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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Uruguai: a aldeia gaulesa da América do Sul....


O Uruguai, a aldeia que salva o mundo


uruguai Renato Dalto (*)
Caía a tarde naquela praia pequena e os músicos davam o tom num palco improvisado. Até que um deles, o jovem bandoneonista de jeans e sem camisa, resolveu solar no tecladoAdios Noniño. Fez-se então aquele esparramar de notas melancólicas, aquela agudeza de dilacerar das notas de Piazzolla e a vida seguiu assim, na calma daquele crepúsculo. Em vez de buzinas, som bate-estacas, burburinho, viam-se na volta pais e filhos passeando na areia, cachorros brincando, as primeiras luzes ensaiando a noite e mais um fim de dia em Punta del Diablo. Naquela pequena aldeia, gente de todos os lados, como se buscasse apenas isso: um entardecer com notas suaves, uma noite descendo aos poucos, um elo perdido que deixou pra trás os silêncios, as caminhadas serenas, os passeios pela beira do mar. O mar de Galeano, que descreve o menino vendo-o pela primeira vez, agarrado à mão do pai, e faz um pedido diante da imensidão: “Me ajuda a olhar”.
Dizem que agora os olhos do mundo se voltam para esse país-aldeia de meninos e idosos que se dão ao luxo de andar sozinhos à noite na capital do país. Montevidéu é a vida em festa nas noites, tardes ou manhãs. Espoucam no sul brasileiro cartazes expondo um “Uruguay natural”, como se convidassem a uma visita ao que naturalmente se perdeu neste mundo de encontros virtuais, cartões de crédito, automóveis em excesso e níveis insuportáveis de monóxido de carbono. Poderia até haver outras chamadas dizendo, por exemplo: Venha ao Uruguai encontrar o que você achou que não existia mais.
O Uruguai expõe ao mundo um presidente, Pepe Mujica, que em seu discurso de posse anunciou: “Meu governo terá quatro prioridades: educação, educação, educação e educação”. Educação civilizatória, é bom que se diga. A Frente Ampla, um governo de esquerda, está em seu segundo mandato histórico no país. E desde então, os donos de sempre- banqueiros, latifundiários e privilegiados em geral – foram taxados em suas fortunas e vem se exercendo justiça tributária. E também as crianças da escola ganharam computadores, e nos rincões mais distantes há professores pagos pelo governo para ensinar filhos de camponeses. O poder dos salários dos trabalhadores aumentou e o salário do presidente, voluntariamente, diminuiu.
Mujica doa mais de 80% do que ganha às instituições de caridade, mora na sua pequena chácara, dispensa a liturgia e o formalismo e segue o que sempre foi: um homem fiel às ideias de justiça, igualdade e liberdade. Não exerce o poder em nome próprio, mas sim como o seguidor de uma cartilha que acredita. Uma das afirmações de Mujica: As ideias são mais importantes que os nomes.
Uma bela idéia de país, quase de um conto de fadas, é de que há direitos fundamentais não escritos mas que deveriam sempre ser respeitados. Como, por exemplo, ter consideração e cuidado com os mais velhos, ter liberdade de ir e vir sem temer assaltos, caminhar seguro pelas praças, respeitar e ser respeitado em lugares públicos. Na noite uruguaia, é comum se ver famílias inteiras se divertindo juntas, num saudável encontro de gerações. País pequeno e verde, campesino, produtor de carne, vinhos e lacticínios mas, sobretudo, produtor de bons hábitos e de direitos que envolvem reciprocidade e educação – o respeito começa em casa e se propaga pelas escolas, ruas e praças. Parece que nada é mais encantador do que essa batida da simplicidade regulando a vida.
A mídia que voltou os olhos para isso tem como o acender da fogueira a eleição doThe Economist, o jornal inglês dos ricos que elegeu o Uruguai o país do ano. Houve estranhamento nisso, observações pejorativamente preconceituosas, como se essa simplicidade toda incomodasse nessa guerra de informações e lorotas que virou o mundo e sua aldeia hi tech. O Uruguai é uma aldeia onde vale muito um aperto de mão, um olho no olho, um buenos dias sincero.
Volta a imagem de Adios Noniño, uma obra-prima de Astor Piazzolla cuja história remete a algo assim: um menino de 12 anos chamado Astor tocava na noite porteña, num bar. Todas as noites o avô, el noniño, o levava pela mão e ficava numa mesa, num canto, esperando o neto terminar de tocar. Depois o levava pra casa, pela mão, carregando também na outra mão o bandoneon. Quando Astor cresceu, e se tornou célebre, um dia recebeu a notícia da morte do avô. Estava longe demais, mas na noite melancólica daquela perda, se debruçou sobre o bandoneon e compôs Adios Noniño.
Essas notas do adeus, dilacerantemente belas e arrebatadoras, ganharam o mundo, os corações, comovendo gente em todos os lugares. Naquela praia pequena, de uma aldeia que agora ganha o mundo, aquele bandoneonista jovem e descontraído relembrava a céu aberto, respeitosamente, tudo o que essas notas significam. A tarde caiu mais bela nesse dia num pedaço de mar uruguaio. Um mar de respeito e silêncios. Um mar que a gente tem que aprender a olhar.
*jornalista

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Monsanto e o poder do veneno


Monsanto e o poder do veneno

Editorial do jornal Brasil de Fato: via blog do MIRO


Os ratos alimentados, a vida toda, com o milho transgênico da Monsanto desenvolveram câncer, problemas hepático-renais e morte prematura em índices bem superiores aos que receberam outro tipo de alimentação. 

Um estudo publicado em 2012, liderado pelo pesquisador francês Gilles-Éric Séralini, mostrou que 50% dos machos e 70% das fêmeas morreram de forma prematura, contra, respectivamente, 30% e 20% dos do grupo que não comeram o milho do Monsanto. 

Se não bastasse a gravidade da denúncia, uma vez que o milho é um dos principais alimentos dos seres humanos, o caso explicitou a outra face da gigante empresa estadunidense do agronegócio: sua ingerência política nos âmbitos científicos. 

A revista, a Food and Chemical Toxicology, mesmo reconhecendo que o artigo de Séralini é sério e não apresenta incorreções, se retratou da sua publicação, dizendo que o estudo não é conclusivo. 

A retratação ocorreu depois de uma agressiva campanha contra o trabalho do pesquisador francês e, pasmem, após a revista ter contratado como editor especial Richard Goodman, ex-funcionário da Monsanto! 

Não faltaram espaços nos meios de comunicação para cientistas, dos centros de pesquisas financiados pela Monsanto, pela Syngente e pela Bayer, repetirem críticas – parciais e inexatas – apenas horas depois da publicação do artigo. 

A agência de notícias Adital, que publicou essas informações, não esqueceu de lembrar que o mesmo tipo de perseguição sofreu o mexicano Ignacio Chapela, quando publicou na revista Nature um artigo em que denunciava que o milho camponês da região de Oaxaca/México havia sido contaminado pelo transgênico da Monsanto. 

A repetição dessa prática fez com que a Unión de Científicos Comprometidos con la Sociedad emitisse um comunicado condenando a pressão que as empresas transnacionais fazem para que as revista científicas se retratem dos estudos que confirmam danos à saúde pelo consumo dos seus produtos. 

O Prêmio Nobel de Medicina/ 2013, Randy Schkman, já havia alertado sobre a promiscuidade das revistas científicas com os grandes grupos empresariais, causando danos à ciência. 

Em julho, a ONG europeia, protetora do meio ambiente, Amigos da Terra e a Federação para meio Ambiente e Proteção à Natureza Deutschland (BUND) se prepararam para apresentar um estudo sobre os efeitos do herbicida glifosato no corpo humano. Os herbicidas que contêm glifosato são carros-chefe da Monsanto. O estudo seria apresentado em 18 países. Misteriosamente, dois dias antes da publicação do estudo, um vírus paralisou o computador do principal organizador do evento. Em nenhum momento se responsabilizou a Monsanto pelo ocorrido. 

No entanto, não são desconhecidas as estreitas relações que essa empresa mantém com serviços secretos estadunidenses, com as forças armadas, em empresas de segurança privadas e, principalmente, junto ao governo dos EUA. 

É possível que as relações que a empresa mantém com esse poderoso aparato, com inimaginável capacidade investigativa e repressiva, tenham vínculos com os numerosos relatos de ataques cibernéticos regulares, com padrão profissional, que sofrem os críticos da Monsanto. 

Com todo esse poderio políticoeconômico, a empresa estadunidenses foi mencionada, inúmeras vezes, com uma ativa coautora do golpe de Estado paraguaio, em junho de 2012, que afastou o presidente democraticamente eleito, Fernando Lugo. 

