quinta-feira, 6 de maio de 2010

As contradições do mundo capitalista...


A Cancún que ninguém vê fala 50 línguas 'proibidas' e não pode ir à praia

Indispensáveis para o funcionamento do turismo no balneário mexicano, centenas de milhares de pessoas vivem e trabalham em condições precárias, além de sofrerem discriminação racial
As águas azuladas de Cancún, cidade conhecida como a “pérola do Caribe”, permeiam o sonho de turistas do mundo todo. Principal destino do México, o município de cerca de 700 mil habitantes recebe mais de três milhões de turistas a cada ano – a grande maioria vinda dos Estados Unidos, seguidos por canadenses e espanhóis. A matéria foi feita pela jornalista Natalia Viana para o Opera Mundi

Os turistas são como a norte-americana Beverly Alston, de Nova Jersey, que vêm todo ano com a família para se hospedar em luxuosos resorts na região. “Amamos o México. Vamos voltar mais vezes”, diz ela ao embarcar em um cruzeiro acompanhada da filha e do marido. 
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Até a década de 1970, Cancún não passava de um vilarejo de pescadores com cerca de dois mil habitantes. Apostando no potencial do turismo internacional (70% dos turistas são estrangeiros), o governo implantou uma urbanização voltada para o turismo de luxo.


Não tão longe das praias paradisíacas vivem os habitantes - quase invisíveis - de Cancún


Abriram-se largas avenidas, seguindo o modelo norte-americano, abrindo espaço para as cadeias de hotéis – inicialmente o plano inicial era construir não mais do que 200, oferecendo cerca de 17 mil quartos. Hoje em dia, há mais de 32 mil quartos de hotel em Cancún, segundo dados da Prefeitura.

“Isso aqui é a Pequena Miami”, brinca o ativista Alejandro Eguiá Liz, diretor da ONG Tzol K’in, que trabalha com mexicanos que sofrem com os impactos do turismo. Ele aponta para a zona hoteleira: uma faixa de 17 quilômetros que margeia a praia com hotéis como Mariott e Hilton, além de resorts como “Casa de los Sueños Resort”, “Crown Paradise” e “Moon Palac”, cujos valores de diária podem chegar até cinco mil dólares. A zona hoteleira também oferece bares consagradas nos EUA, como Hard Rock Café e Hooters, boates e lojas de luxo como Armani, Cartier e Dolce & Gabanna. 
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Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Geografia do México, 67% dos turistas que chegaram à região em 2008 se hospedaram em hotéis cinco estrelas, e outros 14% em hotéis de quatro estrelas.

“Nós vivemos muito longe de Deus e muito perto dos EUA”, brinca Alejandro com a citação do ditador mexicano Porfirio Díaz, ao explicar que os habitantes não têm acesso às praias da cidade. “Cada hotel tem sua faixa de areia com serviço de bar e restaurante. As entradas, obrigatórias por lei, são de difícil acesso”.

O pedreiro Daniel Paz Gómez, de 27 anos, conta que, embora trabalhe construindo hotéis na beira da praia, raramente visita a orla. “Se entramos, os seguranças vêm atrás da gente”, conta ele, que é do interior da região de Chiapas, no sul.

Cancún é uma cidade de migrantes como Daniel. Atraídos pela promessa de melhor remuneração e gorjetas em dólar, pessoas de vários lugares ajudaram a formar o mais vertiginoso fluxo migratório interno do México. Estima-se que nada menos que 50 línguas nativas sejam faladas na cidade. Até hoje, Cancún ostenta um dos mais altos índices de crescimento urbano do país - 9% ao ano, segundo a prefeitura.

Mas essa diversidade cultural é escondida pelos hotéis, segundo Alejandro, que, antes de se dedicar ao terceiro setor, trabalhou como treinador de equipes em redes hoteleiras. “Os trabalhadores não podem falar espanhol entre eles, imagine suas línguas nativas”.

Passeando pela praia, os turistas canadenses Alana e Donny Smith confirmam que não tiveram que falar uma só palavra em espanhol desde que chegaram. “Os funcionários sempre se esforçam para falar inglês”, diz Donny. 
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Mas, para o carregador de malas Arturo Ek Rodríguez, o maior problema é mesmo o preconceito contra os indígenas, que habitam a região desde tempos pré-colombianos. “Tive de procurar muitos hotéis antes de conseguir este trabalho”, diz ele. “Disseram-me várias vezes que eu não tinha a altura adequada e que não tinha o perfil. Tinha de ter a pele mais branca e um biotipo mais europeu”, explica.

