Estatuto da Igualdade Racial: 'Luta Social ou Luta de Raça?' |
Escrito por Valéria Nader, da Redação do Correio da Cidadania | |
A versão do Estatuto da Igualdade Racial recém aprovada pelo Senado
foi bastante discutida nas últimas semanas. Tratando-se de um daqueles
temas amplamente abordados tanto pelos grandes veículos de comunicação,
como também por aqueles menores, mais alternativos e com um viés à
esquerda, nem por isso as opiniões suscitadas são capazes de consolidar
um entendimento mais fundamentado de questão tão complexa.
Deparamo-nos os leitores, essencialmente, com a visão daqueles que
defendem as políticas afirmativas de inclusão, em contraposição àqueles
que não as vêem como positivas, na medida em que reforçariam a
‘racialização’ da sociedade brasileira. A defesa das cotas para negros
em universidades é o tópico em que se concentram os maiores esforços dos
primeiros, como forma de se contrapor minimamente às injustiças
históricas e arraigadas em um país de passado colonial e escravocrata.
Os críticos à racialização não têm, por sua vez, espaço amplo e
diversificado o suficiente para a apresentação de seus argumentos,
O historiador Mário Maestri, entrevistado especial do Correio,
amplifica os termos desse debate, tomando-o a partir da atual sociedade
capitalista, uma sociedade dividida entre as classes ligadas ao capital e
ao trabalho, e na qual se desenvolvem as relações sociais e as relações
de produção. O historiador alerta para que as discussões estão sofrendo
pesada influência das forças do capital, deixando na ‘penumbra a
diferença de qualidade entre a luta anti-racista e a proposta da luta
pela igualdade racial’.
Ainda segundo Maestri, para a ideologia da igualdade racial não
haveria mal na existência de opressores e oprimidos, desde que ambos os
segmentos se caracterizassem pelo equilíbrio étnico. Confira entrevista
exclusiva a seguir.
Correio da Cidadania: Qual a importância da discussão sobre a
igualdade racial e do Estatuto da Igualdade Racial, para regulamentá-la?
Mario Maestri: Trata-se de debate fundamental, até agora dominado
pelas forças do capital e sofrendo sua influência, que tem mantido na
penumbra a diferença de qualidade entre a luta anti-racista e a proposta
da luta pela igualdade racial. O anti-racismo é luta democrática contra
a discriminação na escola, no trabalho, na educação etc. É parte da
luta geral, no aqui e no agora, contra os exploradores, pela extinção da
sociedade de classes, base das opressões econômica, nacional, sexual,
étnica etc. A luta anti-racista é parte do programa do mundo do
trabalho, é mobilização democrática, progressista, revolucionária.
A proposta de igualdade racial propõe a existência de raças diversas,
que devem ser igualadas no que se refere ao tratamento e, sobretudo, às
oportunidades no seio da sociedade atual. Por além de eventual retórica
radical e apesar do indiscutível unitarismo da espécie humana, recupera e
trabalha com o conceito medonho de raça e reduz a opressão social à
opressão racial de negros por brancos. É programa regressista e
conservador, parte das estratégias do capital contra o mundo do trabalho
e seu programa.
A proposta de igualdade racial avança essencialmente no combate às
desigualdades de oportunidade. Denuncia o tratamento, no melhor dos
casos, igual, dos desiguais. Através da discriminação positiva, os
discriminados negativamente concorreriam em igualdade com os
privilegiados, estabelecendo-se, assim, a justiça social. Nos fatos,
naturaliza e recupera positivamente a competição social, pilar essencial
da retórica capitalista. Para essa ideologia, não há mal em haver
opressores e multidões de oprimidos. Desde que exista equilíbrio étnico
nos dois segmentos!
A África do Sul é exemplo patético e cada vez mais gritante dessa
política. Durante décadas, o apartheid serviu para a dura exploração das
terras e dos braços negro-africanos. Por isso, o movimento de
libertação articulava corretamente a luta contra o racismo e contra a
exploração capitalista. Com a derrota mundial dos trabalhadores em fins
dos anos 1980, a direção do CNA (Congresso Nacional Africano) terminou
aceitando substituir a já superada elite racista na gerência da
exploração das massas negras sul-africanas.
No governo pós-apartheid, mantiveram-se as relações de propriedade e de
exploração, ou seja, econômico-sociais, sob gestão de classe política e
lumpén-burguesia negro-africana, a serviço do capital e do imperialismo.
