Por Marcelo Salles no blog o escrevinhador
A coligação de José Serra acionou o Tribunal Superior Eleitoral,
nesta quarta-feira (01/9), pedindo a cassação da candidatura de Dilma
Rousseff. O motivo seria a quebra do sigilo fiscal, pela Receita
Federal, de pessoas ligadas ao PSDB, incluindo a filha de Serra,
Verônica Serra.
Vamos desde o começo.
O Brasil é um dos países mais ricos do mundo. Petróleo, ouro, nióbio,
solo fértil, as florestas, os mares, dimensões continentais, 200
milhões de habitantes, parque industrial diversificado e etc. O mundo
inteiro cobiça as nossas riquezas.
É fundamental que isto seja dito, porque existe algo além de saúde,
educação e segurança pública – sem falar nos temas menos votados – em
jogo nessas eleições gerais. Não que saúde, educação e segurança pública
sejam coisa pouca. Não é isso. Só estou dizendo que existe algo mais.
Algo que, inclusive, é necessário para a administração de tudo o mais.
Quando o Brasil foi invadido em 1500, Portugal queria extrair o
máximo de riquezas possível, mesmo porque precisava de recursos para se
reposicionar frente ao surgimento de novas potências européias.
Nos séculos seguintes, o país foi marcado a ferro e fogo pelo
instituto da escravidão. Entre 5 e 8 milhões de negros foram saqueados
da África para o trabalho forçado nas Américas. Durante muito tempo era
direito matá-los e torturá-los. Isso cria marcas profundas, cria
racismo, que é desigualdade de oportunidade. Foram quase quatro séculos
em que a mão de obra escrava era a força motriz da economia brasileira.
Com Getúlio Vargas a história começou a mudar. O gaúcho jogou água na
política do café-com-leite, e a “revolução constitucionalista” de 1932
está aí para provar o ódio da elite paulista pelo Brasil. Em São Paulo
não há nenhuma avenida com o nome de Getúlio Vargas, como nas principais
capitais do país.
O período foi marcado por intensa mobilização popular, que culminou
com o povo nas ruas diante do suicídio do presidente, em 1954. O golpe
que vinha sendo gestado foi aadiado por 10 anos. Nesses anos, o país
vivia um grande período de conscientização popular. Organizações de
classe, uniões estudantis, todos tinham no topo de suas reivindicações
um país melhor.
Até que veio o golpe, e a ditadura civil-militar iniciada em 1964.
Prisões, torturas, execuções extra-judiciais, ocultação de cadáver. A
imposição do medo. Hoje o Brasil é um pouco filho desse medo. Conheço
muita gente que foi criada assim. Eu mesmo ouvi muito dos meus pais:
“Não escreva isso, meu filho, alguém pode te prejudicar. Não se exponha
assim”. Na época deles, quem manifestasse opinião contrária ao status
quo podia pagar com a própria vida. O medo causa paralisia social, em
contraposição à mobilização popular.
O resultado de duas décadas de ditadura foi a desmobilização do povo.
O interesse público, comum, coletivo, os grandes projetos para o país, a
discussão sobre o que fazer com nossas riquezas, isso tudo foi posto de
lado.
A ditadura desestruturou o ensino público, disciplinas que estimulam o
pensamento como filosofia, sociologia e psicologia foram suprimidas dos
currículos. Paralelamente, foi erguido um sistema de comunicação
voltado para o emburrecimento do povo. A receita “novela + notícias
controladas” funciona até hoje. Tudo o que se pretende é desviar a
atenção dos assuntos realmente importantes.
A história não é feita de pílulas. Trata-se de uma construção, com
início, meio e fim. Uma das maiores estultices é esse a frase “eleição
não se decide pelo retrovisor”. Esse papo é má fé ou ignorância.
