terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Na Fase-RS, a juventude que a sociedade não vê também tem sua noite de Natal


Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Rachel Duarte no SUL21

Esperança, Solidariedade e Fé. Talvez em poucos lugares estas palavras, comuns em época de Natal, façam tanto sentido quanto no local onde adolescentes em conflito com a lei vivem privados de liberdade. No mundo à margem das festas com ceias fartas e troca de presentes, jovens entre 12 e 18 anos acabam confrontados de forma solitária com o reflexo do que fizeram na rua. Para alguns internos da Fundação de Atendimento Sócio Educativo (Fase-RS) o Natal é também a única oportunidade de uma reunião em família. Antes da internação, a data era mais uma oportunidade para farras, álcool, drogas e quem sabe mais um crime.
Os mais de 800 adolescentes da Fase-RS convivem diariamente com a possibilidade de uma renovação das esperanças de poder voltar para casa e com a ansiedade de retomar a vida que tinham antes da internação. É na época do Natal, como para muitas pessoas que vivem em liberdade, que as emoções ficam afloradas. “Eles ficam muito sensíveis. Alguns ficam mais quietos do que o habitual. Outros se agitam mais e ficam muito ansiosos. Na noite de Natal é comum ao apagar das luzes uma pedalada coletiva nas portas das celas”, conta Terezinha Pires, funcionária com 28 anos de Fase.
O colega Jovaldoir Lanza, que já passou dois natais trabalhando na Fase, conta que é impossível ficar indiferente ao assistir o desespero de alguns adolescentes. “Essas emoções podem levar a atos mais sérios. A gente também se imagina com a nossa família nesta hora. Não passamos o Natal com eles para estar ali (na Fase), muitas vezes com medo de um possível motim”, fala.

Funcionários preparam presente de Natal para os adolescentes | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Mas o espírito natalino fortalece o sentimento de solidariedade e fé dos profissionais que se dedicam a fazer mais do que o trabalho de servidor público. Enquanto os adolescentes do Centro de Convivência da Fase participavam de uma festa de Natal (no dia em que esta matéria foi produzida), Terezinha, Jovaldoir e outros colegas que promovem oficinas profissionalizantes aos adolescentes confeccionavam com disposição 50 peças de gesso como lembrança de Natal para os internos. “Eles não sabem. Por isso estamos dando uma corrida para aprontar tudo hoje”, contou Terezinha enquanto passava um verniz na peça.
O presente é uma mensagem com a Bênção da Casa. “Nesta casa não virá tristeza, nesta moradia não virá sofrimento, nesta porta não virá temor. Neste lar não virá discórdia, neste lugar haverá somente bênção e paz”, Terezinha fez questão de ler para reportagem. Mas também salientou que tanto o presente quanto a decoração de pinheiro de Natal e presépio da unidade não foram impostos. “Aqui temos jovens com muitos credos. Respeitamos todos e sempre que alguma entidade vem realizar alguma atividade é bem-vinda”, conta.

A fábrica da ‘Mamãe Noel’ não produz brinquedos

Oficina de produtos de limpeza é resultado da insistência de uma socioeducadora que acredita na ressocialização dos jovens internos | Foto: Arquivo Pessoal

