quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Querem cassar a candidatura de Dilma Roussef

Por Marcelo Salles no blog o escrevinhador



A coligação de José Serra acionou o Tribunal Superior Eleitoral, nesta quarta-feira (01/9), pedindo a cassação da candidatura de Dilma Rousseff. O motivo seria a quebra do sigilo fiscal, pela Receita Federal, de pessoas ligadas ao PSDB, incluindo a filha de Serra, Verônica Serra.
Vamos desde o começo.
O Brasil é um dos países mais ricos do mundo. Petróleo, ouro, nióbio, solo fértil, as florestas, os mares, dimensões continentais, 200 milhões de habitantes, parque industrial diversificado e etc. O mundo inteiro cobiça as nossas riquezas.
É fundamental que isto seja dito, porque existe algo além de saúde, educação e segurança pública – sem falar nos temas menos votados – em jogo nessas eleições gerais. Não que saúde, educação e segurança pública sejam coisa pouca. Não é isso. Só estou dizendo que existe algo mais. Algo que, inclusive, é necessário para a administração de tudo o mais.
Quando o Brasil foi invadido em 1500, Portugal queria extrair o máximo de riquezas possível, mesmo porque precisava de recursos para se reposicionar frente ao surgimento de novas potências européias.
Nos séculos seguintes, o país foi marcado a ferro e fogo pelo instituto da escravidão. Entre 5 e 8 milhões de negros foram saqueados da África para o trabalho forçado nas Américas. Durante muito tempo era direito matá-los e torturá-los. Isso cria marcas profundas, cria racismo, que é desigualdade de oportunidade. Foram quase quatro séculos em que a mão de obra escrava era a força motriz da economia brasileira.
Com Getúlio Vargas a história começou a mudar. O gaúcho jogou água na política do café-com-leite, e a “revolução constitucionalista” de 1932 está aí para provar o ódio da elite paulista pelo Brasil. Em São Paulo não há nenhuma avenida com o nome de Getúlio Vargas, como nas principais capitais do país.
O período foi marcado por intensa mobilização popular, que culminou com o povo nas ruas diante do suicídio do presidente, em 1954. O golpe que vinha sendo gestado foi aadiado por 10 anos. Nesses anos, o país vivia um grande período de conscientização popular. Organizações de classe, uniões estudantis, todos tinham no topo de suas reivindicações um país melhor.
Até que veio o golpe, e a ditadura civil-militar iniciada em 1964.
Prisões, torturas, execuções extra-judiciais, ocultação de cadáver. A imposição do medo. Hoje o Brasil é um pouco filho desse medo. Conheço muita gente que foi criada assim. Eu mesmo ouvi muito dos meus pais: “Não escreva isso, meu filho, alguém pode te prejudicar. Não se exponha assim”. Na época deles, quem manifestasse opinião contrária ao status quo podia pagar com a própria vida. O medo causa paralisia social, em contraposição à mobilização popular.
O resultado de duas décadas de ditadura foi a desmobilização do povo. O interesse público, comum, coletivo, os grandes projetos para o país, a discussão sobre o que fazer com nossas riquezas, isso tudo foi posto de lado.
A ditadura desestruturou o ensino público, disciplinas que estimulam o pensamento como filosofia, sociologia e psicologia foram suprimidas dos currículos. Paralelamente, foi erguido um sistema de comunicação voltado para o emburrecimento do povo. A receita “novela + notícias controladas” funciona até hoje. Tudo o que se pretende é desviar a atenção dos assuntos realmente importantes.
A história não é feita de pílulas. Trata-se de uma construção, com início, meio e fim. Uma das maiores estultices é esse a frase “eleição não se decide pelo retrovisor”. Esse papo é má fé ou ignorância.