O educador Juan Diaz Bordenavce, falecido em novembro de 2012, escreveu que, entre os dez fatores que serviram como detonadores do golpe, estava o “aumento da proibição de sementes transgênicas, o que poderia afetar os enormes lucros da multinacional norte-americana Monsanto”. 

Com o passar dos dias, evidenciou- se ainda mais a participação das transnacionais Monsanto e Cargill, em conluio com a oligarquia latifundiária, as elites empresariais e sua mídia, na execução do golpe. 

Essa folha corrida da Monsanto é mais um elemento favorável à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4650, proposta no STF pela OAB, solicitando fim das doações de campanha eleitoral por pessoas jurídicas. 

Não causa surpresa ver que ministros do STF, safos, como Gilmar Mendes, se posicionem contrários à ação da OAB. Os campos de atuação e os interesses comuns ficam cada vez mais evidenciados.

Natal em Cuba: razões para comemorar


Socialismo continuará na ilha, e o propósito é que seja próspero e sustentável,
Créditos: OPERAMUNDI
O socialismo continuará na ilha, e o propósito é que seja próspero e sustentável, segundo os lineamentos aprovados pelo Partido Comunista de Cuba e que marcam o processo de mudanças na nação caribenha.

Trata-se de outro momento histórico no processo revolucionário cubano, que se tem sustentado na unidade da nação e na resistência à hostilidade de sucessivas administrações dos Estados Unidos.

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Cuba debate

Líder da Revolução Cubana, Fidel Castro recebeu Nicolás Maduro em Havana no último sábado

Não foi fácil chegar até aqui. Cuba tem suportado o bloqueio mais longo da história, pelo qual se nega ao país investimentos, financiamento, avanços tecnológicos, medicamentos e alimentos.

Os cubanos pagaram ademais um alto preço: mais de três mil pessoas morreram e semelhante quantidade ficou ferida ou mutilada por atos terroristas financiados e apoiados pelos EUA. Ataques armados, sabotagens, atentados aos líderes da Revolução, agressões biológicas, planos de subversão interna e de isolamento externo fizeram parte do arsenal contra a pequena ilha caribenha.

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Mas nada disto desviou um milímetro a trajetória do processo cubano que transformou quartéis em escolas, impulsionou a reforma agrária, liquidou o latifúndio e nacionalizou setores vitais da economia.

Não foi casual que o líder histórico dos cubanos, Fidel Castro, declarou em abril de 1961 o caráter socialista da Revolução, em vésperas da invasão mercenária pela Baía dos Porcos, cuja derrota foi qualificada em Cuba como a primeira derrota do imperialismo ianque na América Latina.

Desde então o caminho tem estado cheio de obstáculos, mas também de avanços e conquistas que hoje, em meio a dificuldades econômicas, se mantêm, e o propósito é torna-la mais eficientes.

Reprodução Cuba Magazine

Encontro histórico entre Barack Obama e Raúl Castro


Cuba encerrou o ano com a menor mortalidade infantil e materna de sua história, obra de um sistema de saúde pública que não só chega a todos os rincões do país, mas que se estende a numerosas nações.

A maior das Antilhas está entre os 50 países com maior proporção de pessoas com 60 anos ou mais, o que é interpretado como resultado da política de desenvolvimento social e direitos humanos.

Grande parte dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio está cumprida nesta terra, cuja vizinhança com a maior potência do planeta é uma espada de Dâmocles, em particular pela política de bloqueio.

Mesmo assim, seus indicadores situam Cuba como um país de elevado desenvolvimento humano, que ocupa o 51º lugar entre 187 países.

Por sua parte, a Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura (Unesco) coloca Cuba no 14º lugar no mundo em seu Índice de Desenvolvimento da Educação para Todos.

De um país anteriormente de monocultura da cana de açúcar, a economia cubana se sustenta hoje mais em seu capital humano, especialistas em saúde, educação e outros que fazem dos serviços a fonte mais importante de receitas.

As transformações apontam a empresa socialista como a pedra angular do sistema econômico, mas abrem espaços a outras formas de produção que incluem as cooperativas e o trabalho por conta própria.

Uma particularidade é que os mais de 400 mil trabalhadores por conta própria têm garantida a seguridade social, diferentemente de outras nações onde os que vivem da chamada economia informal não têm esse direito.

A atualização da política migratória, o novo Código do Trabalho, a criação da Zona de Desenvolvimento Especial de Mariel (no oeste), a entrega de terras em usufruto, são algumas das medidas e passos das mudanças sem pausa, mas sem pressa, que têm lugar na ilha.

Ao mesmo tempo, o marco legal e institucional do país para a atualização do modelo econômico se constrói sobre a base da justiça social e da solidariedade.

Vinculado a toda esta atividade, Cuba conseguiu este ano importantes avanços na renegociação de sua dívida externa, em particular o acordo com a Rússia a respeito do perdão do débito existente com a antiga União Soviética.

O presidente Raúl Castro tem sido enfático na posição de princípios de honrar os compromissos financeiros do país, cuja credibilidade na matéria cresceu e abre novas possibilidades de investimentos e financiamento.

Segundo as autoridades, os dois próximos anos serão decisivos para o processo de atualização, com a consolidação de experimentos e a aplicação de outros, incluídos os primeiros passos para a unificação monetária e cambial que permitirá melhores controles dos parâmetros da economia.

Enquanto isso, os cubanos têm por estes dias razões para celebrar e esse espírito se respira nas ruas, centros de trabalho e estudo onde as felicitações, trocas de presentes e comemorações mostram confiança no futuro.

Assim ocorreu neste 24 de dezembro, onde o tema predominante é a celebração do Natal em família, antessala da despedida de 2013 e da chegada do 56º ano da Revolução.

(*)  Texto originalmente publicado no portal Cubadebate / Blog da Resistência e republicado pelo Portal Vermelho

sábado, 21 de dezembro de 2013

E ainda falam mal de Cuba....


Cuba apresenta vacina contra câncer de pulmão


O lançamento oficial foi realizado em Buenos Aires e, agora, segue viagem para Córdoba



O lançamento oficial da segunda vacina contra o câncer de pulmão, desenvolvida e registrada por autoridades sanitárias de Cuba, foi realizada na última sexta-feira (14/07) em Buenos Aires e terá continuação na próxima sexta-feira (28) em Córdoba, também na Argentina

Em 2008, Cuba registrou a vacina contra o câncer pulmonar e agora tenta comercializar o produto na Argentina graças a uma colaboração iniciada em 1994. Em março, a agência regulatória de Buenos Aires aprovou o registro da Racotumomab.

Com este medicamento, Cuba espera transformar o câncer avançado em uma doença crônica que possa ser controlada por períodos prolongados, como o diabetes e a hipertensão arterial.

A vacina, chamada Racotumomab (Vaxira) e desenvolvida pelo CIM (Centro de Imunologia Molecular de Cuba) foi aplicada com resultados favoráveis em pacientes da ilha caribenha entre os anos 2008 e 2011.

Ainda não foi possível precisar se a vacina é uma solução à doença, mas ela aumenta a esperança de vida dos pacientes, ao estimular o sistema imunológico do corpo humano.

O câncer de pulmão é considerado um dos mais mortais que existem, causando por volta de 1,4 milhões de mortes por ano, segundo estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde)


Sistema de saúde público brasileiro é referência internacional, diz Banco Mundial


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Foto: Carol Garcia/Governo da Bahia
Foto: Carol Garcia/Governo da Bahia
O Sistema Único de Saúde do Brasil – conhecido como SUS – lançou os alicerces de um sistema de saúde melhor para o país, contribuindo para o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida da população, é o que afirma o livro “20 anos de Construção do SUS no Brasil”, recentemente lançado pelo Banco Mundial.
O livro busca analisar a trajetória do programa desde sua criação, destaca progressos trazidos pelo SUS e aponta que, com base nessa experiência e apesar de todas as dificuldades inerentes a um país em desenvolvimento, o Brasil é hoje referência internacional na área de saúde pública e exemplo para outros países que buscam sistemas mais igualitários de saúde.
Com a criação do SUS, o Brasil foi um dos primeiros e poucos países fora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a prever na legislação o acesso universal aos serviços de saúde, reconhecendo a saúde como direito do cidadão e dever do Estado.
O livro destaca que os esforços para a ampliação dos gastos em saúde e de uma melhor alocação dos recursos federais e estaduais, privilegiando as áreas e populações mais pobres do país, contribuíram para uma forte ampliação do acesso da população aos serviços básicos de saúde, com importante impacto na redução da mortalidade.
Entre os desafios do SUS, o estudo identifica que o aporte de recursos à saúde precisa ser equacionado e que a capacidade gerencial do sistema ainda é um obstáculo importante. Além disso, há questões reconhecidas sobre as quais é preciso evoluir, como a melhora da qualidade e da coordenação do cuidado e a continuidade da expansão na cobertura da atenção primária.

