segunda-feira, 5 de março de 2012

Honduras é laboratório dos EUA para novas fórmulas de ditaduras

Escrito por Gabriel Brito, da Redação do CORREIO DA CIDADANIA  




Sob pressão das oligarquias locais, com a bênção da igreja e o impulso derradeiro oferecido pelo Poder Judiciário, o Exército hondurenho desalojou seu presidente Manuel Zelaya, ainda de pijamas, na manhã do dia 26 de junho de 2009, deportando-o imediatamente para a Costa Rica. Depois, o homem que jamais voltaria ao cargo conseguiu retornar clandestinamente ao país, alojando-se por cerca de dois meses na embaixada brasileira em Tegucigalpa. Essa é a parte célebre de toda a história que se segue.

Diante do conluio que se pretendia ‘legalista’ e a serviço da ‘ordem constitucional’, sem o uso dos tradicionais expedientes que marcaram inúmeros golpes militares, a grande mídia internacional, sempre obediente aos movimentos da Casa Branca, tentou dissimular, tratando friamente o assunto em seu início, tentando diferenciá-lo de outras quarteladas.

No entanto, a inequívoca reação popular de apoio a Zelaya, com milhões de pessoas saindo às ruas e sendo duramente reprimidas, com algumas centenas de mortes causadas pelas forças policiais, deixou claro a todo o planeta que estávamos testemunhando mais um triste golpe de Estado em uma sofrida república centro-americana, historicamente dominada em sua política pelos interesses do norte.
“O que aconteceu em Honduras foi uma nova fórmula de golpismo, que tentava ser silencioso e supostamente legal, mas que conforma o que chamo de ‘ditadura moderna’, isto é, com respaldo judicial e uma forte omissão das informações sobre o que realmente acontece no território”, conta o jornalista Ronnie Huete Salgado, que pela segunda vez se refugiou no Brasil, desta vez com pedido de asilo político já encaminhado em nossa Polícia Federal.

Membro da tradicional Frente Morazánica de Libertação Nacional, cujo nome alude ao herói da integração centro-americana Francisco Morazán (que chegou a presidir a breve República Federal das Províncias Unidas da América Central, tido por muitos como o Simon Bolívar da região), Ronnie tem trajetória de militância na esquerda local e sempre aliou sua profissão à luta por um país mais justo e igualitário, sendo contumaz colaborador do que se chama de mídia alternativa, inclusive para meios estrangeiros.

Uma inequívoca ditadura

“A primeira vez que vim ao Brasil foi em 2010, quando, junto de outros colegas, começamos a receber ameaças dos golpistas, com mensagens no celular nos alertando de que estávamos falando demais. Fiquei uns dois meses em Florianópolis e voltei, pensando que as coisas tinham melhorado. Mas era um engano, em pouco tempo voltei a receber ameaças, pelo mesmo meio, e antes que fosse seqüestrado ou coisa pior, como vi ocorrer com alguns, voltei pra cá. Fiquei uma semana num alojamento do MST em Jacareí e agora estou em São Paulo, com pedido de asilo político já protocolado”, conta.

Sua situação é ilustrativa o bastante para que se compreenda que Honduras vive uma ditadura, sem nenhuma legitimidade e voltada aos interesses que sempre fizeram deste país superior apenas ao Haiti nos índices de desenvolvimento humano, econômico e social no continente. A despeito das eleições de 2010, boicotadas pela grande maioria da população, e do rápido retorno à OEA (Organização dos Estados Americanos), permitido pelos demais países do continente, “o país vive uma ditadura militar como aquelas que vimos no passado”, atesta.

Assassinada em dezembro por razões evidentemente políticas, a jornalista Luz Marina Paz, diretora do programa ‘Tres en La Noticia’, foi a 17ª profissional da área a perder a vida após denunciar as inumeráveis violações de direitos humanos e a corrupção do regime comandado por Roberto Micheletti e, depois, por Porfirio Lobo Sosa, o presidente eleito por menos de 15% dos eleitores no início de 2010.

