Comissão Pastoral da Terra
Mato Grosso do Sul,no Brasil de Fato
Uma
pesquisa realizada pela doutora Rosemeire Aparecida de Almeida, docente
da graduação e pós graduação em geografia da UFMS/Campus de Três
Lagoas, revela dados que colocam em xeque a suposta maravilha do
agronegócio em Mato Grosso do Sul. A pesquisadora demonstra com clareza,
números e porcentagens as flagrantes contradições que o mesmo possui; e
questiona a suposta capacidade do agronegócio em relação à
produtividade e geração de ocupações no campo. E ainda desnuda sua total
ineficiência no uso do expressivo volume de recursos que recebe do
Estado em financiamento. O setor, que recheia na mídia propagandas de
eficiência, perde em eficácia para a pequena unidade de produção que
multiplicou por 20 o que recebeu de financiamento, no período em que foi
realizada a pesquisa, já o agronegócio dividiu por dois a “ajuda”
recebida. A Comissão Pastoral da Terra, Regional Mato Grosso do Sul,
conversou com a profissional. Confira abaixo a entrevista:
A
professora é do conceito de que o Agronegócio, sobretudo aqui no Mato
Grosso do Sul, é incompetente, segundo uma pesquisa sua. Pode citar os
elementos principais em que se baseia para sustentar isso?
Recentemente,
coordenei pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS, com
recursos do CNPq e Fundect/MS, pesquisa referente a análise e comparação
das transformações territoriais nos Estados de Mato Grosso do Sul e
Paraná por meio do estudo dos Censos Agropecuários do IBGE (1995/96 e
2006).
O estudo comparativo destes Estados se
justifica pela reconhecida diferença agrária existente em termos de
malha fundiária, utilização das terras, mudanças tecnológicas, geração
de emprego e renda.
De forma geral, a análise das
amostras confirma as hipóteses de que a desconcentração da propriedade é
motor de dinamismo no espaço rural e urbano, expresso na maior
capacidade de geração de riquezas e pessoal ocupado.
Por
exemplo, destacamos que apesar do rebanho bovino do Norte Central
paranaense ser cinco vezes menor em relação à região Leste de Mato
Grosso do Sul, a quantidade produzida de leite é superior. No entanto,
uma simetria permanece, qual seja: nas duas regiões é a pequena unidade
que responde pela maior produção de leite. Na região Leste, 42,68% do
leite produzido provém dos estabelecimentos de menos de 100 ha e 76,93%,
na região Norte Central paranaense.
A respeito
dos valores da produção, verificamos que na região Leste do MS as
classes de área de menos de 50 hectares foram responsáveis por 5,89% do
valor total produzido; já a classe de área com mais de 1000 hectares,
por 71,98%.
Porém, ao cruzar estes dados com o
valor dos financiamentos obtidos, observamos que a eficiência da pequena
unidade é maior. Dito de outra forma, a classe de área de mais de 1000
hectares obteve financiamento de mais de 1 bilhão de reais e gerou um
valor de produção total de 524 milhões; a pequena unidade de produção de
menos de 50 ha acessou 2,4 milhões (0,21% do valor total dos
financiamentos obtidos) e gerou um valor de produção total de 42,9
milhões.
Ou seja, a classe de área de menos de 50
hectares multiplicou por 20 o valor do financiamento e a grande dividiu
por dois o valor do financiamento. Portanto, a grande unidade de
produção produziu metade do valor que tomou de recursos públicos.
Temos
informações importantes também para o Estado na leitura dos dados dos
dois últimos censos agropecuários (1995/96 e 2006). A partir da
comparação de quatro produtos da lavoura temporária, sendo dois que
fazem parte principalmente da agricultura de exportação, e dois que são
componentes principais do consumo popular dos brasileiros, em que
verificamos que o aumento maior da produtividade ficou por conta do
arroz e feijão.
Entretanto, esta produtividade do
arroz e do feijão tem passado despercebida, porque a mídia insiste em
enaltecer os produtos do agronegócio, principalmente o volume da
produção de soja (toneladas/ano), mas não esclarecem que o aumento da
produtividade teve um acréscimo de apenas 6,77% de quilos por hectare em
2006, comparado aos dados do Censo de 1995/96. Ou seja, a produtividade
média da soja no Estado sai de 2.408 quilos por hectare em 1995/96 para
2.571 quilos por hectare em 2006.