domingo, 1 de dezembro de 2013

FHC sobe o tom, diz que Lula é “mago do ilusionismo” e que hegemonia petista ameaça democracia


FHC sobe o tom, diz que Lula é “mago do ilusionismo” e que hegemonia petista ameaça democracia



Sinais alarmantes


FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – O Estado de S.Paulo via VIOMUNDO

Finalmente se fez justiça no caso do mensalão. Escrevo sem júbilo: é triste ver na cadeia gente que em outras épocas lutou com desprendimento. Eles estão presos ao lado de outros que se dedicaram a encher os bolsos ou a pagar suas campanhas à custa do dinheiro público. Mais melancólico ainda é ver pessoas que outrora se jogavam por ideais – mesmo que controversos – erguerem os punhos como se vivessem uma situação revolucionária, no mesmo instante em que juram fidelidade à Constituição.
Onde está a revolução? Gesticulam como se fossem Lenines que receberam dinheiro sujo, mas o usaram para construir a “nova sociedade”. Nada disso: apenas ajudaram a cimentar um bloco de forças que vive da mercantilização da política e do uso do Estado para se perpetuar no poder. De pouco serve a encenação farsesca, a não ser para confortar quem a faz e enganar seus seguidores mais crédulos.
Basta de tanto engodo. A condenação pelos crimes do mensalão deu-se em plena vigência do Estado de Direito, num momento em que o Executivo é exercido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo governo indicou a maioria dos ministros do Supremo.
Não houve desrespeito às garantias legais dos réus e ao devido processo legal. Então, por que a encenação? O significado é claro: eleições à vista. É preciso mentir, autoenganar-se e repetir o mantra. Não por acaso, a direção do PT amplifica a encenação e Lula diz que a melhor resposta à condenação dos mensaleiros é reeleger Dilma Rousseff…
Tem sido sempre assim, desde a apropriação das políticas de proteção social até a ideia esdrúxula de que a estabilização da economia se deveu ao governo do PT. Esqueceram as palavras iradas que disseram contra o que hoje gabam e as múltiplas ações que moveram no Supremo para derrubar as medidas saneadoras. O que conta é a manutenção do poder.
Em toada semelhante, o mago do ilusionismo fez coro. Aliás, neste caso, quem sabe, um lapso verbal expressou sinceridade. “Estamos juntos”, disse Lula. Assumiu meio de raspão sua fatia de responsabilidade, ao menos em relação a companheiros a quem deve muito. E ao País, o que dizer?
Reitero, escrevo tudo isso com melancolia, não só porque não me apraz ver gente na cadeia, embora reconheça a legalidade e a necessidade da decisão, mas principalmente porque tanto as ações que levaram a tão infeliz desfecho como a cortina de mentiras que alimenta a aura de heroicidade fazem parte de amplo processo de alienação que envolve a sociedade brasileira.
São muitos os responsáveis por ela, não só os petistas. Poucos têm tido a compreensão do alcance destruidor dos procedimentos que permitem reproduzir o bloco de poder hegemônico; são menos numerosos ainda os que têm tido a coragem de gritar contra essas práticas. É enorme o arco de alianças políticas no Congresso cujos membros se beneficiam por pertencerem à “base aliada” de apoio ao governo.
Calam-se diante do mensalão e das demais transgressões, como se o “hegemonismo petista” que os mantém fosse compatível com a democracia. Que dizer, então, da parte da elite empresarial que se ceva dos empréstimos públicos e emudece diante dos malfeitos do petismo e de seus acólitos? Ou da outrora combativa liderança sindical, hoje acomodada nas benesses do poder?
Nada há de novo no que escrevo. Muitos sabem que o rei está nu e poucos bradam. Daí a descrença sobre a elite política reinante na opinião pública mais esclarecida. Quando alguém dá o nome aos bois, como, no caso, o ministro Joaquim Barbosa, que estruturou o processo e desnudou a corrupção, teme-se que, ao deixar a presidência do STF, a onda moralizante dê marcha à ré. É evidente, pois, a descrença nas instituições. A tal ponto que se crê mais nas pessoas, sem perceber que por esse caminho voltaremos aos salvadores da Pátria. São sinais alarmantes.
Os seguidores do lulopetismo, por serem crédulos, talvez sejam menos responsáveis pela situação a que chegamos do que os cínicos, os medrosos, os oportunistas, as elites interesseiras que fingem não ver o que está à vista de todos. Que dizer, então, das práticas políticas? Não dá mais!
Estamos a ver as manobras preparatórias para mais uma campanha eleitoral sob o signo do embuste. A candidata oficial, pela posição que ocupa, tem cada ato multiplicado pelos meios de comunicação. Como o exercício do poder se confundiu, na prática, com a campanha eleitoral, entramos já em período de disputa. Disputa desigual, na qual só um lado fala e as oposições, mesmo que berrem, não encontram eco. E sejamos francos: estamos berrando pouco.
É preciso dizer com coragem, simplicidade e de modo direto, como fizeram alguns ministros do Supremo, que a democracia não se compagina com a corrupção nem com as distorções que levam ao favorecimento dos amigos. Não estamos diante de um quadro eleitoral normal.
A hegemonia de um partido que não consegue deslindar-se de crenças salvacionistas e autoritárias, o acovardamento de outros e a impotência das oposições estão permitindo a montagem de um sistema de poder que, se duradouro, acarretará riscos de regressão irreversível.
Escudado nos cofres públicos, o governo do PT abusa do crédito fácil que agrada não só aos consumidores, mas, em volume muito maior, aos audaciosos que montam suas estratégias empresariais nas facilidades dadas aos amigos do rei. A infiltração dos órgãos de Estado pela militância ávida e por oportunistas que querem beneficiar-se do Estado distorce as práticas republicanas.
Tudo isso é arquissabido. Falta dar um basta aos desmandos, processo que, numa democracia, só tem um caminho: as urnas. É preciso desfazer na consciência popular, com sinceridade e clareza, o manto de ilusões com que o lulopetismo vendeu seu peixe. Com a palavra as oposições e quem mais tenha consciência dos perigos que corremos.
* SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA
PS do Viomundo: O artigo poderia ter sido escrito por aquele Eduardo Frei que decidiu aderir ao golpe contra Allende.

domingo, 24 de novembro de 2013


Eleições em Honduras acontecem neste domingo sob forte suspeita de fraude

Tatiana Félix
Adital


 Uma das eleições presidenciais mais esperadas da América Latina acontece neste domingo, 24 de novembro, em Honduras. Desde o golpe que destituiu o então presidente Manuel Zelaya do poder, em junho de 2009, vários setores, sobretudo, camponeses, comunicadores e defensores de direitos humanos, afirmam que cresceram as perseguições, ataques, assassinatos e violações aos direitos humanos. Para substituir o atual governo de Porfírio Lobo Sosa, os principais candidatos são o governista Juan Orlando Hernández, pelo Partido Nacional de Honduras (PNH), que é atual presidente do Congresso Nacional; e Xiomara Castro, esposa de Manuel Zelaya, quem tem a preferência da maioria do eleitorado e aparece como grande promessa do Partido Liberdade e Refundação (LIBRE), de acordo com as últimas pesquisas.

Cerca de 5.4 milhões de hondurenhos serão convocados para votar no próximo presidente do país, em 128 deputados ao Congresso Nacional, 20 deputados ao Parlamento e 298 prefeitos. Em meio a um cenário de denúncias de violações e corrupção, o clima é de preocupação com ataques e fraudes durante o processo eleitoral. Às vésperas das eleições, os meios de comunicação reportaram, nesta semana, apagões generalizados na capital Tegucigalpa, que podem se estender até o dia da votação, dificultando o processo de envio dos votos para contagem. Os bairros afetados como La Mercedes, Kennedy, San Francisco, Hato de Medio, Dilbio Paraiso, Nueva Capital Del Pantanal, Quesada e outros bairros marginalizados, são conhecidos por serem redutos do Partido Libre, de Xiomara.
Também existem rumores de que o Partido Nacional e o Partido Liberal estariam reservando mais ônibus do que necessitam no intuito de dificultar o acesso do Partido Libre ao transporte. Outra denúncia refere-se à pressão e um pagamento que o Partido Nacional estaria fazendo a mulheres em troca de voto para Juan Orlando.
Nesta semana, depois que o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) realizou testes no sistema de votação, Xiomara denunciou "graves irregularidades” no processo de transmissão dos resultados por scanner, que apresentou falhas no envio dos dados. O Partido teme que em virtude disso aconteçam irregularidades em mais de 600 centros de votação, que reúnem cerca de 270 mil eleitores. Nesses locais, onde não haverá transmissão dos votos por scanner, devido à falta de energia ou internet, os dados seriam enviados manualmente.
Uma matéria publicada pelo grupo Honduras Resiste afirma que, nos últimos dias, é possível ouvir "numerosas queixas” sobre a intimidação e a possível fraude nas eleições. "Mais de 60% da população é rural e a maioria é de pequenos agricultores ou camponeses sem terra que vivem na pobreza extrema”, informa o grupo, acrescentando que integrantes do Centro Nacional de Trabalhadores do Campo (CNTC) se mostram indignados pela persistente violência contra seus membros e a privação do voto deliberado de mais de 3 mil camponeses, devido a pendências legais e desorganização na emissão de documentos. ]

O Observatório Latino-Americano de Meios da Ciespal observou que os veículos de comunicação hondurenhos "converteram-se nos principais atores políticos da direita no país”. "Desde que as pesquisas começaram a evidenciar uma possível vitória da candidata presidencial Xiomara Castro, do Partido Liberdade e Refundação (LIBRE), os meios iniciaram uma campanha contra esse partido anunciando que seus membros estariam preparando possíveis atos violentos para o dia das eleições, com o objetivo de não reconhecer os resultados eleitorais”, analisou um texto de Kintto Lucas, diretor de mediações do Observatório.

