segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os povos turcos na história


A Turquia sobreviveu, mas a transição, traumática, deixou sequelas dolorosas



Miguel Urbano Rodrigues no Brasil de Fato

Voltei a Istambul transcorridas quase seis décadas. Foi um estranho reencontro. A cidade, quando a descobri, tinha menos de um milhão de habitantes; hoje tem mais de 15 milhões.
Na juventude a Turquia apareceu-me como porta do Oriente. Via nela o país dos turcos. Foi somente a partir dos anos 1970 em viagens pela Ásia Soviética que principiei a tomar conhecimento da grande aventura dos povos turcos.
O berço dos turcos foi a taiga siberiana. Nas suas migrações, no primeiro milênio antes da Nossa Era, trocaram as florestas árticas pelas estepes da atual Mongólia e aí se transformaram em pastores nômades, criando cavalos, camelos, bois e ovelhas.
Mais tarde entraram pela China e destruíram e fundaram ali impérios. Séculos depois correram para o Ocidente.
Com o tempo, os idiomas das primitivas sociedades tribais evoluíram, distanciando-se. Mas turcófanos eram os Hunos de Átila, os Heftalitas, os Ávaros que chegaram à Hungria, os Uigures, os primeiros Búlgaros.
Turcófonos eram os Seljucidas que expulsaram os Cruzados de Jerusalém, e os Khazar, os Kiptchak, os Petchenegos, povos dos quais descendem dezenas de milhões de Russos. Turcófonos são os atuais Kazaks, os Uzbeques, os Kirguizes, os Turquemenos, os Azeris. Turcófonos eram os Karluk que, aliados aos árabes, lutaram contra os chineses em Talas, no ano 751, numa batalha que travou definitivamente o avanço da China para o Ocidente.
O finlandês, o estônio e o húngaro mergulham as raízes em dialetos turcos dos seus antepassados vindos do Altai.
Os turcófonos são hoje 160 milhões.
Dos Turcos antigos foi projetada a imagem de gente selvagem e cruel. Voltaire apresentou Tamerlão, o maior conquistador do século 14, como um demônio de rosto humano. É inegável que Tamerlão cometeu chacinas hediondas. Mas esse turco chagatai, nascido no atual Uzbequistão, atraiu à sua capital, Samarcanda, os maiores sábios e artistas do Islão asiático e fez dela na época a mais bela e próspera cidade do mundo muçulmano. Babur seu trineto, fundou na Índia o Império do Grão Mogol onde floresceu uma cultura que criou monumentos como o Tahj Mahal.
Ghazni, no atual Afeganistão, é hoje uma palavra esquecida. Mas no século 11 foi a mais prestigiada capital do Islão turco. Nesse sultanato nasceram, viveram e criaram cultura, ciência e arte alguns dos mais famosos sábios, pensadores e escritores do Islão, entre os quais o astrônomo e matemático Al Biruni, o místico Sanaí, Ibn Sina (o médico Avicena), Ferdauci, autor do poema épico Xá Naama, o criador do moderno persa.
Na República russa da Iakutia, no grande norte siberiano, foi para mim uma enorme surpresa verificar que os autóctones são um povo que continua a expressar-se numa língua turca. Um professor russo informou-me durante a visita que das solidões geladas do Estreito de Behring ao Adriático, numa faixa que atravessa a Ásia e a Europa, continuam a viver comunidades turcófonas.
Uma das mais prodigiosas aventuras dos antigos turcos foi a das tribos Oghuz que, abandonando no século 13 as margens do Cáspio, vieram fixar-se na Ásia Menor, em terras que os seljucidas disputavam a Bizâncio. Do nome do seu chefe, Othman, ficaram conhecidos como os Otomanos, fundadores de um império gigantesco.
A conquista de Constantinopla, em 1453, pelo sultão Maomé II assinalou o fim do Império Bizantino, acontecimento que abalou o mundo cristão. Durante 200 anos a Turquia Otomana foi a primeira potência militar do mundo.
A decadência foi lenta, mas irreversível. Ao terminar a I Guerra Mundial, o Império, derrotado, desagregou-se. Foi então que surgiu um daqueles homens que alteram o caminhar dos povos. Mustafa Kemal, o Ataturk, expulsou as tropas estrangeiras, depôs o sultão, aboliu o Califado, proclamou a república laica, impôs a substituição do alfabeto árabe pelo latino.
A Turquia sobreviveu, mas a transição, traumática, deixou sequelas dolorosas. Os turcos contemporâneos sabem que as civilizações quando morrem nunca voltam. Mas as sementes ficam e a sua germinação é complexa e imprevisível.

*Miguel Urbano Rodrigues é escritor português.

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