O Brasil de Fato relata a participação feminina na sociedade e na luta pela independência
Igor Ojeda eTatiana Merlino
Smara (Saara Ocidental)
e Madri (Espanha) via BRASIL DE FATO
Quase
todos os dias, Dajna é a primeira a se levantar. Antes do restante de
sua família acordar, lava a louça do dia anterior e prepara o pão para o
café da manhã. Durante o dia, cuida dos afazeres domésticos em geral.
Lava a roupa, faz o almoço, o jantar. Muitas vezes, conta com a ajuda da
filha e da cunhada, mas é ela a dona da casa, quem dá a ordem final.
Por recomendação médica para enfrentar a diabete de que sofre,
diariamente sai para caminhar. Duas ou três vezes por semana, trabalha
na oficina de tear de sua comunidade, confeccionando bolsas, tapetes e
panos para vender.
Essa senhora de 50 anos já casou duas vezes e
teve cinco filhos. Viúva do primeiro marido, divorciada do segundo, foi
obrigada a criar a prole sozinha. Além disso, se “provocada”, emite
opiniões firmes sobre as mais variadas questões, nacionais ou
internacionais. Dajna Laman Merhi é um bom exemplo de mulher saaraui,
como é chamado o natural do Saara Ocidental, país do noroeste da África
ocupado há 35 anos pelo vizinho Marrocos (leia mais detalhes sobre a ocupação nas edições anteriores do Brasil de Fato).
Dajna
não vive, no entanto, sob a ocupação. Em 1975, quando a monarquia
marroquina enviou 350 mil soldados para invadir o território saaraui,
prestes a ser deixado pela Espanha, a então colonizadora, ela e alguns
parentes – juntamente com cerca de 150 mil conterrâneos – fugiram pelo
meio do deserto do Saara e se instalaram no sudoeste da Argélia, onde,
nos arredores da cidade de Tindouf, foram erguidos cinco campos de
refugiados, que existem até hoje. Dajna vive, com três de seus filhos –
os dois mais velhos moram no exterior – no campo 27 de Febrero, que,
originalmente, era uma escola de mulheres.
Como milhares de
outras saarauis, ela foi uma das responsáveis, ao longo de mais de uma
década, pela construção de um país no exílio, já que a maioria dos
homens estava na guerra, que durou até 1991. Saúde, educação, água,
alimentação, toda a administração dos campos de refugiados ficou a cargo
das mulheres, que, ainda hoje, mantêm uma importante participação na
sociedade e na política saaraui.
“Dentro
do estereótipo que o Ocidente faz do mundo islâmico e árabe, somos um
exemplo de emancipação, pois viemos de um povo em que a mulher sempre
foi considerada e respeitada”, explica Zahra Ramdán Ahmed, fundadora e
presidenta da Associação de Mulheres Saarauis na Espanha.
Os
saarauis são originários de uma sociedade beduína e nômade. Nela,
enquanto os homens se ocupavam de tocar o gado, caçar e pescar, eram as
mulheres que administravam a economia doméstica, no sentido mais
político do termo. E a religião nunca foi um impeditivo a essa atuação
ativa.
“A religião tem muito a ver com a cultura. A sociedade
saaraui e mauritana possuem uma cultura muito aberta, tolerante, e tem
sua forma de praticar o islã. Quando o estudamos, podemos ver muitas
coisas interessantes, como uma igualdade real de gênero. A religião
nunca nos impediu de fazer nada do que queremos”, explica Fatma Mehdi,
secretária-geral da União Nacional de Mulheres Saarauis (UNMS).
A
mulher saaraui é sempre ouvida. Pode se divorciar e se casar quantas
vezes desejar. Tem o direito de trabalhar, viajar, divertir-se. E não é
obrigada a cobrir todo o corpo, embora muitas vezes o faça por questões
culturais e religiosas.
“A sociedade beduína é aberta, onde todos
vivem e trabalham juntos, sempre com respeito à mulher. Não há
violência doméstica. Ela tem sua opinião e participação. É uma
característica da nossa sociedade de origem, mas de uma maneira
espontânea, tradicional”, esclarece Khadija Hamdi, ministra da Cultura
da República Árabe Saaraui Democrática, a Rasd, o governo saaraui no
exílio.
Todas concordam, porém, que a divisão de “tarefas” na
realidade da guerra ajudou para que essa participação alcançasse o nível
da política, pois o papel de administradoras dos campos de refugiados
fez com que as mulheres demonstrassem sua capacidade na área. “Não creio
que existiam mulheres nos conselhos que havia na organização antiga,
mas, graças à Frente Polisario, elas passaram a ter maior participação
política”, opina Fatma.