Diante desse cenário, a Plataforma dos Movimentos Sociais e Populares de Honduras emitiu um posicionamento no qual afirma que o sistema político atravessa "uma profunda crise estrutural”, em que vários atores e partidos políticos representam interesses de grupos hegemônicos, indo na contramão da plena democracia da sociedade. "Nesse sentido, chamamos todas as organizações do movimento social, popular, os cidadãos preocupados com o futuro da nação a não votar em partidos e atores políticos que deram o golpe de Estado”, pediu o documento, orientado a população a exercer o voto crítico-ativo como forma de manifestar a soberania popular.
A Plataforma ressalta que, independente da conjuntura, continuará lutando contra o recrudescimento do capitalismo, do racismo e do patriarcado, expresso através do extrativismo, super exploração trabalhista, saque de recursos, privatização do Estado, militarização da sociedade, criminalização da pobreza, e contra a perseguição dos lutadores e defensores do movimento social e popular. É o caso do que vem acontecendo com Berta Cáceres, Magdalena Morales e Aureliano Molina, entre outros líderes, que têm sido vítimas de ameaças e perseguições.
A organização faz um chamado à unidade do movimento social e popular e de todos os povos em resistência, para unirem forças a fim de romperem o cerco midiático que os meios de comunicação hegemônicos impõem, manipulando e invisibilizando a constante violação dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais dos povos por parte dos grupos de poder. A ideia é fortalecer os setores organizados para caminharem na "construção de uma estratégia alternativa de sociedade e de relações econômicas, que refunde as relações de poder”.
Observadores Internacionais
Centenas de observadores internacionais já estão em Honduras para acompanhar, de perto, a transparência no processo eleitoral e verificar possíveis irregularidades nessas eleições. Entidades como a Organização dos Estados Americanos (OEA), Foro de São Paulo, Missão de Observação Eleitoral da União Europeia (Moe-UE), Via Campesina e Jubileu Sul Américas já enviaram equipes para 18 departamentos do país. Observadores de direitos humanos também devem acompanhar a população em zonas onde são registradas mais violações e ameaças.
Para o chefe da missão de observadores da OEA, Enrique Correa, essa eleição em Honduras "é muito importante”, já que pode "reparar a fratura criada pelo golpe de Estado”. Segundo o Jubileu Sul, a situação é "tensa”, há relatos de ameaças contra observadores internacionais em Río Blanco. Na próxima terça-feira, 26 de novembro, a Missão Europeia deve publicar o primeiro informe preliminar sobre as eleições presidenciais de Honduras.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A espionagem nas cercanias do palácio

A espionagem nas cercanias do palácio

Por Leandro Fortes, na revista CartaCapital:via BLOG DO MIRO

Nesta semana, o debate a respeito da espionagem foi retomado, com reportagens que mostram como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) realizou operações de contra-espionagem em território brasileiro. Entre os diversos alvos estavam, segundo apurou a Folha de S.Paulo, salas alugadas pela embaixada dos Estados Unidos em Brasília. Em agosto de 2013, CartaCapital publicou a reportagem abaixo, na qual revela que algumas instalações usadas pela Embaixada americana em Brasília continuam ativas. Confira a íntegra:


Desde a terça-feira 6 um grupo de assessores brasileiros liderados pelo Ministério das Comunicações está em Washington para ouvir as explicações do Departamento de Estado americano sobre as denúncias de espionagem contra o País. É um lance para a plateia. Nas principais instâncias de inteligência do governo federal e, portanto, no Palácio do Planalto, desde sempre se sabe, ou se deveria saber, da movimentação de espiões dos Estados Unidos no território nacional sob proteção da Embaixada em Brasília.

Manter agentes de inteligência em representações diplomáticas não chega a ser uma novidade. Quase todos os países possuem alguma estrutura desse gênero. O problema é que os norte-americanos vão além, operam com uma liberdade incomum e extrapolam os limites da soberania. Segundo os documentos vazados pelo ex-funcionário da CIA Edward Snowden, até 2002 Tio Sam valia-se de 16 instalações em território nacional para atividades de “inteligência”. CartaCapital apurou que ao menos parte dessa rede ainda continua ativa. E pior: está instalada em Brasília, no coração do poder político do País.

A série de documentos secretos e reservados do governo federal obtidos pela revista, vários deles encaminhados a assessores diretos da presidenta Dilma Rousseff, relata o funcionamento de ao menos seis endereços em Brasília utilizados pela Embaixada dos EUA como centros de operação e análise de inteligência. São quatro imóveis no Lago Sul, área tradicionalmente residencial da cidade, um no Setor de Indústria e Abastecimento e outro no Setor de Autarquias Sul, região central da capital, a pouco mais de 1 quilômetro do prédio dessa embaixada. Os imóveis, casas e salas comerciais, cobrem com frequências de rádio toda a extensão do Plano Piloto de Brasília, a partir de antenas de radiocomunicação e telefonia exclusivas autorizadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que tem um representante na missão enviada pelo governo aos Estados Unidos. A outorga para o uso “limitado-privado” foi concedida à Embaixada dos EUA no fim do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, e tem validade até 20 de julho de 2019. Ao todo, abrange 841 licenças de frequências de rádio para uso exclusivo dos americanos em solo brasileiro.

Na sala comercial número 209 do Bloco H da QI 9, no Lago Sul, funcionava a principal divisão de segurança das embaixadas e consulados dos Estados Unidos, responsável pela movimentação de diversos equipamentos de comunicação. Lá, o Regional Security Office (RSO) funcionou por oito anos até se mudar, no fim do ano passado, para a sala 411 de um movimentado edifício de lojas e escritórios no Setor de Autarquias Sul. No local, tanto os funcionários da portaria como a vizinhança do corredor estranham a movimentação constante de servidores da Embaixada, quase sempre no turno da manhã. Muitos costumam passar a noite no escritório.

A Embaixada dos EUA mantém ainda um conjugado de salas comerciais de números 311 e 312 no Conjunto 12-A do Setor de Mansões Dom Bosco, também no Lago Sul. Na sala 311, segundo os relatórios encaminhados ao Palácio do Planalto, funciona o escritório da Drug Enforcement Administration, a DEA, órgão do Departamento de Justiça dos Estados Unidos encarregado da repressão e controle de drogas. Como se verá mais adiante, a DEA tem uma longa história no Brasil. Nos anos FHC, financiava atividades da Polícia Federal e, em troca, tinha carta branca para atuar em território nacional, conforme denunciou uma série de reportagens de CartaCapital entre 1999 e 2004.

Na sala 312 fica um contingente do Information Program Center (IPC), responsável pela comunicação de rádio e telefonia da Embaixada norte-americana, principalmente na área de inteligência. As duas salas são fortemente gradeadas e permanentemente refrigeradas. Aparentemente, funciona como uma estação de rádio que opera em diversas frequências, a partir das licenças concedidas pela Anatel.

O maior imóvel alugado pela Embaixada americana é uma chácara na QI 5 do Lago Sul. No terreno vigiado por câmeras e guaritas foram construídos alojamentos para fuzileiros navais e é um dos endereços com licença de funcionamento de radiofrequência da Anatel. Em outro terreno menor, ocupado por uma casa no Conjunto 2 da QL 16 do Lago Sul, os americanos montaram aparentemente um bunker rodeado de câmeras de segurança e com uma guarita de vidros espelhados. No galpão do SIA, em uma zona afastada do Plano Piloto, a antiga movimentação de funcionários e furgões da Embaixada americana foi interrompida no início do ano. O imóvel foi esvaziado e, atualmente, há apenas uma placa de “aluga-se” na entrada.