Antes que pudesse engrossar tal lista, Ronnie decidiu abandonar definitivamente seu solo pátrio, chegando a São Paulo pouco antes do final de 2011. Como era de se esperar, a Sociedade Interamericana de Imprensa, sediada em Miami e agregadora dos principais, e mais conservadores, meios de comunicação do continente, só sabe silenciar sobre os delitos da ditadura hondurenha, ao passo que continua listando “violações” à liberdade de imprensa em países desafetos ou divergentes dos EUA, ou ainda governados por quem a oligarquia local não elegeu. Enquanto jornalistas são massacrados e perseguidos diuturnamente na paupérrima Honduras, a SIP se ocupa de denunciar “problemas” no exercício jornalístico em Cuba, Venezuela, Equador, Argentina, em pedaços não tucanizados do Brasil...

Como forma de tentar angariar algum prestígio diante da população, o governo local, em expediente realmente aplicado em diversos países por ordem dos EUA, bate na tecla do combate ao narcotráfico, praticamente a única via que justificaria tanta repressão e policiamento nas ruas. “Mas no que eles estão de olho mesmo é na movimentação política, reuniões, articulações. Não se pode fazer uma reunião com celulares ligados. Lá, eu precisava trocar o número do celular a cada duas semanas, tirar o chip do aparelho no momento das reuniões, pois o rastreamento e a espionagem são incessantes e acontecem mesmo”.

Muitos interesses em jogo

“Apesar de se dizer que a motivação do golpe foi política, por conta das aproximações de Zelaya com países na mira dos EUA e a filiação de Honduras à ALBA, fundada por Hugo Chávez, as principais razões desse golpe são as riquezas naturais. É o petróleo, novamente, que está por trás desse movimento”, explica, dando uma versão pouco difundida a respeito da derrubada do presidente eleito em 2006.

Como podemos lembrar, Zelaya havia convocado uma consulta popular a fim de debater possíveis mudanças na constituição do país, assolado por enorme desigualdade social, bolsões de miséria e uma longa história de ‘quintal’ estadunidense, tal como outros países vizinhos, sempre atormentados pelas movimentações escusas e silenciosas patrocinadas pela potência ainda dominante.

Diante da grande, praticamente certeira, possibilidade de o povo se mobilizar e aprovar prontamente a elaboração de uma nova constituição, mais democrática que a anterior e inspirada em processos vividos por países como Bolívia e Equador, a oligarquia hondurenha logo articulou um golpe ‘dentro das regras’, como se tentou alegar nos primeiros dias.

“Não existe o menor rastro de democracia no país, o clima é de tensão permanente, a Frente Nacional de Resistência Popular continua tendo vários de seus militantes ameaçados, seqüestrados, mortos. A Conadeh (Comissão Nacional de Direitos Humanos) tem seus trabalhos sempre obstruídos, sem muitas garantias. A universidade também está toda militarizada, infiltrada até por agentes com experiência na guerra fria. Enfim, é uma ditadura em pleno vigor”, descreve o jornalista.

Ainda que nos primeiros dias Barack Obama, os EUA, OEA, União Européia tenham condenado a quartelada, logo foi possível notar a conduta dissimulada das principais potências, que tentavam manter uma aparência constitucionalista à situação hondurenha e ensaiaram alguns boicotes internacionais. O país chegou, inclusive, a ser afastado temporariamente da OEA.

“Apesar de certa reprovação internacional, as coisas foram voltando ao normal. Por pressões empresariais, Honduras logo voltou à OEA e o golpe foi se consolidando. Mas Honduras não poderia retornar a este organismo, o que temos lá é uma ditadura total, e isso não mudou desde então”, reitera.

Além do mais, devemos recordar que, após o golpe, apesar das declarações em favor da ordem constitucional presidida por Zelaya, os EUA logo reativaram sua antiga base militar de Palmerola, local onde se treinaram milhares de agentes golpistas em tempos de guerra fria, preparando as milícias dos chamados “contras”, que foram lutar na Nicarágua, El Salvador e também Honduras em nome das sangrentas ditaduras que marcaram a década de 80 dessas sofridas nações, aniquilando, por exemplo, a Revolução Sandinista.

“Os EUA se declararam contra o golpe, mas logo depois reativaram a base militar de Palmerola. Isso oficialmente, porque na verdade eles controlam oito bases no país. A diferença é que as demais levam nomes de figuras históricas de Honduras e são aparentemente ‘nacionais’. Mas o controle e influência também são estadunidenses”, acrescenta.

