quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Hezbollah assumirá o governo do Líbano?

Do sitio Esquerda Net

Governo libanês cai face a renúncia de 1/3 mais um dos seus membros. Israel está a ser acusado de tentar dividir a sociedade libanesa, para beneficiar da crise do governo Hariri.Por Franklin Lamb, Countercurrents.
Outdoors do Hezbollah. Foto de ninjawil.
Outdoors do Hezbollah. Foto de ninjawil.

Sul de Beirute: “Caso ninguém tenha percebido, o governo Obama acaba de dar o Líbano de presente ao Irão. Washington ofereceu anteriormente o Iraque, o Afeganistão, o Golfo e o Paquistão. Que prova faltaria de que o trunfo estratégico do Irão é a subserviência dos EUA a Israel? Para o Irão, o controle que Israel tem sobre o governo dos EUA é um presente que sempre chega”. Com esse comentário, o meu vizinho, o embaixador de Direitos Humanos do Líbano Ali Khalil declarou que a hegemonia dos EUA na Região desce por um plano inclinado, e a manobra de ontem no Líbano provavelmente acelerou a retirada dos norte-americanos.
Parece que os meus outros vizinhos no sul de Beirute foram para a cama mais cedo na noite depois dos acontecimentos que marcaram o colapso do governo libanês apoiado por EUA, pelos sauditas e por Israel. Alguns, como o americano e o libanês com quem divido o quarto, planeiam uma rápida evacuação, no caso dos nossos amigos do Hezbollah que cuidam da segurança da rua baterem à porta, com o sinal combinado. Duas batidas rápidas e o grito de “Yalla!” (Vamos, vamos!) e será hora de partir para o norte, depressa, sem olhar para trás. O motivo disso é que, como muitos aqui, eles temem que Israel aproveite essa mais recente crise do governo libanês para novamente invadir o Líbano.
Na passada quinta-feira, a energia (e a Internet) fornecida pelo “governo” foi cortada das 10 da manhã às 2 da tarde e outra vez das 6 da tarde até meia-noite. Cortes diários de pelo menos dez horas são normais no sul e no norte do bairro “chique” pró-EUA e sauditas de Hamra, onde são experienciados cortes diários de três horas. Viver muitas horas à luz de velas faz os rumores mais sem fundamento soarem verosímeis. “As forças armadas do Líbano, do Hezbollah e aliados da Turquia, da Síria, da Jordânia, de Israel e do Irão estão em prontidão. Os americanos vão mandar batalhões que estão no Iraque!”, diz o rapaz que trabalha numa loja próxima do meu apartamento. Não pude deixar de observar que os adolescentes que andam sempre pelas calçadas parecem ter desaparecido. Até o rapaz da loja onde carrego o meu telefone estava impaciente: “por favor, depressa”, disse ele. “Tenho um compromisso e preciso fechar a loja”.
O assassinato do primeiro-ministro Rafik Hariri
A actual crise começou em 14 de fevereiro de 2005, “Dia dos Namorados”, quando foi assassinado o primeiro-ministro Rafik Hariri e outros 20. O governo Bush declarou a Síria culpada pelo atentado e viu uma oportunidade para forçar o regime de Assad a assumir uma posição difícil em relação ao Irão, principal inimigo dos EUA na Região, empurrando-o contra a Resistência Nacional Libanesa liderada pelo Hezbollah.
Um dos advogados a serviço do Departamento de Estado da secretária Condoleezza Rice apareceu com a ideia de usar o Conselho de Segurança da ONU, que criaria um Tribunal Especial para o Líbano [ing. Special Tribunal for Lebanon (STL)], para investigar o caso, processar os assassinos e acusar a Síria de trabalhar contra os projectos dos EUA e de Israel na Região.
Um detalhe que de início foi ignorado, mas adiante se tornou num presente dos céus a favor dos interesses de Israel e do governo Bush, foi o boato difundido pelo Tribunal Especial, segundo o qual havia suspeitas de que membros do Hezbollah talvez estivessem envolvidos nos assassinatos. Perante esse boato, Israel e os EUA mudaram abruptamente de posição e começaram a usar o recém-constituído Tribunal Especial para livrar-se do Hezbollah de uma vez por todas, além de usá-lo também contra a Síria, certos de que a Síria também seria acusada.