Segundo documentos publicados pelo jornal O Globo, outra unidade de espionagem funcionou em Brasília, até 2002, controlada pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA, em inglês), em conjunto com a CIA. Era parte da rede de 16 bases das agências de inteligência dos EUA que coletavam informações em todo o País, a partir de satélites de outros países. Embora o Brasil não tenha satélites próprios (o único foi repassado à Embratel na privatização de 1997), o governo mantém alugados oito desses. Os satélites estão estacionados sobre a Linha do Equador e, por isso, colhem muitas e importantes informações sobre a Amazônia, região de grande interesse estratégico e alvo de cobiça internacional. Outros documentos, datados de 2010, dão conta da possibilidade de os EUA terem grampeado escritórios da Embaixada do Brasil em Washington e da missão brasileira nas Nações Unidas, em Nova York. Outros papéis vazados à mídia nacional revelam que o então presidente Lula foi monitorado durante a tentativa de fechar um acordo com o Irã em 2009.

CartaCapital entrou em contato com a Embaixada dos Estados Unidos na sexta-feira 2 para saber qual a utilidade dos seis imóveis apontados como bases de espionagem em relatórios internos do governo federal. Todas as informações, inclusive os endereços das casas e salas comerciais, foram encaminhadas à assessoria de comunicação da Embaixada via e-mail, mas nenhuma resposta foi enviada até o fechamento desta edição.

As informações sobre o megaesquema de espionagem dos Estados Unidos começaram a se tornar públicas a partir de 6 de junho, quando o jornal britânico The Guardian iniciou a publicação de uma sequência de reportagens do jornalista Glenn Greenwald baseadas nos documentos vazados por Snowden. Soube-se assim que a NSA não cuidava apenas da segurança interna, mas estendia seus tentáculos a países aliados, inclusive o Brasil. A partir de bases espalhadas planeta afora e de uma rede de satélites, os Estados Unidos montaram um sistema monstruoso de monitoramento de e-mails e ligações telefônicas com a cooperação de empresas de telecomunicações e de gigantes da internet, entre eles o Google e o Facebook. Os espiões americanos desenvolveram um programa chamado PRISM, dedicado ao monitoramento em tempo real da circulação de informações na rede mundial de computadores, em tese para prevenir ataques terroristas.



Snowden trabalhava para a CIA e para a NSA em cargos ligados ao manejo e acompanhamento de dados em sistemas secretos de informação. Antes de iniciar os primeiros vazamentos em Hong Kong e fugir para a Rússia, ocupava o posto de analista de infraestrutura na Booz Allen & Hamilton, contratada pela NSA supostamente para prestar serviços de consultoria estratégica. Sob essa fachada, a Booz Allen conseguiu contratos com setores públicos de vários países, entre eles o Brasil, durante o mandato de FHC. Aqui, a consultoria participou oficialmente da formulação dos programas Brasil em Ação e Avança Brasil, que nunca saíram do papel, além de ter auxiliado nas privatizações promovidas pelos tucanos na década de 1990 e na reestruturação do sistema financeiro nacional.

Ao longo dos oito anos da era fernandina, portanto, a principal prestadora de serviço da CIA no esquema de espionagem mundial não só foi contratada pelo governo brasileiro como teve acesso a dados privilegiados das ações administrativas do País e a informações completas de toda a movimentação financeira nacional. Isso incluía livre trânsito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Um dos projetos em conjunto entre Brasília e a Bozz Allen, pago com dinheiro nacional, foi batizado de Brasiliana e traçou os “Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento”.

Apesar dessas relações carnais, como diria o argentino Carlos Menem, FHC veio a público, logo após os vazamentos, negar qualquer conhecimento a respeito da espionagem dos EUA. A respeito, o ex-presidente construiu uma daquelas frases consideradas brilhantes por seus admiradores: “Nunca soube de espionagem da CIA em meu governo, mesmo porque só poderia saber se ela fosse feita com o conhecimento do próprio governo, o que não foi o caso”. Em seguida, sugeriu à presidenta Dilma Rousseff tomar uma atitude. “Cabe ao governo brasileiro, apurada a denúncia, protestar formalmente pela invasão de soberania e impedir que a violação de direitos ocorra.”

FHC talvez tenha sofrido um lapso de memória. Ele mal iniciava seu segundo mandato quando CartaCapital publicou reportagens sobre a influência dos serviços de inteligência dos Estados Unidos na Polícia Federal. A DEA e a CIA financiavam atividades da PF: pagavam agentes, davam treinamento, pagavam hotéis, aluguéis de carros e até de imóveis utilizados pela força federal. Em troca, circulavam livremente pelo Brasil. Em uma reportagem de maio de 1999, Bob Fernandes, então redator-chefe desta revista, menciona os imóveis utilizados pela CIA de Norte a Sul do País. Eram 15, número bem próximo dos 16 revelados pelos documentos vazados por Snowden. No mesmo mês e ano, Fernandes registrou a seguinte declaração de James Derham, chefe da missão diplomática dos EUA, a respeito do teor da atuação norte-americana em território nacional. Derham não deixa margem para dúvidas: “O dinheiro é nosso, as regras são nossas”. A partir do governo Lula, o acordo deixou de funcionar, Tio Sam diminuiu a abrangência de suas atividades, mas, como denunciou Snowden e como comprovam os documentos oficiais do governo brasileiro, as atividades de espionagem não cessaram.

O envio de representantes do Brasil a Washington foi decidido durante uma reunião em 27 de julho entre Dilma Rousseff, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o chanceler Antonio Patriota. A ideia inicial era convidar autoridades americanas para virem ao Brasil, mas Patriota convenceu a presidenta de que o melhor era enviar um grupo à capital dos EUA. Segundo o chanceler, uma missão brasileira provocará mais impacto na comunidade internacional, principalmente entre os aliados europeus atingidos pela bisbilhotagem do império. É pouco provável, no entanto, que a visita a Washington renda mais do que uma explicação formal sobre o expediente denunciado por Snowden.

Há um mês, em um telefonema para Dilma, o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, deu poucas e mal formuladas explicações sobre o monitoramento e a espionagem de cidadãos e instituições brasileiras pela NSA. Lamentou a repercussão negativa do caso e fez o convite para a missão de Brasília visitar seu país.
Publicamente, o presidente Barack Obama argumentou tratar-se apenas de um programa de defesa da segurança interna, sem riscos à privacidade alheia. “Ninguém está ouvindo suas conversas”, declarou. Segundo o general Keith Alexander, chefe da NSA, o programa PRISM tem evitado dezenas de ataques terroristas aos EUA e criticou Snowden por danificar de modo “significante” e “irreversível” a segurança da nação.

A crise pegou o Palácio do Planalto de surpresa, em parte por culpa da estrutura herdada, primeiro por Lula, depois por Dilma, do Sistema Brasileiro de Inteligência, o Sisbin. O órgão central desse sistema, a Agência Brasileira de Inteligência, deveria cuidar de informar diretamente a Presidência da República sobre a movimentação de espiões estrangeiros no País. A Abin não tem, porém, acesso direto ao Planalto desde o governo FHC, quando foi criado o Gabinete de Segurança Institucional, estrutura militarizada comandada desde sua instalação, em 1999, por oficiais do Exército. O atual chefe do GSI é o general José Elito, ex-comandante das tropas brasileiras no Haiti.

A crise tem origem justamente na relação entre a Abin e o GSI, órgão que se transformou numa barreira para as relações entre a agência e a Presidência da República, e fez da agência uma instituição secundária, impedida de cumprir sua missão legal, a de assessorar o Planalto. Mais do que um filtro das informações produzidas pelos agentes secretos brasileiros, o GSI criou um problema de interação da Abin com a sociedade. Uma das primeiras medidas do general Elito ao assumir a função de ministro-chefe foi acabar com a área de comunicação social da agência, seção prevista no estatuto interno do órgão. Na prática, isso criou uma espécie de censura interna e impediu o atual diretor-geral da agência, Wilson Trezza, de estabelecer qualquer tipo de ligação com a mídia. Até notas oficiais são barradas. Por esse motivo, Trezza não atendeu aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Sugeriu que a demanda fosse encaminhada ao GSI.

A revista enviou perguntas ao GSI. Obteve a seguinte resposta: até a conclusão dos trabalhos da missão brasileira enviada a Washington, o gabinete considera “não ser oportuna a realização da entrevista”.
A missão brasileira precede a visita de Dilma aos Estados Unidos em outubro. Em setores ligados ao governo cresce a sensação de que os americanos agem para fazer valer seus interesses, especialmente na ainda indefinida licitação dos caças. As Forças Armadas anunciaram poucos dias atrás a intenção de aposentar os Mirage a partir do fim deste ano. A compra de novos aviões de defesa foi adiada inúmeras vezes durante a administração de Lula, apesar de um acordo prévio fechado com os franceses.

