quarta-feira, 30 de março de 2011

KADAFI E AS POTÊNCIAS OCIDENTAIS



Frei  Betto 



As potências ocidentais,  lideradas pelos EUA, botam a boca no trombone em defesa dos direitos humanos  na Líbia. E as ocupações genocidas do Iraque e do  Afeganistão?
Quem dobra os  sinos por um milhão de mortos no Iraque? Quem conduz à Corte Internacional de Justiça  da ONU os assassinos confessos no Afeganistão, os responsáveis por crimes de  lesa-humanidade? Por que o Conselho de Segurança da ONU não  diz uma palavra contra os massacres praticados contra os povos iraquiano,  afegão e palestino?

O interesse dos EUA e da União  Europeia não é a defesa dos direitos humanos na Líbia. É assegurar o controle  de um território que produz 1,7 milhão de barris de petróleo por dia, dos  quais depende a energia de países como Itália, Portugal, Áustria e Irlanda.

O caso do Iraque é exemplar: os EUA inventaram as jamais  encontradas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein para exercer o  controle sobre um país que é o segundo maior produtor mundial de petróleo –  2,11 milhões de barris por dia, só superado pela Arábia Saudita. E possui uma  reserva calculada em 115 bilhões de barris. Soma-se a essa riqueza o fato de  ocupar uma posição geográfica estratégica, já que faz fronteiras com Arábia  Saudita, Irã, Jordânia, Kwait, Síria e Turquia.

No dia 20  de março, completou-se oito anos que os EUA e parceiros invadiram o Iraque sob  o pretexto de “estabelecer a democracia”. O governo de Maliki está longe do  que possa ser considerado uma democracia. Em fevereiro último, milhares de  iraquianos foram às ruas para reivindicar trabalho, pão, eletricidade e água  potável. O exército os reprimiu brutalmente, com mortes, detenções arbitrárias  e sequestro de ativistas. Nenhuma potência mundial clamou em favor do direitos  humanos nem sugeriu que Maliki responda perante tribunais internacionais.  
A ONU é, hoje, lamentavelmente, uma instituição desacreditada.  Os EUA a utilizam para aprovar resoluções que justifiquem seu papel de polícia  global a serviço de um sistema injusto e excludente. Quando a ONU aprova  resoluções que contrariam a Casa Branca – como a condenação do bloqueio a Cuba  e da opressão dos palestinos – ela simplesmente faz ouvidos moucos.  

Kadafi está no poder desde 1969. São 42 anos de ditadura. Por  que os EUA e a União Europeia jamais falaram em derrubá-lo? Porque, apesar de  seus atentados terroristas, era conveniente manter ali um déspota que atraía  investimentos estrangeiros e impedia que chegassem à Europa os imigrantes  ilegais da África subsaariana, ou seja, todos os países ao sul do deserto de  Saara.

Agora que o povo líbio clama por liberdade, os EUA ocupam  posições estratégicas no Mediterrâneo. Barcos anfíbios, aviões e helicópteros  são transportados pelos navios de guerra US Ponce e US Kearsarge. A União  Europeia, por sua vez, não está preocupada com a democracia na Líbia, e sim em  evitar que milhares de refugiados desembarquem em seus países combalidos pela  crise financeira.

Temem ainda que a onda libertária que assola os  países árabes, produtores de petróleo, elevem o preço do produto, onerando  ainda mais as potências ocidentais, que lutam com dificuldade para vencer a  crise do sistema capitalista.

Fala-se em estabelecer uma “zona de  exclusão aérea” na Líbia. Isso significa bombardear os aeroportos do país e  todas as aeronaves ali estacionadas. E exige o envio de porta-aviões às costas  africanas. Em suma: uma nova frente de guerra.

O fato é que a  Casa Branca foi surpreendida pelo movimento libertário no mundo árabe e,  agora, não sabe como proceder. Era mais cômodo prosseguir cúmplice dos regimes  autoritários em troca de fontes de energia, como gás e petróleo. Mas como  opor-se ao clamor por democracia e evitar o risco de o governo de tais países  cair em mãos de fundamentalistas?

Kadafi chegou ao poder com amplo  apoio popular ao derrubar o regime tirânico do rei Idris, em 1969. Mordido  pela mosca azul, com o tempo esqueceu todas a promessas libertárias que  fizera. Em 1974, valendo-se da recessão mundial, expulsou as empresas  ocidentais, expropriou propriedades estrangeiras, e promoveu uma série de  reformas progressistas que fizeram melhorar a qualidade de vida dos  líbios.

Finda a União Soviética, a partir de 1993 Kadafi  deu boas-vindas aos investimentos estrangeiros. Após a queda de Saddam,  temendo ser a bola da vez, assinou acordos para erradicar armas de destruição  em massa e indenizou vítimas de seus atentados terroristas. Tornou-se feroz  caçador de Osama Bin Laden. Pediu ingresso no FMI, criou zonas especiais de  livre comércio, abriu o país às transnacionais do petróleo e eliminou os  subsídios aos produtos alimentícios de primeira necessidade. Iniciou o  processo de privatização da economia, o que fez o desemprego aumentar cerca de  30% e agravar a desigualdade social.

Kadafi mereceu elogios de  Tony Blair, Berlusconi, Sarkozy e Zapatero. Como ao Ocidente, desagradou-lhe a  derrubada dos governos tirânicos  da Tunísia e do Egito. Agora, atira  contra um povo desarmado que aspira vê-lo fora do poder.

Para as  potências ocidentais, Kadafi tornou-se uma carta fora do baralho. O problema,  agora, é como derrubá-lo de fato sem abrir uma nova frente de guerra e tornar  a Líbia um “protetorado” sob controle da Casa Branca. Se Kadafi resistir, Bin  Laden pode ganhar mais um aliado ou, no mínimo, um concorrente em matéria de  ameaças terroristas.

O discurso do Ocidente é a democracia. O  interesse, o petróleo. E para o capitalismo, só isto interessa: privatizar as  fontes de riqueza. Enquanto a lógica do capital predominar sobre a da  liberdade, o Ocidente jamais conhecerá verdadeiras democracias, aquelas nas  quais a maioria do povo decide os destinos da nação.

Frei  Betto (Belo Horizonte, 25 ago 1944) é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura  militar brasileira (Rocco), entre outros  livros.

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