quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Para uma retomada da razão no mundo árabe-islâmico

Na Espanha islâmica do século 12, marcada por notável desenvolvimento cultural e científico, O filósofo Averróis interpretava Aristóteles, defendia a liberdade da razão e a importância das rupturas. Resgatá-lo pode ser caminho para livrar o Islã de seu longo culto ao imobilismo.

Rodrigo Novaes de Almeida


Na apresentação do livro “Introdução à crítica da razão árabe”, de Mohammed Abed al-Jabri [1], Ahmed Mahfoud e Marc Geoffroy, analisam a estagnação do pensamento árabe-islâmico, por volta do século15. Lançam perguntas sobre o porquê desse processo.

“Do ponto de vista da história geral da cultura humana, o momento em que a cultura árabe-islâmica retoma a chama da Civilização é o do extremo fim da época tardo-antiga, período de decadência filosófica e científica, de “demissão” da razão grega. Na outra extremidade, a cultura árabe-islâmica cede, a partir do século 15, o lugar ao Ocidente cristão, que conhece a partir daí um desenvolvimento intelectual nunca visto e ininterrupto até hoje. Neste sentido, o período de atividade máxima da cultura árabe-islâmica pode, pois, ser considerado como o extremo início de um desenvolvimento intelectual que deveria prosseguir plenamente em outro lugar. Assim, é legítimo, para M. A. al-Jabri, perguntar-se por que a cultura árabe-islâmica jamais superou a fase de pródromo e, no entanto, buscar a resposta para esta pergunta numa comparação entre a experiência árabe-islâmica e as experiências grega antiga e européia.” [2]

“Por que o pensamento árabe-islâmico, com exceção da experiência andalusi que, aliás, não teve nenhuma repercussão notável no mundo muçulmano, jamais conheceu uma auto-superação e se fechou na repetição, ao passo que a história do pensamento grego e, mais ainda, a história do pensamento ocidental moderno foram ambas processos evolutivos contínuos, assinalados por etapas, cada uma das quais constituindo ao mesmo tempo o prosseguimento e a superação da que a precede? Em outros termos, “por que os construtos cognitivos (conceitos, métodos, visões) elaborados na cultura árabe-islâmica na época de seu desenvolvimento durante o período medieval não tiveram a evolução que teria colocado essa cultura em condições de realizar um renascimento intelectual e científico que fosse uma garantia de progresso contínuo, a exemplo do que se produziu na Europa a partir do século 15?” [3]

O atentado de 11 de setembro de 2001, que atingiu os Estados Unidos, perpetrado por fundamentalistas islâmicos, foi o ponto culminante de uma série de atos terroristas. Conforme Abdelwahab Meddeb, escritor e poeta tunisiano, [4], teriam começado em 1979, ano em que Khomeini triunfa no Irã e o Afeganistão é invadido pela antiga URSS.

Uma análise sígnica das imagens dos aviões colidindo com os dois arranha-céus em Nova York nos revela as intrincadas superposições representativas que, como camadas de uma cebola, formam a realidade. As imagens são ‘espetáculo’ num mundo que se apresenta como espetáculo através de ‘extensões’ e ‘amplificadores sensíveis’ tecnológicos, resultantes do processo científico de acumulação (de saber) do que chamamos Ocidente.

O que as imagens revelam além dessa superfície, dessa camada visual e primária do ‘espetáculo’, é a ‘re-ação’ de um outro (o Outro) mundo, um mundo que se tornou ‘re-ativo’ e que existe ‘significativa-mente’ na realidade (nada menos que ‘presença’). Outro é o mundo árabe-islâmico, embora o que se revela no cenário de terror como ‘re-atividade’ seja praticado por uma parcela que não deve representar a sua totalidade, o que seria uma simplificação ‘míope’ (num sentido semiótico), visto que essa parcela – ‘terroristas fundamentalistas islâmicos’ – é sintoma, uma ‘patologia’ que, para entendermos melhor, precisamos recuar no tempo. Antes, contudo, é importante colocar que o ato ‘re-ativo’ (o atentado) foi realizado através do uso da ‘técnica’ (e sua tecnologia) do ‘inimigo’ (o Ocidente).

