Velhas e novas formas de ameaças à liberdade de expressão
Ao contrário do que afirma a grande
imprensa, as ameaças à liberdade de expressão no país não vêm das
iniciativas de regulação da mídia. No Brasil, é o sistema de concessões e
renovação de outorgas de rádio e TV um dos principais mecanismos de
concentração da propriedade da mídia e ausência da pluralidade de vozes
nos meios de comunicação. Por outro lado, as verbas governamentais para
publicidade se transformaram numa nova maneira de influenciar a
cobertura dos veículos impressos.
Bia Barbosa - Carta Maior
Desde 2009, quando o tema da regulação e
controle social da mídia ganhou espaço no debate público nacional com a
realização da I Conferência Nacional de Comunicação, os grandes meios
têm dedicado espaço considerável em suas páginas ou telejornais para
bradar, sem cessar, que a liberdade de expressão está ameaçada no país.
Foi esta a tônica da cobertura das resoluções da I Confecom; tem sido
este um dos motivos para os ataques da imprensa ao Programa Nacional de
Direitos Humanos; e foi este o discurso professado sem constrangimentos
pelas entidades apoiadoras do Instituto Millenium, que recentemente
realizou um seminário em São Paulo onde os donos da mídia garantiram que
há censura estatal no Brasil.
No entanto, em um outro seminário, também realizado em São Paulo, esta semana, desta vez no Memorial da América Latina, o debate sobre liberdade de expressão ganhou outros contornos. E deixou claro que os limites e supostas ameaças a este direito fundamental em nosso país são de outra ordem e têm raízes muito mais profundas do que querem nos fazer crer os grandes empresários da comunicação.
Numa palestra elucidadora, o pesquisador e ex-professor da Universidade de Brasília, Venício Lima, apontou o sistema de concessões e renovação das outorgas de rádio e televisão como um lócus privilegiado para a manutenção de interesses privados – disfarçados de públicos –, que na prática caracteriza uma das maiores ameaças à liberdade de expressão no país. Segundo Lima, o funcionamento das concessões de radiodifusão no Brasil gerou um fenômeno agora conhecido por “coronelismo eletrônico”, só que em vez do controle da terra, como acontecia na República Velha, hoje é o controle dos meios de comunicação de massa que leva seus proprietários ao controle político de diferentes regiões do país.
“Não é novidade que os políticos locais tenham vínculos com a mídia, não apenas no nordeste. São governadores, deputados estaduais, senadores, que formam verdadeiras oligarquias regionais. Os nomes também são conhecidos: Sarney, Garibaldi, Collor, Magalhaes, Jereissati etc”, conta Venício Lima. “A moeda de troca continua sendo o voto, mas agora com base no controle da informação e na influência da opinião pública. A recompensa é antecipada aos coronéis pelas outorgas de rádio e TV, que depois são renovadas automaticamente”, explica.
Segundo o pesquisador, há uma série de normas e procedimentos legais das concessões que têm permitido e perpetuado essa situação, ameaçadora para a liberdade de expressão do conjunto da população brasileira. Uma delas, prevista na Constituição Federal, cria assimetrias em relação aos demais concessionários de serviços públicos. Ao contrário de outras áreas, onde o poder concedente pode cancelar contratos de concessão caso o serviço não esteja sendo cumprido a contento, na radiodifusão, para uma concessão não ser renovada são necessários dois quintos de votos nominais, ou seja, abertos, do Congresso Nacional.
“Diante do poder da mídia, é improvável que um processo de não renovação chegue a ser votado. Menos provável ainda que uma concessão não seja renovada por quem depende da televisão para sua sobrevivência política. Não há na história do Brasil um projeto de não renovação que tenha sido sequer apresentado no Congresso”, afirma. “Já o cancelamento de uma concessão durante sua vigência só ocorre com decisão judicial”, acrescenta.
Os critérios para definição dos concessionários de rádio e televisão também não têm relação com o que a legislação brasileira estabelece para o serviço de radiodifusão. Os princípios que devem orientar a programação das emissoras, por exemplo, previstos no Art.221 da Constituição, não são usados como critério. Tão pouco o respeito à complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação e à regra que proíbe o monopólio da mídia.
