quarta-feira, 9 de março de 2011

“A liberação feminina não pode ocorrer sob nenhuma religião”, afirma Nawal El Saadawi


Entrevista publicada originalmente no El País, via Sul21


Ela tem 79 anos de idade e uma vivacidade surpreendente. A entrevista foi concedida por telefone, durante sua visita a Oslo, na semana passada. Está agora em Nova Iorque e no próximo dia 26 chega a Espanha para participar na conferência de Mulheres em Segóvia. Nawal El Saadawi é uma líder feminista árabe, a primeira a denunciar a castração de mulheres. Sua crítica amarga das leis e da interpretação do Islã que institucionalizou o patriarcado repressivo que impedia as mulheres de crescerem socialmente levou-a primeiro a perder todos os cargos que ocupava na saúde pública de seu país, depois a prisão e ao exílio. Hoje, depois de ter participado nos motins de Tahrir Square, que encerrou 30 anos de ditadura de Hosni Mubarak, ele se sente mais esperançosa do que nunca: “É a hora da mulher egípcia”, diz ela, feliz.
Pergunta: O que fez a Revolução da Praça Tahrir para as mulheres?
Resposta: Muitíssimo. Pela primeira vez, mulheres e homens, no Egito, foram iguais. Mulheres de todas as idades e classes estiveram na Praça Tahir, inclusive mães com crianças de colo dormiam na praça.
P: Você foi para a praça?
R: Claro que sim. Desde o início, muitos dias. Agora estarei algumas semanas fora do Egito, mas quando voltar regressarei à Tahrir todas as vezes que for necessário até que ganhemos.
P: O que você espera concretamente?
R: Uma de nós deveria ter sido incluída na comissão de reforma constitucional. Foram nomeados oito homens e nenhuma mulher, por isso estamos a organizar uma marcha de um milhão de mulheres para terça-feira (hoje, dia 8) no Cairo, e esperamos receber o apoio de mulheres da Espanha.
P: Qual é o objetivo da marcha?
R: Que todas as comissões e instituições do novo Egito devem contar com mulheres. Temos que acabar com o fato de que só os homens decidem.
P: Você tem medo de que depois da revolução fique tudo como antes?
R: Não, nós conseguimos que caísse Mubarak e alguns de seus homens, mas o problema das mulheres é crônico e está enraizado no patriarcado e na religião. Por isso, pedimos uma constituição laica, um código de família laico e um Estado laico separado da religião. As mulheres morreram na Praça Tahrir da mesma forma que os homens. Eles tem que levar isso em conta.
P: Você concorda com as reformas constitucionais que fez tal comissão, que deverão ser votadas no próximo dia 19?
R: É uma comissão muito tradicional. Fez apenas pequenas mudanças. Nossa marcha é para exigir as mudanças radicais que as egípcias necessitam.
P: Não é contraproducente exigir tanto?
R: Não vamos aceitar a discriminação outra vez após participar da revolução. Temos que nos rebelar e lutar por nossos direitos. Não temos medo de perder alguma coisa, porque não temos nada, exceto a nossa alma.
P: Por que explodiu a revolução?
R: Pela acumulação de opressão e corrupção. O regime era tão corrupto que se tornou
insuportável.
P: Que papel desempenharam as mulheres?
R: Todos, inclusive o de morrer. Nós estávamos lá desde o início, dispostas a tudo, sem diferenças com os homens.
P: Esperava algo assim?
R: Eu sonhava com isso desde que tinha 10 anos, o que significa que esperei 70 anos. Não fiquei surpresa porque já tinha passado uma vida inteira lutando pela revolução, mas a forma como ela irrompeu foi surpreendente. Estou feliz por ter chegado a ela viva!
P: Você pensava que as mulheres egípcias seriam tão ativas?
R: A minha casa chegam muitos jovens, homens e mulheres, que estão interessadas em meus livros; são progressistas com os quais debato de diversos temas, mas ninguém acreditava que milhões de egípcios tomariam as ruas. Mais de seis milhões de pessoas estiveram na Praça Tahir naqueles dias.
P: Você acha que este é o despertar das mulheres egípcias?
R: Sim, das mulheres e os homens, porque não podemos separar umas dos outros. A mulher não pode ser liberada se o homem não é liberado, da mesma forma como o homem não pode ser liberado sem a mulher sem liberada. Todos precisam de um país livre.
P: Como está sendo organizada a Marcha de um Milhão de Mulheres?
R: Na verdade a ideia veio de um grupo de homens jovens e progressistas, que têm acesso ao Twitter, Facebook e outras redes sociais. Foi organizada em minha casa. Somos um grupo em que trabalham homens e mulheres.