Os caças F-18 são superiores às aeronaves concorrentes, mas os EUA têm restrições para a transferência de tecnologia, item até agora considerado fundamental pelo governo brasileiro no processo de compra. Não se sabe se Dilma manterá as diretrizes do antecessor ou mudará os critérios de escolha. Washington nutre esperanças de alterar a perspectiva de Brasília. Resta saber se as recentes revelações da espionagem de Tio Sam vão atrapalhar o lobby americano.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014

O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014

Quem considera indiferente a vitória de Dilma Rousseff, Eduardo Campos ou Aécio Neves em 2014 deve abrir os olhos à experiência da história.

por: Saul Leblon

Um congresso sobre marxismo numa Europa devastada pela recessão e o desemprego, fruto da austeridade pró-mercados, seria a última pauta do mundo para a grande mídia conservadora.

Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).

Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa,  por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento  fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.

As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a  análise marxista propicia sobre a natureza da  crise atual.

A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o  passo seguinte do desenvolvimento brasileiro  mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir,  os protagonistas reconhecidos e pretensos  da disputa de 2014.

É com esses  olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.

Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.

Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.

Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo,  do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.

Seria essa a alternativa  ao que se acusa de  ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.

Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.

“O  que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública)  e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.

As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade  são devastadoras, explica o dirigente do Syriza,  Stathis Kouvelakis.

Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.

“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.

A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.

A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.

“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa  o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.

“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.

A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático  na Grécia, facilitando a sangria conservadora.

Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou  Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.

 ‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política;  existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.

A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.

A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.

 Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento  não são  realidades contraditórias.

Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.

Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.

A austeridade  jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
 
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750  mil imóveis novos encontram-se encalhados  e mais 500 mil inconclusos.

Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.

Para recuperar os preços do mercado imobiliário.

O absurdo foi implementado  nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.

O que parece ser exceção é a norma.

Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.

O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx,  é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.

Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora  no Brasil?

Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam  irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas   e a ‘gastança’ dos programas sociais.

Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer  ao Brasil.

Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.

O keynesianismo em si  tornou-se  uma teoria desprovida de  conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da  produção e da justiça social em nosso tempo.

Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social  que o conduza.

Logo, um protagonista coletivo que o lidere.

Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.

Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.

A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.

A ver.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Libertadores da América

Simón Rodríguez: plantador de uma nova América


“Professor é o que ensina a aprender e ajuda a compreender”
22/10/2013

Elaine Tavares

Findava o século 18 quando nesse continente dominado pela ocupação espanhola uma voz solitária propõe outra forma de educar as crianças, para além do simplesmente escrever o nome e soletrar algumas palavras. Era o jovem Simón Rodríguez, professor numa pequena escola da cidade de Caracas, Venezuela. Num documento que entra para a história, ele faz uma ácida crítica ao sistema educacional da época e expõe suas ideias. Segundo ele, o estado tinha de investir na formação de professores e a educação não podia mais ficar restrita aos jovens brancos bem nascidos. Era necessária uma educação popular capaz de formar meninos, meninas, negros e índios. Essa proposta, revolucionária para aquele então, o colocaria para fora da escola, mas começava aí a incrível trajetória desse educador sem igual na América Latina.

O começo
Simón Rodríguez nasce em Caracas no ano de 1771. Ele mesmo contava que fora um menino exposto, daqueles que são colocados nas portas dos conventos. Foi criado por Caetano e Rosália Rodríguez, embora sua educação estivesse a cargo do tio, que era sacerdote. Naqueles dias, a cidade de Caracas era um lugar aprazível, de grandes solares onde viviam os espanhóis e os criollos, servidos por escravos. Para essa sociedade, o trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante se permitia unicamente a carreira militar além dos postos de mando da vida cotidiana. Havia apenas três estabelecimentos de educação na cidade: o convento dos Franciscanos, uma escola pública e a Universidade. Simón foi alfabetizado em casa, pelo tio, mas era um garoto aplicado e observador. Amava ler e devorou cada livro que encontrou na biblioteca do tio, que era bem servida. Na Caracas daqueles dias chegavam os franceses da ilustração (Montesquieu, Voltaire, Rousseau) e Simón os conhecia. Também tinha acesso aos escritos que chegavam dos Estados Unidos e acompanhou o processo de independência daquele país, bem como o da Revolução Francesa. Forjava-se nele o espírito da rebelião.
Em 1791, com apenas 20 anos, consegue o cargo de professor na escola pública e tem sob seu comando 114 alunos. Simón não tem experiência, mas observa que o ensino ministrado não tem um método e começa a matutar sobre essa deficiência. Amante de Rousseau, quer estabelecer outra relação com os alunos, mas fica prisioneiro das regras. Então, decide ensinar alguns dos alunos em sua própria casa, que gradativamente torna-se uma escola. A cidade olha curiosa para aquele garoto de aparência séria que dedica sua vida ao ensino. E é essa pequena “fama” que faz com que o tutor de Simón Bolívar peça ao educador que assuma a educação do garoto, então com nove anos. Começa aí a relação dos dois Simóns que mudará a face da colônia.
No começo Simón atende o garoto Bolívar na casa da família e passa a usar com ele as ideias de Rousseau. Uma educação ao ar livre, repleta de brincadeiras e exercícios físicos. O ensino das letras vai devagar. Com o passar do tempo, a família de Bolívar percebe que não há muito avanço e exige mais. Então, Simón propõe que o garoto fique na escola que mantém em sua casa, junto com os demais alunos. Já naqueles dias a escola de Simón era bem diferente. Recebia, além de filhos da aristocracia, crianças de famílias pobres, uma coisa praticamente inédita para a época. E lá se vai Bolívar estudar com negros e índios, além de dividir o quarto, coisa até então impensável para um herdeiro criollo. Há quem diga que foi aí que aquele que seria o “libertador” forjou seu amor pelas gentes da América. Mas, isso são especulações.
O certo é que Simón não se conformava em ver a educação das crianças colocada nas mãos de gente sem formação e sem método. Então se dispõe a registrar uma crítica avassaladora do sistema. Escreve o texto: “Reflexões sobre os defeitos que viciam a Escola de Primeiras Letras de Caracas e os meios para uma reforma por um novo estabelecimento”. Nele, o jovem professor arrasa com o sistema vigente, critica o fato de só ser oferecida educação às crianças brancas e aponta a necessidade de educar as crianças pobres, aos agricultores, aos artesãos. “O regime deve ser de igualdade”, diz. Mostra também que o sistema não se preocupa com a formação dos professores e insiste que esse deve ser o principal fator de mudança. Como proposta exige o aumento do número de escolas, capaz de atender todas as crianças em idade escolar, a formação de professores profissionais, salários dignos para os educadores, jornada de seis horas, móveis adequados para o ensino e finalizava exigindo que se tomasse a sério a escola de primeiras letras. “Uma escola até pode ser superficial, mas não inútil. O aluno não pode esquecer o que aprendeu. Há que ter cuidado e delicadeza para dar às crianças a primeira ideia de uma coisa”. Dizia isso porque havia a tradição de ensinarem até nas barbearias, enquanto afeitavam os clientes. Simón abominava isso. Defendia que como nessa idade a criança se distrai com qualquer coisa, era necessário um ambiente adequado e que o professor também prestasse atenção nas brincadeiras. “É necessário saber ler em todos os sentidos e dar a cada expressão o seu próprio valor”.
As reflexões de Simón não são bem vindas, nem na escola nem na administração. Ele se indigna e deixa o cargo, seguindo apenas com sua escola, em casa. Nesse meio tempo se engaja num movimento conspiratório pela independência que já existia em Caracas. O grupo é descoberto e Simón acaba fugindo para a Jamaica, visando escapar da justiça colonial. No dia do embarque recebe a visita de seu aluno, Bolívar, do qual se despede. Chegando à Jamaica Simón troca de nome, passa a chamar-se Samuel Robinson. Não quer nenhuma ligação com a vida antiga e jura nunca mais voltar à Venezuela. Pouco tempo depois vai para os estados Unidos onde fica por três anos trabalhando numa gráfica. Lá, ele aprende a editar e inventa uma nova forma de montar os textos, usando letras maiúsculas para destacar bem como criando manchetes.
Tem 30 anos (1801) quando embarca finalmente para a França. Lá abre escolas, ensina espanhol e inglês, lê como um louco e vai consolidando seu pensamento educativo. Três anos depois encontra, em Viena, seu antigo aluno, Bolívar, que passa a conviver com o mestre. Eles leem, estudam e viajam juntos. No ano de 1805 os dois seguem à pé até a Itália, aproveitando para discutir a realidade do mundo e da velha pátria colonizada. E é justamente no Monte Sacro que os dois fazem seu histórico juramento: libertar a pátria ou morrer. A partir daí, Bolívar retorna para a Venezuela, onde nos anos seguintes vai dar consequência a essa promessa. Simón segue no velho mundo criando escolas por todo o lugar onde passa: Itália, Alemanha, Prússia, Polônia e Rússia. O educador acompanha as façanhas de seu aluno na colônia e percebe que a vida por ali está prestes a sofrer uma grande transformação. Decide então, voltar para casa.