Diante desse ainda mal interpretado golpe de Estado em era de globalização, de suposta consolidação dos ideais de democracia pregados pelo Ocidente, Ronnie Salgado joga o raciocínio mais adiante, e afirma estarmos diante de um laboratório da CIA em seu país. “Eles querem testar esse tipo de golpismo, mais silencioso, com ajuda judicial e midiática, e ver aonde mais é possível levá-lo adiante. Honduras era um bom cenário para esse teste por ter um povo menos organizado e mobilizado”.

No entanto, como todo autêntico lutador popular, consegue enxergar luzes de esperança para os tempos vindouros. “Após o golpe muitos bairros populares e uma grande parte da população passaram a discutir política, se interessar em saber das coisas. Antes existia muita passividade, você tentava falar de política e quase ninguém se interessava. Hoje, se você estiver distribuindo panfletos políticos, eles acabam em poucos instantes. Portanto, existe esse ‘lado bom’, que temos de saber aproveitar para manter o povo mobilizado contra uma ditadura que todos os hondurenhos sabem ser inaceitável”.

Um sinistro porvir?

Ainda que Honduras esteja experimentando uma época de grande politização popular, não se pode negar, muito menos esquecer, a força da repressão oficial patrocinada, já de forma mais escancarada novamente, pela maior potência militar já produzida pela humanidade.

Como o mundo inteiro viu e permanece chocado, um trágico incêndio tomou conta da prisão de Comayagua, na madrugada do último dia 15 de fevereiro, acabando com a vida de ao menos 356 detentos em cenas de horror que abalarão o país por um bom tempo. Descrita por meio das imagens mais infernais que se possam imaginar, as centenas das mortes, extremamente dolorosas e arrepiantes, já fazem parte da triste história de opressão e castigo eterno aos pobres da América Latina.

Afastado de sua terra, Ronnie não consegue precisar exatamente o que estaria à espreita de Honduras e conseqüentemente do continente. Ligando os pontos, acredita “se tratar de algo maior, em escala continental, como forma de manter e renovar o domínio estadunidense na região. Nós sabemos também que existem, por exemplo, paramilitares colombianos envolvidos nos crimes contra nosso povo, em nome da ditadura”.

“Eu não consigo imaginar até onde isso vai. É muito estranho. Na segunda-feira, um alto comandante das forças armadas se suicidou, ainda sem motivos aparentes, um fato por si só bastante estranho de se ocorrer em altos escalões do exército. No dia seguinte, esse incêndio que matou centenas de pessoas. Eu pressinto que algo ainda está para acontecer no país”.

Ronnie refere-se ao coronel de artilharia René Javier Palao Torres, encontrado morto na segunda-feira, 13 de fevereiro, com um tiro na própria testa. Será difícil descortinar o que levou a esse inusitado suicídio e às possíveis tramas do governo hondurenho. Ainda mais em um país onde exercer o jornalismo pode custar a vida, tal como lhes ocorreu a 17 profissionais desde que Roberto Micheletti e seu sucessor Porfírio Lobo retomaram o poder hondurenho para as mãos da oligarquia, a igreja e o latifúndio locais, sob a indisfarçável aprovação do irmão gigante logo acima.

“Honduras é um país falido, ninguém quer investir lá e esse incêndio ilustra bem nossa era pós-golpe. Eu achava que algo estava se tramando para mais adiante. Porém, agora penso se não estão criando um fato de proporção internacional para distrair a opinião pública, e com isso aprovarem desde já políticas que intensifiquem a ditadura”.

De acordo com a descrição de Ronnie, trata-se de conhecido roteiro que muito interessa aos EUA e sua política externa militarista, dependente do ‘mercado da guerra’ para sustentar sua própria economia interna. “Já temos uma lei de escutas (que permite às forças policiais grampear qualquer cidadão, sem ordem judicial prévia). Agora, existe uma movimentação no sentido de criar leis de interesse do mercado de segurança privada, e a tragédia serve para criar um clima favorável à aprovação dessas leis, mais investimentos em segurança e compra de muitas armas, além de licença para empresas do setor de outros países irem pra lá”.

Assim, devemos atentar seriamente para o alerta oferecido pelo jornalista exilado e acompanhar as próximas movimentações geopolíticas no continente, como, por exemplo, o recente aumento do número de bases estadunidenses, a retomada da dura querela do arquipélago das Malvinas, o Acordo de Associação Trans-Pacífico e... a reativação da IV Frota Naval, exatamente na região do pré-sal brasileiro. E não hesitar em dizer que há uma sanguinária ditadura militar em Honduras.


Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

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