A mídia cartelista
por Túlio Muniz, via e-mail, noVIOMUNDO– Manchete na edição on-line do diário “i”: Passos Coelho sugere que professores desempregados emigrem para o Brasil e para Angola.
– Manchete na edição on-line do “Público”: Passos Coelho sugere a emigração a professores desempregados.
– Manchetes na edição on-line do “Diário de Notícias”: “Seguro chocado com declarações de Passos sobre professores” e “Líder da FENPROF aconselha Passos Coelho a emigrar”.
Fugir “a salto” era, no Portugal da ditadura fascista, migrar para França “pulando” a Espanha. Eis que o primeiro ministro da direita portuguesa, Passos Coelho (um político estreante e inábil) reifica a modalidade: se não se pode solucionar a Educação, livra-te dela, ainda que a custa da inteligência de um país.
Os links acima são exemplos da crueldade acerca do que é a genuína direita européia, que mergulha o continente numa era de incertezas e exploração capitalista poucas vezes vistas na História. Acentua-se a gravidade em contextos como os de Portugal, país com uma das maiores defasagens de escolaridade entre seus habitantes (quase 20% não completaram nível algum). A refletir e acompanhar.
Entretanto, uso do delicado acontecimento para remeter ao que abunda na Europa e claudica por cá. Portugal, em que pese a crise econômica e social que atravessa, nos lega uma lição primorosa de jornalismo, essa invenção fantástica do século XIX, na definição Foucault.
Nenhuma das manchetes acima foi gerada por matéria de um dos grandes jornais de Portugal citados no início deste texto, mas pelo “Correio da Manhã”, uma espécie de “O Dia” lusitano. Diferente do que cá ocorre, a imprensa portuguesa não deixa de repercutir um assunto que é de interesse público, ainda que o mote seja o de um concorrente. O mesmo se dá nas redes de TV, nas emissoras de rádio, mesmo que o assunto contrarie este ou aquele interesse privado. Afinal, eis a justificativa da existência do jornalismo, a difusão e o amplo debate público de determinada questão.
No Brasil, há uma interdição ao debate e a citação de um concorrente pelo outro, com exceção poucos de veículos de alcance nacional, como a revista Carta Capital ou a TV Record, raridade replicante nas mídias locais e regionais (em Fortaleza, “O Povo” eventualmente cita e repercute seu principal concorrente, o “Diário do Nordeste”/Globo, mas a recíproca inexiste). Ironia: a rede Recod, de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus é hoje o melhor e mais ético jornalismo televisivo do País, no âmbito das empresas privadas.
Contudo, a não-citação da concorrência, longe de ser uma questão de disputa de mercado, revela-se como estratégia cartelista de poder. “Cartel”, termo oriundo da economia que significa “acordo explícito ou implícito entre concorrentes para, principalmente, fixação de preços ou quotas de produção, divisão de clientes e de mercados de atuação. O objetivo é, por meio da ação coordenada entre concorrentes, eliminar a concorrência, com o conseqüente aumento de preços e redução de bem-estar para o consumidor” (a definição é do próprio Ministério da Justiça, http://portal.mj.gov.br/sde).
Fora do foco das redes e TV e dos jornalões, o lançamento e consequente repercussão do livro “A Privataria Tucana” do jornalista Amaury Ribeiro Jr , provavelmente, o maior fenômeno editoral do século (80 mil exemplares tirados e praticamente vendidos em uma semana), é também símbolo da importância de veículos credíveis de imprensa (Carta e Record).
Sobretudo, é prova da irreversível penetração da internet na sociedade, legando ao vexame público jornais e jornalistas ávidos por escândalos, desde que não contrariem aos interesses de seus patrões e/ou de patrocinadores de iniciativas e de suas publicações e projetos pessoais.
A imprensa européia não é imune de controle por parte do mercado, mas não zomba da inteligência do público, tampouco prescinde da presença de intelectuais em suas páginas, diariamente e não a conta gotas semanais, prescrição comum no Brasil (mesmo em certo jornalismo universitário), cuja imprensa é inimiga do pensamento.
“Privataria” e sua desconsideração evidenciam a estratégia orquestrada de poder dos grupos privados de comunicação de massa. O silêncio para com o “concorrente” (aspas, pois aqui não se trata de concorrência e sim de aliado cartelista) ocorre para não promover ao hipotético adversário de mercado, mas para também, e sobretudo, legitimar o próprio silêncio em torno de assunto que contrarie aos interesses do cartel (não confundir com “máfia”, apesar das semelhanças).
Grosseiramente invisibilizado pela mídia convencional, “Privataria” demonstra como o cartel foi assimilado pela grande (?) mídia nacional não só em termos de disputa mercado, mas também de negação de um imaginário já consolidado entre a população, que lhe presta assistência e audiência, mas não mais se deixa guiar acriticamente como há duas décadas.
Lembremos da reeleição de Lula em 2006: sob massacre e bombardeio da mídia cartelista, ele não só venceu o segundo turno como seu adversário (Alckmin) teve menos votos que obtivera no primeiro.
Portanto, o caso de “Privataria” não é o primeiro. Será o último?
Túlio Muniz, jornalista, historiador, doutor pela Universidade de Coimbra (Portugal) e professor (temporário) da Universidade Federal do Ceará.
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