Imediatamente após a ditadura começaram a pensar no desmonte do
Estado brasileiro, que o jornalista Aloysio Biondi mostra com rara
precisão no livro “O Brasil privatizado”. Se a década de 1980 foi a
década perdida, a década de 1990 foi a achada. Achada por tubarões
capitalistas, que se fartaram com a privataria. Época em que uma Vale do
Rio Doce era vendida pela metade do valor do lucro anual, em que mapas
com estudos da Petrobrás sumiam da biblioteca da empresa, e logo depois
poços com alta probabilidade de retorno eram leiloados por uns trocados.
Uma época que ficou imortalizada pela frase: “Estamos agindo no limite
da irresponsabilidade”.
Essa a invasão tão sonhada pelas multinacionais. A guerra sem sangue que faz sangrar o nosso povo em lágrimas de fome.
Essa época foi conduzida por Fernando Henrique Cardoso, que teve José
Serra no corpo ministerial. O hoje candidato à presidência tem como
principal parceiro o DEM, que até pouco tempo atrás era PFL, e antes
ARENA, principal partido de sustentação da ditadura de 1964.
É esse o grupo político que pede a cassação da candidatura de Dilma.
A candidata do PT tem pelo menos três grandes trunfos, que vão
ajudá-la a manter a dianteira nas pesquisas, que já indicam sua vitória
em primeiro turno: o primeiro é a avaliação positiva do governo que
representa, que beira 80%. Isso inclui percepções positivas sobre
aumento do emprego e redução da miséria/pobreza, mas também a retomada
da centralidade do Estado para o desenvolvimento do país. O segundo
trunfo é o maior tempo de rádio e TV, com uma média de dez minutos
contra sete de Serra. Por fim, Dilma e o PT contam com o apoio da
maioria dos prefeitos.
Talvez o grupo do Serra já tenha perdido as esperanças de vencer nas
urnas, e agora passe a tentar a vitória através da judicialização das
eleições. O fato em si pouco importa. Tecnicamente seria um absurdo
inominável cassar uma candidatura porque um funcionário da Receita
Federal teria quebrado o sigilo bancário de alguém, ainda mais tendo o
fato ocorrido em setembro de 2009, quando as eleições nem haviam
começado. Isso não prova nada.
No entanto, está criado o fato político, que conta com ampla
repercussão das corporações de mídia. As construções midiáticas camuflam
a falta de estofo da coligação PSDB-DEM, conforme ficou muito claro nas
palavras do senador tucano Álvaro Dias: “A lógica, o clima, tudo leva a
crer…”. Ou a falta de coerência do próprio Serra, que comparou o caso
em questão com o que fez Collor com Lula em 1989. Dilma não é Collor e
Verônica não é Lurian. Uma coisa foi o Collor usar o depoimento da mãe
da Lurian dizendo que Lula teria pedido pra que ela abortasse. Outra
completamente diferente é a suposta quebra de sigilo fiscal pela Receita
Federal da filha de Serra, fato ainda sob investigação. Uma imprensa
minimamente comprometida com o fazer jornalístico teria desmascarado o
factóide imediatamente.
Mas as corporações de mídia foram além em seu esforço para desenhar o
quadro perfeito. O próprio presidente Lula foi instado a se posicionar,
desde Foz do Iguaçu, onde cumpre agenda oficial – entre outras coisas
uma aula inaugural na Universidade Federal da Integração
Latino-Americana e um seminário sobre acolhimento familiar. Mas os meios
de comunicação de massa simplesmente ignoraram os compromissos do
presidente, usando a sua fala tão somente para a composição do
“escândalo”.
Este não é apenas mais um ato covarde da direita brasileira. Trata-se
de um significativo capítulo da nossa história em que ela tenta tudo
para recuperar o poder perdido. É provável que até o dia da votação, 3
de outubro, outros episódios como esse apareçam. Confio na razoabilidade
dos juízes do Tribunal Superior Eleitoral, mas, sobretudo, confio na
capacidade do povo brasileiro em defender as suas riquezas, seu
sentimento e seu voto.
Marcelo Salles, jornalista, é colaborador do jornal Fazendo Media
e da revista Caros Amigos, da qual foi correspondente em La Paz entre
2008 e 2009. No twitter, é @MarceloSallesJ
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