quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Série Gramsci/2009: Hegemonia(texto longo)


Do blog Na pratica a teoria é outra

Esse post, aviso, vai ser longo. Demorou pra escrever, e só sai agora que o Amiano me arrumou a imagem acima.

Aviso também que não tenho muito entusiasmo para discutir a “ortodoxia” da interpretação que se segue. Não que não acredite que toda interpretação é possível, mas, em geral, algumas são; e, no caso de um autor como o Gramsci, cuja obra é uma coleção de fragmentos, o problema é especialmente grave. Minha sugestão é deixar as interpretações circularem e ver que trabalho elas fazem de interessante, sob os vários critérios pelos quais se pode julgar essas coisas.

Enfim, taí o que você queria:

Um analista frio e distanciado

Hegemonia é provavelmente o conceito mais conhecido do Gramsci. Na versão Olavopop, é uma sacanagem tipo maçonaria pela qual os comuna arranjam um monte de emprego público, escrevem livros didáticos, botam o Vaticano no bolso, dominam as redações dos jornais e mandam ele embora. A partir daí, eles passam a repetir um monte de baboseira que é o exato inverso da verdade, e, como nego é burro pra cacete, todo mundo começa a acreditar nisso. Vamos voltar a falar do Olavo no último post ( e não só mal), mas a primeira coisa que deve ser dita sobre hegemonia é: não é isso não.

Porque os caras do Apostos não gostam de mim?

Para começar, uma boa comparação é com a análise do poder do Foucault. No célebre começo do Vigiar e Punir, o rei da França sai pra dar uma volta e toma umas facada. Pegam o sujeito que fez isso e estrupiam ele todo (e o cabra demora pra morrer). O poder é mostrado como um corpo, o corpo do Rei, que é facilmente identificável pela peruca ridícula e pode ser atingido com uma faquinha vagabunda.

Na modernidade, por outro lado, o poder se exerce em uma rede, composta pela legislação, pelo saber científico, pela medicalização do não-adaptado, pelas instituições difusas, cada qual com seu funcionamento, mas pautadas por uma determinada visão moderna de disciplina (que também se vê na fábrica, na burocracia).

E esse poder mais difuso é menos, muito menos frágil do que o poder do reizinho lá. Exemplifico com uma história que me contaram. Numa discussão no CEBRAP, um estudante reclamou que não aguentava mais ficar estudando conceitos abstratos, como Estado; queria estudar coisas concretas. Aí o Giannotti pega um copinho de plástico e pergunta: o que é mais concreto, esse copo ou o Estado, ou o Capitalismo? E o moleque responde, esse copo. O Giannotti esmaga o copo com a mão, vira pro moleque, e diz: agora faz isso com o Estado, ou com o Capitalismo.

Pois bem: o livro do reizinho do começo do Foucault é “O Príncipe”. O livro desse novo poder é o que o Gramsci quis escrever (”O Moderno Príncipe”), sempre dentro da interpretação que o Gramsci dava ao Maquiavel: Gramsci achava que Maquiavel explicando o poder não servia aos príncipes. Os príncipes já sabiam como alcançar e manter o poder. Quem não sabia era o povo.

Mas há uma diferença crucial entre o Gramsci e o Foucault: o poder do Foucault é um negócio descentrado, uma nuvem de redes na qual o poder circula. Para Gramsci, marxista que era, essa nuvem de redes tinha um núcleo duro: a dominação de classe burguesa, à qual correspondia, não apenas a dominação na fábrica, mas também uma visão de mundo que se impunha cada vez mais à medida em que o capitalismo se consolidava, mas tinha sua própria história: o capitalismo também se desenvolvia à medida em que as condições ideológicas, por sua própria dinâmica, se tornavam mais favoráves - com a reforma protestante, por exemplo.

(note-se que Weber, cuja obra Gramsci conheceu muito pouco, não deixou de notar algo parecido, por exemplo, quando falava das semelhanças entre a separação entre produtor e meios de produção na fábrica e administrador e meios de administração na burocracia)

Quando a burguesia consegue articular essa visão de mundo (em grande parte, porque o capitalismo se desenvolve rapidamente), passa a exercer liderança sobre as outras classes, inclusive a classe dominada (em momentos de hegemonia particularmente consolidada). Hegemonia é um conceito que expressa essa idéia de que a classe dominante é a que leva a sociedade em uma determinada direção.

