terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Vigie a mídia

Eduardo Guimarães

Sei que irão me trucidar por dizer isto, mas não concebo a idéia de não ler jornal, de não assistir telejornais, de não deslizar pelos meandros da programação imbecilizante das tevês, de, enfim, não dar mergulhos eventuais em cada parte dessa grande mídia que, queiram os amigos ou não, ainda exerce uma enorme, uma descomunal influência sobre o país.

Como sempre digo, prefiro verdades terríveis a mentiras sem fim. O poder da mídia pode ser uma terrível verdade, mas dizer que esse poder não tem capacidade de transtornar a vida da nação é uma mentira que precisa ter fim, pois, do contrário, esse poder a que me refiro só tenderá a crescer.

Por outro lado, se você for inteligente, se souber usar a lógica, se tiver sensibilidade e sangue-frio suficientes para ver através da indignação que brota ante a mentira, ante o engodo, ante a tentativa de manipular espíritos, poderá extrair daquilo que lhe ofende a consciência os meios para combater essa que é uma anomalia perniciosa de nossa forma de organização social.

Escolhi lutar. Como? Denunciando, apontando erros, identificando estratégias, lendo nas entrelinhas.

Uma coisa é certa: eles (a elite diminuta e conservadora e sua mídia) têm mais informações do que nós (o conjunto da sociedade) sobre muitos setores da realidade contemporânea, ainda que tenhamos informações sobre outros que eles não levarem em conta constitui sua maior fraqueza.

Procuro fazer isso e com foco, responsavelmente. Em vez de sair atirando para tudo quanto é lado, elejo um grupo de veículos poderosos e eminentes (os mais poderosos e eminentes) e os analiso a fundo, de forma a ter conhecimento e autoridade nas minhas críticas.

Não entrarei em digressão escrevendo um rol de meios de comunicação em cada tipo de mídia. Direi que, quando se trata de jornal, escolhi ler o maior em tiragem de exemplares pagos, a Folha, e, de sua leitura, consigo extrair muita informação, até porque o jornal controla um instituto de pesquisas de opinião e de mercado que ostenta os maiores níveis de acerto.

A esta altura, meu leitor médio deve estar bufando e com vontade de me esganar, pois pessoas que dedicam leitura a alguém como eu passaram da fase de ser manipuladas pela mídia, mas, se tivermos o bom senso de ver como a mídia ainda consegue induzir multidões a comportamentos literalmente irracionais, acalmaremo-nos e esperaremos que eu termine de expor minha idéia.

Escrevo sem pressa, para aqueles que gostam de ler e de raciocinar. Assim, depois de tudo isto é que caio no assunto, agora que já lhes preparei o espírito para discutirem comigo, ainda que silenciosamente, a leitura que fiz da Folha de São Paulo do primeiro domingo de fevereiro.

A manchete principal de primeira página diz o que todos estão carecas de saber e que em parte explica por que seria impossível nosso sistema financeiro ter sucumbido à crise que pôs de joelhos o sistema financeiro internacional: “Ganho de banco no país é o mais alto do mundo”.

Pudera, com o spread mais alto do mundo nossos bancos só poderiam ser os mais rentáveis. Onde está a novidade? Na idéia “jamais alardeada à exaustão” de que o governo “popular” de Lula está muito longe de ser “popular”, pois deixa os bancos ganharem aqui o que não ganham em lugar nenhum? Ora, não me façam rir...

Mas onde está a necessidade de repisar acusação feita tantas vezes? Talvez a resposta comece a aparecer no primeiro editorial da Folha na edição do jornal em tela, que trata de brigar contra fenômeno que o veículo vê ocorrer “Nos EUA, no Brasil ou em qualquer outra sociedade”, conforme se vê na última frase do editorial.

A teoria do texto intitulado “Tempo de pacotes” é a de que “ainda que um período recessivo tenda a corroer com rapidez a popularidade de um governante [nota do editor: Ó esperança, és a última que morre], é inegável que o maior risco, no momento, vai na direção oposta. Trata-se de confundi-lo [o governante] com uma espécie de salvador da pátria [A quem se referirá isto, hein?], cujas resoluções antes se comemoram que analisam.