“Sem falar dos casos em que os próprios representantes do coronelismo eletrônico votam em benefício próprio. Como a Constituição compartilha entre o Executivo e o Congresso Nacional o poder de outorga, há casos de senadores e deputados votando na renovação de suas próprias concessões”, critica Venício Lima. “O resultado é a formação de um sistema de radiodifusão protagonizado pela concentração privada, e onde há uma clara assimetria na disputa eleitoral entre aqueles que usam as concessões em benefício próprio e aqueles que não têm acesso a este serviço público”, completa.
Independência editorial
Se por um lado o sistema de outorgas de rádio de TV historicamente tem contribuído para limitar a liberdade de expressão no país, o seminário no Memorial chamou a atenção para uma nova ferramenta que, de forma indireta, pode trazer conseqüências na linha editorial dos veículos, sobretudo dos impressos: a publicidade governamental.
Para o jornalista Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo e articulista do jornal O Estado de S.Paulo, a influência do poder político no funcionamento dos meios de comunicação através da publicidade oficial tem crescido nos últimos anos. Levantamento do Grupo de Mídia São Paulo, que faz uma avaliação anual do tamanho do mercado anunciante no Brasil, mostrou que em 2008 foram gastos R$ 23 bilhões em publicidade no país. O maior anunciante são das Casas Bahia, com R$ 3 bilhões. Somados, todos os governos municipais, estaduais e federal totalizaram R$ 2,7 bilhões. Somente o governo de São Paulo saltou de R$ 59 milhões de publicidade oficial em 2007 para R$ 158 milhões em 2008. Os Ministérios da Educação, do Turismo e da Saúde, juntos, gastaram R$ 628 milhões no mesmo ano.
“Por meio da verba governamental, interesses dos governos adquirem uma entrada privilegiada nas redações dos jornais, influenciando na pauta e minando a liberdade de imprensa. Tenho dúvidas sobre a necessidade e pertinência do Poder Executivo ser um anunciante tão grande”, questiona Bucci. “Na prática, os anúncios são a continuação da propaganda eleitoral fora do período de campanha. Não é à toa que são feitas pelas mesmas equipes, com a mesma linguagem”, acredita.
Com este tipo de política, na opinião do jornalista, abre-se espaço para um tipo de pressão do governo sobre jornais de porte médio ou pequeno, onde a presença do anúncio público pode representar a diferença entre a viabilidade econômica e a falência. “A força de pressão que o controlador da verba pública tem sobre essas publicações é imensa. Direta ou indiretamente as oligarquias que controlam as verbas públicas acabam interferindo na pauta desses jornais”, afirma.
Bucci admite que há uma chantagem mútua neste processo, onde muitos veículos também podem pressionar governos por mais anúncios em troca de uma cobertura favorável ou não às administrações públicas. “É um ecossistema. Este tipo de pressão existe de um lado e de outro e setores do mercado e do Estado se associam nesta simbiose”, diz.
Um caminho apontado no seminário para garantir a independência editorial dos veículos de pequeno e médio porte foi a criação de linhas de financiamento e fomento público para órgãos de comunicação, prática bastante difundida nos países europeus e também nos Estados Unidos e que ainda não se tornou realidade no Brasil.
A convidada internacional do seminário, a jornalista Liza Shepard, ombudsman da Rádio Pública Nacional (NPR) dos Estados Unidos, concordou. Com a crise econômica que atravessa o país e a queda nas vendas dos jornais impressos diante do boom da internet, pela primeira vez algumas empresas americanas privadas de comunicação começam a pensar em ajuda governamental.
“Vivemos um tempo de instabilidade e revolução na mídia. Se o governo ajuda a indústria bélica, automobilística, porque não pode fazer o mesmo com a indústria de notícias? É algo que ainda está em discussão”, conta.
