segunda-feira, 2 de novembro de 2009

do sitio www.infoalternativa.org


Que haja ricos, não é um direito dos pobres?


Certa vez escrevi que no mundo só existem três tipos de bens: universais, gerais e colectivos.
Os bens universais são aqueles dos quais nos basta que haja um exemplar ou um exemplo para que nos sintamos universalmente tranquilos. São as coisas que estão aí, e que não faz falta apanhar com a mão ou possuir de forma individual: há sol e há lua, há estrelas, há mar, há um Machupichu e um Everest, há um Taj Mahal e uma Capela Sistina, um Che Guevara e um São Francisco, há García Lorca e José Martí e García Márquez e Silvio Rodríguez e Cintio Vitier.
Os bens gerais são aqueles, em contrapartida, que é necessário generalizar para que a humanidade esteja completa. Não basta apenas que haja pão no palácio do príncipe ou que haja uma casa no jardim do conde; essas são as coisas que devem estar aqui, que todos devemos apanhar com a mão ou desfrutar pessoalmente: temos moradia, água, medicamentos e se não as temos é porque alguma coisa não anda bem neste mundo. Não é uma injustiça que haja um único sol no céu ou um único Guernica de Picasso, mas sim que não haja suficiente pão para todos.
Por fim, os bens colectivos são aqueles de cujas vantagens devemos desfrutar todos por igual, mas que não se podem generalizar sem pôr em perigo a existência dos bens gerais e dos bens universais. São aqueles bens, em definitivo, que é necessário partilhar. Trata-se, por exemplo, dos meios de produção, que não se podem privatizar sem que isso deixe sem bens gerais (pão, moradia, saúde) milhões de seres humanos. E trata-se também de alguns objectos de consumo, cuja generalização poria em perigo o bem universal por excelência, fonte e garantia de todos os outros bens: a própria Terra. Todos devemos ter pão e moradia, mas se todos tivéssemos - por exemplo – carro, a sobrevivência da espécie seria impossível. O motor de explosão, portanto, não é um bem geral, do qual cada um de nós possa ter um exemplar, mas um bem colectivo cujo uso haverá que partilhar e racionalizar.
Ao longo da história, diferentes classes sociais apropriaram-se dos bens gerais e dos bens colectivos, e nisto o capitalismo não se distingue de sociedades anteriores. Mais inquietante é o que o capitalismo fez, ou está em processo de fazer, com os bens universais. Não me refiro apenas à colonização do espaço, à privatização das ondas, das sementes e das cores ou ao desaparecimento de espécies, montanhas e selvas. Refiro-me, sobretudo, à desvalorização mental que os “universais” sofreram sob a corrosão antropológica do mercado. O normal é comprazer-se na visão das estrelas; o normal é comprazer-se contemplando o suave balanceio da neve; o normal é comprazer-se com a leitura do Canto Geral de Neruda. Ou não? Em 1895, Cecil Rhodes, imperialista inglês, empresário e fundador da companhia De Beers (dona de 60% dos diamantes do mundo), contemplava mal humorado os astros da sua janela, «tão claros e tão distantes», tão longe do seu apetite imperial que «queria e não podia anexá-los». Numa escala mais pequena, um apresentador da televisão espanhola lamentava em 2005 que não tivesse que pagar por contemplar a neve, tão branca e tão formosa, que cobria os campos e cidades de Espanha e que perdia de algum modo o seu prestígio oferecendo-se indiscriminadamente ao olhar de todos por igual. E, numa escala ainda mais pequena, conheci um poeta que não podia ler os versos de Neruda sem se enfurecer: «Teria que tê-los escrito eu!». É coisa de crianças querer a Lua e de mães corruptoras prometê-la. O capitalismo é um infantilismo destrutivo. Isola o rasgo pueril de uma criança mal-educada e generaliza-o, normaliza-o, recompensa-o socialmente. O que está aí, que não podemos apanhar com as mãos, o que é por isso mesmo de todos, empobrece-nos, entristece-nos e não vale nada.
O que resta dos bens universais? Ficam os ricos. Os ricos são de todos. O que mais nos agrada do capitalismo não é que produza carros e aviões e hotéis e máquinas: é que produz ricos. As orgias babilónicas de Berlusconi, as pensões milionárias dos banqueiros espanhóis no meio da crise, o luxo cafona dos políticos corruptos de Valência e de Madrid, não são manchas ou pecados do capitalismo: são pura publicidade. A lista dos homens mais ricos do mundo elaborada pela revista Forbes não é mais que bárbara ostentação propagandística que gera muita mais adesão ao sistema que o acesso desigual a mercadorias baratas e banais. Existe algo de estranho que as mulheres latino-americanas, questionadas sobre o seu “marido ideal”, o imaginem estadunidense, loiro, de olhos claros, altíssimo, cirurgião ou empresário e, evidentemente, milionário? Ou que na nova China o pai com que sonham as jovens mães seja Bill Gates? Ou que na lista das dez personalidades mais admiradas pelos homens estadunidenses não haja um único escritor ou cientista, quase todos sejam executivos ou proprietários de empresas e todos imensamente ricos? Ou que a revista de maior tiragem de Espanha – com quase 700.000 exemplares – seja a Hola? Ou que os mais famosos enlatados e telenovelas da TV, seguidos por milhões de espectadores, consistam em tratados de antropologia das classes altas (seus hábitos, seus problemas, seus prazeres)?
Se os pobres não podem partilhar a riqueza, podem ao menos partilhar os seus ricos. Se não podem consumir riqueza, podem consumir vidas de ricos. Bill Gates, Carlos Slim, Warren Buffet, Amancio Ortega são a Lua e o Machupichu e a Capela Sistina e o Taj Mahal do capitalismo. São o Sol e a Neve e o Canto Geral do mercado globalizado. Podem ser os responsáveis por o mundo vir abaixo, mas são também os artífices deste milagre: o de estarmos muito contentes e tudo nos parecer bem enquanto desabamos.
Quem quer igualdade? A desigualdade, não é um direito dos pobres? Que haja milionários, não é um direito dos mil-euristas? Não devemos defender, de armas na mão, o nosso direito a que outros sejam ricos? Não devemos agradecer-lhes as suas extravagâncias? Não devemos pelo menos votar neles?
Esse é o modelo que os EUA e a Europa tentam impor ao resto do mundo. Não o direito a que haja estrelas e Machupichu e cataratas de Iguaçu e Nona Sinfonia de Beethoven, mas a que haja ricos; não o direito a pão e casa e sapatos, mas a saber quem são e como vivem os milionários.
Revolução? O Pão e a Lua.

(Subentendendo-se que “pão”, no dicionário socialista, quer dizer também leite e roupa e casa e hospitais e transportes públicos; e “lua” quer dizer também mar e música e verdades e soberania política).
 

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