Mohammed Abed al-Jabri, filósofo marroquino contemporâneo, identifica uma interrupção na atividade de reprodução na cultura árabe-islâmica, que deu lugar “a um estado de inércia, de recuo e de repetição”. Diz ele que “desde então se estabeleceu (...) uma ‘compreensão da tradição encerrada na tradição’, ainda hoje dominante”. Com esse estado de inércia e de recuo, o mundo árabe-islâmico se deparou, nos nossos dias, com um Ocidente que manteve o seu ritmo baseado justamente na marcha de avanços capitaneados pela ‘técnica-tecnologia-ciência’, que desde o Renascimento (século 16) e o Iluminismo (século 18) trouxe consigo o desenvolvimento do saber que resultaria, enfim, naquilo que hoje podemos identificar como “especificidade da modernidade” no Ocidente.

A falta de perspectiva histórica e de objetividade caracteriza o conjunto do pensamento árabe moderno e contemporâneo, resultado de um ‘desvio da razão’ no decorrer do processo que se estabeleceu no ‘mundo-cultura-pensamento’ árabe-islâmico há cerca de oito longos séculos

É imprescindível observarmos o que al-Jabri nota sobre a leitura da história por parte dos fundamentalistas religiosos do Islã. Diz ele que essa leitura “vem de uma concepção religiosa da história, para a qual a história é um instante dilatado no presente, um tempo estendido na vida afetiva, testemunha da luta perpétua e dos eternos sofrimentos padecidos pela afirmação da identidade. E como se declara que a fé e a convicção religiosa é que definem essa identidade, o fundamentalismo eleva o fator espiritual à condição de único motor da história. Quanto aos outros fatores, são considerados secundários, dependentes do espiritual ou coisas que desfiguram o ‘verdadeiro’ curso da história”.

O pensamento árabe-islâmico não se resume, contudo, ao fundamentalismo religioso. Existem outras ‘leituras’, embora o próprio al-Jabri admita que “o olhar árabe liberal sobre a tradição” parte do presente que ele vive, ou seja, do Ocidente. Essa ‘leitura’, portanto, é europeizante e adota “um sistema de referência europeu”. Torna-se oportuno para nós ressaltar a questão do ‘olhar’, termo usado pelo autor, cuja origem sígnica nos remete aos gregos.

Refugiar-se num passado distante e buscar apoio junto a um ancestral fundador, para recuperar a auto-estima. Este é o ‘modus operanti’ do sujeito que habita aquilo que se auto-determina mundo (ou cultura, ou, ainda, pensamento) árabe-islâmico contemporâneo. Daí a tendência a ser, conforme abaliza o filósofo marroquino, em sua maior parte, fundamentalista.

A falta de perspectiva histórica e de objetividade caracteriza o conjunto do pensamento árabe moderno e contemporâneo, resultado de um ‘desvio da razão’ no decorrer do processo que se estabeleceu no ‘mundo-cultura-pensamento’ árabe-islâmico há cerca de oito longos séculos. E é esta ‘razão’ (e ‘desvio’) que deve ser submetida a uma análise e a uma crítica, no entender de al-Jabri, como também do professor Abdelwahab Meddeb.

A esse respeito escreve al-Jabri: “Sem dúvida, um povo só pode pensar o mundo através da sua tradição. Mas uma coisa é pensar através de uma tradição que passou por um desenvolvimento contínuo até o presente, uma tradição de que o presente faz parte integrante, uma tradição continuamente renovada, revisada e criticada; outra coisa é pensar através de uma tradição de desenvolvimento interrompido há séculos, uma tradição afastada do presente pelo profundo abismo que os progressos da ciência cavaram entre ela e a ciência”.

Devemos notar também um outro fenômeno. A língua árabe permaneceu a mesma durante mais de quatorze séculos. O sentimento, portanto, de sacralidade do texto é superdimensionado. Entendemos como sentimento ‘expressão’ de uma ‘lógica do inconsciente’ que aflora no sujeito com tal potência que enfraquece a capacidade de observação analítica e crítica por parte da razão para redimensionar os dados de significação dos objetos em suas devidas categorias ou estádios.

