segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Antanas Mockus propõe cultura cidadã para a transformação social


Ex-prefeito de Bogotá (Colômbia) adotou sua Doutrina da Cultura Cidadã e trouxe melhorias, como a queda dramática na taxa de homicídios | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

André Carvalho no SUL21

Além de ser a capital da Colômbia, Bogotá era conhecida pelos abusos do crime organizado, a pobreza e as práticas de corrupção. Para mudar esse cenário, Antanas Mockus organizou um sistema de segurança da comunidade, com 7 mil homens, que diminuiu em 70% o número de homicídios e em 50% as mortes no trânsito.
Matemático, filósofo e ex-prefeito de Bogotá por duas gestões (de 1995 a 1997 e de 2001 a 2004), Mockus ficou conhecido por suas ações políticas pouco comuns, praticadas na cidade colombiana. Dentre elas, a que ganhou maior destaque foi a que ele chamou de Doutrina da Cultura Cidadã. O ex-prefeito de Bogotá, adepto da bicicleta como meio de transporte, acredita que as regras não são estáticas, devem sempre ser atualizadas de acordo com o seu momento, e que é a partir desta tripla relação que se transforma uma sociedade e melhora as relações sociais.
Seu governo distribuiu cartões com polegares para cima e para baixo aos motoristas, usados para manifestar descontentamento em incidentes de trânsito. Outra medida foi contratar mímicos para ridicularizar pessoas que violavam as leis de tráfego. Parte da estratégia das políticas de Mockus era de melhorar a capacidade de expressão e de comunicação dos cidadãos.
Em meados da década de 1990, Bogotá, com uma população de 7 milhões de habitantes e uma taxa de 80 homicídios por 100 mil habitantes, foi considerada a cidade mais violenta da América Latina. Dez anos depois, esse índice caiu para 23 por 100 mil (queda de 71%), e a previsão para este ano é de 18 homicídios por 100 mil habitantes.
O Sul21 teve a oportunidade de conversar com Mockus em sua visita a Porto Alegre, para o 10º Congresso Mundial Metropolis. Abaixo, os melhores momentos da conversa.
“As pessoas não nascem cidadãs. Assim como as pessoas têm predisposição a falar, elas têm a predisposição de tornarem-se cidadãs ao longo do tempo”
"A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Em que consiste exatamente esta política de Cultura Cidadã?

Antanas Mockus: Em primeiro lugar, é importante compreender que uma pessoa não nasce falando. Entretanto, há uma predisposição, uma tendência para falar. O mesmo vale para cidadania. O sujeito não nasce cidadão, ele passa a ser cidadão ao longo do tempo. Quero dizer, inicialmente ele não tem consciência de seus direitos, muito menos capacidade de defendê-los. Porém, assim como as pessoas têm uma predisposição a falar, elas têm uma predisposição a descobrir seus direitos e deveres e com isso, tornarem-se cidadãs. A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade. A partir do cruzamento destes três pontos, a formação cidadã do sujeito se constrói dentro de seis aspectos: O primeiro, parte do princípio de uma norma moral. Por exemplo, se eu te digo: “não jogue esse papel no chão”, tu certamente já teria ouvido alguém te dizer isso, mas a questão não está no pedido mas sim na ação. O que acontece se todo mundo começar a jogar os seus papéis no chão? Acontecerá a universalização da conduta criticada. Quero dizer, as ruas ficariam sujas, a cidade feia. Se criaria um péssimo hábito cultural. Não seria algo positivo, nem pro ator da ação, nem para o todo. Mas como essa é uma ação que sabemos que não deve ser feita, as pessoas vão aprendendo a raciocinar moralmente. Porém, este raciocínio moral está intrínseco a lógica de que somos educados por nossos pais, o que nos leva ao segundo aspecto, onde a partir dessa educação, surgem os princípios do que é bom ou é ruim, o que é certo ou é errado. O terceiro aspecto refere-se aos critérios sociais de reciprocidade, que normalmente surge no sujeito ainda criança. “Olha, te emprestei meu brinquedo, me empresta o teu”. E as crianças acabam aprendendo isso com a vida e levam isso consigo. Quero dizer, se uma criança empresta um boneco para um amigo, ele sabe que na lei da reciprocidade, ele poderá pegar um carrinho do outro. A quarta etapa diz respeito ao sentido das regras, tanto locais, quanto universais, onde o sujeito as reconhece e a partir disso, busca defendê-las ou transformá-las, utilizando-se de argumentos. Entretanto, a defesa é mais comum do que a transformação, visto que tradicionalmente a sociedade tem um pensamento conservador e por isso, resistente a mudanças. Mas é claro, isso não é uma regra e as mudanças também ocorrem, vindo especialmente por parte dos jovens. E aí entra a quinta etapa, que diz respeito as regras impostas pela sociedade e através de um discurso racional os jovens tendem a questioná-las sua funcionalidade e legitimidade. A partir destes questionamentos buscam melhorá-las e/ou adaptá-las para o contexto atual. Por fim, a sexta etapa é levantada por princípios éticos discutido pelos direitos humanos universais. A partir destes seis aspectos que fazem a formação cidadã do sujeito, é possível afirmar que ele composto por questões legais, morais e culturais, que são os pilares da Cultura Cidadã.