Ao lado do local onde ocorrem as oficinas, a unidade Padre Cacique reserva uma história de persistência e devoção que chega a evocar algum milagre natalino. Há nove anos, uma sócio-educadora se dedica a recuperar os adolescentes por acreditar na possibilidade de um mundo melhor para eles longe do crime. Rosane Maciel conseguiu começar uma oficina de fabricação de produtos de limpeza e higiene depois de sucessivas tentativas de convencimento das diferentes direções da Fase-RS. Hoje, é na produção dos produtos químicos caseiros que ela ensina valores diferentes dos que eles aprenderam até chegar à internação. “É algo que me gratifica. Para mim o sentido de estar aqui é esse. Fazer algo a mais”, diz.
Com a produção de mil litros de detergentes, amaciantes, desinfetantes e alvejantes por oficina, ela auxilia na garantia de uma fonte de renda aos internos contratados para seis meses de trabalho. Parte dos produtos é para a limpeza da própria Fase-RS; o restante é destinado para venda dentro do complexo. “Vendemos para funcionários. Os guris com possibilidade de atividade externa vão na Kombi comigo percorrer as unidades e vender os produtos”, explica Rosane. A renda média gira em torno de R$ 150 a R$ 200 reais por mês. Um funcionário da unidade é o encarregado de controlar o dinheiro dos adolescentes e fazer as compras do que eles desejam adquirir. Geralmente, a primeira coisa que eles querem fazer é comprar um tênis de marca. Algo que será um sonho realizado neste Natal para o jovem T.L, de 17 anos, que começou em dezembro a participar da oficina. “Eu vou dar de entrada no Nike que eu quero”, fala.
Adolescentes produzem produtos de limpeza e mandam para família. O dinheiro arrecadado na oficina também é enviado para casa ou serve para trazer a família para um dia de visita  Foto: Arquivo Pessoal
Antes de conseguir apoio para a realização da oficina de produtos químicos, Rosane Maciel tentou várias outras atividades por não conseguir aceitar a falta de opções para ocupação dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. “Quando eu entrei aqui achei que ia mudar o mundo e que iria conseguir retirar todo mundo do crime”, disse, causando risadas entre os adolescentes que estavam na sala da oficina.
Ao descrever a batalha para conseguir o apoio da direção, adquirir os primeiros materiais da empresa de bases químicas e aprender a preparar os produtos — algo que ela não sabia fazer antes de começar a oficina –, a sócio-educadora causou outras reações além do riso nos adolescentes. “Bah, dona”, impressionou-se o jovem T.L.
Todos os natais Rosane prefere passar junto aos adolescentes para a intranquilidade dos filhos e da família. Ela já testemunhou três motins na Fase nesta época do ano, onde em um deles foi refém de um grupo disposto a fugir. “Eu já vi nestes anos muita coisa. Temos que ter esperança”, diz.
O adolescente M.V, de 17 anos, reincidente na Fase e há mais tempo na oficina, conta que costuma enviar os produtos de limpeza que fabrica para a mãe, em Osório. Este será o segundo Natal que passa privado de liberdade e ele espera poder passar de outra maneira os próximos. “Quando eles (familiares) vêm é muito sofrimento. Mas isso tudo a gente não pensa na hora da loucura. É ruim estar longe da família, mas cada um é responsável pelas suas escolhas. Eu estou sofrendo as minhas consequências”, afirma
Adolescentes que trabalham na oficina usam dinheiro para atender anseios de consumo iguais aos dos jovens de classe média alta. Nesta Natal, um dos internos dará entrada em um tênis Nike | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

M.V está migrando da oficina de produtos químicos para um trabalho de carteira assinada no Banrisul, por meio da iniciativa oferecida pela Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos. Ele espera conseguir manter a esperança de não ‘cair’ pela terceira vez na internação. “Eu vou tentar. A esperança é a última que morre”, diz.
Socio-educadora que promove oficina com jovens internos prefere passar o Natal trabalhando. Já passou por três motins e foi refém em uma tentativa de fuga dos adolescentes | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Internação é oportunidade para Natal em família 
“Natal em família a gente passa aqui. Lá fora a gente não pensa em nada”, diz jovem interno da Fase-RS | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Os adolescentes internados na unidade Padre Cacique são oriundos de fora de Porto Alegre, o que torna a oficina de trabalho remunerado uma oportunidade para as famílias estarem com os adolescentes. “Alguns enviam dinheiro para casa, outros já pagaram para trazer os pais no dia do Natal. É um dinheiro que ajuda nestas pequenas coisas, mas ensina a lutar e trabalhar para consegui-lo”, acredita.
O adolescente J.R, 17 anos, irá passar o primeiro Natal privado de liberdade e diz que será o primeiro que irá compartilhar com a família. “Natal lá fora a gente não passa com a família. A gente passava em casa só para dar um Feliz Natal. Depois saíamos para curtir. Lá fora, a gente não pensava em nada”, conta o jovem, que mudou a vida aos 13 anos quando se envolveu com o tráfico de drogas.
“Não gosto de comentários sobre os crimes que eles fizeram. Não gosto nem que conversem entre eles. Aqui são todos iguais para mim. A gente sempre orienta sobre outros valores. Claro que santo de casa não faz muito milagre. Porém, sempre temos a esperança de que eles assimilem alguma coisa”, diz a sócio-educadora Rosane Maciel.

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