Desde Heráclito e Parmênides, pré-socráticos que divergiam quanto ao ‘caráter’ da realidade, o primeiro em defesa do dinamismo, sendo notória a frase a ele atribuída de que “não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo"; o segundo defendendo uma posição monista, para a qual o movimento seria apenas aparente, um aspecto superficial das coisas, vemos dois ‘olhares’ da realidade que se diferem radicalmente. Entrementes, seja o fluxo ‘orgânico’ do mundo e das coisas do mundo aparente ou não, a língua, como atributo humano, é ‘organismo vivo’, e, como tal, dinâmico. A sacralização da língua árabe em seu ‘congelamento’ consubstancial (língua-pensamento-cultura-mundo) seria também sintoma do ‘desvio da razão’, que provocaria, como bem enxergou al-Jabri, uma redução do texto em meros “receptáculos para todas as sensações e todas as paixões”?

O legado grego para dois mundos

A problemática que perpassa a atividade dos filósofos muçulmanos foi e é a problemática da “conciliação entre razão e transmissão”. E foi também para eles que o legado grego se fez presente, fundamentalmente Platão e Aristóteles, embora o processo tenha sido diverso daquele que se apresentaria mais tarde na cristandade européia. Não poderíamos deixar de ilustrar dois dos mais relevantes filósofos do mundo árabe-islâmico. São eles, em nomes latinos, Avicena e Averróis.

Avicena (980-1037 do calendário cristão) nasceu em Afshana, norte do Irã, e morreu em Hamadhan. Foi o maior nome da filosofia neoplatônica islâmica e da medicina medieval. Teve como mestre Farabi, ao qual deve sua compreensão da “Metafísica” de Aristóteles.

Averróis (1126-1198) nasceu em Córdoba, descendente de uma longa linhagem de eminentes juristas da Espanha muçulmana. Morreu no Marrocos. Os três grandes campos explorados pelo pensamento de Averróis são os seus comentários e a sua interpretação de Aristóteles, a sua crítica de Farabi e de Avicena, que invoca um aristotelismo livre dos contra-sensos que lhe infligira a tradição filosófica oriental, e a sua demonstração do acordo essencial entre a filosofia e a Revelação, como duas expressões distintas de uma única e mesma verdade. Com o renascimento do aristotelismo na Europa do oeste, no fim do século 12, foi imediatamente reconhecido como grande autoridade no pensamento judeu e cristão [5].

O pensamento grego é assim capturado por pensadores de dois mundos que, ao longo dos séculos, coexistiram, co-habitaram espaços comuns, por vezes se chocaram e, outras, dividiram, trocaram e disseminaram entre si conhecimento

Difícil não pensar no que Agostinho e Tomás de Aquino representaram e representam para o pensamento cristão e o que trouxeram para este de Platão e Aristóteles, ao olharmos Avicena e Averróis no pensamento árabe-islâmico. O pensamento grego é assim capturado por pensadores de dois mundos que, ao longo dos séculos, coexistiram, co-habitaram espaços comuns, por vezes se chocaram e, outras, dividiram, trocaram e disseminaram entre si conhecimento.

Foi uma época fértil para o mundo, a cultura e o pensamento árabe-islâmicos nos mais diversos campos da ciência, desde a matemática, passando pela astronomia, até a medicina. Seus pensadores dispensavam tempo e muita energia para formular e levantar questões que, em retrospecto (o que é, para nós, razoavelmente fácil fazer hoje), poderíamos ousar determinar aquele momento específico como um estágio ‘imediatamente’ anterior ao que seria o grande salto – que não veio; e que viria, de outra forma, não no mundo árabe-islâmico (na época aquele que tinha todas as condições para tal), mas no mundo cristão, mais tarde, com o Renascimento e o Iluminismo.

Os campos do conhecimento a serviço da luta pelo poder

Ibn Hazm (994-1063), “o jurista de Córdoba”, considerado o iniciador de um novo momento do pensamento árabe-islâmico, defendia que “tudo que escapa ao domínio do Texto [o Alcorão] é ilimitado, depende da liberdade do homem”, deve ser deixado à sua razão e à sua livre escolha, conforme escreveu al-Jabri em seu livro “Introdução à crítica da razão árabe”.

