Doménico Losurdo*no Diario.info
“No
século XX, foram os Estados Unidos o país que teve o maior número (…)
[de] “Prémio Nobel da Paz”: Teodoro Roosevelt (para quem o único índio
“bom” era o que estava morto), Kissinger (o protagonista do golpe de
estado no Chile e da guerra no Vietname), Carter (o promotor do boicote
dos Jogos Olímpicos de Moscovo em 1980 e da proibição de exportação de
trigo para a URSS, que tinha intervindo no Afeganistão contra os
combatentes da liberdade muçulmanos), Obama (que, agora, recorreu a um
monstruoso aparelho de guerra contra esses mesmos combatentes da
liberdade, que entretanto passaram a terroristas).”
A atribuição do Prémio Nobel da Paz em 2010 a um “dissidente” chinês de
quem muito poucas pessoas tinha ouvido falar, vem na esteira dos
atribuídos a 4 “senhores da guerra” norte-americanos, e insere-se na
intensa campanha em curso de “guerra comercial contra a China, brandida
desta vez aberta e solenemente pelo Congresso dos Estados Unidos”.
Nas
últimas semanas semanas tem-se assistido na Austrália a um debate
aceso. Num ensaio publicado no Quartely Essay e já revelado em parte no
Australian, Hugh White alertou contra inquietantes processos
em curso: à ascensão da China, Washington responde com a tradicional
política de contenção, reforçando de forma ameaçadora o seu potencial e
as suas alianças militares; Pequim, por sua vez, não se deixa intimidar e
“conter” facilmente; tudo isto pode provocar uma polarização de
alianças opostas na Ásia e fazer surgir “um perigo real e crescente de
guerra de grandes proporções ou mesmo de guerra nuclear”. O autor deste
alerta não é um ilustre desconhecido: tem por detrás dele uma longa
carreira de analista dos problemas de defesa e de política estrangeira, e
de certa forma faz parte do establishment intelectual. Não é
por acaso que a sua intervenção provocou um debate nacional, no qual
também participou a primeira-ministra, Júlia Gillard, que reafirmou a
necessidade da relação privilegiada com os EUA.
Mas os círculos radicais australianos foram muito mais longe: é
necessário um empenho profundo numa Grande aliança dos democratas contra
os déspotas de Pequim. Não há qualquer dúvida: a ideologia da guerra
contra a China apoia-se numa ideologia já muito antiga que justifica e
até festeja as agressões militares e as guerras do ocidente em nome da
“democracia” e dos “direitos do homem”.
E eis que, neste momento, o “Prémio Nobel da Paz” é atribuído ao
“dissidente” chinês Liu Xiaobo: um sentido de oportunidade perfeita,
tanto mais perfeita se se pensar na ameaça de guerra comercial contra a
China, brandida desta vez aberta e solenemente pelo Congresso dos
Estados Unidos.
A China, o Irão e a Palestina
Entre os primeiros a regozijar-se com a escolha dos senhores de Oslo
encontra-se Shirin Ebadi, que de imediato reforçou: “A China é um país
que não só viola os direitos do homem como é também um país que apoia e
sustenta numerosos outros regimes que os violam, como os que estão no
poder no Sudão, na Birmânia, na Coreia do Norte, no Irão…”; além disso, é
um país que é responsável por uma “grande exploração dos
trabalhadores”. Portanto, é preciso boicotar “os produtos chineses” e
“reduzir ao máximo as trocas económicas e comerciais com a China”. (Corriere della Sera de 9 de Outubro).
E mais uma vez: é clara a contribuição para a ideologia da guerra
travada em nome da “democracia” e dos “direitos do homem” e está aberta a
declaração de guerra comercial. Mas então, porque é que Shirin Ebadi
recebeu em 2003 o “Prémio Nobel da Paz”? O prémio foi atribuído a uma
mulher que tem uma visão maniqueísta das relações internacionais; na
lista das violações dos direitos do homem não há lugar para Abou Ghraib e
Guantánamo, para os complexos prisionais em que Israel encerra os
palestinos em massa, para os bombardeamentos e guerras desencadeadas sob
pretextos falsos e mentirosos, para o urânio empobrecido, para os
embargos de tendência genocida impostos ao arrepio da esmagadora maioria
dos membros da ONU e da comunidade internacional…
E no que se refere à “grande exploração dos trabalhadores” na China,
Shirin Ebadi fala sem dúvida levianamente: no grande país asiático,
centenas de milhões de homens e mulheres foram poupados à fome a que
tinham sido condenados sobretudo pela agressão imperialista e pelo
embargo decretado pelo ocidente; e ainda hoje podemos ler em todos os
órgãos de imprensa que os salários dos trabalhadores estão a progredir a
um ritmo bastante rápido. Em todo o caso, se o embargo contra Cuba
prejudica exclusivamente os habitantes da ilha, um eventual embargo
contra a China provocaria uma crise económica planetária, com
consequências devastadoras até mesmo para as massas populares
ocidentais, assim como o adeus aos direitos do homem (pelo menos os
direitos económicos e sociais).
