sábado, 25 de outubro de 2008

O capitalismo está a chegar ao fim versão para impressão

Fim. Foto de Mayr, FlickRDepois de ter, antes de todos, previsto o declínio do império americano, Immanuel Wallerstein afirma agora que entrámos desde há 30 anos na fase terminal do sistema capitalista. "A situação torna-se caótica, incontrolável para as forças que até então o dominavam, e assiste-se à emergência de uma luta, já não entre os detentores e os adversários do sistema, mas entre todos os actores para determinar o que o vai substituir", diz o sociólogo norte-americano.
Entrevista feita por Antoine Reverchon, para o diário francês Le Monde e publicado no sitio Esquerda.net de Portugal.

Para além de signatário do manifesto do Fórum social de Porto Alegre, em 2005, o senhor é considerado um dos inspiradores do movimento altermundialista. Fundou e dirigiu o Centro Fernand-Braudel para o estudo da economia dos sistemas históricos e das civilizações da universidade do Estado de Nova York, em Binghamton. Como situa a crise económica e financeira actual no "tempo longo" da história do capitalismo?

Immanuel Wallerstein: Fernand Braudel (1902-1985) distinguia o tempo da "longa duração", que vê sucederem-se na história humana sistemas que regem as relações do homem com o seu meio material, e, no interior destas fases, o tempo dos ciclos longos conjunturais, descritos por economistas como Kondratieff (1982-1930) ou Schumpeter (1883-1950). Encontramo-nos hoje claramente numa fase B de um ciclo de Kondratieff que começou há 30-35 anos, após uma fase A que foi a mais longa (de 1945 a 1975) dos 500 anos de história do sistema capitalista.

Numa fase A, o lucro é gerado pela produção material, industrial ou outra; numa fase B, o capitalismo deve, para continuar a gerar lucro, financiarizar-se e refugiar-se na especulação. Desde há mais de 30 anos, as empresas, os Estados e as famílias estão a endividar-se maciçamente. Estamos hoje na última parte de uma fase B de Kondratieff, uma vez que o declínio virtual se torna real, e que as bolhas explodem umas a seguir às outras; as falências multiplicam-se, a concentração do capital aumenta, o desemprego aumenta, e a economia conhece uma situação de deflação real.

Mas actualmente, esse momento do ciclo conjuntural coincide com, e portanto agrava, um período de transição entre dois sistemas de longa duração. Penso de facto que entrámos desde há 30 anos na fase terminal do sistema capitalista. O que distingue fundamentalmente esta fase da sucessão ininterrupta dos ciclos conjunturais anteriores, é que o capitalismo já não consegue "fazer sistema", no sentido que entendia o físico e químico Ilya Prigogine (1917-2003): quando um sistema, biológico, químico ou social, se desvia cada vez mais frequentemente da sua situação de estabilidade, quando deixa de poder encontrar o equilíbrio, então assiste-se a uma bifurcação.

A situação torna-se caótica, incontrolável para as forças que até então o dominavam, e assiste-se à emergência de uma luta, já não entre os detentores e os adversários do sistema, mas entre todos os actores para determinar o que o vai substituir. Eu reservo o uso da palavra "crise" para este tipo de período. Pois bem, encontramo-nos numa crise. O capitalismo está a chegar ao seu fim.

Por que não haveria de tratar-se de uma nova mutação do capitalismo, que já conheceu a passagem do capitalismo mercantil para o capitalismo industrial, depois do capitalismo industrial para o financeiro?

O capitalismo é omnívoro, capta o lucro precisamente onde ele é mais importante num determinado momento; não se contenta com pequenos lucros marginais; pelo contrário, maximiza-os constituindo monopólios - ele ainda tentou fazê-lo ultimamente nas biotecnologias e nas tecnologias da informação. Mas penso que as possibilidades de acumulação real do sistema atingiram os seus limites. O capitalismo, desde o seu nascimento na segunda metade do século XVI, alimenta-se do diferencial de riqueza entre um centro, onde convergem os lucros, e periferias (não necessariamente geográficas) cada vez mais empobrecidas.

Neste sentido, a recaptura económica da Ásia do Leste, da Índia, da América Latina, constitui um desafio inultrapassável para a "economia-mundo" criada pelo Ocidente, que já não é capaz de controlar os custos da acumulação. As três curvas mundiais dos preços da mão-de-obra, das matérias-primas e dos impostos estão por todo o lado em forte subida desde há décadas. O curto período neoliberal que está prestes a concluir-se apenas inverteu esta tendência provisoriamente: no final dos anos 1990, estes custos eram certamente menos elevados que em 1970, mas eram bem mais importantes que em 1945. Na realidade, o último período de acumulação real - os "trinta gloriosos anos" - só foi possível porque os Estados keynesianos puseram as suas forças ao serviço do capital. Mas, também aí, foi atingido o limite!