A
Frente Polisario (Frente Popular de Libertação de Saguia El Hamra e Río
del Oro) é, desde 1973, o movimento que reúne os independentistas
saarauis e espécie de partido único que governa a Rasd até que se
conquiste a independência. Embora sua direção ainda seja formada
majoritariamente por homens, seu trabalho pelo empoderamento das
mulheres é reconhecido por elas.
“A Frente Polisario fez esforços
para que nossas mulheres se preparassem intelectualmente e
profissionalmente para que pudessem reivindicar seus direitos como
pessoas. Esse protagonismo se consolidou, sobretudo, com a educação. No
começo dos campos de refugiados, em 1975, 70% das mulheres não sabiam
ler nem escrever. Foram realizadas campanhas de alfabetização para as
mulheres e erradicamos o analfabetismo”, conta Zahra Randám.
No
entanto, ela faz a ressalva de que ainda há muito o que avançar. “É
preciso não apenas libertar o Saara Ocidental, mas fazer com que as
mulheres estejam nos lugares de tomada de decisões”. Hoje, há apenas
duas mulheres nos ministérios e elas ainda não atingiram a metade do
número de cargos eletivos.
“No Parlamento, somos 34%. Nos níveis
de gestão das whilayas [províncias] e dairas [municípios], representamos
24%. Nos conselhos locais [câmeras de vereadores], compostos por 12
pessoas, 11 são mulheres, mas o prefeito é um homem. E são elas que o
elegem”, explica Fatma.
Segundo ela, muitas mulheres ainda não
valorizam o direito ao voto ou votam em candidatos homens. É o preço a
ser pago pelo “feminismo” de algumas ações do governo saaraui. “Quando
você conquista algo sem haver lutado, você não o valoriza devidamente. A
Frente Polisario, desde o princípio, estava mais consciente e propôs
essas políticas. A mulheres não lutaram para conseguir o direito ao voto
e a consequência é que muitas não se interessam pela política e acham
que sempre vão ter esse direito”, alerta a secretária-geral da UNMS.
Apatia
Estamos
na sede da organização, localizada no campo de refugiados 27 de
Febrero. Depois da conversa, Fatma nos leva para conhecer o espaço. Ela
explica o que funciona em cada cômodo: curso de espanhol, de computação,
aulas de pintura etc., além de uma pequena quadra poliesportiva. Nas
paredes da casa, diversas frases feministas. “O trabalho na jaima também é de homens. Todos a compartilhar o trabalho!”, diz uma delas.
Enorme tenda de pano verde sustentada por dois grossos e altos bambus, a jaima é
onde ocorre a sociabilidade saaraui. Principalmente nos campos de
refugiados no sudoeste da Argélia, onde quase não há empregos e onde se
espera por uma solução ao conflito com o Marrocos, é na jaima
que a vida acontece. Embora todos passem boa parte do dia nela, são as
mulheres suas maiores frequentadoras: é onde costuram, veem televisão,
conversam, tomam o tradicional chá verde.
“Estar nas jaimas
o tempo todo é morrer, pois não há nada para fazer lá. É uma pena
deixar que as jovens fiquem o dia inteiro tomando chá, sem aprender
nada”, lamenta Fatma, relacionando essa realidade com a falta de
consciência e participação política de muitas delas.
“Há, também,
outro obstáculo, que é o cansaço. Como os homens estavam na guerra, e
muitos morreram nela, as mulheres ficaram sozinhas como chefes de
família numerosas. Aqui, costuma-se dizer que, se uma mulher tem filhos,
é muito difícil que tenha papel político. Além disso, há também a
situação econômica, porque estamos falando de uma sociedade que depende
totalmente das ajudas internacionais”, acrescenta.
Quando estão na jaima,
as mulheres saarauis se enrolam, por cima da roupa, com um grande pano
chamado melfa. Especialmente na presença de algum homem que não seja da
família, apenas o rosto e as mãos ficam de fora. Quando saem às ruas, em
geral vestem luvas e cobrem o rosto com outro pano. Nesse caso, contam
elas, a questão não é apenas cultural ou religiosa, mas de estética.
Para as saarauis, o bonito é ter a pele mais clara, distinta à da cor
mais curtida característica dos povos árabes de maneira geral. Por isso,
fazem o possível para se protegerem dos raios do forte sol do deserto
do Saara.
O desejo de copiar o padrão de beleza ocidental – muito
por causa do apelo midiático, já que quase todas as casas dos campos de
refugiados têm parabólicas – no entanto, traz problemas. Fatma conta
que, muitas vezes, as saarauis usam cremes para embranquecer a pele
provenientes da Mauritânia e do Senegal, que não possuem controle de
qualidade e que, segundo ela, causam câncer.
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