A pressão contra o Hezbollah levou o Partido a condenar o que tem chamado de falsas testemunhas e a exigir que o governo libanês investigasse também os investigadores e suas testemunhas. Os inimigos do Hezbollah passaram a defender o tribunal, mesmo apesar do risco que se criava para a estabilidade do Líbano. Depois de cerca de 14 meses a insistir para que o governo de Saad Hariri reconsiderasse seriamente as suas posições em relação ao Tribunal Especial, a oposição liderada pelo Hezbollah apresentou um ultimato à maioria: ou convocava-se reunião do Gabinete para o dia 12 de Janeiro de 2011 para discutir o Tribunal Especial e a sua actividade dentro da política libanesa, ou a oposição renunciaria em bloco, o que levaria à queda do governo Hariri.
O Hezbollah e os seus aliados queriam que o primeiro-ministro Hariri reunisse o Gabinete para votar a suspensão da subvenção de 49% que o Líbano paga como parte dos custos de funcionamento do Tribunal Especial; a retirada, do Tribunal Especial, dos juízes libaneses que lá trabalham; o fim da cooperação entre o Líbano e o Tribunal Especial; e a decisão de processar as “falsas testemunhas” ouvidas pelo Tribunal Especial na investigação conduzida pela ONU sobre o assassinato de Rafik Hariri.
Sob enorme pressão de Washington, Paris e Riade, Saad Hariri opôs-se ao que a oposição pedia. A oposição, então, renunciou. Nos termos do art. 69º da Constituição do Líbano, a renúncia de 1/3 mais um dos membros do Gabinete determina a queda do governo (30 membros). Foi a primeira vez, na turbulenta história política do Líbano, que um governo cai por efeito de renúncia de 1/3 mais um dos membros.
Para a renúncia de todo o gabinete, que derrubaria o governo pró-EUA de Hariri, seria necessário que, além dos dez membros do Hezbollah, mais um membro do Gabinete também renunciasse. O principal assessor-político do secretário-geral do Hezbollah Hassan Nasrallah, Hussein Khalil, procurou então o representante do Presidente Suleiman no Gabinete, Sayyed Hussein. Khalil apresentou a Hussein as saudações de Nasrallah e a sua esperança de que Hussein decidisse baseado em sua consciência. Hussein apresentou imediatamente sua renúncia e, enquanto o primeiro-ministro Hariri conversava na Casa Branca com o presidente Obama, o seu governo, no Líbano, deixava de existir.
O que significa a queda do governo Hariri, no curto prazo
Os actores regionais reagiram mais ou menos conforme o previsto: os EUA acusaram o Irão, a Síria e o Hezbollah de “chantagem”; os franceses avisaram a Síria de que seria responsabilizada pela violência no Líbano, caso acontecesse; e os britânicos alertaram para os riscos de longo prazo. O ministro das Relações Externas da Grã-Bretanha William Hague disse, em declaração: “É um desenvolvimento de extrema gravidade que pode vir a ter graves implicações para o Líbano e para a estabilidade da Região”. Outro diplomata britânico acrescentou ontem: “Terrível. Algum dia conseguiremos resolver esse problema?”.
Funcionários do ministério de Negócios Estrangeiros de Israel disseram que “acompanhamos atentamente os acontecimentos no Líbano depois das renúncias” e que “Os libaneses entendem que houve uma tentativa, por um grupo de extremistas, de perturbar a paz, e que essa tentativa pode vir a revelar-se uma jogada muito perigosa” – segundo o Canal 10 da televisão de Israel. Israel está a ser acusado hoje, no Líbano, de tentar dividir a sociedade libanesa, para beneficiar da crise do governo Hariri.