Esperto, o editorialista não foi direto ao ponto, preferindo comer o mingau pelas beiradas, dizendo que a teoria acima refere-se a Barack Obama, que estaria tendo “senso certeiro da simbologia” com as primeiras medidas que tomou, que calaram montes de bocas que haviam reverberado a idéia alucinada de que ele não assumiria tomando medidas de impacto já de saída, depois de uma campanha calcada no lema “change”.

Note-se, porém, que o editorial conclui dizendo que em vez de uma crise muitas vezes desgastar um governante, converte-o em “salvador da pátria” tanto nos EUA quanto no... Brasil.

Bingo!

Podem me dizer apressado, mas eu já venho desconfiando de que a população brasileira viu no noticiário alarmista sobre a crise que ela não é nossa e que o Brasil, além de ter se preparado para ela como nenhum outro país se preparou, está sendo bem conduzido na tormenta.

Logo em seguida, na mesma página A2, vem Clóvis Rossi criticar os defensores do neoliberalismo, que hoje se calam e não são cobrados, e atribuir ao primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, acerto em prever que o capitalismo desregulamentado era um risco. Sobre o Brasil, não falou quem combateu a desregulamentação. Tudo isso depois que Lula discursou criticando os arautos da globalização.

De certo, a manchete de primeira página já desqualificava Lula como crítico da desregulamentação porque os bancos brasileiros são os que mais ganham, ainda que a regulamentação brasileira não difira de qualquer outra que há no mundo, nem nos regimes bolivarianos, porque desregulamentar o mercado financeiro deixou de ser ponto de vista para se tornar imposição que até aqui desafiar significava a virtual quebra de um país.

Mas não haveria de ficar por aí, a tese tinha que ser vendida por completo, o que coube à indefectível Eliane Cantanhêde, que na imperdível coluna “Múltiplas personalidades” completa o serviço, mas deixa escapar uma enormidade, o que torna sua coluna deste domingo imperdível, devido ao que reproduzo o texto logo abaixo:

*

ELIANE CANTANHÊDE

Múltiplas personalidades

PARIS - Há dois Lulas, ou muitos Lulas. O deste momento, de crise nos países ricos e de fórum de países pobres, é o Lula de esquerda, que se vira de costas para Davos e de frente para Belém.

Se fosse hora de crescimento mundial, Lula certamente estaria em Davos com os líderes dos países desenvolvidos, enaltecendo a estabilidade e o ajuste fiscal. Como não é, ficou no Brasil mesmo para se encontrar com Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e Fernando Lugo.

Ironizou "o deus mercado" e os ricos, mandando o FMI ensinar a Obama como gerir os EUA. E aproveitou para, apesar dos cortes no Orçamento, prometer mais um milhão de habitações e ampliação do Bolsa Família para os jovens. Ou seja: um olho na crise, outro na sua popularidade hoje e na campanha de Dilma Rousseff amanhã.

Esses dois Lulas, que se alternam entre o Fórum Econômico e o Fórum Social, dividem opiniões. Como ficou claro num encontro de jornalistas sobre América Latina na Espanha, semana passada.

Em almoços e jantares, brasileiros criticavam o "oportunismo" e o lado marqueteiro de Lula, sempre tirando vantagem de tudo - inclusive dos êxitos alheios. Nas reuniões plenárias e mesas redondas, espanhóis, argentinos, venezuelanos, equatorianos... elogiavam a liderança política e o sucesso administrativo do Brasil e de Lula.

De onde, afinal, vem a boa fama de Lula no mundo? De onde os jornalistas internacionais tiram tanta simpatia por ele? Principalmente da imprensa brasileira, que, por exemplo, como tinha de ser, registrou todo o seu falatório e toda a sua desenvoltura no Fórum de Belém.

