quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Nahr Al-Bared : a nova face dos campos palestinos do Líbano?


“Não é permitido entrar ou sair sem mostrar licenças concedidas por um dia, três semanas ou permanentemente, e que podem ser suspensas ou retiradas a qualquer momento. Também ocorre de passarmos o dia na prisão, sem motivo aparente”
por Marina da Silva no LeMonde-Brasil
“A situação no campo de Nahr al-Bared é um desastre.” Quantas vezes já ouvimos essa afirmação categórica? Nós mesmos precisamos de oito dias só para conseguir permissão para entrar – e, mesmo assim, sob escolta militar – nesse campo palestino localizado dez milhas ao Norte de Trípoli, onde o grupo Fatah al-Islam e o exército libanês se enfrentaram, de 20 maio a 2 setembro de 20071. Após o combate, os saques continuaram, 95 % do antigo campo foram destruídos e os arredores completamente devastados. Fechados em uma área dita temporária (e de confinamento), assustadora, protegida de todos os olhares, dois terços dos seus 30 mil refugiados voltaram para o campo.
Nahr al-Bared era o segundo campo de refugiados palestino em número de habitantes. E era também um dos mais tranquilos e dos menos cercados. Criado em 1949 em uma área de mero 0,2 km2, primeiramente com barracas, e em seguida com um emaranhado de estruturas mais sólidas (feitas de pedra, alvenaria e concreto), ele é limitado a Noroeste pelo mar que os habitantes chamavam de “o mar de pobres”, porque trazia com ele toda a poluição da cidade industrial. Com o crescimento contínuo da população, o campo se estendeu a duas cidades vizinhas, Bhanin e Muhmarra, em uma área quatro vezes maior, mas menos povoada, comumente chamada de “novo campo”.
“Ele era um verdadeiro centro de atividade, o único campo onde havia muitas joalherias”, conta Hodda, que chegou a trabalhar ali regularmente, com a associação de mulheres Najdeh. “Os libaneses também iam até lá para fazer compras, algumas vezes comprar mercadorias contrabandeadas da Síria.” Isso agora é passado. Os habitantes se sentem traídos. “Eles evacuaram o campo a pedido do exército e de organizações palestinas, mas para eles a rendição de cerca de 400 jihadistas não pode justificar uma destruição dessa dimensão”.
A primeira onda de refugiados a voltar, em outubro de 2007, sofreu um choque terrível: “O campo tinha sido completamente arrasado por tratores. Nossas casas foram saqueadas, roubadas, nossos locais de culto profanados. Nós havíamos deixado tudo nelas. Eu não tenho uma única foto. Perdemos tudo! Até mesmo nossa memória”, lamenta-se Abu Ghassan, que encontramos em Chatila, em Beirute, onde 200 famílias estão instaladas. Mas grande parte da população, cerca de oito mil pessoas, foi obrigada a se instalar em Badaoui, um outro campo de refugiados palestino ao lado de Trípoli, que viu sua população dobrar em 2007. Foi preciso mais de um ano para resolver os problemas ligados ao acolhimento desses refugiados, graças ao Escritório de Socorro e de Trabalhos das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA, em inglês), e ao conjunto das organizações palestinas do campo. Foram abertas mais duas outras escolas, feitas de material pré-moldado. Algumas famílias ainda estão dormindo nas garagens transformadas em casas, mas a maior pobreza fica mesmo no lado do chamado “novo campo”.
"Não é permitido entrar ou sair sem mostrar licenças concedidas por um dia, três semanas ou permanentemente, e que podem ser suspensas ou retiradas a qualquer momento. Também ocorre de passarmos o dia na prisão, sem motivo aparente", declara Khaled. Toda a área se transformou em zona militar, proibida aos estrangeiros. Somente os palestinos que viviam ou trabalhavam ali e os funcionários da UNRWA ou de outras organizações não-governamentais (ONGs) podem entrar.
No antigo campo, os trabalhos acabaram de começar. “Precisamos de mais de um ano e meio para limpar o terreno, sendo que após a guerra israelense de 2006 as pessoas voltaram imediatamente para casa, apesar das milhares de bombas lançadas sobre o Sul”, explica Khaled. No “novo campo”, as famílias são obrigadas a viver entre ruínas e escombros. Eles reconstruíram suas casas com as próprias mãos – nuas! Corredores de pré-fabricados abandonados são utilizados como abrigos temporários. Uns poucos pontos de comércio foram reabertos, mas raros são os clientes que conseguem cruzar as barragens impostas pelo exército.