Já o arroz
registrou um aumento de produtividade de 67,77% em 2006, comparado com
os dados do Censo de 1995/96, e o feijão aumentou a produtividade em
51,19% em relação ao mesmo período. Deve-se a isso a não instalação de
uma crise por desabastecimento do produto. Apesar de sofrer uma redução
de área colhida em 2006, o volume da produção foi superior ao de
1995/96. Outro dado importante a ressaltar refere-se a classe de área
responsável pela produção de feijão, que é a pequena unidade com até
200 há. Este estrato responde por 64,07% do total da produção. Ou seja,
apesar de pequena, estes estabelecimentos têm conseguido se apropriar
dos avanços tecnológicos e melhorar sua eficiência produtiva.
Perante
a situação atual de ofensiva gigantesca do Agronegócio no Mato Grosso
do Sul, qual deveria ser o programa político da classe camponesa no
Estado na sua luta pela reforma agrária?
Primeiramente,
é preciso afirmar a necessidade de respeito à Reforma Agrária em curso
neste Estado. É preciso respeitar a batalha cotidiana destes homens e
mulheres, mesmo quando ela se parece com uma luta de Davi e Golias.
Porque são estas lutas que abrem espaços que servem de referência
concreta da existência de um modo de vida, cujo centro não é a terra
mercadoria, mas a terra como vida e trabalho.
Todavia,
no plano estrutural, é preciso entender que a Reforma Agrária existe na
Lei; porém, o Estado brasileiro tem se comportado, na maioria das
vezes, como adversário da Reforma Agrária. É possível encontrarmos nas
instituições que executam a Reforma Agrária – em todas as esferas de
poder – funcionários que não acreditam na potencialidade econômica e
social da Reforma Agrária.
Mas, como isso é possível acontecer?
É
possível porque no Brasil a luta pela/na terra tem caráter permanente.
Isso ocorre porque não se trata de uma questão técnica – como, onde, o
quê produzir? A Reforma Agrária é uma questão política, é um embate
entre os que têm muita terra e poder e os sem-terra ou com pouca terra.
Consequentemente, nossa Reforma Agrária é de longo curso marcada pela
descontinuidade.
Logo, a experiência exitosa dos
assentamentos – e há muitas – está mais ligada à organização dos
movimentos sociais na luta permanente do que a política de Estado. O
resultado desta luta é a diferenciação dos assentamentos no Brasil. Isto
significa dizer que a viabilidade ou inviabilidade destes depende
diretamente do poder de luta dos sujeitos. Aqueles com maior autonomia e
qualidade de vida são também os que perceberam que só virá do Estado
aquilo que conquistarem. Isso tem incluído bloquear rodovias, ocupar
prédios públicos, ocupar propriedades rurais.
Situação
que aponta para a fragilidade da Lei de Reforma Agrária como política
de Estado. Dito de outra forma, a escolha entre autonomia ou dependência
dos assentamentos está ligada à capacidade de luta por saúde, educação,
crédito, estradas, etc. Logo, urge a necessidade do debate da Reforma
Agrária, no sentido de que ela assuma, de vez, seu papel de distribuição
de renda e ressocialização dos sujeitos.
Por
exemplo, defendo uma política de assentamentos concentrada, ou seja, é
preciso escolher uma microrregião e nela distribuir os assentamentos.
Esta ação gerará desdobramentos territoriais no campo e na cidade, a
comprovar que a agricultura camponesa é superior ao agronegócio em
geração de renda e emprego. Claro, dentro de um modelo próprio do modo
de vida destas pequenas unidades. Quero, com isso, marcar distância em
relação à Reforma Agrária economicista, que quer transformar os
assentados em pequenos empresários, como recentemente aconteceu com o
projeto Itamaraty.
