terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Domenico Losurdo: “Liquidar o monopólio ocidental da tecnologia”


Em entrevista a Tian Shigang, da revista "Chinese Social Sciences Today" (CSST), o intelectual marxista Domenico Losurdo explica suas teses mais recentes e defende o legado das revoluções na Rússia e na China. Segundo o autor italiano, “a luta de emancipação dos povos em condições coloniais e semicoloniais não acaba com a conquista da independência política.” Ele também aponta quatro grandes contribuições do pensador italiano Antônio Gramsci à teoria marxista e mostra por que “liquidar o monopólio ocidental da tecnologia é também luta revolucionária”.
 
Chinese Social Sciences Today: Em 2005, foi publicado o seu livro “Fuga da História? — A Revolução Russa a Revolução Chinesa Vistas Hoje”. O que o levou a escrevê-lo?
 
Domenico Losurdo: A primeira edição do livro foi publicada em 1999. Era o momento em que o fim da Guerra Fria era interpretado como o fracasso irremediável de toda tentativa de construir uma sociedade socialista, como o triunfo definitivo do capitalismo e inclusive com o “fim da história”.
No Ocidente, este modo de ver as coisas fazia mossa na própria esquerda: até os comunistas — ainda que declarassem querer permanecer fieis aos ideais do socialismo — na linha seguinte acrescentavam que não tinham nada a ver com a história da União Soviética nem com a história da China onde, diziam, se havia verificado a “restauração do capitalismo”. Para me opor a esta “fuga à história”, propus-me explicar a história do movimento comunista desde a Rússia da Revolução de Outubro até a China surgida das reformas de Deng Xiaoping.
 
CSST: No se entender, por quais motivos a União Soviética se desmembrou?
 
Losurdo: Em 1947, quando enuncia a política da contenção, seu teórico, George F. Kennan, explica que é preciso “aumentar enormemente as tensões (strains) que a política soviética tem de suportar”, a fim de “promover tendências que acabem por quebrar ou abrandar o poder soviético”. Nos nossos dias, não é muito diferente a política dos Estados Unidos para com a China, ainda que enquanto isso a China haja acumulado uma grande experiência política.
Para além da contenção, o que determinou a derrocada da União Soviética foram as suas graves debilidades internas. Convém refletir sobre a célebre tese de Lênin: “Não há revolução sem teoria revolucionária”. O partido bolchevique, sem dúvida, tinha uma teoria para a conquista do poder, mas, se por revolução se entender não só a destruição da velha ordem como também a construção da nova, os bolcheviques e o movimento comunista careciam substancialmente de uma teoria revolucionária.
Portanto, não se pode considerar que uma teoria da sociedade pós-capitalista por construir se reduza à espera messiânica de um mundo no qual hajam desaparecido por completo os Estados, as nações, o mercado, o dinheiro, etc. O PCUS cometeu o grave erro de não fazer nenhum esforço para preencher esta lacuna.
 
CSST: No seu entender, que caráter e que significado tem a Revolução Chinesa?
 
Losurdo: No princípio do século 20, a China fazia parte do mundo colonial e semicolonial — estava submetida ao colonialismo e ao imperialismo. Um marco histórico foi a Revolução de Outubro, que desencadeou e impulsionou uma onda anticolonialista de dimensões planetárias.
A seguir, o fascismo e o nazismo foram a tentativa de revitalizar a tradição colonial. Em particular, a guerra desencadeada pelo imperialismo hitleriano e o imperialismo japonês, respectivamente, contra a União Soviética e contra a China, foram as maiores guerras coloniais da história.
De modo que Stalingrado na União Soviética e a Longa Marcha e a guerra de resistência contra o Japão na China foram duas grandiosas lutas de classe, as que impediram que o imperialismo mais bárbaro efetuasse uma divisão de trabalho baseada na redução de grandes povos a uma massa de escravos ao serviço das supostas raças dos senhores.
Mas a luta de emancipação dos povos em condições coloniais e semicoloniais não acaba com a conquista da independência política.
Já em 1949, a ponto de conquistar o poder, Mao Zedong havia insistido na importância da edificação econômica. Washington quer que a China se “reduza a viver da farinha estadunidense”, com o que “acabaria por ser uma colônia estadunidense”. Ou seja, sem a vitória na luta pela produção agrícola e industrial, a vitória militar acabaria por ser frágil e vazia. De certo modo, Mao havia previsto a passagem da fase militar à fase econômica da revolução anticolonialista e anti-imperialista.
O que acontece nos nossos dias? Os Estados Unidos estão transferindo para a Ásia o grosso do seu dispositivo militar. Em despacho da agência Reuters de 28 de outubro de 2011, pode-se ler que uma das acusações de Washington aos dirigentes de Pequim é que fomentam ou impõem a transferência de tecnologia ocidental para a China.
Está claro: os Estados Unidos pretendem conservar o monopólio da tecnologia para continuar a exercer a hegemonia e inclusive um domínio neocolonial indireto. Por outras palavras, ainda nos nossos dias a luta contra o hegemonismo coloca-se também no plano do desenvolvimento econômico e tecnológico. É um aspecto que, lamentavelmente, a esquerda ocidental nem sempre consegue entender.
Há que sublinhá-lo com força: revolucionária não é só a longa luta com que o povo chinês pôs fim ao século das humilhações e fundou a República Popular; revolucionária não é só a edificação econômica e social com que o Partido Comunista Chinês livrou da fome centenas de milhões de homens; também a luta para romper o monopólio imperialista da tecnologia é uma luta revolucionária. Foi-nos ensinado por Marx.
Sim, ele nos ensinou que a luta para superar, no âmbito da família, a divisão patriarcal do trabalho já é uma luta revolucionária; seria muito estranho que não fosse uma luta de emancipação a luta para acabar à escala internacional com a divisão do trabalho imposta pelo capitalismo e o imperialismo, a luta par liquidar definitivamente esse monopólio ocidental da tecnologia, que não é um dado natural — e, sim, o resultado de séculos de domínio e opressão!
 