P: Você voltará ao Cairo para a manifestação?
R: Não, eu não sou indispensável. Temos outras lideranças e são especialmente os jovens que devem liderar a marcha. Eu sou apenas um respaldo. Eles dizem que eu sou a madrinha, a mãe espiritual da revolução…
P: Qual é a situação das mulheres egípcias hoje?
R: Há muita discriminação. Nós ainda queremos abolir a poligamia e o gênero de divórcio no qual o homem pode separar-se sem deixar nada para a esposa.
P: A Constituição apoia a poligamia?
R: Sim, ela diz que o Código de Família não pode contradizer a sharia (lei islâmica) e a sharia permite a poligamia. O Egito tem um dos códigos familiares mais atrasados do mundo árabe.
P: É por isso que você queria ter mulheres na comissão de reforma constitucional?
R: Claro que sim. Homens e mulheres jovens, porque eles colocaram lá somente homens tradicionais e religiosos. Deveria ter sido homens e mulheres seculares.
P: Você considera que a elaboração de uma nova Constituição será a principal conquista da revolução?
R: Sim, se tivermos uma Constituição radicalmente secular e se homens e mulheres, cristãos e muçulmanos forem iguais perante a lei, terá sido dado um grande passo contra o Estado tradicional. O secularismo é fundamental para uma democracia autêntica. As mudanças ocorridas nestes dias tem mantido o Artigo 2, que afirma que o islamismo é a religião do Egito. Ele deveria desaparecer.
P: Você acredita que a discriminação tem origem religiosa?
R: Sem dúvida. A religião é uma ideologia política e é preciso separar a religião e a política. A mulher não pode ser liberada sob nenhuma religião, cristianismo ou judaísmo ou islamismo, porque as mulheres são inferiores em todas as religiões.
P: Você não acha que esse argumento é muito radical para o Egito?
R: Não. Quando eu estava em Tahrir eu conheci muitas pessoas que compartilhavam das mesmas ideias. Muitos jovens progressistas, incluindo muitos homens da nova geração dos Irmãos Muçulmanos.
P: Você tem receio de que o novo Egito fique sob o controle da Irmandade Muçulmana?
R: Não. Eu tenho medo é dos Estados Unidos e Israel apoiando a Irmandade Muçulmana. Eu estava no Irã no início da revolução de 1979. A revolução iraniana era, à princípio, laica e socialista, mas os EUA se sentiram ameaçados pela uma revolução socialista e impuseram um aborto das intenções iniciais. Khomeini chegou ao Irã pelas mãos da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos. Eles preferiram uma revolução religiosa ao invés de uma socialista. O socialismo é o verdadeiro inimigo do capitalismo. No Egito aconteceu o mesmo: repentinamente, apareceu um respeitado clérigo na Praça Tahrir (Yusef el Karadawi, de 84 anos e exilado no Catar) para falar à Praça. Somos contra isso, mas não tememos a Irmandade Muçulmana, porque eles são uma minoria.
P: O que você pediria ao novo governo?
R: Termos conseguido a demissão de Ahmed Shafik (primeiro-ministro designado nos últimos dias de Mubarak) também foi uma conquista da Praça Tahrir. Confiamos que o novo chefe de governo Essam Sharaf apoiará a criação de um Conselho Presidencial composto por homens e mulheres honestos que exerçam o poder que hoje está nas mãos do militares e que, sem pressa — porque é necessário tempo para formar e organizar novos partidos – convoque eleições livres e a elaboração de uma nova constituição secular.
P: Você confia na vontade de democratizar do Conselho Supremo das Forças Armadas, que agora dirige o Egito?
R: Não é uma questão de confiança, mas de poder. Se os manifestantes forem para casa agora e as pessoas se calarem novamente, os militares farão o mesmo que fazia o regime de Mubarak. Se o poder não exercer seu poder, se não houver um Parlamento ao qual se preste contas, o Egito e qualquer país cairá novamente em uma ditadura. Se os militares não cumprirem seus compromissos com o povo, voltaremos à Praça Tahrir. Isto é uma revolução.
P: E você acredita na revolução?
R: Sim, acredito, E acredito que a revolução ainda não acabou. Seguiremos na Praça Tahrir até que os compromissos sejam cumpridos.
P: Você acha que o novo Egito teve um bom começo?
R: Sim, o país está cheio de esperança e esperança é poder.

Tradução de Milton Ribeiro

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