Outra questão fundamental, na
luta pela Reforma Agrária, é exorcizar a idéia de que toda grande
propriedade é sinônima de agronegócio. Este pensamento não procede no
Brasil e muito menos no MS. É preciso dizer que apenas uma parte da
grande propriedade se modernizou; por isso a luta encarniçada contra a
revisão dos índices de produtividade. Os dados do INCRA disponíveis
revelam que há muita terra improdutiva e com indícios de grilagem no MS.
A Reforma Agrária não pode abandonar este mote em nome da luta contra a
falta de limite do agronegócio; na verdade é preciso caminhar nos dois
eixos.
Segundo a
professora, o agronegócio mudou a paisagem, o território e a cultura no
campo e do campesinato. Diante das culturas da soja, cana e eucalipto,
quais são as chances de sobrevivência da agricultura familiar no MS?
A
complexidade da expansão do agronegócio tem revelado que neste século
XXI, a luta transcende a terra. É uma luta por terra e território. Pois,
a terra, em disputa, revela sua condição de território como portador de
recursos naturais e matérias-primas indispensáveis à expansão do
agronegócio. É por isso que muitos pesquisadores já usam o termo
agrohidronegócio, quando estudam a expansão desta atividade empresarial
no campo.
Para entender os conflitos gerados pela
expansão do agrohidronegócio no MS, é necessário considerar que sua
principal estratégia tem sido a territorialização. Ocorre
territorialização do capital no campo mediante a aliança de classes
entre capital industrial, capital financeiro e proprietário fundiário,
momento em que eles se tornam um só agente do capital, formando um
“complexo territorial”. Situação que tem sido comum no setor
sucroalcooleiro e de celulose e papel, embora não limitado a eles. Este
processo de territorialização do agronegócio é muito perverso, porque é
concentrador de terra e capital. Dele resulta um território em disputa,
uma vez que a territorialização deste complexo é sempre expropriação do
trabalho familiar camponês. Entender a estruturação deste processo, em
especial o papel do Estado via instituições de pesquisa, assistência e
financiamento, se torna premissa para desvendar as tramas do agronegócio
no sentido de compreender suas manifestações futuras e as
possibilidades de resistência. Digo que o MS tem se caracterizado como
área preferencial de investimento deste “Complexo Territorial”, porque o
Estado (nas três esferas) tem ordenado o território por meio de
incentivos, isenções, flexibilização ambiental. Este ordenamento
territorial permite uma acumulação de capital acelerada, exemplo é a
eucaliptização da região Leste. Em três anos, a Fibria (antiga VCP)
dobrou a área plantada e montou um complexo celulose-papel, que faz com
que, do total produzido pela empresa, Três Lagoas já responda por ¼ da
produção de celulose de mercado (1,3 milhão Ton/Ano).
Porém,
se por um lado é preciso indicar a existência concreta de expansão do
capital industrial no campo, por outro é fundamental pensar a escala de
alternativas.
Digo isso porque não concordo com
aqueles que acreditam que terminaremos em um mar de “cana”, “eucalipto”,
que não existe possibilidade de outras formas sociais no campo.
Acredito que este processo de expansão do agronegócio no campo caminha,
contraditoriamente, com outras formas sociais, em especial a agricultura
familiar camponesa.
Isso ocorre em virtude do
desenvolvimento do capital se alimentar da multiplicidade das formas
sociais; segundo, porque a ausência do camponês no território não
significa ausência do conflito. Evidência disso é que o movimento
hegemônico de luta pela terra no Brasil, representado pelo MST, é
formado por sem-terra, ou seja, a resistência se deu no período ápice da
Revolução Verde, quando o trabalhador familiar foi varrido do campo.
Uma
informação importante da realidade, que corrobora no sentido de
evidenciar a resistência, são os dados do Censo agropecuário de 2006 do
MS. Eles registram um aumento significativo quanto ao número de
estabelecimentos nas classes de área de até menos 10 hectares (46,09%) e
de até menos 50 hectares (84,60%), enquanto que para as demais
classificações de área, ocorreu uma pequena redução comparada com os
dados coletados pelo Censo de 1995/96.
