Herr Cacau, brasileiro naturalizado alemão, é apenas um
dos 11 atletas com ascendência estrangeira (Foto: Ina
FassBender/Reuters)
Por Flavio Aguiar
Num país em crise, com a economia sendo “passada a ferro” pelas
regras do FMI num clima recessivo, em que os direitos sociais estão
passando por uma poda sem precedentes, em que o presidente renunciou
recentemente e a eleição indireta do novo foi um pesadelo para o
governo, em que a popularidade do governo e dos seus partidos está lá
embaixo, de repente o futebol, a seleção nacional e a Copa do Mundo
passaram a ser uma milagrosa tábua de salvação.
Estamos falando, como estávamos acostumados, do Brasil? Não, da
Alemanha.
Mas há mais nisso do que pensa a nossa vã filosofia. É que a seleção
germânica passou por uma mudança de caráter das mais significativas.
O futebol alemão – o da sua seleção em particular – sempre foi
associado a um blindado de artilharia – um Panzer, para ser mais exato.
Troncudo, carrancoso, eficiente como um capitalista protestante e
conservador como um bispo católico do partido de Bento XVI e, sobretudo,
germânico, profundamente germânico: assim era o retrato do time alemão
tradicional.
De repente, o que se vê? O time alemão jogando aberto, bonito,
rápido, um time jovem de gente bonita. E sem o ex-capitão Ballack, o
que, no meu entender deu-lhe mais mobilidade e jinga. Jinga? É, jinga.
Não estou com aqueles que querem crucificar Dunga e o nosso time. Mas
que faltou jinga, faltou, sobretudo naquele segundo tempo contra os
holandeses em que fomos derrotados por uma laranja... mecânica. É um
time que jogou certinho, só certinho. Só que o nosso, no segundo tempo,
fez tudo errado. Desmanchou-se em campo.
Enquanto isso os lépidos e faceiros germânicos deram uma lição ímpar
“a los hermanos de más Allá Del Plata”.
Pois vejam só: lépidos, faceiros e... coloridos! Não só o futebol
deles é colorido: o time é colorido. Foi isso que mudou no time alemão:
antes ele era um filme em louro e branco; no máximo havia uma cabeleira
(sempre curta) morena que vinha lá dos fundos da Baviera. Agora, te tudo
quanto é cor. Tem até uma cor que se chama Cacau – Herr Cacau – e que
veio do Brasil. Tudo começou em 2004 quando, depois de um desempenho
fraco no campeonato europeu, a Federação Alemã de Futebol decidiu
"abrir" o time para os seus "oriundi".
11 dos 23 jogadores que a Alemanha despachou para a África do Sul têm
ascendência próxima ou nasceram em terra estrangeira. Além do Claudemir
Jerônimo Barreto – o Cacau, veja só:
Miroslav Klose, Lukas Podolski e Piotr Trochowski vieram da Polônia.
Mesut Özil, do Werder Bremen, é de ascendência turca, é muçulmano e
recita o Corão antes de cada jogo.
Serdar Tasci também é de ascendência turca.
Mario Gómez tem o pai espanhol.
Sami Khedira tem o pai da Tunísia.
Dennis Aogo tem o pai nigeriano.
Jerome Boateng nasceu em Gana, filho de pai ganes e mãe alemã. Jogou
contra o irmão, que era da seleção de Gana.
Marko Manin é sérvio de origem.
O time alemão está sendo descrito como o “retrato de uma nova
Alemanha”.
Mas nem tudo são flores para o sucesso desse time que, vença ou perca
a Copa, já marcou um gol pela integração.
É verdade que os bairros turcos de Berlim estão cobertos por
bandeiras alemãs e da Turquia. O comerciante Youssef Bassal (relato do Berliner
Zeitung), no bairro de Neukölln, resolveu pendurar um bandeirão
alemão de 20 metros na fachada do prédio onde tem sua loja de telefonia
celular. A bandeira já foi rasgada (duas vezes) por anônimos – mas que
se dizem de esquerda, deixando mensagens alegando que aquilo é
“nacionalismo” alemão. De esquerda? Sinceramente, para mim isso é
racismo disfarçado.
Em compensação, há grupos neonazis que, pela internet, têm repudiado a
seleção alemã. Outros dizem pejorativamente que ela é uma seleção da
ONU, não da Alemanha. Mas o caso mais curioso é o daqueles que dizem que
só torcem pela Alemanha quando os jogadores alemães puro-sangue tocam
na bola...
Mas enquanto isso a maioria dos alemães, venham de onde vierem, se
divertem a mil com os jogos – pelo menos até aqui, numa trajetória que
foi empanada mas não cortada pela derrota para a Sérvia.
Dentre os mais velhos, há quem não goste desse embandeiramento geral
das cidades, pois isso lhes traz recordações desagradáveis do passado.
Mas para os mais jovens, em geral, é uma festa.
A gente vê que de fato há uma nova Alemanha nascendo. Não das cinzas,
mas entre as cinzas, sejam as eventuais do vulcão islandês, sejam as
ameaçadoras da crise econômica e do pacote depre/regre/ssivo que sobre
ela se abate.
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