“Para os palestinos, haverá um antes e um depois de Nahr Al-Bared”,diz Ali Hassan. Eles acreditaram por muito tempo que seu futuro estaria ligado a Ain El-Heloueh, o grande campo de Sidom, que sempre foi o foco das atenções. Ali, a presença de grupos jihadistas já é antiga2, e os incidentes frequentes. Mas as organizações palestinas continuam fortes o bastante para manter a segurança. E, sobretudo, “os extremistas são eles próprios oriundos do campo. Ali eles têm suas famílias e não estão dispostos ao enfrentamento. Em Nahr al-Bared, eles foram introduzidos em 2006 e na maioria das vezes nem eram palestinos, mas libaneses, sauditas, iemenitas, iraquianos etc. De onde eles vinham ? A quais interesses serviam ?”Essas são questões importantes3,mas que acabam por ocultar a questão central : os direitos dos refugiados palestinos no Líbano.
 “A recusa de sua instalação definitiva (tawtin) é afirmada tanto na Constituição quanto lembrada nos Acordos de Taif4. Mas essa recusa é um disfarce para o tratamento discriminatório”, resume Sari Hanafi, professor de sociologia da universidade americana de Beirute5.Ele vê uma melhora na recente alteração da legislação trabalhista, que permite que os palestinos exerçam certo número de atividades até então proibidas – apesar de as profissões liberais continuarem proibidas. Mas ele lembra que a lei proibindo a eles o acesso à propriedade, promulgada em 2001, [também] ainda está em vigor e foi um dos principais obstáculos à reconstrução de Nahr al-Bared, o que obrigou o Estado a comprar o terreno.
Membro da Comissão de Reconstrução de Nahr al-Bared, ele observa: “Muitos campos de refugiados palestinos já foram destruídos no Líbano, mas essa é a primeira vez que um deles é reconstruído. Esse é um projeto piloto, bastante incomum, realizado em coordenação com os refugiados, as organizações palestinas, o Comitê de Diálogo Líbano-palestino, as autoridades libanesas e a UNRWA.”
Para UNRWA, esse é o projeto mais importante de sua história, onde aposta toda sua credibilidade. Há dois anos, Salvatore Lombardo é o seu responsável, se lançando de corpo e a alma. “Se nós falharmos, causaremos com toda certeza grandes desilusões e convulsões sociais que poderiam afetar a estabilidade do Norte do Líbano. Espero que os libaneses não sejam acometidos de cegueira política”.
Foi necessário um ano e meio para desenvolver os planos: “Primeiro tivemos de reconstruir cada lugar, cada rua, chegar a um acordo sobre sua localização, superfície e, posteriormente, sobre sua transformação, além de obter o consentimento das famílias. Você pode imaginar os recursos necessários para desenvolver todo esse trabalho!” Os arquitetos levaram em conta o tecido sociológico de Nahr al-Bared, organizado, como na maioria dos campos, em função de relações da vizinhança de locais de origem na Palestina antes de 1948. Foram feitas reuniões com os moradores, muitos dos quais são originários dos vilarejos de Safouri e Saf-Saf, na Galileia.
A situação ficou complicada quando foi preciso submeter o master plan ao governo, que fez uma série de restrições: não mais de quatro andares para os prédios (regra usual para os campos), com possibilidade de ter um balcão ou um terraço só no terceiro e quarto andares, de modo a proibir o acesso da rua, em caso de agitações. Nenhuma construção no subsolo. Estradas mais largas: de pelo menos quatro metros e meio, dimensão que permite a passagem de um tanque. No final, uma perda estimada de pelo menos 15 % da superfície de ocupação, para cada família.
Finalmente aprovado o master plan ainda precisa ser executado. Ele foi dividido em oito zonas de reconstrução (chamadas de packages), cada uma das quais precisa, por sua vez, ser validada pelo ministério do Planejamento. Outros obstáculos têm surgido, como a descoberta, em março-abril de 2009, dos restos arqueológicos de Orthosia, o que bloqueou o trabalho por sete meses, forçando a UNRWA a indenizar o departamento de Antiguidades. Ou, em meados de 2009, a moratória pedida pelo general Michel Aoun, líder cristão do Movimento Patriótico Livre, o que levou a uma nova interrupção. O medo da instalação dos palestinos6, o que alteraria o equilíbrio religioso no Líbano e visto como uma desistência do direito de regresso, por parte dos refugiados, é compartilhado por todos os partidos políticos libaneses.
O montante necessário para reconstruir o velho campo foi estimado em 328 milhões de dólares. Foi pago apenas um terço, ou seja, 119 milhões de dólares, e ainda faltam 46 milhões para finalizar as packages 3 e 4 – o que equivale apenas à metade do antigo campo. A agência sempre divulga o andamento dos trabalhos, a fim de convencer os doadores (até agora, essencialmente a Comissão Europeia, os Estados Unidos e Arábia Saudita), que haviam se comprometido, já por ocasião do final confrontos e da conferência de Viena, em junho de 20087.