Não há qualquer dúvida: em 2003, aquela que recebeu o “Prémio Nobel
da Paz” é uma ideóloga da guerra, medíocre e provinciana. Será que se
quis recompensar uma activista que pretende defender a causa dos
direitos do homem, pelo menos no interior do Irão, já que o não faz a
nível internacional? Se fosse essa a intenção dos senhores de Oslo,
deviam ter premiado Mohammed Mossadegh que, no início dos anos 50, se
empenhou em construir um Irão democrático mas que, por ter tido a
ousadia de nacionalizar a indústria petrolífera, foi derrubado por um
golpe de estado organizado pela Grã-Bretanha e pelos EUA, esses países
que hoje se armam em paladinos da “democracia” e “dos direitos do
homem”. Ou então os senhores de Oslo podiam ter premiado qualquer
corajoso oponente da feroz ditadura do Xá, apoiada pelos improváveis
paladinos habituais da causa da “democracia” e “dos direitos do homem”.
Mas então, porque é que em 2003 o “Prémio Nobel da Paz” foi
atribuído a Shirin Ebadi ? Nessa altura, enquanto que o interminável
mártir povo palestino sofria mais um apertão, já se perfilava claramente
a Cruzada contra o Irão. O reconhecimento atribuído a uma militante
palestina teria sido um contributo real para a causa da tranquilidade e
da paz no Próximo Oriente. Não há militantes palestinos “não violentos”?
É difícil classificar Obama de “não violento”, o chefe de um país que
se meteu em várias guerras e que, só por si, gasta em armamento tanto
como o resto do mundo no seu conjunto. De resto, não faltam na Palestina
os “não violentos”, e de resto são não violentos os militantes que
chegam à Palestina vindos de todos os países para defender os seus
habitantes duma violência avassaladora e que, por vezes, foram varridos
pelos tanques ou pelos bulldozers do exército de ocupação. Mas os
senhores de Oslo preferiram premiar uma militante que desde então não
pára de atiçar o fogo da guerra, primeiro contra o Irão, e agora também
contra a China.
Depois da consagração e da transfiguração de Liu Xiaobo, o
presidente americano interveio imediatamente: exigiu a libertação
imediata do “dissidente”. Mas porque é que, enquanto espera, não liberta
os detidos sem processo de Guantánamo, ou pelo menos faz pressão para a
libertação dos numerosos palestinos (por vezes ainda adolescentes)
aprisionados por Israel, como a própria imprensa ocidental reconhece, em
complexos prisioneiros horríveis?
Os senhores de Oslo, os EUA e a China
Com Obama, deparamo-nos com outro “Prémio Novel da Paz” de
características igualmente singulares. Quando o recebeu, no ano passado,
tinha acabado de declarar que tinha a intenção de reforçar a presença
militar dos EUA e da NATO no Afeganistão e de dar um novo impulso às
operações de guerra. Reconfortado pelo reconhecimento prestigiante que
recebera em Oslo, foi fiel à sua palavra: hoje são muito mais numerosos
do que na época de Bush, esses esquadrões da morte que do alto dos céus
“eliminam” os “terroristas”, os “terroristas” potenciais e os suspeitos
de “terrorismo”; e esses helicópteros e aviões sem piloto, que fazem o
papel de esquadrões da morte, também devastam o Paquistão (com as
numerosas vítimas “colaterais” que se seguem); a indignação popular é
tão forte e disseminada que até mesmo os governantes de Cabul e
Islamabad se sentem obrigados a protestar contra Washington. Mas Obama
não se deixa impressionar: pode sempre exibir o seu “Prémio Nobel da
Paz”!
