Campeonato do Mundo de Futebol
Atolado em corrupção e nepotismo
Matteo Patrono* no Odiario.info
Intocáveis, os senhores da oligarquia do futebol
passeiam a sua impunidade por todo o mundo e são apresentados na
imprensa da especialidade e generalista como se de pessoas de bem se
tratassem.
Por isso, raramente se vê questionar o seu poder e ainda mais raramente
se vê na imprensa a denúncia da corrupção e nepotismo em que este mundo
de “padrinhos e famílias” se movimenta, com total liberdade e a
cumplicidade dos poderes políticos e judiciais de todos e cada um dos
países.
Dizem os
jornalistas sul-africanos que a suite «renascentista» escolhida pelo
presidente da FIFA, Joseph Blatter, no Hotek Michelangelo de Sandton,
tinha uma passadeira vermelha diante da porta, uma habitação do tamanho
de um campo de futebol, um «jacuzzi» decorado em estilo africano e um
minibar individual com cubos de gelo da marca Evian. As instalações
estão no último piso de uma das torres do hotel de cinco estrelas que
domina o distrito económico mais branco e mais rico de Johannesburgo.
Monarca indiscutido da República mundial do futebol, o coronel construiu
a sua sucessão a Havelange no trono da FIFA com os votos da
Confederação África e a promessa (primeiro na Alemanha em 2000 e depois
em 2004 na presença de Mandela) do primeiro Mundial da história do
continente negro. Isso explica por que é uma figura tão popular na
região. A tal ponto que num almoço de gala realizado em Johannesburgo, o
presidente da África do Sul, Jacob Zuma, lhe atribuiu a Ordem dos
Companheiros de Oliver Reginald Tambo, uma da mais prestigiosas do país
atribuídas a personalidades estrangeiras. Tambo, juntamente com Mandela,
foi um dos grandes lutadores contra el apartheid.
Vendo esta personagem não falta alguém disposto a encontrar na
magnanimidade de Blatter, uma minudência para disfarçar as falhas da sua
mastodôntica máquina de gerar dinheiro. Tal é o caso do semanário
sul-africano Mail & Guardian que nos últimos meses meteu o nariz no
grande negócio dos mundiais, onde deparou com uma parede. Dada a escassa
colaboração do Comité Organizador Sul-Africano (LOC), dirigiu-se a um
tribunal a pedir uma decisão que lhe proporcionasse acesso aos
documentos oficiais relacionados com os contratos do campeonato do Mundo
em nome da liberdade de informação. E logo, mesmo antes que o tribunal
pronunciasse qualquer sentença, começaram a saltar alguns detalhes
embaraçosos.
Antes de tudo o resto, as garantias concedidas pelo Governo de
Pretória à FIFA, na altura de lhe atribuir a organização do Mundial, em
2004, confirmadas pelos diferentes ministros do executivo, então
dirigido por Thabo Mbeki, e são 17, todas elas destruidoras da soberania
do país, indefensáveis mesmo que a FIFA fosse o Fundo Monetário
Internacional. Para começar, tanto a FIFA como as suas sociedades e
delegações estão isentas do pagamento de impotos. Entre elas a Host, a
empresa do neto de Blatter, que administrou a venda de entradas do
Mundial, dos hotéis oficiais e dos pacotes de receptivo (apesar de para
as Federações e para os seus amigos se assegurasse um desconto de 20% em
todos os hotéis). Não haverá restrições para ninguém quanto à
importação e exportação de moeda estrangeira. Num país onde ninguém pode
ser atendido num hospital sem um seguro privado, o Governo ofereceu a
este exército cobertura médica integral, além de segurança privada 24
horas por dia. Uma importante fracção das forças da ordem ficou adstrita
e foi dirigida ao que é mais importante dos amores do chefe da FIFA:
proteger a exclusividade dos sócios comerciais, os generosos e
fidelíssimos patrocinadores em tudo o que respeita a marketing, marcas,
direitos televisivos, propriedade intelectual. Inclusivamente no caso de
controvérsias legais, a África do Sul comprometeu-se a pagar à FIFA uma
indemnização para além do pagamento dos honorários dos advogados. Não
vale a pena esclarecer que os processos contra os falsificadores e os
vendedores não autorizados do logótipo do Mundial se multiplicam: só na
África dos Sul são 450, 2.500 em todo o mundo. Alguns são ridículos: um
bar de Pretória foi processado por ter pintado no seu próprio teto a
Taça do Mundo, uma fábrica de caramelos por ter impresso sobre os
invólucros da sua mercadoria uma bola de futebol e a bandeira da África
do Sul. Aos vendedores de bebidas fora do estádio para garrafas neutras
qualquer bebida que possa competir com a arquifamosa bebida de borbulhas
que desde há 40 anos enche os cofres da FIFA. Mas o mais badalado é o
da linha aérea de baixo custo, Kulula, que recebeu uma carta com aviso
de recepção a dizer-lhe que retirasse imediatamente a genial publicidade
lançada nos diários locais em Fevereiro: «A companhia não oficial do
vós sabeis». Segundo a FIFA uma artimanha para fugir aos direitos de
autor devido à presença de vuvuzelas, bolas e bandeiras sobre as quais o
governo suíço do futebol pretende ter copyright absoluto. Isto apareceu
rapidamente no Twiter, desencadeando uma onda de debates e protestos
bem resumidos por Heidi Brauer, directora de marketing da Kulula: «É um
pouco exagerado acreditar que tudo o que tem relação com o Campeonato do
Mundo pertence à FIFA, as vuvuzelas, a bandeira nacional, o futebol
pertencem à África do Sul. E a África do Sul pertence à África do Sul.
Em contraparytida parece que vendemos os símbolos e a economia ao senhor
Blatter».
Finalmente, a Kulula retirou a publicidade, mas a raiva pelo excesso
de poder concedido à FIFA está muito difundida entre as pequenas e
médias empresas sul-africanas, que esperavam obter alguns lucros com o
grande acontecimento. Já houve quem recordasse que muitos dos processos
postos pela FIFA na Alemanha há quatro anos ainda estão pendentes (é
muito referido um contar um padeiro de Hamburgo que fez os seus pães com
a forma da Taça do Campeonato do Mundo). E aqui regressa a jogo o Mail
& Guardian, a quem na passada terça-feira um juiz do Supremo
Tribunal de South Gauteng reconheceu o direito de acesso aos documentos
sobre os contratos. O Comité Organizador, que pretendia ser um organismo
privado livre da obrigação de transparência, deverá pôr à disposição do
semanário, no prazo de 30 dias, a relação das sociedades que obtiveram a
outorga de contratos em que ganham milhares de rands (indicando a que
preço e sob que condições de licitação lhes foram atribuídos). «Recusar
esses documentos – explicou o juiz Les Manson – permitiria aos
organizadores ocultar da opinião pública eventuais casos de corrupção,
violação ou incompetência». O director de Mail & Guardian, Nic
Dawes, disse que também eles, como todos os sul-africanos, esperam com
ansiedade o começo do Mundial mas «esta vitória mostra que a liberdade
de informação é uma lei viva e não um pedaço de papel»
* Jornalista, enviado-especial de Il Manifesto à África do Sul
Este texto foi publicado no jornal italiano Il
Manifesto de 10 de Junho de 2010.
Tradução de José Paulo Gascão
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