terça-feira, 11 de agosto de 2009

Filosofia e Questões Teóricas - texto de Gramsci

Quando se pode dizer que um partido está formado e não pode ser destruído por meios normais



Antonio Gramsci

Antonio Gramsci
Antonio Gramsci














O problema de se saber quando um partido está formado, quer dizer, quando desempenha um papel preciso e permanente, dá lugar a várias discussões e, quase sempre, infelizmente, a uma forma de vaidade que não é menos ridícula nem menos perigosa do que a "vaidade das nações" de que fala Vico. Pode-se dizer, é verdade, que um partido nunca está acabado nem formado no sentido de que qualquer desenvolvimento cria novos comprometimentos e novas tarefas, e no sentido de que para certos partidos se verifica o paradoxo de que eles só estão acabados e formados quando já não existem mais, vale dizer, quando sua existência torna-se historicamente inútil. Assim, posto que qualquer partido não é mais do que uma nomenclatura de classe, é evidente que para o partido que se propõe a anular a divisão em classes, sua perfeição e seu acabamento consistem em não mais existir após a supressão das classes e, portanto, de suas expressões. Mas aqui se quer fazer alusão a um momento particular desse processo de desenvolvimento, ao momento que se segue àquele em que um fato pode existir e não existir, no sentido de que a necessidade de sua existência ainda não se tornou "peremptória", mas depende em "grande parte" da existência de pessoas possuindo um extraordinário poder de volição e uma extraordinária vontade.

Quando um partido se torna "necessário" historicamente? Quando as condições de seu "triunfo", de sua inelutável transformação em Estado estão ao menos em vias de formação e deixam prever normalmente seus desenvolvimentos ulteriores. Mas quando se pode dizer, em tais condições, que um partido não pode ser destruído por meios normais?[2] Para responder a essa questão, é preciso desenvolver um raciocínio: para que um partido exista é necessário que confluam três elementos fundamentais (quer dizer, três grupos de elementos):

1. Um elemento difuso de homens comuns, medianos, que oferecem como participação sua disciplina, sua fidelidade, mas não o espírito criativo e altamente organizado. Sem eles, o partido não existiria, é verdade, mas também é verdade que o partido não existiria com eles "unicamente". Eles constituem uma força na medida em que encontrem os homens que os centralizem, organizem, disciplinem, mas na ausência dessa força de coesão, eles se espalhariam, se dispersariam numa poeira impotente. Não se trata de negar que cada um desses elementos possa se transformar numa força de coesão, mas de considerá-los precisamente no momento em que ainda não o são, ou o são apenas num círculo restrito, politicamente sem efeito e sem consequência.

2. O elemento principal de coesão, que centraliza no plano nacional, que torna eficaz e potente um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, seriam zero ou pouco mais; esse elemento é dotado de uma potente força de coesão, que centraliza e disciplina e igualmente ─ sem dúvida a esse respeito ─ inventa (se se entende "inventar" numa certa direção, seguindo certas linhas de força, certas perspectivas, às vezes certas premissas): é verdade também que sozinho esse elemento não formaria o partido, todavia ele o formaria mais facilmente do que o primeiro elemento considerado. Fala-se de capitães sem exército, mas na realidade é mais fácil formar um exército do que formar capitães. Tanto é verdade que um exército constituído é destruído se lhe faltam os capitães, enquanto que a existência de um grupo de capitães que se põem de acordo entre si, reunidos por objetivos comuns, não demora em formar um exército mesmo lá onde não exista nada.

3. Um elemento intermediário, que deve articular o primeiro ao segundo elemento, colocá-los em relação por um contato não apenas "físico", mas moral e intelectual. Na realidade, para cada partido existem "proporções definidas"[3] entre esses três elementos e atinge-se o máximo de eficácia quando essas "proporções definidas" são realizadas.

Após essas considerações, pode-se dizer que um partido não pode ser destruído, através de meios normais, quando existe necessariamente o segundo elemento ─ cujo surgimento está ligado a certas condições materiais objetivas (e, se esse segundo elemento não existe, todo o raciocínio está esvaziado de sentido) ─ mesmo que seja disperso e errante, pois é então impossível que não se formem os dois outros, quer dizer, o primeiro, que necessariamente forma o terceiro como sua continuação e seu meio de expressão.

É preciso, para que isso ocorra, que seja formada a convicção inquebrantável de que uma solução determinada dos problemas vitais seja necessária. Sem essa convicção, só se formará o segundo elemento, cuja destruição é a mais fácil por causa de seu pequeno número, mas é necessário que esse segundo elemento, se vier a ser destruído, deixe como herança um fermento que lhe permita de se recompor. E onde esse elemento subsistirá melhor e poderá melhor se formar do que no primeiro e no terceiro elementos, que, evidentemente, tornam-se mais homogêneos com o segundo? A atividade que o segundo elemento consagrará à constituição desse fermento é então fundamental: o critério de julgamento desse segundo elemento deverá ser pesquisado: 1. no que ele realmente faz; 2. no que ele prepara para o caso em que venha a ser destruído. É difícil dizer qual dessas duas atividades é a mais importante. Pois, na luta, deve-se sempre prever o fracasso, e a preparação de seus próprios sucessores é uma atividade tão importante quanto a que se faz para vencer.