Há precedentes da fase actual, tal como a está a descrever?

Houve muitos na história da humanidade, ao contrário do que pretende a representação, forjada no século XIX, de um progresso contínuo e inevitável, inclusive na versão marxista. Prefiro situar-me na tese da possibilidade do progresso, e não na sua inelutabilidade. Com certeza que o capitalismo é o sistema que soube produzir de uma maneira extraordinária e notável mais bens e riquezas. Mas há também que olhar para a soma das perdas - para o ambiente, para as sociedades - que ele provocou. O único bem é aquele que permite obter para o maior número uma vida racional e inteligente.

Dito isto, a crise mais recente parecida à de hoje é o afundamento do sistema feudal na Europa, entre os meados do século XV e do século XVI, e a sua substituição pelo sistema capitalista. Esse período, que culminou com as guerras de religião, vê afundar-se o poder das autoridades reais, senhoriais e religiosas em favor das comunidades camponesas mais ricas e das cidades. Foi aí que se construíram, por pequenos passos sucessivos e de uma forma inconsciente, soluções inesperadas cujo sucesso acabará por "fazer sistema", alargando-se lentamente, sob a forma de capitalismo.

Quanto tempo poderia durar a transição actual, e em que poderia culminar?

O período de destruição de valor que encerra a fase B de um ciclo Kondratirff dura geralmente entre dois e cinco anos antes das condições de entrada numa fase A, quando um lucro real que pode de novo ser extraído de novas produções materiais, descritas por Schumpeter, estiverem reunidas. Mas o facto de esta fase corresponder actualmente a uma crise de sistema fez-nos entrar num período de caos político durante o qual os actores dominantes, à frente das empresas e dos estados ocidentais, vão fazer tudo o que é tecnicamente possível para reencontrar o equilíbrio, mas é muito provável que não o consigam.

Os mais inteligentes, esses, já compreenderam que seria preciso arranjar algo de totalmente novo. Mas múltiplos actores agem já, de forma desordenada e inconsciente, para fazer emergir novas soluções, sem que se saiba ainda que sistema resultará destas tentativas.

Encontramo-nos num período, bastante raro, em que a crise e a impotência dos poderosos deixam um espaço ao livre arbítrio de cada um: existe hoje um lapso de tempo durante o qual nós temos, cada um, a possibilidade de influenciar o futuro pela nossa acção individual. Mas como este futuro será a soma do número incalculável destas acções, é absolutamente impossível prever que modelo se irá impor no final. Dentro de dez anos, talvez vejamos mais claramente; dentro de trinta ou quarenta anos, um novo sistema terá emergido. Creio que é absolutamente possível tanto assistir-se à instalação de um sistema de exploração ainda mais violento que o capitalismo, como ver ao contrário instalar-se um sistema mais igualitário e redistributivo.

As mutações anteriores do capitalismo culminaram muitas vezes num deslocamento do centro da "economia-mundo", por exemplo da Bacia do Mediterrâneo para a costa Atlântica da Europa, e depois para os Estados Unidos da América. O sistema que se segue será centrado na China?

A crise que vivemos corresponde também ao fim de um ciclo político, o da hegemonia americana, encetado igualmente nos anos 1970. Os Estados Unidos continuarão a ser um actor importante, mas jamais poderão reconquistar a sua posição dominante face à multiplicação dos centros de poder, com a Europa ocidental, a China, o Brasil, a Índia. Um novo poder hegemónico, se quisermos retomar o "tempo longo" braudeliano, pode levar ainda uns 50 anos a impor-se. Mas ignoro qual será.

Entretanto, as consequências políticas da crise actual serão enormes, na medida em que os donos do sistema vão tentar encontrar bodes expiatórios para o afundamento da sua hegemonia. Penso que metade do povo americano não vai aceitar o que está em vias de acontecer. Os conflitos internos vão por isso exacerbar-se nos Estados Unidos, que estão na iminência de se transformar no país mais instável politicamente do mundo. E há que não esquecer que nós, os americanos, estamos todos armados...

Immanuel Wallerstein é investigador do departamento de sociologia da universidade de Yale (EUA), ex-presidente da Associação internacional de sociologia, fundador e director do Centro Fernand-Braudel para o estudo da economia dos sistemas históricos e das civilizações da universidade do Estado de Nova York, em Binghamton, e colunista, entre outras publicações, do Esquerda.net

Tradução de Jaime Pinho


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