CSST: Em 2005 foi publicado o seu livro “Contra-história do Liberalismo”, que alcançou um grande êxito (num ano, foi reeditado três vezes e a seguir traduzido em vários idiomas). O que significa esse título?
 
Losurdo: O meu livro não desconhece os méritos do liberalismo, que põe em evidência o papel do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e sublinha a necessidade de limitar o poder (ainda que só a favor de uma reduzida comunidade de privilegiados).
“Contra-história do Liberalismo” polemiza com a autoglorificação e a visão apologética dos que se entregam ao liberalismo e ao Ocidente liberal. É uma tradição de pensamento em cujo âmbito a exaltação da liberdade vai junto com terríveis cláusula de exclusão em prejuízo das classes trabalhadoras e, sobretudo, dos povos colonizados.
John Locke, pai do liberalismo, legitima a escravidão nas colônias e é acionista da Royal African Company, a empresa inglesa que gere o tráfico e o comércio dos escravos negros. Mas, para além das personalidades individuais, o importante é o papel dos países que melhor encarnam a tradição liberal. Um dos primeiros atos de política internacional da Inglaterra liberal, nascida da Revolução Gloriosa de 1688-1689, é assumir o monopólio do tráfico de escravos negros.
Mais importante ainda é o papel da escravidão na história dos Estados Unidos. Durante 32 dos primeiros 36 anos de vida dos Estados Unidos, a presidência do país foi ocupada por proprietários de escravos. E isso não é tudo. Durante várias décadas, o país dedicou-se a exportar a escravidão com o mesmo zelo com que hoje pretende exportar a “democracia”: em meados do século 19 reintroduziram a escravidão no Texas, recém-arrebatado ao México através de uma guerra.
É verdade que primeiro a Inglaterra e a seguir os Estados Unidos viram-se obrigados a abolir a escravidão, mas o lugar dos escravos negros foi ocupado pelos cules chineses e índios, submetidos a uma forma apenas dissimulada de escravidão. Além disso, depois da abolição formal da escravidão, os afro-americanos continuaram a sofrer uma opressão tão feroz que um eminente historiador estadunidense, George M. Fredrickson, escreveu: “Os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ no Sul dos Estados Unidos preludiavam alguns aspectos da perseguição desencadeada pelo regime nazi contra os judeus nos anos 30 do século 20”.
Quando começa a enfraquecer nos Estados Unidos o regime de supremacia branca, de opressão e discriminação racial, sobretudo contra os negros? Em dezembro de 1952, o ministro estadunidense da Justiça envia ao Tribunal Supremo, em plena discussão sobre a integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista e também semeia dúvidas nos países amigos acerca da nossa devoção à fé democrática”.
Washington — observa o historiador estadunidense que reconstrói este episódio (C. Vann Woodward) — corria o risco de alienar o favor das “raças de cor” não só no Oriente e no Terceiro Mundo como também no seu próprio país. Só então o Tribunal Supremo decidiu declarar inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas.
Há um paradoxo na história. Hoje Washington não se cansa de acusar a falta de democracia na China; mas convém assinalar um elemento essencial da democracia: a superação da discriminação racial só foi possível nos Estados Unidos graças ao repto representado pelo movimento anticolonialista mundial, de que a China fazia e faz parte.
 
CSST: No meu entender, entre as muitas edições italianas do “Manifesto do Partido Comunista” há três que se destacam: a de Antonio Labriola, a de Palmiro Togliatti e a sua de 1999. Na sua opinião, que significado tem esta obra fundamental de Marx e Engels para os marxistas de hoje?
 
