domingo, 30 de dezembro de 2012

A extinta União Soviética completa 90 anos. Tal país, qual arte?


Nicolau II em 1898: um país de grande literatura, mas em convulsão

Milton Ribeiro no SUL21

A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.
No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.
Os trabalhadores foram recebidos pela artilharia, sem diálogo

Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.
Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.
Lênin trabalhando no Kremlin, em 1918

A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).
Canibais com suas vítimas, na província de Samara, em 1921.

O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).
Vitorioso, Lênin criou o NEP, um plano econômico que visava reerguer a produtividade nacional e normalizar a economia. Em 1922, diversas repúblicas asiáticas e europeias agregaram-se à Rússia, originando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Mortos de fome no Volga

Não era, evidentemente, o ambiente ideal para a criação de um estado democrático aos moldes da eterna receita dos EUA. O país vinha de uma guerra civil, tinha oposição interna e externa, havia outros regimes fortes quilômetros depois das fronteiras, um histórico recente de conflitos, grande parte da população era saudosa de seu paizinho (o czar) e, fundamental e principalmente, não tinha nenhuma tradição democrática. Aliás, não tem até hoje, mesmo sob o governo eleito de Putin.
Depois desta época, a história é mais conhecida. Lênin morreu em 1924 e seu lugar foi ocupado por Stálin de 1927 a 1953. Com mão de ferro e utilizando-se dos gulags e de expurgos a fim de aniquilar seus opositores dentro e fora do Partido Comunista, Stálin fez avançar o país na direção da industrialização e do desenvolvimento. Antes dos anos 30, os artistas russos que não eram contra-revolucionários gozaram de relativa liberdade. Apesar dos frequentes embates com a burocracia, Vladimir Maiakovskie seu futurismo deram digna sequência à tradição russa. Maiakovski suicidou-se em 1930, mas o fato não parece ter relação coma política ou a censura. Desta forma, ele não conheceu Jdanov.
Maiakovski é autor de versos como “Come ananás / mastiga perdiz / teu dia está próximo, burguês”.

Nos anos 30, os artistas e escritores russos depararam-se com um gênero de censura inteiramente diferente do que era conhecido até ali. Stálin, apesar da imagem que foi criada no Ocidente, era um fino apreciador da música erudita e muitas vezes dava palpites estéticos diretamente a compositores como Shostakovich, Prokofiev e Khachaturian.
Em seu governo surgiu Andrei Jdanov, que tornou-se dirigente do PCUS em 1934 após o expurgo (assassinato) de Kírov. Jdanov foi o criador do Realismo Socialista nas artes. Na verdade, o Realismo Socialista tinha parâmetros políticos e estéticos inapreensíveis. Seus critérios eram metade artísticos, metade geopolíticos. A definição do Realismo Socialista era algo apenas claro na arquitetura. O restante escapava aos autores do país, que tinham sempre dificuldades de se adequarem a ele.
Soldados hasteiam a bandeira soviética sobre o Reichstag: esta é a célebre fotografia de Yevgeny Khaldei, tirada em 2 de maio de 1945. A foto mostra soldados soviéticos que levantam a bandeira da União Soviética sobre o prédio do Reichstag alemão após a Batalha de Berlim.

Aparentemente, o jdanovismo começou com a ópera de Shostakovich Lady Macbeth de Mtsensk, baseada numa novela de Leskov. Stálin, sempre criativo com as palavras, qualificou-a de pornofonia, e então os artistas descobriram que sexo era algo a evitar. As regras do que seria ou não censurado dependiam muito da circunstância política e das posturas de cada artista. Nem a estrondosa e heroica vitória na Segunda Guerra Mundial afrouxou a censura.
Jdanov: um censor sem manual de uso

Serguei Eisenstein foi o cineasta que criou obras-primas como A Greve, O Encouraçado Potemkin, Que Viva México! (inacabado) e Aleksandr Nevski. Assim como o jovem Shostakovich, era um dos meninos de ouro do PCUS. Porém, após o extraordinário sucesso do Potemkin, o cineasta foi contratado pela MGM norte-americana. Quando voltou, o partido e a imprensa não perdoaram sua aventura capitalista. Sinal de que não se podia viajar para produzir fora da URSS.
Viajante e cosmopolita era Igor Stravinsky, que já estava na França desde os anos 10. Ele apenas voltou ao país para curtas visitas, sabedor dos problemas que teria para produzir na URSS. Quem retirou-se do país em 1919 para nunca mais voltar foi Vladimir Nabokov, escritor nascido no seio de uma família da antiga aristocracia. Mais fiel às origens foi Serguei Prokofiev, nascido em 1891. Em 1918, vendo que o ambiente não era o melhor para um compositor experimental, foi morar nos EUA. Poucos anos depois, passou à Suíça e finalizou sua aproximação da URSS em 1935. Em quase parceria com Eisenstein, fez Alexandr Nevski, filme que talvez seja um dos mais felizes casamentos entre imagem e música. Morreu em 1953.
Bulgákov: impedido de sair, mas recebendo telefonemas do chefe

