Escrito por Mário Maestri no Correio da Cidadania | |
1- Constituição e Racionalização da Exploração Escravista na Antiguidade
A desqualificação dos oprimidos é recurso histórico, consciente e
inconsciente, dos opressores para racionalizar e consolidar a
exploração. Nas formas de produção pré-capitalistas, essa
desqualificação centrou-se fortemente na natureza dos explorados. No clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884, Frederico
Engels assinalou a dominação da mulher pelo homem, no contexto da
primitiva divisão sexual do trabalho, como a primeira forma geral de
exploração. "[...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a
mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão
do sexo feminino pelo masculino". A opressão da mulher apoiou-se
tradicionalmente na defesa de sua inferioridade, fortemente ancorada na
sua diversidade fisiológica em relação ao homem. O magnífico Aristóteles
apontava como exemplo da inferioridade feminina o fato de que ela teria
menos dentes que os homens!
A escravidão patriarcal, base da produção na Grécia homérica, surgiu
quando o produtor superou sistematicamente suas necessidades de
subsistência, produzindo excedente capaz de ser apropriado pelo
explorador. A orientação da produção para o consumo do núcleo familiar
da pequena propriedade grega, de uns cinco ou pouco mais hectares [oikos], pôs relativamente
travas à exploração do homem e da mulher escravizados. Não havia
sentido em produzir acima do consumido pelos proprietários, familiares,
dependentes e cativos. No escravismo patriarcal, o proprietário, sua
família e dependentes trabalhavam comumente ao lado do cativo, em
proximidade que apenas minimizava o caráter despótico daquela relação
social de produção.
Com a consolidação da propriedade privada sobre a terra e seus frutos e a
expansão do mercado, a escravidão patriarcal desenvolveu-se e
superou-se qualitativamente. Ainda que fossem numerosas as pequenas
propriedades escravistas de subsistência, nos dois séculos finais da
República e nos dois primeiros do Império, dominou social e
economicamente a pequena propriedade escravista pequeno-mercantil
especializada. Orientada para o mercado, a villa tinha em torno
de uns dez a trezentos hectares e trabalhava com algumas poucas dezenas
de cativos. A dimensão reativamente restrita e o caráter dos seus
produtos, que exigiam comumente trabalho intensivo, especializado e
sazonal, impediram tendencialmente a degradação das condições do
trabalho servil conhecida séculos mais tarde na escravidão colonial. Era
monótona e dura a existência do produtor escravizado nessas
propriedades.
Transição Histórica
Por variadas razões, fracassou a evolução da produção pequeno-mercantil
em escravismo mercantil, ou seja, em grandes propriedades trabalhadas
por dezenas e centenas de cativos, tentada em diversas regiões, com
destaque para as propriedades triticultoras da Sicília. Sob a forte
pressão dos produtores escravizados, abriram-se então as portas à longa
transição ao colonato e, a seguir, à produção feudal.
Nesta última, o produtor deixava de ser, como anteriormente, propriedade
plena do explorador. Sob a obrigação de pagamento de rendas
delimitadas, ele passou a controlar sua família e seus instrumentos de
trabalho e a gerir relativamente a gleba à qual era adstrito, em
importante evolução histórica que não o emancipou da servidão. A
escravidão plena, menos produtiva e mais custosa, manteve-se como
relação de dominação subordinada na Europa, em alguns casos, até o
século 18.
A violência foi sempre a principal forma de submissão do trabalhador na
escravidão patriarcal e pequeno mercantil. Os cativos e cativas tidos
como relapsos e desobedientes eram forte e exemplarmente
castigados. Os atos de rebelião contra os proprietários, familiares e
feitores eram punidos com a tortura e a morte. Não raro, os cativos
rebeldes eram queimados vivos. No Império, quando a escravaria urbana
dos romanos mais ricos podia superar os cem membros, o receio dos
proprietários à resistência do cativo chegou ao paroxismo. Lei romana
dos primeiros anos de nossa determinou que, se um pater famílias,
ou seja, um proprietário escravista ou seu familiar fosse assassinado,
todo cativo que, encontrando-se a uma distância em que pudesse ouvir seu
pedido de ajuda, não o socorresse, seria torturado e executado. Nos
tempos de Nero, Padânio Secondo, prefeito de Roma, foi justiçado por
cativo que lhe pagara e não recebera a manumissão. Todos seus
quatrocentos cativos, de ambos os sexos e das mais variadas idades,
foram executados, apesar da agitação que a terrível medida causou entre a
plebe romana formada em boa parte por libertos.
A escravidão apoiou-se também na submissão ideológica dos cativos. Entre
os múltiplos mecanismos utilizados, destacava-se o convencimento do
cativo de sua natureza diversa e inferior, proposta que racionalizava e consolidava a ditadura dos escravizadores sobre os escravizados.
Azares da Sorte
Na Grécia homérica, a escravidão era vista como decorrência dos azares
da sorte – guerra, captura, dívida etc. A visão platônica expressava uma
época em que a escravidão tornara-se instituição importante. Para
Platão, a servidão de um indivíduo ou de um povo devia-se à incapacidade
de se auto-governar, por falta de discernimento intelectual, cultural
ou moral, qualidades exclusivas ao mundo, cultura e homem helênicos.