Uma idéia frequentemente levantada como objeção a isso: ora, não há evidência de uma conspiração burguesa para implementar valores burgueses na sociedade, os teóricos do liberalismo eram aristocratas ou padres. Esse é o argumento de quem ainda procura o poder no corpo do rei.

As idéias iluministas surgem a partir de uma dinâmica própria da discussão intelectual da época (cujos participantes eram, em geral, aristocratas ou padres), e têm uma longa pré-história. Muitas delas se originam em países em que o capitalismo era pouco desenvolvido. Mas elas exercem maior influência em países em que o capitalismo se desenvolve cada vez mais rápido, como a Inglaterra e a França (há casos complicados, como a Alemanha - ver Kant sobre a revolução francesa). Usando a expressão do Weber, há uma afinidade eletiva entre o capitalismo e essas maneiras de pensar, e a partir de certo ponto é difícil diferenciar a difusão de um e das outras: quando a Rússia perde a guerra da Criméia, fica claro que precisa se modernizar para sobreviver como Estado: e o desafio, para o qual a elite russa não encontra resposta à altura, é como importar o capitalismo sem aqueles igualitarismos todos.

Não gostou? Quero ver fazer melhor!

Não gostou? Quero ver fazer melhor!

Aí caiu a aristocracia russa. Sobem os bolcheviques ao poder, todos animadinhos. Querem implementar uma coisa totalmente diferente. Uma nova hegemonia (é Lenin quem inventa o termo). Acaba a guerra civil, e o que os bolcheviques fazem? Depois de reprimir os movimentos operários dentro das fábricas e perder o conflito militar contra os camponeses, que eram os verdadeiros autores da revolução (a revanche, sob Stalin, seria um dos piores episódios da história humana), os bolcheviques descobrem que controlam apenas “O Estado czarista caiado de vermelho” (Lenin). E têm que executar exatamente as mesmas tarefas, visto que, ao contrário da burguesia triunfante, por exemplo, na Revolução Gloriosa, não incorporam um poderoso movimento da estrutura econômica em direção à esfera ideológica.

O socialismo não existe enquanto plataforma econômica, a não ser na versão, já completamente aburguesada desde a Segunda Internacional, de completa estatização da economia. Leia-se: estatização das fábricas criadas pela hegemonia burguesa pelo Estado burocrático criado pela hegemonia burguesa. Porque o operariado não conseguiu inventar sua própria unidade de produção e sua própria visão de poder. O projeto de hegemonia operária, pelo menos até agora, fracassou.

O Corpo do Rei

O Corpo do Rei

Para o Gramsci, observando isso aí em tempo real, havia um sinal claro desse fracasso: o terror stalinista. A classe dominante precisa apelar para a coerção contra os dominados quando sua hegemonia entra em crise - quando o capitalismo entra em crise nos anos 30, surge o fascismo para fuzilar os opositores que o liberalismo não conseguia mais cooptar. Em momentos de hegemonia consolidada, o poder se exerce de maneira sutil, pela conversão ideológica, ou porque o modo de produção consegue produzir o suficiente para cooptar os dominados ou classes dominantes rivais. A famosa citação do “imperativo categórico” (algo como: o poder do partido deve ser como um imperativo categórico), que às vezes é lida como “o que o partido disser é verdade absoluta”, na verdade quer dizer: o poder do hegemon é o poder de dar as categorias com as quais mesmo seus rivais se oporão a ele, as idéias fundamentais a partir dos quais se fazem as deduções no debate.

(Quando a Coréia do Norte faz questão de ser chamada de República Democrática da Coréia, é porque a democracia atingiu o ideal gramsciano de idéia hegemônica. Note-se que, por outro lado, quando a hegemonia burguesa entrou em crise, mesmo um movimento reacionário como o nazismo colocou um “socialista”zinho no seu nome).

O Gramsci, portanto, desenvolvia seu conceito de hegemonia diante de dois problemas:

1) o socialismo soviético não conseguiu estabelecer uma hegemonia operária, como se nota pelo fato de que foi necessário o Stalin para preservar o poder soviético. Era óbvio que isso não era o que os operários socialistas da Europa Ocidental de Gramsci tinham em mente para seu futuro Estado. Era preciso explicar (como Maquiavel) ao operariado como exercer o poder sem coerção (mais precisamente, com um mix consenso/coerção pelo menos semelhante ao conquistado pela burguesia em seu domínio).