Sul21: Mas o que é exatamente ser cidadão?

Antanas Mockus: Ser cidadão é obedecer harmonicamente as normas, nos âmbitos legal, moral e cultural de três maneiras. A primeira é aceitar as regras e sacrificar interesses, controlar impulsos. A segunda, é fazer valer as normas perante os outros, ou seja, é utilizar a norma a favor individual, auxiliando o próximo a se adequar a ela também. Então, já não sou mais eu quem atira os papeis no chão, mas sim, sou eu quem digo “olha, você não deve atirar papel no chão”. Por fim, a terceira e a mais contemporânea, é acreditar e defender que as normas criadas podem ser mudadas, renovadas. Quero dizer, elas existem, mas não são estáticas, eternas. Muitas regras que hoje são consideradas ultrapassadas, antigamente foram consideradas modernas e as que hoje são consideradas modernas, antigamente eram consideradas absurdas.

Sul21: É possível transformar o cidadão? Quero dizer, após anos vivendo de uma maneira, é possível mudar as suas normas legais, morais e culturais?

Antanas Mockus: Com certeza. A partir de uma educação das emoções. Se você olhar as regras de Lei, Moral e Cultura, verá que elas funcionam porque envolvem emoções, visto que segui-las, ou não, desperta emoções no sujeito. Por isso, formar a cidadania é formar emoções. Um exemplo claro disso é o seguinte: um sujeito não nasce temendo a cadeia. Não conhece, mas imagina, vê, ouve e lê coisas sobre a cadeia e a partir disso se forma uma ideia do quão terrível é. Ele molda a cadeia no seu imaginário, a partir destas informações adquiridas ao longo da vida, e com isso, cria-se o medo de ir para lá. Ou seja, o cidadão comum evitará ao máximo ir para cadeia, pois ele se move dentro da sociedade ancorado pela Lei, pela Moral e pela Cultura. A questão é: ele se move por medo ou admiração a lei? Por medo à culpa ou gratificação moral? Por medo ao rechaço ou reconhecimento social?
“Quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas”
Sul21: Então é possível ocorrer uma transformação das relações urbanas?

Antanas Mockus: Seguindo harmonicamente as normas destas três maneiras, a relação social entre as pessoas que convivem no mesmo lugar se altera. Isso é claro por exemplo, em Bogotá. Uma cidade com aproximadamente sete milhões de habitantes, e a partir da implantação desta cultura cidadã, as pessoas procuram cuidar de si e cuidar dos outros. A partir disso, quanto maior a autorregulação e a regulação social, menor será a necessidade de uma regulação legal. Digo, quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas.
"Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Anteriormente o senhor falou que as regras devem ser atualizadas, pois elas não são estáticas.