O escritor Mikhail Bulgákov sofreu muito mais. Adversário do regime, chegou a alistar-se no Exército Branco. Finalizada a Guerra Civil, Stálin proibiu-o de emigrar ou de visitar seus irmãos em Paris. Bulgákov nunca apoiou o regime e o ridicularizou em seus trabalhos. Por essa razão, muitos deles ficaram inéditos por décadas. Em 1930, escreve uma carta a Stálin pedindo permissão para emigrar, já que a União Soviética lhe oferecia oportunidades. Como resposta, recebeu uma ligação do próprio Stálin, negando seu pedido e oferecendo-lhe trabalho no teatro. Stálin não costumava mandar recados. A obra-prima de Bulgákov, o monumental romance O Mestre e Margarida, escrito entre 1928 e 1940, foi publicado pela primeira vez apenas em 1966.
Shostakovich: sua biografia já resultou e ainda resultará em muitos livros

O imenso compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975) sofreu ainda mais. Como qualquer autor de obras sinfônicas, dependia de orquestras e teatros; ou seja, do estado. Sua vida foi infernal: herói do regime e compositor nacional até 1934, caiu em desgraça pela citada ópera baseada em Leskov. Foi recuperado durante a Segunda Guerra Mundial para cair novamente em desgraça após Stálin dar-se conta — com toda a razão — de que sua Nona Sinfonia e outras composições eram notáveis e imortais peças do mais puro sarcasmo… ao stalinismo. Shostakovich considerava-se um sincero comunista e, mesmo quando não se tratava de encomendas, produzia peças em homenagem à Revolução Russa. Apesar de genial, nunca entendeu os critérios do Realismo Socialista.
Sob a vaga acusação de “excessivo subjetivismo”, o poeta e romancista Boris Pasternak passou a ter dificuldades em publicar seus livros nos anos 30. Sua situação é curiosa: na Rússia, é mais conhecido como poeta do que romancista, em virtude de o livro Doutor Jivagoter sido censurado na antiga União Soviética. O personagem principal do romance é, justamente, um poeta que tem problemas com as autoridades soviéticas, embora simpatizante da causa. Em 1958, Pasternak recebeu o Nobel de Literatura, mas não foi autorizado a recebê-lo.
O duplo equívoco Soljenítsin: de dissidente admirado no Ocidente a antissemita nos EUA

Alexander Soljenítsin foi um ferrenho adversário do PCUS. Seus livros foram absolutamente proibidos, mas circulavam através do samizdat. O samizdatera uma ação coletiva na qual indivíduos e grupos de pessoas copiavam e distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais proibidos pelo governo. Soljenítsin escreveu extensa obra, toda ela antissoviética e de pouco valor artístico. Quando foi expulso do país, em 1974, soube-se de suas ideias políticas, que propunham um estado religioso. O golpe fatal em sua obra veio de quem mais o apoiara quando estava na URSS, os EUA: ao escrever sobre o absoluto protagonismo dos judeus russos no Partido Comunista e na polícia secreta soviética, foi tachado de antissemita e desmoralizado no exílio. Morreu em Moscou.
Tarkovski: todos os filmes que realizou na União Soviética tiveram rígido controle da censura

Desde seu primeiro longa metragem — o estupendo Andrei Rublev — , o cineasta Andrei Tarkovski teve problemas com a burocracia. O filme, de 1966, foi apresentado no Festival de Cannes de 1969, fora de competição, e teve sua estreia na União Soviética somente em 1971, com cortes. Todos os seus trabalhos subsequentes, apesar de respeitadíssimos, foram prejudicados pela censura. Profundamente ressentido com o controle exercido sobre o seu trabalho, Tarkovski decidiu sair da URSS em 1983. Além de seus filmes sempre excelentes, Tarkovski deixou-nos o livro Esculpir o Tempo, obra essencial a todos os amantes do cinema.
Ainda temos outros grandes autores que comprovam a continuidade da tradição russa mesmo sob a censura. O que dizer da poetisa Anna Akhmátova e de escritores como Isaac Babel e Máximo Gorki, que tornaram-se inimigos pelo fato do primeiro combater e o segundo apoiar o governo da URSS? Melhor finalizar mostrando que, na atual Rússia de Putin, pouco mudou, como mostra o irônico e triste filme russo Minha felicidade. Mais provas? O fato da classe artística russa ter silenciado sobre a decretação de prisão do grupo feminino Pussy Riot. Não gostavam das meninas? Não, nada disso, é que as maiores estrelas do país tentam não se desentender com o presidente Vladimir Putin para não pôr em risco sua principal fonte de renda: os shows particulares para os super-ricos, que pagam muito bem. Ou seja, a censura tem várias formas: aqui, por exemplo, temos a censura ao Pussy Riot e a autocensura dos colegas.
As Pussy Riot: prisão por dois anos após protestarem contra Putin e a Igreja

Um comentário:

Harley Coqueiro disse...

Texto Formidável. Parabéns.
Destaque para o terho: "Não era, evidentemente, o ambiente ideal para a criação de um estado democrático aos moldes da eterna receita dos EUA. O país vinha de uma guerra civil, tinha oposição interna e externa, havia outros regimes fortes quilômetros depois das fronteiras, um histórico recente de conflitos, grande parte da população era saudosa de seu paizinho (o czar) e, fundamental e principalmente, não tinha nenhuma tradição democrática. Aliás, não tem até hoje, mesmo sob o governo eleito de Putin."