Isso mostra como as notícias sobre Lula e seu governo têm imenso espaço e repercussão, soterrando as críticas. Tudo o que ele diz, faz, promete e anuncia tem destaque. O resto fica confinado aos espaços de análise e de opinião.

Está explicada, portanto, a azia de Lula com a imprensa: ele chora de barriga cheia, muito cheia.

*

Francamente, pessoal, sempre vi premeditação na má vontade com que a imprensa brasileira trata Lula, mas essa coluna me abalou tal percepção. A jornalista parece não ter percebido a enormidade que disse.

Eliane simplesmente reconheceu um fato citado por dez entre dez críticos da mídia grande nacional: enquanto é enorme a má vontade com Lula nessa imprensa, no resto do mundo e no Brasil ele se tornou um dos líderes políticos mais admirados.

Eliane, no texto em questão, confessa que não entende por que Lula é tão admirado, já que essa entidade guardiã da verdade suprema do universo, formada pelos jornais e tevês do eixo São Paulo - Rio, detesta o presidente.

Se imprensa, governos e cidadãos do mundo todo, e até a maioria esmagadora dos brasileiros, admiram Lula - penso que pelos resultados de seu governo -, será que o problema não está na imprensa tupiniquim?

Aliás, o texto de Eliane é tão bobo, tão ingênuo, que a poucas páginas dali o ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, com seu estilo de minimizar as graves e reiteradas práticas anti-jornalísticas da Folha, faz um comentário que se choca com o que diz a colunista.

Eliane afirma, na coluna acima reproduzida, que o noticiário é generoso com Lula e que as críticas que se faz a ele ficam confinadas nos espaços destinados a opinião. O ombudsman da Folha, na mesma edição do jornal, mostra como o noticiário não é sempre tão isento assim.

Vejam como suas críticas demolem a teoria de Eliane Cantanhêde sobre isenção do noticiário:

"Carlos Eduardo Lins da Silva – ombudsman da Folha

No dia 24, o jornal acertou ao usar o adjetivo "suposto" em referência ao célebre grampo contra o presidente do STF. Mas, quando o tema era manchete diária, não foi cauteloso. Não demonstrava dúvida sobre o "grampo ilegal". Esse episódio, em que o jornal embarcou acriticamente em informação sem a ter obtido ou comprovado autonomamente, deveria servir para estabelecer determinação pétrea: nenhuma informação exclusiva revelada por outros pode ser considerada verdadeira sem confirmação própria.

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Na quinta, o jornal deu manchete para a ampliação de R$ 873 milhões em gastos sociais do governo federal. Ressaltou ter ocorrido um dia após cortes no Orçamento de R$ 37 bilhões, que não estiveram na capa de quarta. Se o que envolvia valores maiores não era relevante para a primeira página, por que 3% deles foram manchete? Havia assuntos mais importantes, como os entraves a importações e o pacote econômico de Obama.

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Na terça, pela segunda vez em poucas semanas, título de submanchete da capa passa a impressão de que números de desemprego se referem ao Brasil, embora sejam internacionais.

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Como vocês vêem, se ficarmos lendo só as notícias de que gostamos, lendo só os articulistas com os quais concordamos, e se ignorarmos gente que é capaz de causar comoção social quando quer, não teremos como saber o que eles sabem.

Agora, por exemplo, com esse falatório sobre crises não derrubarem popularidade de governantes porque eles acabam sendo vistos como “salvadores da pátria”, a manchetona de primeira página, toda essa pantomima nos leva aonde?

Quem vocês acham que é esse governante que o editorial diz que há no Brasil e que a crise, em vez de desmoralizar, elevou ao status de “salvador da pátria”? O que significa isso, que eles têm informações de que Lula, em vez de cair na impopularidade, manteve-se popular ou até tornou-se mais popular?

A mim pareceu isso que acabo de dizer. Eles têm o Datafolha, sabem mais do que nós. E vocês, como entenderam? Não importa. Tenho certeza de que a maioria percebeu por que temos que vigiar a mídia. E com lupa.

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