Antanas Mockus: Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível. E os argumentos usados naquela época sobre estes assuntos, são hoje, considerados antiquados. Só o fato de se discutir estas coisas atualmente, já demonstra um avanço legal, moral e cultural da sociedade e consequentemente, de seus cidadãos.

Sul21: Uma de suas ações como prefeito foi acabar com estacionamentos nas vias públicas, transformando-os em ciclovias. Esta ação foi bem vista pela sociedade?

Antanas Mockus: Sim, porém, as duas coisas aconteceram separadamente. Quero dizer, primeiro, queríamos acabar com a ocupação dos carros nas ruas, pois os índices de roubos de carro eram enormes. Posteriormente veio a ideia de transformar o espaço em ciclovias. Entretanto, num primeiro momento, as ciclovias foram instaladas em alguns pontos da região central da cidade, o que foi visto positivamente pela sociedade. Posteriormente, fizemos um mapa cicloviário para ampliar os pontos de trânsito para as bicicletas. Além disso, quando fizemos as ciclovias, a ideia era usá-la para passeios, mas acabou virando um espaço de locomoção para estudantes e trabalhadores.
“Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição”
Sul21: Quais foram as consequências disso?

Antanas Mockus: Isso nos fez ver algo que a cidade pedia, mas ninguém estava dando a atenção merecida. Quero dizer, a partir da construção das ciclovias, passamos a ver a bicicleta de uma perspectiva de um transporte do cotidiano. Hoje em Bogotá, estima-se que mais de um milhão de pessoas tenha bicicletas. Além disso, tivemos uma redução de 50% no acidentes de trânsito. Historicamente a cidade estava pensada para o conforto dos carros. Bogotá é uma cidade muito quente, e os escritórios, os órgãos públicos, não possuem banheiros com chuveiros ou instalações adequadas para um funcionário que queira ir trabalhar de bicicleta. Esse é um exemplo. Por outro lado, aquele preconceito conservador que existia pouco a pouco foi deixando de existir, pois as pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro. É tudo uma questão de posicionamento cultural.
"As pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Ou seja, houve uma transformação efetiva da sociedade.

Antanas Mockus: Com certeza. Há 20 anos atrás, quando eu era reitor da Universidade de Bogotá fui conhecido no país por ser alguém que andava de bicicleta. Porém, naquele tempo algumas pessoas achavam um absurdo uma pessoa que tinha um cargo como eu ficar pedalando por aí. Mas isso me aproximava da cidade, me fazia ver a realidade cotidiana. Além disso, era uma excelente forma de me exercitar. Agora, para se ter uma ideia, Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição. E isso não sou eu quem falo, fizemos uma consulta popular e o uso das bicicletas foi aprovado quase que integralmente pela sociedade. Outro ponto positivo a respeito das ciclovias esta no fato de que uma quantidade de jovens se dispõem diariamente a ajudar aqueles que não sabem andar de bicicletas e fiscalizam aqueles que tem alguma conduta ilegal, como andar nas calçadas, ou não observam os sinais. Quero dizer, não precisamos de um fiscal de trânsito para os ciclistas, pois eles mesmos já fazem esse trabalho. Isso é a prática da cultura cidadã.

Sul21: Algum outro exemplo desta prática?

Antanas Mockus: No trânsito mesmo, as pessoas que andam de carro possuem dois cartões, um com um desenho de uma mão com um polegar pra cima e outro com um polegar para baixo. Se um motorista comete uma infração, como parar na faixa de pedestres, ou andar na contramão, por exemplo, os demais lhes mostram os cartões. Isso é uma política de psicologia social. Todos acabam cuidando. Além disso, eu coloquei mímicos nas ruas para fazer ironias com àqueles que não cumprem a lei de trânsito. Ao invés deles serem multados e penalizados, eles são “constrangidos” publicamente pela ação. Como o motorista ironizado também tem a responsabilidade de cuidar, ele acaba repensando na atitude, ao invés de ficar enraivado por ser multado.

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