O retorno para a América
Simón tem 52 anos quando desembarca em Cartagena em 1823, disposto a dar todo o seu conhecimento para construir a Pátria Grande, liberta do jugo espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com Bolívar há quase 20 anos. As guerras de independência já estavam quase consolidadas. Bolívar era o grande libertador e comandava os destinos de toda a Gran Colômbia. Simón então viaja até Bogotá onde começa a pôr em prática a sua proposta pedagógica, amadurecida por longos anos de estudo e prática. Todos ali já sabem que ele é o grande mestre de Bolívar e todos os recursos são colocados à sua disposição para a criação da Casa de Indústria Pública, o que vem a ser o inovador método educativo de Simón. Nessa casa as crianças teriam ensino por tempo integral e além de estudarem as matérias clássicas aprenderiam também um ofício, aprendendo artes mecânicas. Seu foco eram as crianças mais pobres, que precisariam enfrentar o mundo que nascia com uma formação adequada. O educador entendia que o que estava nascendo era uma forma nova de ser nação e por conta disso era necessária também uma nova educação. “Formar o povo deve ser a única ocupação dos que se ligam a uma causa social”, dizia e, para ele, as novas repúblicas eram essa causa social.
Toda a sua linha de agir pedagógico já tinha sido eternizada num escrito chamado: “Sociedades Americanas”, que ele só conseguirá editar em 1828. Nele, Simón defendia que o aluno dessa nova forma de ser nação tinha de ser um sujeito pensante. “O que pensa, procede segundo sua consciência. O que não pensa, só imita”. Sua preocupação não era formar letrados e sim cidadãos, pessoas capazes de compreenderem seu espaço geográfico e político. Por isso insistia que em vez de papagaiar sobre os persas e os egípcios era necessário entender os índios. Simón queria tomar para si a tarefa de educar os jovens pobres que estavam pelas ruas, os abandonados, os ilegítimos, fazendo com eles se tornassem homens cientes de seus direitos na nova sociedade. “Deixemos a França e vejamos a América”, bradava. Sua proposta era de educação popular para que todos pudessem viver sem amos. “Na educação popular o filho do sapateiro se educa como o filho de um negociante. Ambos aprendem a faculdade do pensar. A instrução é para o espírito assim como o pão é para o corpo”. Simón tinha plena certeza de que se todos fossem instruídos, os ignorantes de então poderiam vira a ser conselheiros e os ladrões, companheiros de viagem. Certo de que a ignorância era a causa de todos os males, seu remédio era a educação. “A América é original, original hão de ser suas instituições e seus governos, e originais os meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos”.
Simón Rodriguez não podia conceber que a nova nação se erguesse sob bases antigas, sob imitações da Europa. Queria saídas originais e sabia que isso era possível. Queria homens e mulheres capazes de gerir sua própria história sem precisar de heróis ou mitos. Um homem que pensa é um homem livre, afirmava. E, para isso, era preciso investir tudo na formação de professores. Depois, com eles, criar as condições para que o ensino fosse um fazer-se compreender e não o velho estilo de trabalhar a memória. A proposta era formar homens úteis à República. Também insistia que era necessário educar e ensinar as mulheres “para que elas não se prostituíssem por necessidade, nem buscassem o casamento para garantir sobrevivência”. Toda a base de sua pedagogia era mesclar o ensino social, corporal e científico. “O fundamento do sistema republicano está na opinião do povo. Ninguém faz bem o que não sabe, então não se pode fazer uma república com gente ignorante”.
Seu conceito original de escola, a escola social, é o que ele tenta pôr em prática na Colômbia, mas não encontra eco. Ele queria formar pessoas que atendessem a uma autoridade social e não pessoal. Foi o precursor da Escola de Artes e Ofícios, da Universidade Popular. Na época, comandava a Colômbia aquele que viria a trair toda a proposta de Bolívar: Santander. E obviamente esse tipo de ensino não lhe era favorável.

De novo com Bolívar
Quando Simón finalmente encontra Bolívar, depois de mais de ano de sua chegada, decide que não é mais possível ficar na Colômbia e segue com seu antigo aluno rumo ao Peru. Bolívar quer que o velho mestre se incorpore ao esforço de construir a grande pátria americana e não mede esforços nem recursos para que ele consiga colocar em prática suas ideias educativas. Simón segue então para a cidade de Cuzco onde cria um colégio já dentro do seu padrão: para crianças pobres, com ensino de ciências, arte e trabalho. Para isso usa os espaços e o dinheiro das congregações religiosas, o que também já coloca uma boa parte do clero contra ele. Mas, como está com Bolíviar, tudo vai se fazendo conforme as regras ditadas por Simón. Em várias cidades peruanas surgem colégios desse tipo. Logo em seguida eles partem para a Bolívia aonde vão se encontrar com Sucre. Na cidade de La Paz Simón estrutura uma biblioteca e Bolívar decide nomear o professor para comandar todo o processo de Educação no nascente país. Assim, no ano de 1825, Simón é nomeado Diretor de Ensino e prepara um Plano Educativo para o governo de Sucre. Entendia ele que o primeiro dever de um governo é dar educação ao povo e, assim, monta uma proposta semelhante a que tinha tentado trabalhar na Colômbia: uma escola social. Para isso buscou recolher todos os órfãos que andavam vagando pelas ruas e os colocou em ambiente adequado para o ensino das artes, da ciência e do ofício. Também procurou acolher as meninas, as quais acreditava mereceriam também receber educação. Da mesma forma que no Peru, também usou propriedades da igreja.
Bolívar segue seu caminho e deixa Simón na Bolívia. Sem a proteção do libertador, Simón vai perdendo apoio no seu projeto. As autoridades locais, os padres e até mesmo Sucre não conseguem entender os métodos de caraquenho. É que ele insistia em proporcionar aos alunos aquilo que havia de melhor. Os melhores móveis, as melhores máquinas para o trabalho, os melhores professores. Tudo isso custava dinheiro e, no meio da guerra, os que estavam no comando acreditavam que havia coisas mais urgentes para investir. Seis meses depois de estar no cargo de Diretor Geral, ele sai de Chuquisaca e vai para Cochabamba criar mais uma escola. Aproveitando a ausência, o prefeito da cidade fecha a sua Escola Modelo que abrigava mais de 200 crianças. “Essa é uma escola para cholas e filhos de putas”, dizia o prefeito, e pregava a necessidade de ter uma escola apenas para “gente decente”. Intrigado com os padres que não queriam ver os bens da igreja sendo dispensados aos garotos pobres e aos índios, Simón vai sendo derrotado. Até mesmo Sucre o repreende pelo alto valor dos gastos e Simón se sente insultado. Então, renuncia ao cargo e sai da Bolívia. “Por querer ensinar mais do que todos sabem, não me entenderam, muitos me depreciaram, e alguns me ofenderam. Entretanto, para fazer republicanos é preciso gente nova”.
Derrotado na Bolívia ele volta ao Peru, vai para a cidade de Arequipa onde escreve seu livro “Sobre o Projeto Popular” que é a sistematização das experiências que ele havia dado início na Colômbia e na Bolívia. Ali orienta, mais uma vez, o ensino da ciência, das letras e de ofício, defende a educação das meninas, dos índios e dos pobres. “Todos devem ser bem alojados, bem vestidos e alimentados”. Sua proposta era de educação integral. Além disso, preocupava-se com a situação dos pais das crianças. Acreditava que era preciso garantir trabalho a eles, e socorro se fossem inválidos. “Há que formar homens úteis, dar-lhes terras e auxiliar nos seus negócios”. Não é sem razão que o método de Simón é visto como assustador pelos novos dirigentes criollos. Sua proposta educativa era também uma revolução social e econômica.