O fim do apartheid estabilizou a opressão de classe, a tal ponto que o
país acolhe hoje uma Copa do Mundo, sendo apresentado como exemplo a ser
seguido!
A miséria e a opressão dos trabalhadores e populares sul-africanos
seguiram aprofundando-se, sob a batuta de políticos negro-africanos tão
corruptos e venais como os brasileiros. Atualmente, eles se preocupam,
essencialmente, em formar uma classe média negra, para maior
estabilização da nova ordem!
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião sobre as cotas
universitárias, o principal e mais discutido tópico de reivindicações do
movimento negro?
Mario Maestri: A proposta de igualdade racial e discriminação
positiva (cotas estudantis) não se preocupa com as multidões de jovens
negros (pardos, brancos etc.) marginalizados em diversos graus pelo
capitalismo. Pretende sobretudo conquistar equilíbrio racial entre os
privilegiados. De certo modo, é como se propusesse colocar pesos nos
corredores brancos, esguios, para igualá-los aos negros, mais pesados,
devido a handicaps sociais históricos. Equilibrando-se as desigualdades,
os vencedores serão os mais capazes.
O problema é que essa corrida premia os cem primeiros chegados e
marginaliza os 9.900 perdedores, em diversos graus. O que importa é
conquistar equilíbrio racial entre os cem laureados. Uma proposta que
sequer vislumbra a possibilidade e necessidade de se pôr fim à
competição canibal, para que todos sejam vencedores, segundo seus
esforços, capacidades e necessidades. Trata-se de mobilização por um
mundo de exploradores e de explorados sem diferenças raciais, desde que
no paraíso dos privilegiados e opressores haja vagas cativas para
privilegiados e opressores negros.
Estudar nas melhores universidades, em geral públicas, é privilégio de
pequena minoria de jovens, principalmente brancos ou quase brancos. A
política cotista promete que, um dia, nessa minoria de felizardos,
haverá um número proporcional de negros. O que já é uma falácia, pois a
base da desigualdade social apóia-se essencialmente na posse e no
domínio da propriedade. A proposta cotista despreocupa-se com as
multidões de jovens marginalizados – em forte proporção, negros. O
fundamental é mais generais, advogados, médicos, engenheiros,
farmacêuticos, capitalistas negros. Todos ferrando a população
trabalhadora, branca e negra, como fazem normalmente os congêneres
brancos.
As principais justificativas dessa proposta são duas. A primeira é que,
enquanto não chegamos a uma sociedade justa (socialismo), há que
melhorar a realidade na sociedade capitalista. O problema é que essa
proposta correta justifica o incorreto abandono da luta, no aqui e no
agora, do ensino universal, gratuito e de qualidade, parte do programa
democrático – e não socialista. Esse programa inarredável das classes
populares foi imposto, substancialmente, pelo mundo da democracia e do
trabalho, em países como a Alemanha, a França, a Bélgica, a Itália, a
Suécia etc., todas sociedades capitalistas!
A segunda justificativa é que o Brasil não teria recursos para garantir
esse privilégio para todos. Defendendo o programa cotista, Valério
Arcary, intelectual pró-cotista, afirmou, sem enrubescer, que sequer um
"governo dos trabalhadores, pelo menos nas fases iniciais da transição
ao socialismo, num país como o Brasil, poderia garantir acesso
irrestrito ao ensino superior para todos "! O governo brasileiro entrega
bilhões a banqueiros e capitalistas, nacionais e internacionais, mas
não tem os meios para implementar programa cumprido por Cuba, um país
pobre, literalmente desprovido de recursos naturais e de capitais!
Correio da Cidadania: Dessa forma, a quem interessa a política de
igualdade racial e as propostas de discriminação positiva na escola,
partidos, serviço público etc., rejeitadas pelo Senado quando da
aprovação do Estatuto da Igualdade Racial?
Mario Maestri: Por primeiro, interessa ao capital, grande
responsável pela defesa, propaganda e impulsão dessa política nos EUA,
em fins dos anos 1950. Ela foi consolidada, como política de manipulação
da questão racial, após a repressão geral e não raro massacre físico da
vanguarda negra classista e revolucionária estadunidense, nos anos 1960
e 1970. Ela começou a ser introduzida no Brasil pela Fundação Ford,
entre intelectuais negros, nos anos 1980. Não é por nada que a senhora
Hillary Clinton, em recente viagem ao Brasil, na única atividade não
oficial, foi prestigiar essas políticas em faculdade brasileira
organizada a partir de critérios raciais.