2) a crise de hegemonia do capitalismo não produziu uma revolução socialista na Europa desenvolvida. Muito pelo contrário: os regimes burgueses regrediram brutalmente diante dos próprios valores da burguesia, e se tornaram abertamente opressivos, com o apoio de setores significativos do operariado (Mussolini, lembremos, era do partido socialista). A ofensiva operária dos anos anteriores foi perfeitamente passivizada (esse termo é importante) pelo fascismo: idéias como planejamento econômico ou partido de massas foram esvaziadas de seu conteúdo anti-capitalista e tornadas moeda comum na discussão burguesa (lembremos que, nos primeiros anos do fascismo, um conservador lúcido como Churchill se entusiasmava com Mussolini; para não falar, naturalmente, de Henry Ford, objeto de numerosas análises de Gramsci).

Antes de entender a solução, uma observação. Vocês já devem ter visto a caracterização do Gramsci como um sujeito que pretende infiltrar todas as instituições da boa sociedade com idéias comunistas. Bem, é possível, também, vê-o como um sujeito tentando introduzir idéias democráticas a partir do vocabulário leninista (indispensável para a eficácia política de seu esforço dentro do partido). Cada um interprete como queira, mas eu acho que há uma boa dose de verdade nessa segunda interpretação, que é a que eu desenvolvo a seguir.

Foi bom estar com vocês! Foi bom brincar com vocês!...

Foi bom estar com vocês! Foi bom brincar com vocês!...

Pois o dogma leninista por excelência é: o instrumento do poder operário é o partido, e o partido deve tomar o Estado. O Gramsci, diante disso, diz: é isso aí. Isso aí, 100%. Concordo com isso com cada fibra de meu ser. Isso está totalmente certo, e aproveito para fazer minha apologia do Lenin e de tudo que ele dizia. Lenin era o cara. Quem não gosta do partido tem mais é que se fuder, mesmo. A proposição “instrumento do poder operário é o partido, e o partido deve tomar o Estado” é perfeitamene correta. Agora, tenho algumas considerações sobre o que quer dizer “Partido” e o que quer dizer “Estado”…(nesse momento, NPTO dá uma risadinha sacana e diz “ooooooléééééééé” para a operação retórica).

É mai num é

O Estado, diria Gramsci, é “mais ou menos aquilo que o Foucault vai dizer daqui a algumas décadas sem me dar o devido crédito por ter dito isso primeiro, careca miserável”. Não é só o que o Hegel chamava de sociedade política, o Estadinho lá, com seu congressinho, seu presidentinho, sua policinha, capitão Nascimento, Sarney, essas coisas. É isso também, bem entendido. Mas também é a articulação disso tudo com a sociedade civil, a escola e as academias que elaboram e desenvolvem a visão de mundo dominante, o saber assim produzido, os sindicatos reformistas e partidos social-democratas que mantém o conflito sob controle, a mídia que fixa os limites do debate, a família que transmite os valores dominantes e consagra hierarquias, etc. Se você conquista o Estado czarista, você caia ele de vermelho e os burocratas que obedeciam o czar obedecem você. Mas de nada adianta conseguir uma adesão puramente externa (quem é que era contra o Stalin na frente dele?) em termos de ideologia, sentimentos, valores, saberes. Ou você consegue convencer, sensibilizar, justificar-se, descrever a realidade, ou você, cedo ou tarde, ao invés de impor sua visão de mundo, vai ser lentamente colonizado pelos dominantes conquistados.

(acho que foi o Lenin, mas pode ter sido o Bukhárin, que disse algo como: os bolcheviques, em seu contato com os burocratas do Estado, eram como um povo bárbaro que conquista um povo civilizado e passa a ser lentamente colonizado pelos conquistados).

Por isso, a política moderna não é guerra de movimento - êêê!!!!vamo conquistá o estado e dar porrada em todo mundo - mas guerra de posição. Hoje você convence aqui, amanhã você sensibiliza ali, depois de amanhã seu adversário produz algo mais convincente que você e você tem que começar tudo de novo, enquanto isso um setor que oscila entre você e o seu adversário sai do seu controle, logo depois uma descoberta científica, sem que tenha sido feita pra isso, fortalece sua visão de mundo, e vamos nessa, que esse jogo é demorado.