Quarta-feira, depois de sequestrar Sharbel Khoury, pastor que vive próximo de Rmeish (e que foi libertado 24 horas depois) a marinha de Israel também invadiu águas do Líbano. Na passada quinta-feira, aviões israelitas sobrevoaram Balbeque, Nabatiê e Marjun. Essas incursões configuram a 7.269ª violação, por parte de Israel, da soberania territorial do Líbano, desde agosto de 2006, quando o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução n. 1.701.
Protestos da UNIFIL e da ONU não têm qualquer efeito sobre Israel, e Washington permanece muda e não protesta contra as repetidas violações, por Israel, da soberania territorial do Líbano.
Membros do Movimento Patriótico Livre [ing.Free Patriotic Movement (FPM)] e um dos apoiantes do Hezbollah, Jebran Bassil, que foi Ministro da Energia até renunciar ontem, culpou Washington pelo fracasso dos esforços dos sírios e sauditas para impedir que o Gabinete renunciasse. “O outro lado curvou-se às pressões externas, sobretudo às pressões norte-americanas, ignorando os desejos e os conselhos de sauditas e sírios”, disse Bassil.
Por sua vez, o líder do Partido Socialista Progressista [ing. Progressive Socialist Party (PSP)] Walid Jumblatt pareceu concordar com o FPM e atribuiu às potências ocidentais – que chamou de “forças do obscurantismo” – o fracasso da mediação tentada pela Arábia Saudita e pela Síria: “Tudo leva a crer que forças do obscurantismo envolveram-se no processo e boicotaram a iniciativa de sírios e sauditas, que visava a bloquear a repercussão negativa das acusações feitas pelo Tribunal Especial”.
O líder das Forças Libanesas Samir Geagea culpou os adversários do Movimento 8 de Março por desejar o que chamou de “poderes stalinistas”, acusando-os de “querer roubar direitos legais do presidente e do primeiro-ministro”.
Qual o futuro do Hezbollah?
O Hezbollah liderava a oposição, resultado das últimas eleições, que lhe deu maioria no Parlamento. Essa maioria autoriza o Partido da Resistência a apresentar candidato próprio ao posto de primeiro-ministro durante as consultas parlamentares cujo início o presidente deve anunciar em breve com vistas à formação de novo governo. Na passad quinta-feira, o líder do Hezbollah no Parlamento, o deputado Mohammed Raad, anunciou que a oposição indicará “um nome com história na resistência libanesa para chefiar o novo governo.” 
Há quem preveja que o Hezbollah sugerirá o nome do veterano líder sunita Omar Karami, personalidade discreta entre os moderados, que goza de forte apoio popular, dos progressistas e dos sírios.
O que quer que decida fazer, o Hezbollah pode muito bem levar o seu tempo para ponderar as grandes responsabilidades que envolvem o movimento de resistência caso decida governar o Líbano. Alguns dos apoiantes do Partido da Resistência têm insistido para que o Partido assuma o gigantesco desafio e implemente o projecto exposto no Manifesto de 2009 e a plataforma eleitoral já divulgada (combate à corrupção ‘mafiosa’ que mina algumas das lideranças políticas libanesas). Várias organizações não-governamentais libanesas pedem que o Hezbollah aposte mais na defesa do frágil meio ambiente do Líbano, que resolva de uma vez os graves problemas de água, electricidade e infra-estrutura, e que permita que os cidadãos libaneses decidam, pelo voto, e, pelo voto, dêem o necessário aval político à causa da Resistência.
Outros continuam a defender que o Hezbollah assuma o governo para pôr imediatamente um fim à vergonha do Líbano e de todos os árabes e assegurar os direitos humanos básicos – habitação digna e trabalho digno – aos refugiados palestinos, no Líbano e em toda a Região. Se o Hezbollah assumir o governo político do Líbano, as perspectivas de os palestinos alcançarem esses direitos elementares que hoje lhes são negados melhorarão muito.

Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Franklin Lamb é um pesquisador do Líbano e recebe e-mails em: fplamb@gmail.com

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