Imediatamente após a ditadura começaram a pensar no desmonte do Estado brasileiro, que o jornalista Aloysio Biondi mostra com rara precisão no livro “O Brasil privatizado”. Se a década de 1980 foi a década perdida, a década de 1990 foi a achada. Achada por tubarões capitalistas, que se fartaram com a privataria. Época em que uma Vale do Rio Doce era vendida pela metade do valor do lucro anual, em que mapas com estudos da Petrobrás sumiam da biblioteca da empresa, e logo depois poços com alta probabilidade de retorno eram leiloados por uns trocados. Uma época que ficou imortalizada pela frase: “Estamos agindo no limite da irresponsabilidade”.
Essa a invasão tão sonhada pelas multinacionais. A guerra sem sangue que faz sangrar o nosso povo em lágrimas de fome.
Essa época foi conduzida por Fernando Henrique Cardoso, que teve José Serra no corpo ministerial. O hoje candidato à presidência tem como principal parceiro o DEM, que até pouco tempo atrás era PFL, e antes ARENA, principal partido de sustentação da ditadura de 1964.
É esse o grupo político que pede a cassação da candidatura de Dilma.
A candidata do PT tem pelo menos três grandes trunfos, que vão ajudá-la a manter a dianteira nas pesquisas, que já indicam sua vitória em primeiro turno: o primeiro é a avaliação positiva do governo que representa, que beira 80%. Isso inclui percepções positivas sobre aumento do emprego e redução da miséria/pobreza, mas também a retomada da centralidade do Estado para o desenvolvimento do país. O segundo trunfo é o maior tempo de rádio e TV, com uma média de dez minutos contra sete de Serra. Por fim, Dilma e o PT contam com o apoio da maioria dos prefeitos.
Talvez o grupo do Serra já tenha perdido as esperanças de vencer nas urnas, e agora passe a tentar a vitória através da judicialização das eleições. O fato em si pouco importa. Tecnicamente seria um absurdo inominável cassar uma candidatura porque um funcionário da Receita Federal teria quebrado o sigilo bancário de alguém, ainda mais tendo o fato ocorrido em setembro de 2009, quando as eleições nem haviam começado. Isso não prova nada.
No entanto, está criado o fato político, que conta com ampla repercussão das corporações de mídia. As construções midiáticas camuflam a falta de estofo da coligação PSDB-DEM, conforme ficou muito claro nas palavras do senador tucano Álvaro Dias: “A lógica, o clima, tudo leva a crer…”. Ou a falta de coerência do próprio Serra, que comparou o caso em questão com o que fez Collor com Lula em 1989. Dilma não é Collor e Verônica não é Lurian. Uma coisa foi o Collor usar o depoimento da mãe da Lurian dizendo que Lula teria pedido pra que ela abortasse. Outra completamente diferente é a suposta quebra de sigilo fiscal pela Receita Federal da filha de Serra, fato ainda sob investigação. Uma imprensa minimamente comprometida com o fazer jornalístico teria desmascarado o factóide imediatamente.
Mas as corporações de mídia foram além em seu esforço para desenhar o quadro perfeito. O próprio presidente Lula foi instado a se posicionar, desde Foz do Iguaçu, onde cumpre agenda oficial – entre outras coisas uma aula inaugural na Universidade Federal da Integração Latino-Americana e um seminário sobre acolhimento familiar. Mas os meios de comunicação de massa simplesmente ignoraram os compromissos do presidente, usando a sua fala tão somente para a composição do “escândalo”.
Este não é apenas mais um ato covarde da direita brasileira. Trata-se de um significativo capítulo da nossa história em que ela tenta tudo para recuperar o poder perdido. É provável que até o dia da votação, 3 de outubro, outros episódios como esse apareçam. Confio na razoabilidade dos juízes do Tribunal Superior Eleitoral, mas, sobretudo, confio na capacidade do povo brasileiro em defender as suas riquezas, seu sentimento e seu voto.

Marcelo Salles, jornalista, é colaborador do jornal Fazendo Media e da revista Caros Amigos, da qual foi correspondente em La Paz entre 2008 e 2009. No twitter, é @MarceloSallesJ

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