(Olha o eco do Maquiavel aí: diferença entre o reino da França e o reino da Pérsia. A Pérsia, como a Rússia, pré-bolchevique, tinha o poder altamente centralizado. A França na época do Maquiavel, como as sociedades ocidentais modernas, tinha o poder altamente disperso. O poder na Pérsia era difícil de conquistar, porque o poder centralizado é ágil na reação, mas, se você conquistar, é fácil de manter, porque todo aquele aparato centralizado agora é seu. O poder na França era fácil de conquistar, porque por quaisquer dez real você conseguia uma conspiração de barões qualquer e tomava o poder, mas era difícil de manter, porque, naturalmente, era com a lealdade desses mesmos barões que você precisava contar para governar. Sim, sim, lembra mesmo)

Ou seja: o Lenin tem razão, tem que conquistar o Estado, mas conquistar o Estado é jogar esse jogo todo. Não é à toa que, no pós-guerra, o partido comunista italiano usou o mártir Gramsci como bandeira para se tornar um partido democrático normal, no que, se vocês me perguntarem, fez muito bem, mas sempre se pode discordar disso. Notem também que, deixando claro que estavam falando das sociedades ocidentais modernas, os eurocomunistas mais ou menos conseguiam livrar a própria cara por apoiar o pós-stalinismo na Rússia (um puta argumento racista).

E o partido? Ah, o partido é exatamente o que o Lenin falou, tem que obedecer o partido. Mas o que é o partido? Não é só o partido = legenda registrada no TSE, ou, como é mais comum com os partidos leninistas de hoje em dia, registrada provisoriamente porque não se consegue eleger ninguém. O partido é um movimento, uma articulação do partido, do sindicato, de movimentos religiosos ou ideológicos de outra natureza, um interesse de desenvolver determinadas áreas da ciência, uma certa sensibilidade artística, movendo-se em determinada direção. Note-se que, quando digo “articulação”, não estou falando de controle de todas essas esferas pelo partido registrado (mesmo que provisoriamente) no TSE. Cada elo dessa corrente se desenvolve por si só, e, se a classe que é o núcleo duro dessa nuvem de redes se tornar hegemônica, a unidade entre elas se desenvolve naturalmente.

Uma classe dominante, inclusive, pode deixar amplos espaços para tendências antagônicas sem perder sua hegemonia, desde que o modo de produção que fundar ainda se desenvolva e os pressupostos básicos de sua cultura ainda convençam. Se o socialismo conseguisse se tornar hegemônico, portanto, poderia facilmente tolerar partidos anti-socialistas; e o fato de que não pode (não tem mais acento isso, certo? É poder no passado) mostra claramente que não se tornou hegemônico.

Parabéns! Mais um parágrafo e você se tornará membro honorário do Foro de São Paulo!

Parabéns! Mais alguns parágrafos e você se tornará membro honorário do Foro de São Paulo!

Resumindo: o conceito gramsciano de hegemonia faz dois trabalhos.

Um é descrever o processo pelo qual uma classe ascendente produz uma nova visão de política e novos valores culturais, e só se torna dominante se conseguir convencer e sensibilizar, além de produzir; a coerção deve ser apenas um elemento secundário e excepcional no exercício de poder hegemônico. Já viram o conceito do Joseph Nye de “soft power”? É por aí. A origem gramsciana da melhor formulação atual sobre o poder, a do Steve Luke, é reconhecida. Nesse sentido, é uma boa idéia para pensar certos processos históricos.

O outro é explicar à esquerda como agir eficazmente na política moderna: sem tentar ir pro pau de qualquer maneira, mas construindo um novo consenso a respeito da maneira certa de viver a partir da experiência das lutas operárias e dos valores igualitários que nada mais são do que uma “heresia da liberdade”. Historicamente, isso levou os partidos comunistas ocidentais a aceitarem a democracia como valor, não apenas como arena.

Claro, o problema é que o operariado (ainda?) não conseguiu produzir uma nova forma de produzir. Nesse sentido, pelo critério marxista, sua chance de construir uma nova hegemonia ainda é zero. O que acontece, então, com esse esforço de construção hegemônica que começa a rodar no vazio por falta de substrato econômico? Esse será o assunto de outro post.

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