quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O estado da agricultura angolana


  Por Roberto Blum - CorreioInternacional

Segundo os dados oficiais, a produção agrícola de Angola está aumentando. Pela primeira vez a barreira de um milhão de toneladas de cereais foi atingida. Acredita-se que a produção de café tenha chegado ao dobro da do ano passado. Os rebanhos de gado bovino de raças importadas ampliaram-se, assim como melhorou o desempenho de alguns empreendimentos pecuários. Os números de empreendimentos de média e grande dimensão e de empregos cresceram. O consumo de fertilizantes foi ampliado e o governo aprovou duas linhas de crédito para investimentos e custos operacionais da campanha agrícola.
A situação melhorou efetivamente, mas estamos longe, muito longe, do que deveria ser feito. As estatísticas não são suficientemente credíveis para se avaliar a real dimensão dessa melhoria. Em Angola não há práticas de monitoria e avaliação independentes dos empreendimentos públicos. O mais preocupante é que estas melhorias acontecem de forma puntual, não constituem reflexo de uma mudança estratégica de fundo e não estão associadas a reformas estruturantes que possam vir a garantir a sustentabilidade das ações.
Promessas irrealistas
Por ocasião das eleições de 2008, o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola, partido político que dirige o país deste 1975] prometeu aos angolanos metas de produção agropecuária ambiciosas para 2012. Por exemplo, a produção de cereais passaria de 700 mil toneladas para 15 milhões, ou seja, aumentaria mais de 20 vezes em quatro anos, o que seria  absolutamente inédito. Foi denunciada a falta de realismo dessas metas em Maio de 2008.
Após um ano, o panorama não é animador. Principalmente no que se refere aos aspectos estruturantes, aqueles que condicionam a produção. A reforma da pesquisa promete muito mas concretiza pouco. Um centro construído em Malanje [capital da província angolana de mesmo nome, situado no centro-norte do país] e equipado com três laboratórios desde 2006, em um investimento de mais de dois milhões de dólares, ainda não entrou em funcionamento. Programas de capacitação de agricultores aprovados há mais de um ano e com financiamento externo garantido, não iniciaram por problemas de pormenor. Não há uma estratégia adequada para estimular a instalação generalizada de provedores de serviços públicos ou privados nos municípios, em mais de 90% dos quais os agricultores não conseguem sequer comprar sementes e ferramentas usuais, nem obter conselhos técnicos elementares. O consumo de fertilizantes chegou a 30 mil toneladas, quando, segundo a FAO, já há muito deveríamos ter ultrapassado as 400 mil.
As linhas de crédito aprovadas tardam a ser concretizadas para desespero dos agricultores e o acesso ao que existe é limitado, quer por deficiências do sistema bancário, concentrado nas capitais de província e demasiado exigente nos requisitos para financiamento de necessidades elementares dos agricultores, quer pela incapacidade desses agricultores de apresentarem projetos credíveis. Nos últimos anos foram adquiridos tratores e equipamentos em quantidades e valores consideráveis que têm uma vida útil média inferior a dois anos, possivelmente uma das mais baixas do mundo, e não são dados os passos necessários para a definição de uma política sensata de mecanização, que tenha em conta o estado atual de organização e as capacidades institucionais e de recursos humanos, e preveja os níveis de intensificação, o tipo de equipamento, a formação de técnicos e de operários especializados e o uso de métodos modernos de planejamento estratégico e de gestão.
Cooperativas de serviços
As cooperativas de serviços poderiam ser uma solução para estes problemas, mas a legislação cooperativa está desatualizada e a nova lei aguarda aprovação há vários anos. Mesmo o ambiente do agronegócio também não é o melhor, pois a maior parte dos empresários são agricultores em tempo parcial, colocando à frente dos seus empreendimentos gestores geralmente pouco qualificados.
Para que serve investir no conhecimento se o petróleo paga tudo, inclusive o conhecimento que vem de fora para dar respaldo a decisões políticas sem fundamento? O que as pessoas parecem ignorar, ou, na esteira de uma outra prática, desejam que não aconteça e confundem tal desejo com a realidade, é que o petróleo tem os anos contados, o que torna o conceito de desenvolvimento sustentável para Angola mais pertinente do que nunca.