A propósito da "vaidade" de partido, pode-se dizer que é pior do que a "vaidade das nações", de que fala Vico. Por quê? Porque uma nação não pode deixar de existir e, no fato dela existir, ela é sempre possível, se for necessário, com um pouco de boa vontade e solicitando os textos, encontrar que sua existência é rica de destino e de significação. Em contrapartida, um partido não pode existir em virtude de uma necessidade interna. Nunca se pode esquecer que na luta entre nações, cada uma delas tem interesse em que a outra seja enfraquecida por lutas internas e que os partidos são precisamente os elementos dessas lutas internas. Para os partidos, então, pode-se sempre se questionar se eles existem por sua própria força, em virtude de uma necessidade interior, ou se, ao contrário, sua existência depende de interesses exteriores (e, de fato, nas polêmicas, esse ponto nunca é esquecido, é até um tema sobre o qual se insiste, o que significa ─ e principalmente quando a resposta é evidente ─ que o ataque atingiu o alvo e deixou dúvidas). Naturalmente, deixar-se dilacerar por essas dúvidas é pura estupidez. Politicamente, a questão só tem uma importância momentânea. Na história do que se chama o princípio das nacionalidades, as intervenções estrangeiras a favor de partidos nacionais que perturbavam a ordem interior de Estados antagonistas são inumeráveis, a ponto de que, quando se fala, por exemplo, da política "oriental" de Cavour[4], coloca-se a questão de saber se se tratava de uma "política", vale dizer, de uma linha de ação permanente, ou de um estratagema momentâneo para enfraquecer a Áustria com vistas a 1859 e 1868. Assim, nos movimentos mazzinianos do início de 1870 (exemplo, o caso Barsanti[5]), via-se a intervenção de Bismarck, que, prevendo a guerra contra a França e o perigo de uma aliança ítalo-francesa, pensava, por meio de conflitos interiores, enfraquecer a Itália. Assim, nos acontecimentos de junho de 1914, alguns viam a intervenção do estado-maior austríaco preparando a guerra que viria. Como se vê, a casuística tem mil aspectos e é preciso ter as idéias claras a esse respeito. Se se admite que, seja quem for, faz-se sempre o jogo de alguém, o importante é procurar, por todos os meios, fazer bem feito seu próprio jogo, quer dizer, vencer nitidamente. De qualquer maneira, é preciso desprezar a "vaidade" de partido e substituir essa vaidade pelos fatos concretos. Quanto àqueles que substituem os fatos concretos pela vaidade, ou fazem a política da vaidade, deve-se supor que simplesmente não sejam sérios. Não é necessário acrescentar que, para os partidos, é preciso evitar até mesmo a aparência "justificada" de que se faça o jogo de alguém, sobretudo se esse alguém é um Estado estrangeiro; que, em seguida, se especule sobre isso, ninguém pode evitar.

[Cadernos do cárcere / Notas sobre Maquiavel, a política e o príncipe moderno / 1932-1933]

Antonio Gramsci (1891-1937)

Notas:

[1] Essa "vaidade" é em Vico a atitude das nações que "sempre tiveram a pretensão de se considerar como as primeiras a ter encontrado as comodidades da vida e a ter conservado suas tradições desde as origens do mundo".

[2] Alusão às tentativas de destruição do partido da classe operária pelo fascismo (por meios que não são "normais"): o problema colocado é o da sobrevivência do partido nas massas e nos quadros.

[3] "O teorema das proporções definidas" é uma nota nos Cadernos sobre a teoria das organizações.

[4] Essa alusão visa a atitude de Cavour e do governo piemontês no conflito entre a França e a Inglaterra, de um lado, e a Rússia , de outro, sobre os negócios orientais, que levaria à guerra da Crimeia. Para evitar que a aliança contra a Rússia não ficasse limitada a França, Inglaterra e Áustria ─ o que teria aproximado as potências ocidentais (França e Inglaterra) do inimigo do Piemonte ─ a política Cavour nos anos 1854-1855 teve por eixo a entrada do Piemonte na aliança (acordo de de 10 de janeiro de 1855). A participação piemontesa na guerra aparece, então, mais do que ditada pela iniciativa imediata dos países (Gênova comerciava com Odessa), por considerações de política internacional, sobretudo anti-austríacas.

[5] Em 24 de maio de 1870, o cabo Pietro Barsanti tenta o assalto a uma caserna em Pavia, à frente de uma quarentena de republicanos, aos gritos de "Viva Roma! Viva A República! Abaixo a Monarquia!". Barsanti foi preso e fuzilado em 27 de agosto de 1870.

Fonte: GRAMSCI, Antonio. Note sul Machiavelli sulla politica e sullo Stato moderno. Editori Riuniti, p.28-31.

Fonte secundária: Gramsci dans le texte. Paris: Editions sociales, 1975, p. 456-461

Tradução: Sergio Granja

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