Losurdo: Na introdução da edição italiana do “Manifesto do Partido Comunista”, tentei reconstruir o século e meio de história transcorrido desde a publicação em 1848 deste texto extraordinário. Uma confrontação pode nos ajudar a entender o seu significado.
Oito anos antes, outra grande personalidade da Europa do século 19, Alexis de Tocqueville, publica o segundo livro da “Democracia na América” e, num capítulo central, afirma já no título que “as grandes revoluções serão cada vez menos frequentes”. Mas, se nos fixarmos no século e meio posterior ao ano (1840) em que o liberal francês faz esta afirmação, vemos que se trata do período talvez mais abundante em revoluções da história universal.
Não há dúvida: ao prever a rebelião contra o capitalismo — contra um sistema que implica a “transformação em máquina” dos proletários e a sua degradação em “instrumentos de trabalho”, em “acessórios da máquina”, um apêndice “dependente e impessoal” do capital “independente e pessoal” —, ao prever tudo isto, o “Manifesto do Partido Comunista” soube olhar mais longe.
Quando descrevem com extraordinária lucidez e clarividência o que hoje chamamos globalização, Marx e Engels sabem bem que se trata de um processo contraditório, caracterizado (no âmbito do capitalismo) por crises colossais de superprodução que provocam a destruição de enormes quantidades de riqueza social e a miséria de massas ingentes de homens e mulheres. Além disso, é um processo eriçado de conflitos que podem desembocar, inclusive, numa “guerra industrial de aniquilação entre as nações”. O que nos leva a pensar na 1ª Guerra Mundial.
Contra todo este mundo, o “Manifesto do Partido Comunista” evoca tanto as revoluções proletárias como as “revoluções agrárias” e de “libertação nacional”. De modo que Marx e Engels se anteciparam a um cenário que se verificará no 3º Mundo, como por exemplo na China.
A propósito da China pode-se fazer uma última consideração. O “Manifesto do Partido Comunista” prevê a aparição de uma economia globalizada caracterizada por “indústrias novas, cuja introdução passa a ser uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não elaboram matérias-primas locais e, sim, matérias-primas procedentes das regiões mais remotas e cujos produtos consomem-se não só no interior do país como também em todas as partes do mundo”.
Portanto, ainda que centre o olhar sobre a Europa, o texto de Marx e Engels acaba por dar indicações muito valiosas para os países do 3º Mundo que querem alcançar um desenvolvimento econômico independente.
 
CSST: Quais são, no seu entender, as contribuições de Antonio Gramsci à teoria marxista?
 
Losurdo: Creio que as contribuições da obra deste grande pensador foram pelo menos quatro:
1) Gramsci evidenciou a importância da “hegemonia” para a conquista e conservação do poder político. Num texto de 1926, ele explica: o proletariado só dá mostras de possuir uma consciência de classe madura quando se eleva a uma visão da sua classe de pertencimento como núcleo dirigente de um bloco social muito mais amplo, chamado a conduzir a revolução à vitória.
2) Em segundo lugar, Gramsci mostra-se plenamente consciente da complexidade que implica o processo de construção do socialismo. A princípio, será “o coletivismo da miséria, do sofrimento”. Mas não pode ficar nisso, tem de enfrentar o desenvolvimento das forças produtivas. É nesse âmbito que deve ser situada a importante tomada de posição de Gramsci a propósito da NEP (a Nova Política Econômica introduzida após o “comunismo de guerra”).
A realidade da União Soviética daquele momento coloca-nos na presença de um fenômeno “nunca visto na história”: uma classe politicamente “dominante” encontra-se “globalmente em condições de vida inferiores às de certos elementos da classe dominada e submetida”. As massas populares, que continuam a padecer uma vida de privações, estão desorientadas diante do espetáculo do “nepman” [o homem da NEP] afundado no seu casaco de peles, que tem à sua disposição todos os bens da terra”.
Mas isto não deve ser motivo de escândalo ou repulsa, pois o proletariado, o mesmo que não pode conquistar o poder, tampouco pode mantê-lo se for incapaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos “interesses gerais e permanentes da classe”. Trata-se, naturalmente, de uma situação transitória. O que Gramsci sugere aqui pode ser útil à esquerda ocidental para compreender a realidade de um país como a China atual.
3) Gramsci dá-nos algumas indicações valiosas sobre outro aspecto. Devemos imaginar o comunismo como a dissipação total não só dos antagonismos de classe — mas também como do Estado e do poder político, assim como das religiões, das nações, da divisão do trabalho, do mercado, de qualquer fonte possível de conflito? Questionando o mito da extinção do Estado e da sua dissolução na sociedade civil, Gramsci assinala que a própria sociedade civil é uma forma de Estado.
Também destaca que o internacionalismo não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades nacionais, que subsistirão muito depois da queda do capitalismo. Quando ao mercado, Gramsci considera que conviria falar de “mercado determinado”, em vez de mercado em abstrato. Gramsci ajuda-nos a superar o messianismo, que dificulta gravemente a construção da sociedade pós-capitalista.
4) Finalmente, ainda que condenem o capitalismo, as “Cartas do Cárcere” evitam interpretar a história moderna e as revoluções burguesa como um tratado de “teratologia” — ou seja, um tratado que se ocupa de monstros. Os comunistas devem criticar os erros, por vezes graves, de Stáline, Mao e outros dirigentes, sem reduzir nunca esses capítulos da história do movimento comunista a uma “teratologia”, uma história de monstros.

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