Hoje, no entanto, a independência editorial da NPR é garantida em parte por sua forma de financiamento. Somente 2% dos 150 milhões de dólares de seu orçamento anual vêm do governo dos Estados Unidos. A NPR não é uma emissora, e sim uma produtora de conteúdo para rádios públicas que tira a maior parte de seu sustento da venda de programação para 900 emissoras em todo o país. Sua programação atinge 34 milhões de pessoas, das quais 10%, todos os anos, doam recursos para a sustentação das rádios.
“Pode o governo fazer parte do financiamento e não controlar nada editorialmente? Sim. É assim que funciona nos EUA. A NPR é um exemplo positivo de como uma mídia pública pode operar de forma independente de um governo”, conclui Liza.
No entanto, em um outro seminário, também realizado em São Paulo, esta semana, desta vez no Memorial da América Latina, o debate sobre liberdade de expressão ganhou outros contornos. E deixou claro que os limites e supostas ameaças a este direito fundamental em nosso país são de outra ordem e têm raízes muito mais profundas do que querem nos fazer crer os grandes empresários da comunicação.
Numa palestra elucidadora, o pesquisador e ex-professor da Universidade de Brasília, Venício Lima, apontou o sistema de concessões e renovação das outorgas de rádio e televisão como um lócus privilegiado para a manutenção de interesses privados – disfarçados de públicos –, que na prática caracteriza uma das maiores ameaças à liberdade de expressão no país. Segundo Lima, o funcionamento das concessões de radiodifusão no Brasil gerou um fenômeno agora conhecido por “coronelismo eletrônico”, só que em vez do controle da terra, como acontecia na República Velha, hoje é o controle dos meios de comunicação de massa que leva seus proprietários ao controle político de diferentes regiões do país.
“Não é novidade que os políticos locais tenham vínculos com a mídia, não apenas no nordeste. São governadores, deputados estaduais, senadores, que formam verdadeiras oligarquias regionais. Os nomes também são conhecidos: Sarney, Garibaldi, Collor, Magalhaes, Jereissati etc”, conta Venício Lima. “A moeda de troca continua sendo o voto, mas agora com base no controle da informação e na influência da opinião pública. A recompensa é antecipada aos coronéis pelas outorgas de rádio e TV, que depois são renovadas automaticamente”, explica.
Segundo o pesquisador, há uma série de normas e procedimentos legais das concessões que têm permitido e perpetuado essa situação, ameaçadora para a liberdade de expressão do conjunto da população brasileira. Uma delas, prevista na Constituição Federal, cria assimetrias em relação aos demais concessionários de serviços públicos. Ao contrário de outras áreas, onde o poder concedente pode cancelar contratos de concessão caso o serviço não esteja sendo cumprido a contento, na radiodifusão, para uma concessão não ser renovada são necessários dois quintos de votos nominais, ou seja, abertos, do Congresso Nacional.
“Diante do poder da mídia, é improvável que um processo de não renovação chegue a ser votado. Menos provável ainda que uma concessão não seja renovada por quem depende da televisão para sua sobrevivência política. Não há na história do Brasil um projeto de não renovação que tenha sido sequer apresentado no Congresso”, afirma. “Já o cancelamento de uma concessão durante sua vigência só ocorre com decisão judicial”, acrescenta.
Os critérios para definição dos concessionários de rádio e televisão também não têm relação com o que a legislação brasileira estabelece para o serviço de radiodifusão. Os princípios que devem orientar a programação das emissoras, por exemplo, previstos no Art.221 da Constituição, não são usados como critério. Tão pouco o respeito à complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação e à regra que proíbe o monopólio da mídia.
“Sem falar dos casos em que os próprios representantes do coronelismo eletrônico votam em benefício próprio. Como a Constituição compartilha entre o Executivo e o Congresso Nacional o poder de outorga, há casos de senadores e deputados votando na renovação de suas próprias concessões”, critica Venício Lima. “O resultado é a formação de um sistema de radiodifusão protagonizado pela concentração privada, e onde há uma clara assimetria na disputa eleitoral entre aqueles que usam as concessões em benefício próprio e aqueles que não têm acesso a este serviço público”, completa.
