Rui Martins*
Berna (Suiça) - O episódio envolvendo a
mulher iraniana, Sakineh, ameaçada de morte por apedrejamento, o
presidente iraniano Ahmadinejad e o nosso presidente Lula, tem o grande
mérito de esclarecer certas tomadas de posição da esquerda brasileira.
Embora eu tenha lido que a embaixada
iraniana no Brasil vai fazer uma campanha de esclarecimento, ja há
coisas bastante claras. Mas vamos começar do princípio – um postulado
básico do posicionamento da esquerda e mesmo objetivo de sua luta
política é o respeito a um princípio não negociável, os direitos
humanos.
A longa trajetória da esquerda tem sido
marcada por campanhas que foram contra a escravidão, como a memorável
luta dos escravos comandados por Spartacus; pela liberdade do
pensamento, na qual Erasmo, Guttenberg, Lutero tiveram relevância; pela
ação de pacifistas em favor do respeito da dignidade humana e contra o
imperialismo, como Cristo e Gandhi; pelas mulheres que, ainda
recentemente, conquistaram o reconhecimento de serem iguais aos homens,
como Simone de Beauvoir, a ex-ministra francesa Simone Weil, a advogada
francotunisiana Gisele Halimi, por terem conquistado o direito legal de
abortar e outros tantos homens e mulheres que, aqui na Europa e nas
Américas, acabaram com os casamentos arranjados e forçados, e chegam
mesmo a reconhecer o direito da mulher vender o prazer sexual se a isso
não for obrigada.
Esta luta das mulheres,cujos resultados
têm sido colhidos nos nossos dias, têm sido uma das mais difíceis,
porque mesmo entre esquerdistas notórios, revolucionários e militantes
pelos operários, o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres
não foi automático. Por absurdo que possa parecer, as mulheres
militantes na Revolução Espanhola, na Revolução de Outubro tinham
escalão inferior, clima que existia também entre muitos marxistas.
Ora, na marcha da História, onde existem
recaídas e retrocessos, o reconhecimento da dignidade das mulheres, do
seu direito à liberdade para viver, casar e divorciar, ter ou não ter
filhos, ser ou não fiel ao amante ou marido, é assegurado num número
reduzido de países. E no próprio Brasil ainda não é de todo reconhecido.
Faz pouco anos, todos os autores de
crimes passionais eram absolvidos. O caso mais flagrante da justiça
machista brasileira é o do ex-diretor do jornal O Estado de São Paulo,
Pimenta das Neves que matou pelas costas sua ex-amante, a jornalista
Sandra Gomide, por ter sido por ela preterido e, embora condenado, vive
em liberdade aguardando uma decisão do STF que, pelo jeito, nunca virá.
No Brasil, não se apedreja Sakineh ou Sandra, mata-se a faca ou a tiros,
e fica por isso mesmo, porque a justiça e a sociedade fazem vista
grossa.
Ora, onde eu quero chegar ? O
posicionamento de esquerda não deve e não pode permitir o caucionamento
de regimes e governos ainda na idade da pedra e dos apedrejamentos em
questões de direitos humanos que incluem, é óbvio, as mulheres. Mesmo
quando se trata de manobra tática política, o contrapeso é
excessivamente pesado.
Apoiar regimes que lapidam mulheres,
obrigadas a serem fiéis a maridos que lhes foram impostos, ou
simplesmente vítimas de suspeitas ou de tramas familiares é um
contrasenso e não ajudará esses países a promover as reformas
necessárias em favor das mulheres, livrando-as do jugo de religiosos
retrógrados.
Apoiar regimes que cortam mãos, pés e
cortam o nariz e orelhas da mulher que declara querer se divorciar, é
ser conivente e cúmplice. Isso não quer dizer que o imperialista Bush
podia invadir e ocupar países do Oriente Médio. Cada país tem direito à
sua autodeterminação e a evoluir. A Europa queimava hereges na fogueira,
caçava bruxas e punia as adúlteras, isso ainda há trezentos anos. O
Afganistão e a milenar Pérsia vão evoluir sem precisar de soldados
ocidentais, ao contrário a ocupação americanoeuropéia só vai atrasar
essa evolução.
Outra coisa, não é porque Israel tem
governo de extrema-direita, aplica uma indecente política de colonização
e humilha os palestinos que o Hamas se transforma no movimento
revolucionário exemplar e que a Palestina governada pelo Hamas será o
paraíso. Ninguém é obrigado a ser por Israel ou pelo Hamas, é muito mais
coerente e correto sem contra os dois. Não é porque não aceito o
prepotente Natanyaou, que vou justificar o Hamas religioso, que vem
acabando com o laicismo do Fatha e com as conquistas das mulheres
palestinas da época de Arafat.
Sakineh, a mulher iraniana ameaçada de
morrer apedrejada não é a primeira e nem vai ser a última. Já houve
mobilizações mundiais em favor de mulheres condenadas ao apedrejamento
em países islamitas africanos.
Quem viu o filme baseado no romance de
Khaled Osseini, sobre o Afganistão de antes da invasão soviética (não se
deve esquecer) até a atual ocupação ocidental, lembra-se da cena da
mulher lapidada. Ainda há uns cinco anos, um professor em Genebra,
justificava no jornal Le Monde o apedrejamento de mulheres adúlteras até
a morte. Era Hani Ramadan, filho do criador do movimento islamita
fundamentalistas Irmãos Muçulmanos e irmão do líder islamita na Europa,
Tarik Ramadan, que até hoje não deixou claro se apoia ou não esse tipo
de punição ditada pela chariá do Corão.
O caso da mulher iraniana ameaçada de ter
seu rosto e cabeça destruídos por pedras lançadas por homens não é
apenas a resposta iraniana maleducada ao nosso presidente Lula, por ter
oferecido refúgio à iraniana.
É muito mais que isso – é a existência no
nosso planeta de regiões e religiões que consideram as mulheres seres
inferiores, que as escondem sob o manto escuro da burca e as matam a
pedradas. Não vejo como poderia apoiar ou justificar, mesmo como tática
política, tais países. Só com condenações e denúncias (não guerras ou
invasões) poderão evoluir. A destruição do Iraque, país laico, pelos
americanos favoreceu o islamismo ortodoxo iraniano. E hoje, em lugar dos
não religiosos Nasser, Arafat e Sadam Hussein, o líder da região é
Ahmadinejad apoiado por molás e imãs, como na nossa Idade Média de reis e
imperadores apoiados pelo Vaticano.
Jornalista,
escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder
emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao
Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos
Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa,
Correio do Brasil e agência BrPress.
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