Mas o que teria acontecido a um mundo tão pleno de potencialidades, tão fértil, que o fizesse estacionar e permanecer nesse estado de inércia séculos e séculos porvir? Precisaríamos prolongar demais os questionamentos e temas aqui abordados, e esta não é a finalidade deste artigo, que aspira apenas delinear caminhos que poderão, noutro momento, ser percorridos pelo leitor por sua própria conta e seu próprio sabor. Entretanto, não seríamos honestos se não assinalássemos alguns esclarecimentos, mesmo que, para tal, exista o risco de nos limitar.

Assim como o que entendemos como mundo cristão, o mundo árabe-islâmico é ricamente heterogêneo. As lutas políticas marcaram e marcam fortemente esses mundos (quais são os mundos não marcados por tais lutas?). E muitos dissídios, sejam eles na esfera religiosa, como também em outras (científica, jurídica, econômica etc.), são determinados por decisões que envolvem lutas pelo poder. O próprio al-Jabri admite que “a influência ideológica e a hegemonia cultural constituem os meios de acesso privilegiados à dominação secular”. Destarte, escolas de diferentes pensamentos e concepções serviriam para legitimar certo grupo no poder.

No âmbito particular do mundo árabe-islâmico, sem esquecermos de toda a sua especificidade, aquelas escolas e aqueles pensadores que em dado momento identificamos como o mais fértil de toda a sua existência, e que defendiam o uso da razão sem que esta se submetesse a uma tradição inapta para fomentar o avanço do pensamento, fracassaram em seus projetos de trazer ao mundo o seu próprio “Renascimento” e “Iluminismo”.

Avicena seria “condenado” por um Avicena posterior de discurso irracionalista, que sobreviveria como projeto de filosofia persa (Irã), unindo-se à filosofia iluminista iraniana. Cabe lembrar que dentro do mundo árabe-islâmico a rivalidade entre “orientais” (o Irã é persa e não árabe) e “ocidentais” (iraquianos, sírios, entre outros) se mantém durante séculos.

A chegada de Averróis ao panorama mundial islâmico, em al-Andalus, retomando e ultrapassando Ibn Hazm, enfrentando a capitulação aviceniana e dedicando-se ao árduo trabalho de compreender e interpretar a obra de Aristóteles foi, talvez, o ápice do pensamento e da filosofia árabes, o legado que muitos defendem hoje como caminho para se desfazer as vicissitudes que estagnaram o mundo árabe-islâmico na Idade Média, tornando-os prisioneiros de um passado “idealizado” e agentes ‘re-ativos’ num mundo ‘hiper-dimensionado’ que não compreendem e que não os compreende (e que acaba por reduzi-los em arquétipos gerais ou específicos – fundamentalistas e terroristas).

Segundo al-Jabri, deve-se recuperar o pensamento averroísta tomando-lhe emprestada a capacidade de ruptura, o que significa romper com o espírito gnóstico de Avicena. Diz ele: “Nós, árabes, vivemos, depois de Averróis, à margem da história (na inércia e no declínio), porque nos agarramos ao momento aviceniano (...) Os europeus, por seu lado, viveram a história de que havíamos saído, porque souberam apropriar-se de Averróis e viver até hoje o momento averroísta”. Momento este que poderíamos definir de forma alegórica como permanente processo (e projeto) de construção de uma “cidade da razão”, ou seja, processo (e projeto) de buscar submeter o maior número de pessoas possíveis ao uso da razão, sendo esta o verdadeiro remédio contra as trevas.

Espera-se, de tal modo, que o mundo árabe-islâmico contemporâneo seja capaz de reencontrar o seu plano de construção da “cidade da razão”, e que o Ocidente também seja capaz de compreender e interpretar o mundo árabe-islâmico, como fez Averróis com Aristóteles e os gregos, para que tenhamos os caminhos do diálogo abertos entre esses dois mundos tão próximos e tão distantes, tão semelhantes e tão diferentes.


[1] Editora Unesp (1997)

[2] p. 21.

[3] p. 21-22.

[4] Também professor de literatura comparada na Universidade de Paris X – Nanterre

[5] Trechos biográficos de Avicena e Averróis retirados do livro “Introdução à crítica da razão árabe”, de Mohammed Abed al-Jabri, Editora Unesp (1997).

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