sem resposta.
Observado o contexto em que a Folha de S. Paulo publicou o artigo do
jornalista Élio Gaspari, vamos ao texto.
O pretexto do artigo é a defesa de supostos direitos do senhor Orlando
Lovecchio Filho, que perdeu uma perna há cerca de 40 anos, em conseqüência
de bomba colocada no Consulado dos EUA
Primeiro, o senhor Gaspari omite que houve um processo movido pelo senhor
Lovecchio contra o arquiteto Sérgio Ferro, único sobrevivente do comando que
colocou a bomba. Nesse processo, os advogados do senhor Lovecchio anexaram
dois laudos médicos: o primeiro, dá conta de que, quando a vítima deu
entrada no hospital imediatamente após ser ferido pela explosão, a cura do
ferimento seria possível. No entanto, a Delegacia de Ordem Política e Social
(Deops) retirou o senhor Lovecchio do hospital, levando-o para sua sede na
Praça General Osório, para interrogatório, somente depois do que foi levado
outra vez para o hospital. O segundo laudo (feito depois dessa volta)
declara que, nesse intervalo de tempo, sua perna havia gangrenado, tornando
a amputação a única saída possível. O arquiteto Sérgio Ferro ganhou o
processo em duas instâncias.
Depois, revela ignorância e/ou má fé o cronista, ao classificar a bomba
contra o Consulado enquanto ação "terrorista". Os arquitetos Sérgio Ferro e
Rodrigo Lefèvre (falecido em 1984) foram julgados em 1971 pela Auditoria da
2ª Circuscrição Militar de São Paulo. Acusados pela ação contra o Consulado.
Esta foi classificada pelo tribunal militar como "propaganda armada". Ou
seja, o jornalista Gaspari investindo-se da mesma presunção do governo do
senhor George W. Bush, define unilateralmente o que seja "terrorismo" a
partir do que se sente autorizado a atacar o que bem entenda.
Mas, não param aí as mandracarias do jornalista que se propõe expert sobre a
ditadura, a respeito da qual já publicou alguns livros que, com esse artigo
publicado na Folha, tornam-se, na melhor das hipóteses, fontes absolutamente
suspeitas.
De acordo com o cronista, a ação teria sido da autoria da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), planejada por Diógenes Carvalho de Oliveira que,
juntamente com os dois arquitetos e a então produtora cultural Dulce Maia,
teriam sido seus executores.
Aqui, incorre o arrogante expert em pelo menos três outras inverdades: a
ação foi uma decisão da Ação Libertadora Nacional (ALN) e nem Diógenes ou
Dulce (militantes da VPR) tiveram qualquer tipo de participação.
A partir desse conjunto de mentiras sucedem-se os ataques pessoais,
sobretudo contra Diógenes de Oliveira. A certa altura, lemos: "Durante o tempo em que esteve preso, ele [Diógenes] foi torturado pelos militares (...). Por isso, foi uma vítima da ditadura, com direito a ser indenizado pelo que sofreu. Daí a atribuir suas malfeitorias a uma luta pela democracia iria uma enorme distância. O que ele queria era outra ditadura".
Mais uma vez, investindo-se da postura imperial do senhor W. Bush, o
cronista que, segundo consta, foi o enfant gâté (criança mimada) dos
generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, se coloca acima de
qualquer lei (sim, pois existe uma Lei de Anistia), e decide dar aulas sobre
o que deve ser considerado "malfeitoria" e "democracia".
De repente, além de outros interesses mais ou menos escusos que possa ter
para se expor com mentiras tão rudimentares, o cronista volta a uma das suas
mais velhas teclas: as indenizações recebidas pelos perseguidos durante a
ditadura.
Desta vez, tenta cunhar uma graciosa expressão: "Bolsa Ditadura".
Desrespeito e indignidade parecem não ter limites.
Sobre as indenizações
A respeito das indenizações, qualquer pessoa minimamente informada sabe que
todo Estado é responsável pela integridade de seus cidadãos sob sua custódia
e que, não cumprindo esse seu dever, pode e deve ser processado. Do mesmo
modo, todos sabem que é dever das Forças Armadas, além de defender o
território nacional de agressões estrangeiras, garantir a Constituição que
rege o Estado.
Em 1964, setores hegemônicos das Forças Armadas, aliados ao grande capital
internacional, à mais alta cúpula da Igreja, à chamada "direita ideológica"
e com o apoio do governo dos Estados Unidos (democracia pela qual parece
pugnar o cronista que aqui glosamos) rasgou a Constituição brasileira, depôs
seu presidente constitucionalmente eleito e implantou a tortura e o
assassinato de adversários enquanto política de Governo e de Estado.
Explicado o óbvio, repetirei aqui, para encerrar, apenas um trecho de uma
das minhas falas perante a Comissão de Anistia, quando do julgamento do meu
processo, em outubro de 2004:
Se o Congresso Nacional houvesse aprovado a nossa proposta de Anistia Ampla,
Geral e Irrestrrita, que incluía a apuração das responsabilidades pelos
crimes cometidos e punição de seus autores e mandantes nos termos da lei,
certamente teríamos como desdobramento o confisco dos bens dos que
enriqueceram ilicitamente naquele período à custas da violência e do herário
público. Em todos os sentidos, e também por saber que nossas indenizações
seriam pagas por esses confiscos justos e legítimos, nos sentiríamos
certamente muito mais realizados em nossos objetivos.
No entanto, foram exatamente os que pensam como o senhor Gaspari, que
preferiram que esse tipo de solução não se concretizasse.
Nota: As informações aqui utilizadas foram dadas diretamente com Sérgio Ferro e Dulce Maia. Infelizmente, não pudemos ouvir Diógenes Carvalho de Oliveira. Os três, bem como o já falecido Rodrigo Lefèvre, foram meus companheiros de prisão, e tenho profundo orgulho de privar da amizade de todos eles.
(*) Alipio Freire é jornalista, escritor e membro do Conselho Editorial do
Brasil de Fato, onde este artigo foi originalmente publicado.
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