E o conhecimento, afinal, está aí à mão. Em meados da década de 90, uma equipe da FAO explicou ao governo angolano que a sua aposta deveria ser, prioritariamente, na agricultura familiar. Os pequenos agricultores constituem a maioria, encontram-se no terreno e já provaram que podem expandir a produção, de modo a garantir sua alimentação básica e fornecer bens para o mercado, incluindo o internacional, o que está estatisticamente comprovado desde antes de 1975. Ademais, o crescimento da produção familiar teria grande impacto na economia nacional, na geração de emprego e na erradicação da pobreza, pois a produção acrescida em unidades de pequena dimensão resulta em uma melhor utilização dos recursos domésticos – sobretudo terra e trabalho –, exige poucas divisas para maquinaria, fertilizantes, pesticidas e conhecimento estrangeiro, e por isso torna-se menos dependente.
Uma política a favor da agricultura familiar assegura desde logo a alimentação de um número elevado de famílias, resulta numa expansão mais justa de benefícios do desenvolvimento econômico, contribui para padrões de vida rural mais elevados e incentiva o consumo, e, consequentemente, estimula a expansão industrial em Angola, como aconteceu no passado com o famoso boom econômico dos anos 60 e 70. Enfim, uma economia rural próspera reduziria os fatores de pressão que induzem a migração para as cidades, e o aumento dos rendimentos dos pequenos agricultores poderia tornar-se o motor do desenvolvimento rural e, por conseguinte, a chave para uma redução da pobreza estrutural.
Parece simples, não é verdade? Mas não é novidade. O agrônomo francês Renê Dumont já havia sugerido algo semelhante aos governantes africanos no início dos anos 60 e as suas ideias foram compiladas num livro que ficou célebre, A África começa mal, que lhe valeu a interdição de entrada em vários países do continente. Perante o desastroso desempenho da agricultura africana, nos anos 80 ele voltou à luta com novo livro, Pela África, eu acuso!, que poderia bem ter outro título: “Eu não vos avisei?”. O que aconteceu foi que, ao contrário do discurso oficial, o Governo angolano não foi capaz de implementar ao longo destes anos uma política justa de desenvolvimento da agricultura familiar, que permitisse a transformação dos camponeses em pequenos ou médios empresários, a melhoria tecnológica, o aumento da produtividade da terra e do trabalho, o aumento da renda familiar e até a garantia da posse da terra.
Nas áreas rurais não há comércio formal e o informal é intermitente e penalizante para os produtores. E deste modo não há incentivos. Não há serviços sociais básicos, como o acesso à água potável, à saúde, à escola – ou não há com a qualidade desejável – que possam estimular a presença de jovens nas suas aldeias, preferindo estes partir para as cidades para viverem de biscates. Serviços estruturados de extensão rural e de medicina veterinária ainda são uma miragem. Os bancos estão geográfica e estruturalmente a uma enorme distância. A pesquisa científica e as instituições públicas em geral quase ignoram a existência da agricultura familiar. Assim, não poderia contribuir para a diversificação da economia. Pior que tudo, instalou-se a ideia de que a agricultura familiar, essa mesma que foi responsável pela alimentação dos angolanos e pela exportação no passado, era, afinal uma agricultura de subsistência, e, por isso, condenada à estagnação.
Agronegócio e agrocombustíveis
O governo angolano caminha, então, no sentido oposto ao indicado pela FAO e por Dumont. Em vez de aplicar uma política de transformação gradual de sua agricultura que possa garantir a segurança alimentar, aposta na “importação” de uma outra agricultura, baseada no agronegócio e nos agrocombustíveis, para a qual o país ainda não está preparado e só o voluntarismo e o fascínio dos angolanos pela “modernização” a qualquer preço explicam essa aposta. Hoje isso é possível, com os meios técnicos e científicos de que a humanidade dispõe, mas é insuportável porque os custos de produção são assustadores.
Se a crise financeira trouxe algo de positivo, uma delas foi o alerta para algumas das opções governamentais e particulares extremamente dispendiosas e com resultados mais do que duvidosos. Há já alguns sinais de dificuldades, insucessos e falências que alguns julgavam impensáveis. Por incrível que possa parecer, algumas das grandes empresas têm transtornos para vender o milho produzido, pois não têm organização nem experiência para enfrentar dificuldades inesperadas. Mas esta é também uma aposta que vai conduzir, inevitavelmente, à exclusão da maioria dos agricultores angolanos e à degradação da biodiversidade, o que terá consequências sociais, políticas e ambientais desastrosas.
Uma aposta que, como diria Mia Couto [célebre escritor moçambicano], pode produzir ricos ou endinheirados, mas nunca a riqueza de que necessitamos para sermos um povo desenvolvido.

Fernando Pacheco


Tradução: Roberto Blum


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Fotografia retirada daqui

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