Mas qual foi e é o resultado das cotas nos EUA? No frigir dos ovos, meio
século após a implantação da política cotista, a droga e sobretudo o
cárcere são a solução prioritária para a questão negra estadunidense. Os
EUA, com 5% da população mundial, possuem 20% dos prisioneiros. Deles,
50% negros! No país mais rico do mundo, com recursos inimagináveis, o
jovem negro acaba normalmente nos braços da droga e da prisão e
raramente em universidade e emprego razoáveis.
E, apesar disto, o Estatuto da Igualdade Racial propõe nada menos que o
Brasil esteja, "no mínimo, meio século atrás dos Estados Unidos em
matéria de cidadania para o povo negro"! Isso porque, ali, o fundamental
para essa política foi atingido – temos presidente, alguns generais,
médicos, diplomatas, capitalistas etc. negros.
A política cotista é estratégia do grande capital, pois prestigia e
naturaliza a ordem capitalista; nega a luta social e de classes; procura
dividir os trabalhadores e oprimidos por cor e raça; fortalece a base
social da sociedade opressora. E tudo isso, em geral, sem custos ao
Estado.
A política de escola pública, gratuita e de qualidade exige
investimentos, que são feitos onde ainda dominam os princípios
democráticos e republicanos dos serviços públicos básicos universais. Ao
contrário, a política cotista não exige que o Estado gaste um real, ao
destinar 30%, 60% ou 90% das vagas das universidades públicas – dos
cargos federais, postos de trabalho etc. – para negros, índios, mulheres
etc. O Estado não gasta nada, pois são investimentos já feitos. Só
redistribui os privilégios e as discriminações.
E, com as políticas cotistas, além dos dividendos político-ideológicos, o
Estado classista, prestigiado, vê cair a luta e a pressão popular pela
extensão desses serviços. Ao igual que nos EUA. Não é por nada,
portanto, que as atuais lideranças do movimento negro cotista não exigem
ensino público, livre e gratuito universal. E imaginem só a saia justa
do governo, do Estado e do capital, se a juventude popular e
trabalhadora, como um todo, tomasse as ruas, exigindo ensino universal,
público e de qualidade! Se não obtivessem tudo que pedissem na primeira
vez, levariam certamente muito.
As propostas de igualdade entre as raças, na ordem capitalista,
interessam também a certo tipo de liderança negra. Defendendo as
políticas do capital de racialização da sociedade, inserem-se no jogo da
representação política e institucional, sendo por isso gratificada
econômica, social e simbolicamente. Não creio que tenha sido estudada a
gênese-consolidação dessa representação étnica nascida à sombra do
Estado, fortemente impulsionada durante os governos Lula da Silva. Porém,
mutatis mutandis, não parece ser processo diverso do ocorrido com
as representações sindicais e populares cooptadas pelo Estado, após a
enorme derrota dos trabalhadores de fins dos anos 1980.
Finalmente, essas políticas interessam a segmentos médios e médio-baixos
negros. É segredo de Polichinelo que as políticas de cotas privilegiam
sobretudo os segmentos negros relativamente mais favorecidos, em
detrimento dos trabalhadores e marginalizados de mesma origem. O filho
do professor negro vence o filho do pedreiro negro, na disputa de uma
cota. Ao igual do que ocorre com filho do engenheiro branco, ao disputar
com o do zelador de mesma cor no vestibular. Ainda que, em bem da
verdade, os filhos dos zeladores e dos pedreiros sequer sonhem com um
curso universitário.
Correio da Cidadania: E quem está contra o Estatuto da Igualdade Racial?
O que você pensa da participação do senador Demóstenes Torres na
relatoria desse projeto, após declarações preconceituosas sobre a
escravidão e a opressão aos negros?
Mario Maestri: No Brasil, a oposição às políticas de igualdade
racial tem duas grandes vertentes, essencialmente opostas (com posições
intermediárias, é claro). A vertente minoritária, com escasso espaço na
mídia e no debate, é formada por um punhado de intelectuais, ativistas,
sindicalistas, lideranças sociais etc., negros e brancos, de tradição
republicana, democrática, socialista e revolucionária. Em geral, ela
expressa, direta ou indiretamente, os interesses do mundo do trabalho e,
portanto, da grande população trabalhadora e marginalizada negra,
discriminada e esquecida pelas propostas retóricas de igualdade racial.
