quinta-feira, 31 de março de 2011

“As revoluções no mundo árabe transcendem e superam as categorias tradicionais da esquerda”

Confira entrevista com o correspondente Gabriele del Grande, que há dois meses vem fazendo cobertura – desde a Tunísia, Egito e agora na Líbia – dos acontecimentos do mundo árabe.

Por Alma Allende na Revista Fórum

Gabriele del Grande, nascido em 1982, formado em Estudos Orientais na Universidade de Bologna. Escreve no L’Unitá e no Peacereporter, mas na realidade se dedica desde muitos anos, como jornalista atento, comprometido e rigoroso, a história da verdadeira “classe universal” do século XXI: os imigrantes. Em 2006, fundou o observatório das vitimas da imigração Fortress Europe, onde registra nomes e dados do “genocídio estrutural” derivado das políticas migratórias européias. É autor de dois livros fundamentais sobre o tema: Mamadou vai morrer e O Mar do Meio, cujos capítulos sobre Tunísia e Líbia são de obrigatória leitura para quem queira abordar a situação atual dos dois países. Há dois meses vem fazendo cobertura – desde a Tunísia, Egito e agora na Líbia – dos acontecimentos do mundo árabe. Há vinte dias se encontra em Bengasi e dali respondeu a nossas perguntas.

Agora que se decidiu pela intervenção da ONU e que as bombas “aliadas” caem sobre a Líbia, numerosas vozes antiimperialistas tratam de demonstrar que a revolta líbia foi, desde o princípio, uma armação das potências ocidentais. Que você pensa a respeito? Houve algum projeto exterior ou foram levantes populares espontâneos como na Tunísia e no Egito?

Gabriele del Grande - Não estou absolutamente de acordo com os que denunciam um complô. Na Líbia, como na Tunísia, Egito, Iêmen e agora também Síria, as revoltas foram espontâneas e populares e não o resultado de complôs estadunidenses, mas sim a resposta mais natural que podíamos esperar depois de décadas de ditaduras apoiadas pelas grandes potências em nome da estabilidade e dos bons negócios. Assombra-me que certas teorias conspiratórias procedam do campo da esquerda. Mas isso ocorre também porque estas revoluções transcendem e superam as categorias da esquerda. É interessante analisar este paradoxo. Nas ruas do Cairo, como em Túnis e em Bengasi, estão, sobretudo, os pobres. Mas os pobres não pedem salários, não gritam contra os patrões, não se identificam como classe trabalhadora. Ou, pelo menos, não ainda. Antes de tudo, clamam por liberdade e antes de qualquer coisa se identificam como cidadãos. E um dos instrumentos principais que os permite se organizar é um objeto de consumo. Talvez o símbolo mais fútil dos bens de consumo: o computador com o qual se conectam a rede, e os celulares com câmeras para gravar o que se sucede nas ruas.

Há, enfim, um elemento geracional. Trata-se de países muito jovens, ao contrário da Itália ou da Espanha, cujos cidadãos médios cresceram durante a Guerra Fria. Aqui a maior parte da população tem menos de 25 anos e impulsiona mudanças. Uma mudança que na bancada norte (do Mediterrâneo) não sabemos compreender, também por causa de um prejuízo racista e colonial do qual não conseguimos nos libertar. A Europa se considera a única possível depositária de democracia. Como se fosse um conceito que pode pertencer somente a algum e não a todos. E considera impossível que um país muçulmano possa aspirar à liberdade em lugar do obscurantismo religioso. Esta é a razão pela que prosperam as teses conspiratórias. Não aceitar a ideia de que à “nossa” decadência corresponda “seu” ressurgimento.

Por que você crê que os EUA, a UE e inclusive a Itália, com interesses tão fortes na Líbia, decidiram-se por uma intervenção “humanitária” contra um amigo e aliado?

Del Grande - Creio fundamentalmente que por um erro de cálculo. Em um primeiro momento, parecia que o regime de Gadafi ia implodir sobre si mesmo no curso de poucos dias. Assim foi na Tunísia e no Egito. E nestes dias as potências mundiais se precipitaram a condenar a ditadura líbia e a mandar sinais de abertura aos rebeldes com o fim de garantir a continuidade dos contratos petroleiros e das concessões milionárias que a Líbia oferece e oferecerá nos próximos anos. Depois se demonstrou que Gadafi era um osso mais duro de roer do que o previsto e ganhou terreno graças à parcimônia da ONU e à entrada na Líbia de mercenários profissionais de guerra, chegados de outros países africanos, e utilizados em campanhas ofensivas contra as cidades dos rebeldes. Chegado a este ponto, as potências internacionais tiveram que tomar uma decisão para proteger seus interesses na Líbia. Ou apostar nos rebeldes e preparar as armas; ou voltar sobre os próprios passos com o risco muito alto de que um personagem como Gadafi, ressentido pela afronta, cancelasse os contratos com as companhias ocidentais, nos termos da sua conhecida gestão pessoal e lunática do sistema Líbia.