Independência editorial
Se por um lado o sistema de outorgas de rádio de TV historicamente tem contribuído para limitar a liberdade de expressão no país, o seminário no Memorial chamou a atenção para uma nova ferramenta que, de forma indireta, pode trazer conseqüências na linha editorial dos veículos, sobretudo dos impressos: a publicidade governamental.
Para o jornalista Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo e articulista do jornal O Estado de S.Paulo, a influência do poder político no funcionamento dos meios de comunicação através da publicidade oficial tem crescido nos últimos anos. Levantamento do Grupo de Mídia São Paulo, que faz uma avaliação anual do tamanho do mercado anunciante no Brasil, mostrou que em 2008 foram gastos R$ 23 bilhões em publicidade no país. O maior anunciante são das Casas Bahia, com R$ 3 bilhões. Somados, todos os governos municipais, estaduais e federal totalizaram R$ 2,7 bilhões. Somente o governo de São Paulo saltou de R$ 59 milhões de publicidade oficial em 2007 para R$ 158 milhões em 2008. Os Ministérios da Educação, do Turismo e da Saúde, juntos, gastaram R$ 628 milhões no mesmo ano.
“Por meio da verba governamental, interesses dos governos adquirem uma entrada privilegiada nas redações dos jornais, influenciando na pauta e minando a liberdade de imprensa. Tenho dúvidas sobre a necessidade e pertinência do Poder Executivo ser um anunciante tão grande”, questiona Bucci. “Na prática, os anúncios são a continuação da propaganda eleitoral fora do período de campanha. Não é à toa que são feitas pelas mesmas equipes, com a mesma linguagem”, acredita.
Com este tipo de política, na opinião do jornalista, abre-se espaço para um tipo de pressão do governo sobre jornais de porte médio ou pequeno, onde a presença do anúncio público pode representar a diferença entre a viabilidade econômica e a falência. “A força de pressão que o controlador da verba pública tem sobre essas publicações é imensa. Direta ou indiretamente as oligarquias que controlam as verbas públicas acabam interferindo na pauta desses jornais”, afirma.
Bucci admite que há uma chantagem mútua neste processo, onde muitos veículos também podem pressionar governos por mais anúncios em troca de uma cobertura favorável ou não às administrações públicas. “É um ecossistema. Este tipo de pressão existe de um lado e de outro e setores do mercado e do Estado se associam nesta simbiose”, diz.
Um caminho apontado no seminário para garantir a independência editorial dos veículos de pequeno e médio porte foi a criação de linhas de financiamento e fomento público para órgãos de comunicação, prática bastante difundida nos países europeus e também nos Estados Unidos e que ainda não se tornou realidade no Brasil.
A convidada internacional do seminário, a jornalista Liza Shepard, ombudsman da Rádio Pública Nacional (NPR) dos Estados Unidos, concordou. Com a crise econômica que atravessa o país e a queda nas vendas dos jornais impressos diante do boom da internet, pela primeira vez algumas empresas americanas privadas de comunicação começam a pensar em ajuda governamental.
“Vivemos um tempo de instabilidade e revolução na mídia. Se o governo ajuda a indústria bélica, automobilística, porque não pode fazer o mesmo com a indústria de notícias? É algo que ainda está em discussão”, conta.
Hoje, no entanto, a independência editorial da NPR é garantida em parte por sua forma de financiamento. Somente 2% dos 150 milhões de dólares de seu orçamento anual vêm do governo dos Estados Unidos. A NPR não é uma emissora, e sim uma produtora de conteúdo para rádios públicas que tira a maior parte de seu sustento da venda de programação para 900 emissoras em todo o país. Sua programação atinge 34 milhões de pessoas, das quais 10%, todos os anos, doam recursos para a sustentação das rádios.
“Pode o governo fazer parte do financiamento e não controlar nada editorialmente? Sim. É assim que funciona nos EUA. A NPR é um exemplo positivo de como uma mídia pública pode operar de forma independente de um governo”, conclui Liza.
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