sexta-feira, 28 de outubro de 2011

“Só pude assumir quando fui reconhecida profissionalmente”, diz professora transexual


Rachel Duarte no SUL21


"No segundo ano na escola houve a transformação. Ela nos comunicou e a comunidade escolar se organizou” | Ramiro Furquim/Sul21


Após viver 35 anos como homem, Marina Reidel assumiu sua verdadeira identidade. “Eu sempre brinquei de boneca com as meninas. Quando criança,  imaginava para mim um futuro como professora, professorA”, relata a transexual que hoje leciona em duas escolas da rede pública estadual do Rio Grande do Sul. Há cinco anos Marina convive normalmente com os alunos da mesma escola onde um dia foi o professor Mário, sendo plenamemente aceita pela comunidade escolar. Em sala de aula, ela ensina adolescentes sobre valores, ética e cidadania em disciplina alternativa ao Ensino Religioso, facultativa no ensino fundamental público.
O processo de transformação de professor para professora ocorreu na Escola Estadual Rio de Janeiro, aonde Marina chegou como Mário em 2003. Vindo de Montenegro, onde sofreu alguns casos de discriminação no ambiente profissional por sua orientação sexual e até mesmo uma demissão por preconceito, encontrou na escola uma direção sensível à livre orientação sexual.
“Ela veio como um colega. Um professor atuante e muito ativo. Era o professor Mário. No segundo ano na escola houve a transformação. Ela nos comunicou e a comunidade escolar se organizou”, conta a vice-diretora da escola Anelise de Lima Lorenzoni.
“Quando vim para cá, já estava em processo de transformação, tomando hormônios, deixando o cabelo crescer, furando orelha e usando brinco”, afirma Marina. Quando decidiu assumir a homossexualidade e trocar sua identidade de homem para mulher, pediu licença de um mês na escola. “Coloquei o silicone e assumi minha identidade de gênero como transexual”, relata.
Os alunos foram os mais curiosos na retorno como professora Marina. “No início eles perguntaram como eu queria ser chamada, se era professor ou professora. Eu não obriguei ninguém. Eu quis uma identificação ao natural. Hoje todos me chamam de professora”, fala.
Ainda com o registro de identidade como Mário, Marina ainda sofre alguns pequenos constrangimentos. “Alguém veio procurar o professor de Artes e eu fui chamar o professor Mário, foi um equívoco. Quando eu voltei com a professora Marina, visivelmente uma mulher, tive que remendar a situação”, diz a vice-diretora da escola.

A professora “hipersexuada”


"A escola tem uma imagem de que professor não tem sexo, não pode falar disso." | Ramiro Furquim/Sul21
A aproximação de Marina com os alunos melhorou quando ela se assumiu como mulher. “Eles começaram a se aproximar mais de mim quando me assumi, principalmente os que tinham histórico de discriminação na escola”, conta a professora.
Além de ser vista como a professora liberal que fala sobre sexo em sala de aula, Marina conquistou o respeito de todos e seguidamente recebe homenagens e é eleita como paraninfa em formaturas. As aulas de Ética e Cidadania servem para educar sobre valores, respeito, sexualidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Organizações Não Governamentais que trabalham com o público LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis) já estiveram na escola fazendo oficinas com os jovens.
“Isso é um papel nosso enquanto educadores. Muitos não trabalham com o assunto. Eu trabalho com tudo o que gira em torno do mundo deles nas aulas. A escola tem uma imagem de que professor não tem sexo, não pode falar disso. Há estudos que defendem esta cultura na educação. Então, quando tem um professor ‘hipersexuado’, há uma conotação com a sexualidade e uma identificação maior dos adolescentes que estão despertando para isso nesta fase da vida”, explica Marina.
“Ela é a melhor professora do colégio. A gente pode falar de tudo. Eu não tive problema nenhum com ela ser transexual. Ela nos dá conselhos sobre a vida e fala coisas que outros professores dizem que não falam por que não é coisa de sala de aula”, diz a aluna Thauany Alves (15 anos). Já o colega Lucas de Oliveira Penteado (14 anos) disse que estranhou no começo do ano a professora homossexual. “Depois me acostumei. Ela trabalhou isso com a gente. De não termos preconceito”, afirma.

