quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mulheres, Irã e esquerda


 
Rui Martins*

Berna (Suiça) - O episódio envolvendo a mulher iraniana, Sakineh, ameaçada de morte por apedrejamento, o presidente iraniano Ahmadinejad e o nosso presidente Lula, tem o grande mérito de esclarecer certas tomadas de posição da esquerda brasileira.


Embora eu tenha lido que a embaixada iraniana no Brasil vai fazer uma campanha de esclarecimento, ja há coisas bastante claras. Mas vamos começar do princípio – um postulado básico do posicionamento da esquerda e mesmo objetivo de sua luta política é o respeito a um princípio não negociável, os direitos humanos.


A longa trajetória da esquerda tem sido marcada por campanhas que foram contra a escravidão, como a memorável luta dos escravos comandados por Spartacus; pela liberdade do pensamento, na qual Erasmo, Guttenberg, Lutero tiveram relevância; pela ação de pacifistas em favor do respeito da dignidade humana e contra o imperialismo, como Cristo e Gandhi; pelas mulheres que, ainda recentemente, conquistaram o reconhecimento de serem iguais aos homens, como Simone de Beauvoir, a ex-ministra francesa Simone Weil, a advogada francotunisiana Gisele Halimi, por terem conquistado o direito legal de abortar e outros tantos homens e mulheres que, aqui na Europa e nas Américas, acabaram com os casamentos arranjados e forçados, e chegam mesmo a reconhecer o direito da mulher vender o prazer sexual se a isso não for obrigada.


Esta luta das mulheres,cujos resultados têm sido colhidos nos nossos dias, têm sido uma das mais difíceis, porque mesmo entre esquerdistas notórios, revolucionários e militantes pelos operários, o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres não foi automático. Por absurdo que possa parecer, as mulheres militantes na Revolução Espanhola, na Revolução de Outubro tinham escalão inferior, clima que existia também entre muitos marxistas.


Ora, na marcha da História, onde existem recaídas e retrocessos, o reconhecimento da dignidade das mulheres, do seu direito à liberdade para viver, casar e divorciar, ter ou não ter filhos, ser ou não fiel ao amante ou marido, é assegurado num número reduzido de países. E no próprio Brasil ainda não é de todo reconhecido.


Faz pouco anos, todos os autores de crimes passionais eram absolvidos. O caso mais flagrante da justiça machista brasileira é o do ex-diretor do jornal O Estado de São Paulo, Pimenta das Neves que matou pelas costas sua ex-amante, a jornalista Sandra Gomide, por ter sido por ela preterido e, embora condenado, vive em liberdade aguardando uma decisão do STF que, pelo jeito, nunca virá. No Brasil, não se apedreja Sakineh ou Sandra, mata-se a faca ou a tiros, e fica por isso mesmo, porque a justiça e a sociedade fazem vista grossa.


Ora, onde eu quero chegar ? O posicionamento de esquerda não deve e não pode permitir o caucionamento de regimes e governos ainda na idade da pedra e dos apedrejamentos em questões de direitos humanos que incluem, é óbvio, as mulheres. Mesmo quando se trata de manobra tática política, o contrapeso é excessivamente pesado.


Apoiar regimes que lapidam mulheres, obrigadas a serem fiéis a maridos que lhes foram impostos, ou simplesmente vítimas de suspeitas ou de tramas familiares é um contrasenso e não ajudará esses países a promover as reformas necessárias em favor das mulheres, livrando-as do jugo de religiosos retrógrados.


Apoiar regimes que cortam mãos, pés e cortam o nariz e orelhas da mulher que declara querer se divorciar, é ser conivente e cúmplice. Isso não quer dizer que o imperialista Bush podia invadir e ocupar países do Oriente Médio. Cada país tem direito à sua autodeterminação e a evoluir. A Europa queimava hereges na fogueira, caçava bruxas e punia as adúlteras, isso ainda há trezentos anos. O Afganistão e a milenar Pérsia vão evoluir sem precisar de soldados ocidentais, ao contrário a ocupação americanoeuropéia só vai atrasar essa evolução.


Outra coisa, não é porque Israel tem governo de extrema-direita, aplica uma indecente política de colonização e humilha os palestinos que o Hamas se transforma no movimento revolucionário exemplar e que a Palestina governada pelo Hamas será o paraíso. Ninguém é obrigado a ser por Israel ou pelo Hamas, é muito mais coerente e correto sem contra os dois. Não é porque não aceito o prepotente Natanyaou, que vou justificar o Hamas religioso, que vem acabando com o laicismo do Fatha e com as conquistas das mulheres palestinas da época de Arafat.


Sakineh, a mulher iraniana ameaçada de morrer apedrejada não é a primeira e nem vai ser a última. Já houve mobilizações mundiais em favor de mulheres condenadas ao apedrejamento em países islamitas africanos.


Quem viu o filme baseado no romance de Khaled Osseini, sobre o Afganistão de antes da invasão soviética (não se deve esquecer) até a atual ocupação ocidental, lembra-se da cena da mulher lapidada. Ainda há uns cinco anos, um professor em Genebra, justificava no jornal Le Monde o apedrejamento de mulheres adúlteras até a morte. Era Hani Ramadan, filho do criador do movimento islamita fundamentalistas Irmãos Muçulmanos e irmão do líder islamita na Europa, Tarik Ramadan, que até hoje não deixou claro se apoia ou não esse tipo de punição ditada pela chariá do Corão.


O caso da mulher iraniana ameaçada de ter seu rosto e cabeça destruídos por pedras lançadas por homens não é apenas a resposta iraniana maleducada ao nosso presidente Lula, por ter oferecido refúgio à iraniana.


É muito mais que isso – é a existência no nosso planeta de regiões e religiões que consideram as mulheres seres inferiores, que as escondem sob o manto escuro da burca e as matam a pedradas. Não vejo como poderia apoiar ou justificar, mesmo como tática política, tais países. Só com condenações e denúncias (não guerras ou invasões) poderão evoluir. A destruição do Iraque, país laico, pelos americanos favoreceu o islamismo ortodoxo iraniano. E hoje, em lugar dos não religiosos Nasser, Arafat e Sadam Hussein, o líder da região é Ahmadinejad apoiado por molás e imãs, como na nossa Idade Média de reis e imperadores apoiados pelo Vaticano.


Jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.


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