O economista e diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, Pablo Stefanoni, faz um balanço da política sul-americana
Elena Apilánez e
Vinicius Mansur
de La Paz (Bolívia) via Brasil de Fato
Passados
mais de dez anos da ascensão de presidentes de esquerda na América do
Sul, o economista Pablo Stefanoni, diretor da versão boliviana do Le
Monde Diplomatique, é cético com relação às transformações trazidas por
eles ao continente e relativiza a existência de governos de esquerda
“radicais” e “moderados”.
Traçando um panorama da
conjuntura política do continente, o ex-assessor de comunicação do
governo Evo Morales prevê sérias limitações para o crescimento da Alba
(Alternativa Bolivariana para as Américas) e muitas possibilidades para a
Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Na entrevista a seguir,
Stefanoni analisa, ainda, a política na Argentina pós-Kirchner, destaca o
surgimento de uma direita reciclada na Colômbia e no Chile e debate o
papel do Brasil na região.
Brasil
de Fato – Como você avalia a categorização dos governos sul-americanos
entre esquerda radical, com Bolívia, Venezuela e Equador, e esquerda
moderada, liderados por Brasil e Argentina?
Pablo Stefanoni –
Esse esquema tem aspectos reais, mas há que relativizá-los. Primeiro, a
radicalidade assumida, muitas vezes, não se dá porque os movimentos
sejam particularmente mais radicais, senão porque a trajetória
institucional e política foi diferente. Os três países considerados de
esquerda radical tiveram a implosão do sistema partidário com forte
mobilização popular, e era normal que houvesse uma grande demanda por
refundação do país, do sistema político. No caso de Uruguai, Brasil e,
sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização.
Além disso, há continuidade institucional e o sistema de partidos
continua o mesmo. Em segundo lugar, essa esquerda radical necessita da
outra esquerda. Nos momentos-chave, Lula apoiou a Venezuela, como na
greve petroleira, na crise da Bolívia houve um apoio importante da
Unasul etc. Por isso, se valorizava a vitória de Dilma Rousseff [nos
países da América Latina governados pela esquerda], mais do que qualquer
debate interno, com a ideia de manter a correlação de forças. Em
terceiro lugar, esse esquema supõe que uma esquerda é socialista e outra
não, mas, vendo as políticas públicas concretas, nenhuma é socialista.
Nem Venezuela nem Bolívia estão avançando rumo a um projeto
pós-capitalista. Claro, há diferenças no trato com os EUA, no papel que
joga o Estado, mas, vendo o que de fato mudou, o socialismo ainda é
bastante retórico. E há muitas coincidências, por exemplo: a
legitimidade do Evo não é tão distinta da do Lula. Uma mescla de
autoidentificação popular com um líder que surgiu de baixo e políticas
sociais. Inclusive, o Bolsa Família é mais radical, por sua abrangência,
do que a política de bolsas da Bolívia, que é mais fragmentada.
O
senhor não acha que a Venezuela, por exemplo, se diferencia dos outros
com suas nacionalizações e políticas públicas que caminham para a
transição ao socialismo?
Há tentativas,
testes, mas com muitos problemas de eficácia. Promove-se cooperativas,
conselhos comunais. Claramente, há um nível de participação popular
maior do que havia antes de Chávez. Entretanto, os balanços sobre a
geração de uma participação de baixo são complexos. Os conselhos
comunais se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta de
Estado nos bairros. Começaram a falar menos de política nacional e
aceitar os antichavistas nos conselhos, sempre e quando haja um pacto de
não falar muito de política. Há também os conselhos em bairros de
classe média alta de Caracas, que são antichavistas, mas que usaram essa
fórmula. Quanto à economia, os números mostram que a privada não
diminui em relação à estatal. E ainda há dificuldades enormes, para além
da vontade do governo, de se pensar uma agenda pós-petroleira. Nisso,
coincidem todos. O rentismo [referência à dependência da economia
Venezuela da renda do petróleo que exporta] não distribui exatamente a
riqueza, porque capta uma renda do mercado internacional e gera uma
cultura não do trabalho, mas de como agarrar-se a essas fatias. É bom
que se democratize [a renda], mas, depois, o problema sério é pensar um
modelo produtivo. O problema venezuelano, hoje, talvez não seja tanto
como transitar ao socialismo, mas a essa agenda, ainda que seja a médio
prazo, porque não é fácil. Não é que o Chávez não tem vontade:
inclusive, ele levou o Instituto de Tecnologia Industrial da Argentina
para o país.
O senhor vê uma disputa pela liderança do continente?
Houve
uma luta entre Brasil e Argentina, mas a Argentina perdeu. A Venezuela
não tem condições, porque o Brasil já não joga em nível sul-americano,
mas mundial, inclusive associado ao Bric [Brasil, Rússia, Índia e
China]. Ninguém está pensando em competir com o Brasil, que aposta num
rumo claro e complexo. O Brasil mescla um “imperialismo” com o papel de
motor imprescindível para a integração regional. O Lula viaja com 200
empresários e, quando concede algum crédito, este país tem que contratar
uma empresa brasileira. O Brasil é como um monstro ao lado de um monte
de economias pequenas, que não têm visão muito clara sobre o que fazer
com o Brasil. Há uma atitude de denunciar, como fizeram na Bolívia com a
Petrobras, com a Odebrecht no Equador, ou a relação complicada com
Itaipu, no Paraguai, mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia [assessor
especial da Presidência da República para assuntos internacionais na
gestão Lula] e tudo se ajeita.