Essa vertente mobiliza-se pela luta anti-racista e pelos direitos
democráticos gerais, no aqui e no agora, sem qualquer exceção e
privilégios.
A vertente majoritária, com grande presença na mídia, formada sobretudo
por políticos, jornalistas, intelectuais, é impulsionada por
preconceitos elitistas, racistas e corporativistas. É formada
essencialmente por brancos e alguns oportunistas não-brancos. O senador
Demóstenes Torres é representante exótico desta corrente, assim como,
por exemplo, o jornalista Ali Kamel constitui defensor refinado das
mesmas visões.
A primeira vertente, ao refletir, direta ou indiretamente, o mundo do
trabalho e seu programa, tem consciência das conseqüências dramáticas
das propostas de racialização da sociedade brasileira para a luta e as
conquistas sociais e para a própria organização e convivência nacionais.
A segunda representa os setores sociais médios brancos em parte
deslocados por essas políticas, em favor dos setores da classe média e
médio-baixa negra, como proposto.
No último caso, trata-se de defesa conservadora de privilégios das
classes médias brancas, contra as políticas raciais conservadoras do
grande capital, despreocupado no geral com aqueles segmentos. Trata-se
de um movimento em algo semelhante à resistência final dos racistas
sul-africanos, quando o capital decidira a entronização da nova classe
política negro-africana. Resistência que se mantém até hoje em forma já
residual na África do Sul. Não devemos esquecer que o capital não tem
cor. Historicamente, ele se serve do racismo para impor sua dominação e
obter super-exploração. Porém, quando necessário, ferra sem dó os
segmentos racistas.
Correio da Cidadania: O Senado retirou do projeto a obrigatoriedade do
registro da cor das pessoas nos formulários de atendimento do SUS,
considerado por muitos como o retrocesso maior, já que os índices
referentes à saúde da população negra denunciariam fortemente a
discriminação racial.
Mario Maestri: É enrolação estatística dizer que os negros, por
serem negros, são mais desfavorecidos que os brancos, por serem brancos,
por exemplo, no relativo à saúde. Comparemos os engenheiros negros e os
pedreiros brancos. Nesse caso, a saúde dos brancos é certamente pior do
que a dos negros. E se cotejarmos a saúde dos médicos brancos à dos
médicos negros certamente ela será, no geral, idêntica.
O fato de que há maioria de negros entre as classes exploradas e maior
número de brancos entre os privilegiados determina diferença social que
pode ser percebida artificialmente como racial, e não social. Seria
estatisticamente mais interessante registrar e tornar pública a situação
sócio-profissional dos atendidos pelo SUS, registrando a enorme
insuficiência das classes trabalhadoras e marginalizadas, brancas,
negras e pardas, quanto à saúde e à esperança de vida. Realidade não
retida, como devia ser, no relativo à remuneração e à idade de
aposentadoria.
No essencial, as propostas da obrigação da definição da cor (no fato, da
pretensa raça) quando de registros públicos procuram impor literalmente
racialização artificial do país. Para essa proposta, você não seria
mais simplesmente brasileiro. Mas, obrigatoriamente, brasileiro branco
ou brasileiro negro.
Trata-se de proposta anti-republicana, antidemocrática e profundamente
racista determinar pela lei que todo cidadão assuma uma identidade
racial aleatória ou oportunista. Uma identidade racial que, no novo
mundo proposto, poderia ensejar privilégios em relação ao resto da
população. Esta proposta se apóia igualmente na concepção da necessidade
da definição da raça quando do atendimento médico, pois, segundo ela,
negros e brancos, de raças diversas, exigiriam tratamentos e
procedimentos médicos diversos! Ou seja, que brancos e negros seriam
biologicamente diversos, como defendiam já os escravistas e seus
ideólogos racistas, como o celerado e farsante conde de Gobineau
(1816-1882).
Proposta racista, de caráter acientífico, que demonstra sua enorme
obtusidade, ainda mais no Brasil, onde a auto-definição racial tende no
geral a sequer possuir uma correspondência genética mais precisa. Os
estudos científicos apontam para que, em uma enorme quantidade, os
brasileiros são produtos de uma forte mescla genética de população das
mais diversas origens européias, americanas, africanas, asiáticas etc. E
não devemos esquecer que aquelas populações já resultavam de enormes
interações genéticas.