Nos últimos dias, correu uma notícia que provoca calafrios: no
Afeganistão, existem militares americanos que matam civis inocentes por
divertimento, conservando depois partes dos corpos das vítimas como
recordação de caça. A administração americana apressou-se a bloquear
imediatamente a difusão de pormenores posteriores e principalmente de
fotos: chocada, a opinião pública americana e internacional podia vir a
fazer pressão para acabar com a guerra no Afeganistão; para poder
continuar com ela, com essa guerra, e torná-la ainda mais dura, o
“Prémio Nobel da Paz” preferiu assim infligir um golpe à liberdade da
imprensa.
Mas podemos fazer aqui uma consideração de carácter geral. No século
XX, foram os Estados Unidos o país que teve o maior número de grandes
homens de estado coroados com o “Prémio Nobel da Paz”: Teodoro Roosevelt
(para quem o único índio “bom” era o que estava morto), Kissinger (o
protagonista do golpe de estado no Chile e da guerra no Vietname),
Carter (o promotor do boicote dos Jogos Olímpicos de Moscovo em 1980 e
da proibição de exportação de trigo para a URSS, que tinha intervindo no
Afeganistão contra os combatentes da liberdade muçulmanos), Obama (que, agora, recorreu a um monstruoso aparelho de guerra contra esses mesmos combatentes da liberdade,
que entretanto passaram a terroristas). Vejamos, na vertente oposta,
como é que se posicionam os senhores de Oslo no que se refere à China.
Este país, que representa um quarto da humanidade, não se envolveu em
nenhuma guerra nos últimos trinta anos e fomentou um desenvolvimento
económico que, libertando da miséria e da fome centenas de milhões de
homens e mulheres, lhes permitiu pelo menos aceder aos direitos
económicos e sociais.
Pois bem, os senhores de Oslo não se dignaram ter em consideração
esse país senão para atribuir três prémios a três “dissidentes”: em 1989
o “Prémio Nobel da Paz” é atribuído ao 14º Dalai Lama, que tinha
abandonado a China já há trinta anos; em 2000 o Nobel da literatura é
atribuído a Gao Xingjan, um escritor que a partir daí passou a ser
cidadão francês; em 2010, o “Prémio Nobel da Paz” coroa um outro
dissidente que, depois de ter vivido nos Estados Unidos e de ter
ensinado na Universidade de Columbia, regressa à China “a toda a
velocidade” (Marco Del Corona, no Corriere della Sera de 9 de
Outubro) para participar na revolta (nada pacífica) na Praça Tienanmen.
Ainda hoje, é assim que ele fala do seu povo: “Nós os chineses, tão
brutais” (Ilaria Maria Sala, La Stampa, 9 de Outubro).
Assim, aos olhos dos senhores de Oslo, a causa da paz é representada
por um país (EUA) que se considera investido da missão divina de guiar o
mundo, que instalou e continua a instalar bases militares ameaçadoras
em todos os cantos do planeta; quanto à China (que não possui nenhuma
base militar no estrangeiro), uma civilização milenar que, depois do
século de humilhações e de miséria impostas pelo imperialismo, está em
vias de voltar ao seu antigo esplendor, quem representa a causa da paz
(e da cultura) são apenas três “dissidentes” que aliás pouco têm a ver
actualmente com o povo chinês e que vêem no ocidente o único farol que
ilumina o mundo. Sem dúvida que vemos emergir aqui na política dos
senhores de Oslo a antiga arrogância colonialista e imperialista.
Enquanto que na Austrália ressoam vozes inquietas sobre os perigos
de guerra, em Oslo puxa-se o lustro a uma ideologia da guerra de funesta
memória: as guerras do ópio foram festejadas por J.S. Mill como uma
contribuição para a causa da “liberdade” do “comprador” e do vendedor
(de ópio) e por Tocqueville como uma contribuição para a causa da luta
contra o “imobilismo” chinês. As palavras de ordem agitadas hoje pela
imprensa ocidental não são muito diferentes, uma imprensa que não se
cansa de denunciar o despotismo oriental imóvel. É preciso registar:
pode ser que sejam inspirados também por nobres intenções, mas, neste
momento, com o seu comportamento concreto os senhores do “Prémio Nobel
da Paz” só merecem o Nobel da guerra.
* Doménico Losurdo, filósofo e Professor da Universidade de Urbino, é amigo e colaborador de odiario.info
Publicado a 9 de Outubro 2010 no blog do autor
http://domenicolosurdo.blogspot.com/2010/10/il-nobel-della-guerra-ai-signori-del.html
http://domenicolosurdo.blogspot.com/2010/10/il-nobel-della-guerra-ai-signori-del.html
Tradução de Margarida Ferreira
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