“Os funcionários são ensinados a ser servis e nunca reclamar”, diz Alejandro Eiguá. Uma terapeuta corporal que não quis se identificar contou à reportagem do Opera Mundi que foi demitida do resort onde trabalhava por tentar organizar as colegas de trabalho para reivindicar melhores condições. O sindicalista Salvador Reyes Trinidad, dirigente da Federação Revolucionária de Empregados e Trabalhadores, diz que muitos têm medo de se filiar aos sindicatos. “A pressão é muito forte porque os gerentes dizem que há muitos outros como você querendo o emprego”, conta.

Segundo ele, um dos grande problemas é o uso frequente de contratos temporários de 28 dias que, na prática, retiram quaisquer direitos do trabalhador. Segundo ele, grande parte dos trabalhadores como construtores, faxineiros e encanadores trabalham com esses contratos, renovados infinitas vezes. “No caso do setor gastronômico, os hotéis costumam contratar empresas terceirizadas, que não pagam a previdência e ficam mudando o empregado de hotel, evitando qualquer relação duradoura com os colegas e patrões”, diz.

Outro problema é relatado pela imigrante Rubí Argaez, que mora em uma das 300 favelas que se espalham pela periferia de Cancún – quase sempre escondidas atrás de grandes avenidas e terrenos baldios. “Eu vim com minhas duas filhas procurando uma vida melhor, mas o sonho não se realizou”, conta. Segundo ela, o trabalho em hotéis era desgastante demais porque frequentemente era obrigada a cumprir jornadas duplas ou triplas sem poder voltar para casa, nem reclamar. “Ficava com medo de deixar as meninas sozinhas”. 

Rubí Argaez, ao lado de uma das filhas, faz bicos na construção civil e como babá


A favela Colonia Maracuya, onde Rubí mora, fica a cerca de 20 minutos da zona hoteleira – mas parece um mundo à parte. Situada atrás de uma enorme loja de departamentos no extremo norte da cidade, a favela abriga cerca de 200 habitantes em precárias casas de madeira, sem abastecimento oficial de eletricidade, água ou esgoto.

Rubí, que ganha algum dinheiro fazendo bicos na indústria da construção ou como babá, conta que teve muitas dificuldades para que as filhas fossem admitidas em uma escola pública. “Não aceitavam minha declaração de que eu moro aqui na Colonia, já que eu não tenho um comprovante oficial”, diz ela.

A crise

A crise mundial chegou a Cancún de maneira violenta. Em 2008, o nível de desemprego subiu de 3% para 8%. Além do impacto na economia por conta da dependência econômica dos EUA – que levou o PIB mexicano a uma queda de 6,5% em 2009 – a gripe suína afastou ainda mais os turistas, deixando milhares de quartos de hotéis desocupados. Os mais afetados foram os trabalhadores do setor.

No município de Playa del Carmen, em uma praia ao lado da agitada rua Benito Juárez, dezenas de pedreiros ficam sentados desde as seis da manhã à espera de um possível empregador que ofereça trabalho por pelo menos um dia. Muitos carregam mochilas com ferramentas de trabalho. Normalmente, o pagamento é de 150 pesos (cerca de 20 reais) mas, nos últimos anos as condições têm sido cada vez piores.

“Tem pouco trabalho agora,” diz o pedreiro José Louis Bolaños. Nascido no interior, mas morando em Cancún há oito anos, ele comenta que muitos dos empregadores não pagam o dinheiro devido. “Esse cara aí não é de confiança”, explica, apontando para um homem que estaciona um furgão ao lado da praça e logo é cercado por uma dezena de candidatos ao trabalho. “Trabalhei com eles uma semana e depois ele desapareceu. Fiquei sem o dinheiro”. 
Para amenizar o impacto da crise, uma das estratégias usadas por agências de turismo e redes hoteleiras no balneário mexicano de Cancún tem sido apostar ainda mais nos pacotes com “tudo incluído” no preço. O visitante paga bem menos pelo voo, incluindo todas as refeições, estadia e diversão no próprio hotel. Dentro dos resorts, há restaurantes, boates, clínicas de massagem, salão de jogos e até shows exclusivos para os hóspedes.

“Parecem verdadeiras mini-cidades”, diz Astrid Cavazos, gerente do hotel Porto Royal. Ela admite que os comerciantes locais não podem competir, já que os preços oferecidos pelos pacotes são muito mais baixos.

O comerciante Rubén Cahán, dono de uma lojinha de lembranças a oito quarteirões dos resorts de Playa del Carmen, diz que muitos turistas nem chegam a sair do hotel, o que tem um sério impacto nos negócios. “Está cada vez mais difícil”, diz ele. “Alguns turistas falam que as lojinhas de nativos ficam muito longe”.
*Texto e fotos

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