Quem faz parte do Conselho Nacional Líbio? São agentes do imperialismo, bravos revolucionários, uma mistura de tudo?

Del Grande - Trata-se de personagens de extratos muitos variados. Sobretudo advogados, juízes, homens de negócios e alguma ou outra cara lavada do regime que abandonou Gadafi há tempos e que não tem as mãos sujas de sangue. Alguns voltaram à Líbia depois de anos de exílio no exterior, principalmente nos EUA. Das suas declarações se deduz que buscam uma Líbia unida, com capital em Trípoli, regida por um sistema constitucional, parlamentar e de partidos, que respeite os velhos contratos petroleiros e que reconheça a liberdade de expressão, associação, imprensa e pensamento. O trabalho que têm adiante é longuíssimo, porque há 42 anos a sociedade civil na Líbia foi aniquilada. Não existem associações. Não existem sindicatos. Não existem partidos políticos. Não existem instituições. Existe unicamente a rede de Comitês Populares de Gadafi, suas forças de segurança, um exército que não serve para nada e a mão larga do grande chefe que decide tudo segundo seu humor.

Há uma esquerda mais ou menos organizada em Bengasi? Que papel desempenharam os jovens?

Del Grande - A esquerda não existe e, se existe, não é visível. Repito que não há nem houve partidos nos últimos 40 anos. Foi reprimida toda forma de dissidência. A única força de oposição interna nas últimas décadas foi a do islã político. Reprimido severamente durante a ditadura. Basta pensar nos 1,200 islamistas fuzilados em uma só noite na penitenciária de Abu Slim em Trípoli em 1996. Também a revolução de 17 de fevereiro estourou a partir de uma faísca de um protesto deles, quando em 15 de fevereiro os familiares das vítimas saíram às ruas para exigir justiça. Ademais, trata-se de um movimento espontâneo, formado sobretudo por jovens, e inclusive ingênuo, mas no sentido positivo do termo. No sentido de que há toda uma geração que, sem criar demasiados sofismas, decidiu que vale a pena lutar pela liberdade e decidiu pôr fim ao regime de Gadafi, inclusive ao custo das próprias vidas.

Qual era a situação social e econômica na Cirenaica antes das revoltas? A Líbia não é um país rico? Então, por que os protestos?

Del Grande - Esta é outra coisa interessante. Diferente da Tunísia e do Egito, a Líbia é um país rico. Inclusive estes dias se veem por todas as partes grandes carros novos e as casas onde entram são casas de classe média. Os pobres na cidade são, sobretudo, os estrangeiros: egípcios, sudaneses, chadianos, tunisianos, marroquinos e nigerianos que migraram para a Líbia buscando fortuna e se viram obrigados a fazer os trabalhos mais humildes e mal pagos. Uma coisa muito diferente se sucede no campo e no mundo rural, que vive muito abaixo do nível de vida da cidade. Mas, uma vez mais, aqui não se protesta pelos salários. Nunca escutei pronunciarem a palavra “salário” nos protestos. Claro, se grita contra o escândalo da corrupção, mas o ponto principal é a liberdade e o fim da ditadura e do terrorismo de Estado. Obviamente, é evidente que todos creem que uma gestão de petróleo orientada ao bem público proporcionará uma grande riqueza ao país, mais instrução e maior qualidade de vida. Mas o ponto principal, novamente, é a liberdade.

Os habitantes de Bengasi pediram realmente pela intervenção? Não temem perder o controle da sua revolução? Perder credibilidade a nível internacional, inclusive entre os povos árabes vizinhos?

Del Grande - Os habitantes de Bengasi têm as idéias claras sobre dois pontos. Querem a zona de exclusão aérea e os bombardeios aliados sobre os aviões de Gadafi e sobre o armamento pesado que ameaça os civis. E, ao mesmo tempo, não querem a entrada das tropas estrangeiras nem a ocupação militar. O povo na rua disse isso e o Conselho Transitório Nacional assina embaixo.

Os antiimperialistas que falam de conspiração se perguntam como é possível que os rebeldes tenham se armado tão depressa, desde os primeiros dias. De onde saíram as armas? Quem abasteceu de armamentos os rebeldes?