Educação colonizada
Naqueles dias em que a independência se consolidava não eram poucos os educadores europeus que vinham oferecer seus serviços a Bolívar e aos outros dirigentes das repúblicas. Um deles foi Lancaster. Seu método aparecia como muito mais interessante para os novos governadores porque era bem mais barato do que o de Simón. Lancaster propunha que os alunos mais adiantados fossem os professores dos menores, o que para Simón era uma vilania. Afinal, o pilar de sustentação do seu método era justamente a formação dos professores, a qualificação dos mesmos. “Instruir não é educar, nem instrução pode ser equivalente à educação, ainda que instruindo se eduque”, dizia, mostrando que aluno não podia educar aluno. Acreditava que na primeira escola as crianças, mais do que aprender a pintar as palavras, precisavam aprender a pensar e a raciocinar. E isso era tarefa para gente capacitada a educar. Simón trabalha com uma pedagogia prática: expõe como ensinar lógica, o idioma, o cálculo, a história, sempre por princípios e “como os princípios estão nas coisas, se ensinará a pensar”. Esse era seu mantra. “Ler não será estropear palavras para ganhar tempo, mas sim dar sentido aos conceitos. Assim, quem não entende o que está lendo, não deve ler”. E assim esgrimia sua crítica ao método lancasteriano. “O que pode ler aquele que não tem ideias?” Simón acreditava que ensinar mal era um crime que se cometia contra aqueles que deveriam ser os novos dirigentes na nova América.

Morre Bolívar
O ano de 1830 é particularmente triste para todo o continente sul-americano. A proposta de Bolívar de criar uma grande pátria, compostas por províncias interdependentes, fracassa. Traído pelos velhos companheiros, doente, Bolívar vê seu sonho desmoronar como um castelo de cartas. Certos de que a enfermidade vencerá o libertador, os novos dirigentes vão dando fim a qualquer rastro da Pátria Grande idealizada por ele. Sucre, que seria o braço direito do libertador e seu natural sucessor, é assassinado em uma emboscada. Pouco depois, Bolívar morre, abandonado e degredado. Para Simón, tudo aquilo também significaria a derrota de seu projeto de educação. Sem seu velho amigo e marcado como um dos homens de Bolívar, Simón terá seu caminho sistematicamente travado a partir daí.
Abandona Arequipa e segue para Lima, onde recomeça a dar aulas. Mas, não consegue avançar no seu método. As famílias “de bem” o chamam de louco e imoral, porque ele insiste em educar as meninas e os índios. Ainda assim, insiste na crítica à educação da época, escrevendo num jornal local: “Para ser uma república há que se investir em educação popular. Com homens já formados só se pode fazer o que se faz hoje: desacreditar a causa social”.
Simón permanece em Lima até o ano de 1834, quando completa 60 anos. Recebe o convite de um amigo para ir ao Chile ser reitor de um Colégio Provincial. Apesar de todos os ataques que sofre, ainda restam muitos seguidores de Bolívar, muitos homens dispostos a dar outra cara para as repúblicas nascentes e é aí que ele se ampara. Che ao Chile e prefere dirigir uma pequena escola, onde seu método pode vingar. Lá, ele ensina a partir de quatro quadros, que desenha na lousa. O primeiro era o fisionômico, no qual repassava as noções acerca das matérias e dos ofícios. O segundo era o fisiográfico, no qual repassava o conhecimento mais aprofundado sobre os temas. O terceiro era o fisiológico, no qual ensinava as ciências e o quarto era o econômico, no qual ensinava filosofia. Sua maneira de ensinar era expositiva. Não usava textos, apenas os quadros sinópticos, sempre apontando explicações que estivessem ao alcance dos alunos. “Encontrem vocês as suas ideias, para fixa-las e retê-las na memória. Procurem armazenar as ideias e se perguntem sobre o que fazer”.

Um homem sem raiz
Quando tudo parecia caminhar bem, alguma coisa acontecia e obrigava o velho educador a se mover. Era como se ele fosse predestinado a não encontrar guarida. Um ano depois de estar no Chile, um grande terremoto destrói a escola e faz com que Simón mude-se outra vez. Segue agora para Santiago onde abre uma escola e uma fábrica de velas, para dar aos alunos a possibilidade de aprender um ofício. Continua tentando imprimir uma educação transformadora, ainda acredita na possibilidade de um mundo novo. “A educação pública no século XIX pede muita filosofia. O interesse geral está chamando por uma reforma e a América está chamada pelas circunstâncias para empreendê-la. A América não deve imitar servilmente e sim ser original. Ideia, ideias, primeiro que letras”.
Naqueles dias, apesar de todos os infortúnios, Simón era muito procurado por educadores de todo o mundo. Vinha gente da Europa para conhecê-lo e aprender seu método. Mas, na América mesmo, sua voz era como pérolas aos porcos. Tanto que as escolas que criava acabam se fechando por falta de recursos. Não havia quem bancasse. E os que bancavam exigiam mudanças, queriam baixar os custos. Simón não aceitava. Foi o que se passou em Valparaíso, onde foi também obrigado a desistir da escola, embora seguisse com a fábrica de velas. Com sua fina ironia, dizia: “A liberdade me é mais querida que o bem estar. Vou continuar iluminando a América, sigo fazendo velas”.
A experiência chilena logo se desfaz e Simón volta para Lima onde permanece até o ano de 1843. Lá, aproveita o tempo para escrever seus livros. Tem 72 anos quando desde o Equador, um velho amigo o chama para ensinar na cidade de Latagunga. Atravessa os Andes no lombo de uma mula, mas não fica por lá muito tempo, em função da instabilidade política. O chamam da Venezuela, mas ele se nega a voltar. Segue então para a Colômbia outra vez. Apesar da idade, está forte e continua abrindo escolas por onde passa. Quando completa 80 anos de vida retorna para o Equador onde permanece por três anos ainda ensinando no Colégio São Vicente.
No final do ano de 1853 decide voltar para o Peru com o filho José e um amigo. Leva com ele tudo o que tem. Uma muda de roupa e duas caixas de livros. Sem recursos, eles decidem ir por mar, numa balsa. O mar encapelado, tempestades e eles se perdem. Quase naufragam. Acabam batendo numa pequena comunidade de pescadores. Simón está muito fraco e tem problemas de intestino. Os pescadores temem que seja doença contagiosa e expulsam os viajantes. O amigo vai até a aldeia, buscar ajuda junto ao padre. Explica quem é Simón, sua situação e o padre decide ajudar. Mas, depois, informado de quem era Simón, chamado de louco e imoral, não deixa que o velho venha para a aldeia. O confina numa propriedade fora do povoado. Simón vai definhando. Apenas uma caridosa mulher leva comida, apesar de ter sido proibida. Dois dias antes de morrer, manda chamar o padre. Ele vai, achando que o velho vai se confessar. Não o faz. Segundo o amigo, Camilo Gomez, ele apenas disserta uma arenga materialista e diz que a única religião que teve na vida foi o juramento que fez, junto com Bolívar, no Monte Sacro, de libertar a América. No dia seguinte, morreu. Foram 83 anos de caminhada pelo mundo, incompreendido, amaldiçoado. Mas nunca traiu seus princípios.

O legado
Simón foi, em tudo, um homem original. Casou-se cedo, teve um filho, mas não viveu para ser um pai de família tradicional. Seu destino era o de ser um plantador de escolas por todo o lugar onde passou. E não foram poucos. Saiu da Venezuela, por conspirador, e nunca mais voltou. Mas nunca deixou de mandar dinheiro para a esposa, apesar de nunca mais vê-la. Forjou seu pensamento acerca de educação na crítica sistemática e seu maior legado foi ter pensado a América desde a América. Não foi capaz de se oportunizar das novas possibilidades do mundo novo que se abria. Insistiu no seu método de ensinar a pensar os meninos, as meninas, os negros e os índios, a quem chamada de “os donos do país”. Queria formar gente capaz de ser sujeito de sua própria vida. “Dos brancos não espere nada. Mais vale entender os índios que a Ovídio”. Acreditava que a escola devia ser um lugar de acolhimento, com espaço para a educação e a brincadeira, tirando as crianças da rua. Queria seres pensantes: “Que aprendam as crianças a serem perguntadoras, para que pedindo o porquê se acostumem a obedecer a razão, não à autoridade como os limitados, nem aos costumes como os estúpidos”.
Simón também ensinava a partir da realidade local, da observação da realidade da criança. “Se ensinamos ciências exatas e de observação, os jovens aprenderão a apreciar o que pisam”. Ministrava uma educação social, não individual. Propunha-se a tirar o pobre da ignorância. “O homem não é ignorante porque é pobre, senão o contrário. Ensinem e terão quem saiba, eduquem, e terão quem faça. A América não deve imitar servilmente, deve ser original”.
Aquele que forjou Bolívar par a libertação tinha tanto amor pela educação que, apesar de toda a sisudez, foi capaz de produzir poesia. “Ler é ressuscitar ideias sepultadas no papel. Cada palavra é um epitáfio. Chamá-las à vida é uma espécie de milagre e, para fazê-lo, é necessário conhecer o espírito das palavras”. Tratado como louco ele ficou esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava, ele também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios dessa Abya Yala.
Simón Rodriguez, Samuel Robinson, presente!

Referências
Obras completas de Simón Rodríguez – Tomos I e II. Presidencia de la República. Venezuela, 1999

Elaine Tavares é jornalista.