No
entanto, este fato ainda não representa em si uma desconcentração
fundiária no MS, apesar do crescimento dos pequenos extratos de área,
porque a área ocupada por eles é muito pequena. Ou seja, as classes de
área de menos 10 e de menos 50 hectares que em 1995/96, juntas, detinham
1,21% da área total, passam a ocupar 2,09% da área total no Estado, em
2006. Por sua vez, os estabelecimentos de acima de 1000 hectares que em
1995/96 açambarcavam 78,44% do território sul-mato-grossense, reduzem
seu domínio territorial em 1,51% segundo dados do censo de 2006. Ou
seja, detém agora 76,93% da área total do Estado.
Por
outro lado, mesmo sem desconcentrar o aumento destes pequenos
estabelecimentos, impactou a estrutura. Neste sentido, o número de
estabelecimentos passou de 49.423 no Censo 1995/6 para 64.862 no Censo
2006.
Destacamos que mesmo que o aumento do
número de estabelecimentos com menos de 50 ha não tenha sido suficiente
para gerar desconcentração fundiária, há um saldo positivo no fato de
que novas famílias estão vivendo e trabalhando no campo, conseqüência em
grande parte da luta dos movimentos sociais pela Reforma Agrária.
Obviamente
que é preciso discutir as condições desta sobrevivência da agricultura
familiar no MS. Logo, é preciso romper o circuito de miserabilidade que
os donos da terra e do capital tem imposto. Neste sentido abrem-se
algumas frentes de luta na busca por terra como justiça social e
dignidade, como: Revisão dos Índices de Produtividade; Aplicação Efetiva
da Municipalização do ITR; Campanha pelo limite de Propriedade e do
Plantio da Cana e Eucalipto; Campanha Nacional em Defesa da Agricultura
Familiar Camponesa como política pública.
Segundo seu critério, quais deveriam ser os alicerces de uma campanha de defesa da Agricultura Familiar Camponesa?
Em
relação à Campanha Nacional em Defesa da Agricultura Familiar, é
certamente a ação mais importante pós-eleição de Dilma, inclusive para
pagar a dívida com os camponeses que o governo Lula deixou. Penso que o
conteúdo central desta Campanha é aquilo que a Cartilha da Agricultura
Familiar, organizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário/MDA,
mostrou: a potencialidade de produção e geração de renda que possuem os
estabelecimentos até quatro módulos fiscais. Porém, isso ainda não é
suficiente. É preciso uma Campanha que estimule a transição da
agricultura convencional para a agro ecológica e, neste caso, mais uma
vez os camponeses são o público ideal. O que eu estou pensando?
Defendo
uma Campanha pelo subsídio estatal para produção de alimentos de
consumo popular até quatro módulos fiscais (pequena propriedade), como
os países centrais fazem há muito tempo. E este estímulo do subsídio
deve estar atrelado à construção de um novo modelo de agricultura no
Brasil, a agroecológica, que é generosa com os alimentos e com a
natureza. Desta forma, a Campanha terá aceitação da população, até
porque a transição requer amplo investimento a curto e médio prazos. E
aqueles que quiserem continuar no modelo convencional, continuariam, mas
sem esta vantagem creditícia. Portanto, temos que pensar a realidade,
seus desdobramentos e as alternativas.
No caso
particular do MS, não adianta desconsiderar a territorialização do
agronegócio ou considerá-la um fim em si mesmo. Insisto que é preciso
considerar este fenômeno para partimos em busca de diálogo no sentido de
pensar quem está sendo impactado no tempo e no espaço. Monitorarmos,
por exemplo, a área plantada com monocultura por município, os impactos
sobre a fauna, flora e os recursos hídricos, bem como os conflitos
gerados.
Discordo daqueles que defendem a
eucaliptização da região Leste do MS tendo como pressuposto o fato de
que o que se tinha antes eram desemprego e terra degradada pela
pecuária. A mesma lógica explicativa aplicada também para o caso da
expansão da cana. Ora, é preciso uma escala de alternativas cujo centro
de referência não seja o pior. E neste debate, a Universidade tem o
dever de contribuir como fórum de discussão de idéias, pois as
alterações no ambiente vivido são imensas como conseqüência deste
“Complexo Territorial”.
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