Del Grande - O estranho é que não se perguntem, ao invés disso, quem armou Gadafi e de onde ele sacou todos estes tanques e todos estes lança-mísseis com os quais está aterrorizando os civis. Mas voltando à pergunta, a dinâmica é muito simples. No dia 15 de fevereiro começam os protestos em Bengasi. O exército, como na Túnis, se nega a disparar contra o povo. Mas o fazem, em seu lugar, as forças especiais de segurança de Gadafi. Em poucos dias há um massacre, ao menos 300 mortos. Neste momento o exército, sob a pressão do povo, abre os quartéis e deixa que os jovens apanhem as velhas kalashnikov e os poucos lança-mísseis que se encontram nos depósitos. Graças a estas armas eles conseguem expulsar da cidade as forças especiais de Gadafi. E com estas mesmas armas defendem Bengasi e liberam as cidades de Ijdabiya, Brega e Ras Lanuf. Até que Gadafi lança contra eles unidades especiais e mercenários armados de tanques e lança-mísseis apoiados pela aviação militar o quê implanta o pânico entre as fileiras dos rebeldes bombardeando o front. Logo, de certo, nos dias posteriores às primeiras derrotas militares contra o exército de Gadafi, chegaram à cidade novas armas e novas munições. Uma vez mais velhas kalashnikov e um pouco de artilharia antiaérea. Alguém conseguiu fazer funcionar três helicópteros e dois aviões militares Mirage, ambos logo abatidos, um por fogo amigo e outro por uma explosão do motor. Em todo caso, se é um mistério de onde chegaram novas armas, o que é certo é que se trata de armas leves e de péssima qualidade. E quanto aos supostos instrutores militares sobre os quais se especulou tanto, a julgar pelo caos do front poderia se dizer que eles nunca chegaram.

Como você acredita que a intervenção ocidental pode influir no curso das revoluções líbia e árabe?

Del Grande - Tudo depende das decisões que se tomem. No momento, o bombardeio sobre a artilharia pesada de Gadafi simplesmente evitou um massacre. É verdade que matou dezenas e quiçá centenas de soldados e mercenários líbios. É verdade que se podia ter evitado intervindo antes com a diplomacia, talvez dez anos antes, ao invés de dedicar-se a cortejar o ditador desde os tempos do fim do embargo, em 2004. Mas, do jeito como as coisas estão, o bombardeio evitou que trinta tanques e vinte lança-mísseis entrassem em Bengasi, quando já estavam na porta, e depois que um só dia de batalha na cidade provocou 94 mortos. Gostemos ou não da guerra, e eu não gosto, é disto que estamos falando. Agora, no entanto, é necessário que a intervenção militar se detenha e que o resto do trabalho seja feito pelos líbios. Porque o problema não é “guerra sim ou guerra não”. A guerra já existe. E é uma guerra de libertação. De um povo contra o regime, seus fantoches e seus mercenários. E não deve converter-se em uma guerra colonial contra um governo inimigo dos próprios interesses particulares. Mas pelo que tenho visto estes dias, estou convencido de que temos que apoiar o povo líbio. Na melhor das hipóteses surgirá uma república constitucional baseada em um sistema econômico liberal. Podemos não gostar disso, mas é o que querem os líbios e eles têm também todo o direito de escolher seu próprio futuro. Apoiar Gadafi em nome de sua máscara socialistas e terceiro-mundista não é somente uma estupidez como também nos convertes em cúmplices de um criminoso de guerra.

“Não faltam razões a Gadafi, as fotos de sua casa bombardeada me fazem sentir mal”, disse Berlusconi. Disse também que queria fazer pessoalmente uma blitz em Trípoli para negociar com o rei “uma saída de cena honrosa”. Por que ele disse essas coisas?

Del Grande - Berlusconi disse isso um pouco por seu delírio de onipotência e sua contínua busca de um posto entre os grandes estadistas da história da Itália. E um pouco também para distrair a opinião pública italiana e internacional da imagem de fanfarrão da qual não consegue se livrar depois dos últimos escândalos sexuais tão morbidamente investigados pela magistratura e pela imprensa italiana.

Falemos de Lampedusa. Onze mil imigrantes desembarcados, dos quais há 3 mil na ilha; outros 2 mil foram expulsos. Faltam entre 5 e 8 mil que o Ministro do Interior assegura haver “distribuido” pelo território, como se o número de praças disponível nos CIE e nos CARA não fosse um dado políticos. A fábrica da clandestinidade, definitivamente, funciona a pleno rendimento. Inclusive, parece que há líbios entre os imigrantes. Isso tem relação com a Líbia?