Quanto ao novo campo, sua reabilitação foi deixada por conta dos próprios habitantes, uma vez que a agência não dispõe de recursos para reconstruí-lo. Ela tem apenas um orçamento de ajuda emergencial que permite que ele funcione.
“Restam ainda cerca de 300 unidades pré-fabricadas. A UNRWA sugeriu à população que elas fossem fechadas, em especial neste verão, quando a temperatura chegou a 45 graus, mas as pessoas se recusam a ir embora, por terem demasiado medo, e por quererem marcar com sua presença a determinação de voltar para casa.”As famílias que estão fora do campo recebem assistência habitacional. No começo de 200 dólares, esse auxílio foi reduzido a 150 dólares no segundo semestre de 2009. Enquanto o aluguel médio na região aumentou de 75 para 250 dólares.
Para as organizações palestinas, a reconstrução do campo é um consenso. “Perdemos a batalha de Nahr al-Bared”, reconhece Jemal Chehabi, líder político do Hamas no norte do Líbano. “Nós não conseguimos evitar sua destruição e agora somos responsáveis por sua reconstrução”. Já o representante do Fatah em Badaoui, Abou Jihad Fayad, considera que “o campo de Nahr al-Bared foi um incidente que atingiu tanto os palestinos quanto o exército”,mas lembra: “Prioritariamente, as pessoas estão esperando para voltar à para a Palestina.”
Esse é o primeiro dossiê no qual a Fatah e o Hamas cooperam, um passo importante ressaltado por Abdallah Abdallah, o novo embaixador da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) em Beirute: “Estamos trabalhando para criar uma delegação unificada. Não queremos que a questão seja tratada meramente sob o ângulo da segurança, é necessário levar em consideração nossos direitos políticos e melhorar a situação humanitária. Queremos desconstruir os estereótipos ligados à imagem dos campos. Temos necessidade de segurança e as autoridades libanesas também. Precisamos trabalhar juntos. Os tratamentos discriminatórios podem levar a uma situação de explosão8. Para nós, o importante é manter contacto com a população, e a confiança em nossa própria força.”
Responsável pelo dossiê para a OLP e diretor da Comissão Superior de Nahr al-Bared, Marwan Abdelall, conhece bem o campo, onde ficou sitiado por três meses. Segundo ele, os vários obstáculos para a reconstrução foram vencidos, mas o problema da liberdade de acesso persiste: “Os postos de controle arbitrários, o arame farpado, o controle de deslocamentos dentro e fora do campo, com a exigência de autorizações a todos os moradores – tudo isso não pode continuar.” Ele acrescenta: “Em fevereiro de 2009, o ministério da Defesa tentou instalar uma base naval na orla do antigo campo. Acabou desistindo, mas estamos preocupados com o projeto de uma delegacia de polícia dentro do campo.” Na verdade, cinco milhões de dólares estariam destinados para a segurança no interior do campo, despesas até agora assumidas pelas organizações palestinas, obedecendo a uma disposição do documento de Viena.
Esse dispositivo assusta a população, que vê nele uma ameaça para todo o Líbano. “Será como uma colônia israelense. Um teste que conduzirá à expansão do controle do exército aos outros campos de refugiados”, lamenta Oum Tarek.

1 Os confrontos resultaram na morte de 47 civis e 163 militares, 220 membros do grupo e na detenção de centenas de outros ainda aguardam julgamento, enquanto alguns conseguiram escapar.
2 Ver Bernard Rougier, Le djihad au quotidien, PUF, Paris, 2004.
3 LerFidaa Itani, “Enquête sur l’implantation d’Al-Qaida au Liban, e Vicken Cheterian, “Désarroi des militants au Liban », Le Monde diplomatique, respectivamente fevereiro e dezembrode  2008.
4 Acordos assinados em 22 de outubro de 1989, e que puseram fim à guerra civil.
5 State of Exception and Resistance in The Arab World, Center for Arab Unity Studies, Beirute, 2010.
6 A recusa de sua implantação foi lembrada pelo presidente Michel Sleimane na assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 26 de setembro de 2010.
7 Por iniciativa dos governos do Líbano e da Áustria, da Liga Árabe e da União Europeia (UE), e com a participação de delegações de vários países do mundo árabe, Europa, Estados Unidos, China, Japão e representantes das instituições financeiras envolvidas na cooperação e apoio aos refugiados palestinos. O documento de Viena prevê ainda o reforço da segurança no interior do campo de Nahr al-Bared.
8 Sobre a situação do conjunto dos campos do Líbano, ver também o relatório do International Crisis Group, “Nurturing instability : Lebanon’s Palestinian refugees camps”, Bruxelas, fevereiro de 2009.

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