Qual futuro o senhor vê para a Unasul e a Alba?
A
Alba não avançou porque uma integração ideológica é mais complexa,
depende de que os governos continuem. A Unasul não depende tanto dos
governos coincidirem em tudo. A Bolívia não tem muitas relações com a
Nicarágua ou Honduras. Ou seja, não está muito claro qual é o papel da
Alba além do alinhamento político. É interessante que esses países
possam jogar um certo papel juntos, mas a Alba não deve ser uma
alternativa para outras vias de integração. A Unasul avançou muito mais
rápido e existe essa coisa de que onde entra o Brasil se avança em nível
diplomático, não? Quando o Brasil disse não à Alca, acabou a Alca.
Qual o impacto da morte de Néstor Kirchner para a política argentina?
A
oposição fazia mais oposição ao Kirchner, que era uma espécie de
copresidente, do que à própria Cristina. Kirchner era o grande
disciplinador do peronismo e isso era muito necessário às vezes.
Cristina era a presidente da nação e ele do peronismo. Então, temos que
ver como ela vai operar isso. Pelas características meio necrófilas, a
morte dele fortaleceu Cristina, pois recuperaram toda a figura de
Kirchner, com a tentativa de torná-lo um mito, alguém que morreu em
combate contra um monte de inimigos, corporações... o velório foi bem
político. Ele recuperou todo um discurso e mística dos anos 1970,
aproveitando que foi militante da juventude peronista, reativou uma
parte de sua biografia muito distante. Porque, na verdade, Kirchner, nos
anos 1990, apoiou basicamente o programa neoliberal. Na ditadura, ele
era advogado que comprava casas de arremate, aproveitando uma lei de
indexação feita pelo governo militar, e é nessa época que aconteceu sua
acumulação. Ele tinha um patrimônio declarado de 14 milhões de dólares.
Morreu à frente nas pesquisas para as próximas eleições pra presidente,
com boa possibilidade de ganhar no primeiro turno. Kirchner não pensava a
política como utopias, pensava o poder em seu sentido duro, construir
dependências, interesses, redes. Então, há que se ver se Cristina
consegue manter esse efeito gerado pela morte do marido. Tampouco há
bons candidatos da oposição, além de haver uma parte dos votantes que se
tornam “antiantikirchneristas”, ou seja, um rechaço à oposição sem ser
kirchneristas. É o que acontece com tantos governos populares, cujas
oposições são inapresentáveis. E isso dá vida a Cristina.
E quanto aos países que estão à direita?
[Os
presidentes] Juan Manuel Santos, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no
Chile, surpreenderam um pouco porque se mantiveram olhando para a
América Latina, mais do que se esperava. Deram início a uma direita
muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma
série de temas, inclusive morais. Uma direita parecida à nova direita
europeia de [Nicolas] Sarkozi [presidente da França]. Não quero dizer
que os conservadores não estão com Piñera, mas ele é liberal, não é
pinochetista. Quando seu embaixador na Argentina defendeu Pinochet, ele o
retirou 24 horas depois. Santos surpreendeu porque se esperava que
fosse uma mera continuidade de Álvaro Uribe [presidente que o
antecedeu], mas ele mostrou mais flexibilidade, com a Venezuela, por
exemplo. Há razões econômicas também, porque a Venezuela começou a
importar alimentos da Argentina e do Brasil. Mas ele ainda prometeu
reforma agrária, devolvendo as terras que os paramilitares tomaram de
camponeses. Não sei se o fará e não é que ele seja menos de direita, mas
se adaptou mais a certas coisas.
E com relação às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia?
Existe
uma possibilidade que a Unasul contribua. De fato, as Farc pediram que
Dilma participe como mediadora, apelando um pouco para o seu passado
guerrilheiro. O Brasil pode jogar um papel importante nisso, algo que
era impensável há dez anos. Mas as Farc são o grande obstáculo para que a
esquerda possa disputar algo na Colômbia.
E o Peru?
Aí
não se sabe, porque [o presidente] Alan García está de saída e todos
creem que o Apra [Alianza Popular Revolucionaria Americana, seu partido]
também. Mas o Peru é um pouco surpreendente, porque há alguns dias a
relação com a Bolívia era malíssima e, agora, o Peru está deportando os
prófugos da Justiça boliviana. Aceitaram também fazer um acordo sobre o
mar. E a esquerda ganhou as eleições da capital Lima, apesar de parecer
um pouco desarticulada para desafios mais sólidos. Para as próximas
eleições, há cinco candidatos que estão com aproximadamente 20% dos
votos cada um e dizem que o Apra não ganharia um segundo turno. E olha
que a economia do Peru está crescendo 10%.
Pablo
Stefanoni é economista e jornalista argentino radicado em La Paz desde
2003. Foi assessor de comunicação do governo Evo Morales. Atualmente, é
diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique e faz doutorado
sobre a história das ideias do indigenismo.
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