Ensino Religioso deu lugar à Ética e Cidadania


"“O estado é laico. Então não temos como ensinar apenas uma religião em sala de aula." | Ramiro Furquim/Sul21

A substituição da disciplina de Ensino Religioso pelas aulas de Ética e Cidadania na Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de Janeiro, em Porto Alegre (RS), é assegurada pela Constituição Federal que prevê a liberdade religiosa e adota um Estado laico.
A vice-diretora Anelise de Lima Lorenzoni, diz que há escolas que ainda não mudaram o seu regimento, mas, que na Escola Rio de Janeiro sempre foi trabalhada a diversidade religiosa. “O estado é laico. Então não temos como ensinar apenas uma religião em sala de aula. Ainda mais com o sincretismo que temos no Brasil. Nunca, na prática, os professores daqui privilegiaram o catolicismo. Nós falamos do judaísmo, do islamismo e explicamos a diferença em relação ao terrorismo”, revela.
Segundo a assessora técnica de Gênero e Sexualidade da Secretaria Estadual de Educação, Iris de Carvalho, uma vez que o ensino religioso é opcional, a escola deve oferecer atividades alternativas, mas que isto ainda será regulamentado. “Entendemos que é importante a abordagem da ética e da cidadania. Mas, como o governo está mudando a estrutura do ensino, ainda haverá mudanças dentro do currículo escolar”, afirma.
A proposta do governo estadual é uma formação mais completa dentro das Ciências Humanas, que trabalhe a transversalidade em diferentes áreas, como cultura, direitos humanos, entre outras. “O Ensino Religioso também será uma destas transversalidades, bem como as questões de Gênero e Sexualidade”, explica.
Para enfrentar o preconceito dos próprios educadores e prepará-los para trabalhar este temas, a Secretaria Estadual de Educação (SEC) está retomando espaços de formação de professores, conta Iris. “O professor tem que refletir sobre sua prática e suas próprias crenças. A escola tem que pensar estes temas como uma proposta pedagógica, como algo coletivo”, argumenta a assessora do Departamento Pedagógico da SEC. Ela informa que serão entregues aos educadores cadernos com orientações sobre diversidade sexual aos professores e há uma orientação da pasta para aquisição de livros didáticos que tratem da sexualidade e relações sociais.

Prostituição e omissão da verdadeira identidade


A carteira de identidade ainda é de Mário | Ramiro Furquim/Sul21

Apesar do caso da professora Marina Reidel não ser o único na rede pública estadual, alcançar uma formação profissional não é para a maioria das transexuais. Como coordenadora da Articulação Nacional de Travestis (Antra) na região Sul, Marina conta que 70% das travestis são analfabetas no Brasil. Entre os integrantes da sigla LGBTT, os representantes das letras tês são os que mais sofrem com a exclusão e preconceito. “A maioria, quando chega à adolescência, desiste da escola ou nem pensa em fazer faculdade”, diz Marina. “As pessoas olham para a gente e acham que não podemos estar num espaço constituído, como o de uma escola, acham que temos que estar na calçada”.
Marina atualmente dá aulas para as turmas da 5ª a 8ª séries do ensino fundamental, mas já alfabetizou crianças, adultos e pessoas da terceira idade. Ela é também mestranda em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em novembro do ano passado, recebeu da Global Alliance for LGBT Education o prêmio nacional “Educando para a Diversidade Sexual”.
Segundo Marina, outras transexuais ou travestis não deixam de ser profissionais do sexo por medo de encarar a sociedade ou se conformar com a exclusão do mercado de trabalho. “A vida inteira somos agredidas. Seja na escola ou na rua, por pessoas que nem conhecemos. Para eu poder me assumir entendi que primeiro eu deveria me constituir profissionalmente”, fala.
Só depois da aprovação no concurso público, com a graduação e a especialização é que ela se sentiu permitida a construir sua verdadeira identidade. “Eu sei que muitas se encorajam com a minha história. Isto me deixa feliz. Eu não quero que me amem, só quero ser respeitada. A  sexualidade é de cada um. Há uma confusão na sociedade sobre gênero e sexualidade. O que somos é diferente do que praticamos. O que te incomoda tanto em mim que pode interferir na tua vida?”, critica Marina sobre a homofobia.
“Eu estou mostrando que é possível”

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