Correio da Cidadania: Como você enxerga as lamentações do movimento
negro, que definiu a aprovação dessa versão do Estatuto como traição a
lutas históricas e que seria melhor brigar mais dez anos pela aprovação
de versão satisfatória? Você incluiria o projeto aprovado no rol de
recuos do governo Lula da Silva, em praticamente todas as pautas de
caráter mais progressista?
Mario Maestri: Foi enorme a cooptação pelo Estado de dirigentes
populares no governo Lula da Silva. Hoje, enorme parte das direções
negras tem ligações diretas ou indiretas com o lulismo, com o petismo,
com o Estado, com os quais não arriscam oposição e dissidências. Ao
igual que as direções sindicalistas, camponesas, populares etc. também
cooptadas.
Jamais vimos essas lideranças do movimento negro mobilizando-se contra a
ocupação do Haiti pelo Exército brasileiro. Ou levantando-se contra o
tratamento bestial do sistema prisional brasileiro, habitado por enorme
população negra. Ou denunciando o quase total abandono das populações
flageladas dos últimos tempos. Silêncio de túmulo.
A reprovação do Estatuto no Senado parece ter causado apenas as
assinaladas lamentações das lideranças responsáveis por sua
apresentação. Ele não interpretava as necessidades da população negra
pobre e explorada, que continua abandonada à sua sorte, sem conseguir
construir suas verdadeiras lideranças e programas, ao igual que a
maioria dos trabalhadores e oprimidos dos campos e das cidades do
Brasil.
Correio da Cidadania: Por fim e diante de todos os pontos expostos, você
acredita que se realizou um debate público a contento, com a
participação efetiva da sociedade, na discussão das políticas de
discriminação racial positiva, em geral, e do Estatuto, em particular?
Mario Maestri: Houve debate, superestrutural e institucional:
programas de rádio e de televisão; artigos e livros jornalísticos e
acadêmicos; alguns editoriais. Porém, o debate jamais alcançou a
população nacional, a ser enquadrada pelo Estatuto, seja qual for a sua
cor. Se fizéssemos um levantamento, a imensa maioria dos brasileiros não
sabe o que seja o Estatuto e a quase totalidade não sabe realmente o
que ele propõe.
O debate jamais foi realmente enfrentado, mesmo pela esquerda, que,
paradoxalmente, no passado, destacou-se pela ênfase da importância da
escravidão e do racismo na sociedade de classes no Brasil. No século 20,
foram efetivamente militantes marxistas e comunistas que contribuíram
fortemente para que a questão negra se transformasse no Brasil em
problema histórico e teórico de larga discussão – Astrogildo Pereira,
Edison Carneiro, Benjamin Perét, Clóvis Moura, Décio Freitas etc.
A vanguarda da esquerda organizada aceitou as propostas de racialização
da sociedade nacional sem crítica e reflexão, como parte das novas e
antigas sensibilidades ambientalistas, feministas, anti-racistas etc.
Contribuíram nessa aceitação acrítica e passiva a escassa formação
política e, sobretudo, os frágeis vínculos com o operariado nacional.
Operariado em franca regressão, no Brasil e no mundo, sobretudo após a
derrota histórica de fins de 1980, que ensejou depressão dos valores
universalistas, racionalistas, socialistas etc. Ou seja, com a crescente
fragilidade do programa dos trabalhadores, fortaleceu-se a influência
das propostas ideológicas e conservadoras do capital, também entre a
própria esquerda, como no caso das visões raciais da sociedade.
Nas razões dessa renúncia passiva ao programa socialista ajuntaríamos
uma espécie de consciência culpada, por parte de militantes em geral com
origem na classe média e médio-baixa branca, no contexto de escassa
importância dada à questão, vista tradicionalmente como periférica aos
problemas centrais da revolução, mesmo quando destacada nos programas
políticos. Foram também importante as pressões da juventude negra
estudantil radicalizada, conquistada para essas propostas no processo de
flexibilização de organizações de esquerda, como o PSTU, de frágeis
vínculos sociais e políticos com os trabalhadores.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania;
colaborou Gabriel Brito, jornalista.
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