Del Grande - Não, por agora não existe essa relação. Existirá de novo, e voltarão a sair de Zuwara, presumivelmente uma vez que a revolução termine. Mas, por hora não vejo este vínculo. Em Lampedusa não está chegando nenhum fugitivo da Líbia. Claro, muitos estrangeiros partiram, ao menos 250 mil, sobretudo egípcios e tunisianos, e também chineses, bengalis e outros, mas em sua maioria regressaram às casas a espera de poder voltar para a Líbia. Os líbios que fogem da guerra saem de uma cidade para outra do país, buscando refúgio nas zonas liberadas, a leste. Em Lampedusa, por outro lado, somente chegaram, até agora, tunisianos. E originários de Zarzis, Djerba e Tataouine. E, mais uma vez, também neste caso, na origem da onda migratória não se encontra o caos gerado no país pela revolução, como muitos pretenderam dizer, falando em asilo político e em fugitivos. Trata-se, ao contrário, de dois fatores. Um mais contingente vinculado à crise econômica da costa tunisiana como conseqüência da queda do turismo após a insurreição. O segundo, vinculado à aventura coletiva. De novo, raciocinar em termos de crise é redutivo e racista porque nos leva a esquecer que trata-se de jovens, iguais a nós, com seus sonhos e seu gosto pelos desafios. Milhares de jovens aprenderam com a revolução que rebelar-se é justo. E talvez sem ter racionalizado isto, começaram a rebelar-se contra a injustiça da fronteira. Querem ir a Paris visitar seus parentes, querem trabalhar alguns meses, conhecer a região ao norte, casar-se com uma italiana. Querem viajar. Os motivos são assuntos seus; além de tudo, viajar não é uma coisa exclusiva dos desesperados, mas uma parte imprescindível da vida de todos os jovens de hoje. E pára fazê-lo violam uma lei que consideram injusta. Para mim, parece um ato de rebelião que entranha um enorme potencial. Por isso digo que, no fundo, não é mal que Lampedusa esteja agora superpovoada. Porque levante questões muito sérias de maneira explosiva. O regime de criminalização da liberdade de circulação deve cair, exatamente como caíram as ditaduras do sul do Mediterrâneo. Os tempos estão maduros para isso.

Escrevendo de Bengasi, não tens a impressão de ser parcial? Como você avalia a qualidade da informação sobre a Líbia no geral e sobre Bengasi em particular? Estão nos manipulando? Quem? Uma parte da esquerda diz, por exemplo, que Gadafi nunca bombardeou os manifestantes com artilharia aérea e que isto demonstraria que tudo não passa de uma montagem midiática para justificar a intervenção. Mas também alguns respeitáveis meios da esquerda – pensemos em Il Manifesto ou na Telesur – foram acusados de dar informação parcial ou falsa.

Del Grande - Claro que sou parcial. Sou consciente e estou orgulhoso. Cada relato tem um ponto de vista. E é importante escolher um próprio. Da mesma maneira que falo de fronteiras assumindo o ponto de vista dos imigrantes e das famílias dos que foram mortos no mar e não assumindo o ponto de vista da burguesia europeia ou o da polícia de fronteiras, e assim relatei a revolução na Tunísia e no Egito, misturando-me aos rebeldes e não com os lacaios dos ditadores. O mesmo na Líbia. Não quero ser porta-voz de um criminoso de guerra como Gadafi. Queria, isso sim, estar em Trípoli e falar da resistência na capital, que desapareceu das notícias depois que as primeiras tímidas manifestações foram reprimidas e derramaram tanto sangue, e depois de que todos os jornalistas “incorporados” foram detidos nos hotéis e obrigados a cobrir somente as noticias previamente selecionadas pelo regime. Portanto sim, sou parcial e prefiro estar na parte daqueles que lutam pela liberdade e não de que emprega tropas mercenárias e lança-mísseis para atacar ao próprio povo porque não quer deixar o poder depois de 42 anos de ditadura. E, bem, a esquerda entrou em crise porque Gadafi foi um símbolo para certo socialismo e certo terceiro-mundismo. E hoje tem muitos amigos. Entre eles Chávez e, portanto Telesur, e Valentino Parlato e, portanto Il Manifesto. De maneira que não citaria estes dois meios como bons exemplos de jornalismo no que diz respeito à questão da Líbia. Como tampouco citaria o canal Al-Arabiya, que fez circular a estatística falsa de 10 mil mortos, e nem todos os demais meios de lançaram sem provas a notícia dos bombardeios sobre a multidão dos manifestantes e das massas, chegando inclusive a usar de maneira absurda a palavra “genocídio”. Aqui emerge pela enésima vez a escassa qualidade do jornalismo de hoje, sobretudo o italiano. E sobretudo quando se trata de contar fenômenos que escapam às usuais categorias de pensamento. O socialismo e a ditadura, a guerra e a paz, o islã e a democracia. Precisamente por isso me parece importante estar aqui e escrever a partir das histórias dos verdadeiros protagonistas desta revolução. Os jovens da nova geração líbia.

Tradução de Cainã Vidor. Publicado por Rebelión. Foto por Foto Globalgrind staff.

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