Porém, para ele, era a lei que determinava quem era escravo e senhor.
Entretanto, sua teoria da superioridade da alma sobre o corpo
consubstanciava já a visão da submissão necessária do súdito ao
soberano, da mulher ao homem, do escravizado ao escravizador.
A visão aristotélica da escravidão nasceu em sociedade solidamente
escravista. Para Aristóteles, era inaceitável que um homem fosse
submetido e mantido na escravidão apenas pela força, sancionada pela
lei. O que lhe apontava a força, como forma de emancipação. Ele superou a
tese platônica, ao defender raiz natural e, portanto, genético-racial
à servidão. Para Aristóteles, a reunião de diversas famílias formava o
burgo e a associação de diversos burgos, a cidade, ou seja, a sociedade
política. Um processo determinado pela natureza que compelia "os homens a se associarem" na procura do "fim das coisas", a felicidade.
Para Aristóteles, a família "completa", unidade de base da
sociedade, forma-se por homens livres e escravizados. Para ele, a
natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, pois
o melhor "instrumento" era o que serve para "apenas" um "mister", e não
para muitos. Assim, na consecução de fins comuns, seres de essência
diversa complementavam-se, cada qual realizando a função para que fora
criado pela natureza. Os mais elevados comandavam os menos perfeitos. "A
autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda
[...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer;
outros, a mandar".
A natureza determinava que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo.
"[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os
animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o
é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os
homens". "Há também, por obra da natureza e para a conservação das
espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que
possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e
poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para
executar deve, forçosamente, obedecer e servir – e, pois, o interesse do
senhor é o mesmo que o do escravo". Fundando o direito da servidão na
inferioridade natural e não na força, consolidava ideologicamente
a ordem escravista grega, impugnando a escravização do heleno, por um
lado, e a validade do bárbaro de emancipar-se pela força, por outro.
Propunha que oprimidos e opressores se associariam na consecução de
objetivos comum, pois, sendo a opressão algo próprio da ordem da
natureza, não haveria civilização à margem da mesma.
Como os Animais Domésticos
Aristóteles foi mais longe, ao propor que a especialização natural, ou
seja, a inferioridade e superioridade, se expressasse na própria
constituição dos seres. A inferioridade dos "animais domésticos", que
serviam com a "força física" ao dono nas "necessidades quotidianas",
como o boi, o asno etc., registrava-se nos seus corpos de brutos. O
mesmo ocorria entre os homens, pois a "natureza" pareceria "querer dotar
de característicos diferentes os corpos dos homens livres e dos
escravos". "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como
o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem". Os homens incapazes
de outra função que as relacionadas à "força física" eram "destinados à
escravidão".
A proposta de registro material da superioridade e inferioridade
naturais dos homens constituía elemento central na racionalização
aristotélica da exploração escravista, retomada plenamente no mundo
romano, e, mais tarde, na Idade Média e Moderna. A força desta proposta
encontrava-se no registro, indiscutível, nos corpos, da
inferioridade da alma. O que tornava materialmente visível a
hierarquização social, com homens superiores, destinados a mandar e
serem servidos, e homens inferiores, destinados a obedecer e servir.
Porém, tal proposta materializou-se em forma muito limitada no mundo
grego, por falta de condições objetivas nas quais pudessem se apoiar as
fantasmagorias dos escravizadores.
Mesmo no mundo grego tardio, os cativos provinham sobretudo das
províncias e regiões periféricas do mundo helênico. Portanto, havia
forte identidade étnica entre amos e cativos. O que
dificultou a tentativa permanente de apontar traços somáticos que
expressassem as naturezas diferenciais, superiores e inferiores, dos
escravizadores e dos escravizados. Inicialmente, a escravidão romana
apoiou-se na escravização de povos itálicos, de forte semelhança
étnico-somática. Com a extensão da escravidão, foi feitorizada
infinidade de povos da bacia do Mediterrâneo e da Europa Ocidental,
Central e Oriental. A diversidade étnico-linguística dessa população
escravizada impediu, também, o procurado registro fenótipo da pretensa
natureza humana inferior do escravizado.
A sociedade romana enfatizou a cultura e a língua como elementos
diferenciadores, ainda que os múltiplos traços fenótipos dos cativos
fossem apontados como registro de inferioridade. É conhecida a descrição
de escravista romano, com propriedade na Magna Grécia – um italiano meridional, nos dias de hoje; dos traços semi-bestializados de seu cativo germânico. Ou seja, um alemão atual. Sequer o renascimento ibérico da escravidão, com a Reconquista,
produziu identificação cabal e duradoura entre etnia e escravidão. Tal
fenômeno materializar-se-ia quando do renascimento do escravismo, nas
Américas, dando origem à desqualificação essencial do africano
subsaariano, base das visões racistas anti-negro contemporâneas.
A seguir: 2 - Escravidão e Racionalização de Mouros e Africanos
Mário Maestri, 62, é professor do curso e do programa em Pós-Graduação em História da UPF. É autor, entre outros trabalhos, de O escravismo antigo e O escravismo brasileiro, publicados pela Editora Atual. E-mail:
maestrti@via-rs.net
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
A Origem e Consolidação do Racismo no Brasil
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