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sábado, 25 de janeiro de 2014

‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo


‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo



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‘Amistad’: O navio negreiro, porão do liberalismo

Flávio Ricardo Vassoler*no GELEDES

O navio negreiro singra através do Atlântico. Em seu porão, os cativos mal conseguem se esgueirar. A fome e as correntes os paralisam. Em meados do século XIX, a Inglaterra, polícia dos mares, havia decretado a proibição do tráfico de escravos. A mãe da Revolução Industrial queria o implemento do livre comércio e do trabalho assalariado para que suas manufaturas pudessem colonizar o mundo de um modo menos bárbaro – os feitores dão lugar aos industriais e financistas. Só faltou avisar aos ingleses que seu vastíssimo império colonial, ao longo de cujo horizonte o sol não se punha, tamanha a sua extensão de oeste a leste do planeta, não poderia participar dos primórdios do liberalismo em pé de igualdade com os gentlemen de Londres. Mas se, como quer Adam Smith, a mão invisível conduz as relações de mercado a um bom termo de equilíbrio, a vista grossa permite que o livre comércio seja forjado sobre o dorso cativo da África. 

A ironia, ou pior, o cinismo que movimenta a história humana batiza o navio negreiro com o fraterno nome de ‘Amistad’ (1997), filme dirigido por Steven Spielberg. Os escravos, a quem a ideologia reacionária chama de passivos e resignados, se rebelam no porão infecto. Sangue europeu começa a jorrar. Logo os espanhóis que comandam o barco viram reféns. Os cativos libertos por seu próprio destemor querem voltar para casa. Mas eles não conhecem as técnicas náuticas e precisam confiar nos antigos algozes para que o navio retorne. Ora, os espanhóis dolosos conduzem o Amistad rumo aos Estados Unidos escravocratas. A rebelião negra logo será julgada por magistrados brancos. 

As queixas e contradições se sobrepõem. A rainha da Espanha sentencia que os escravos lhe pertencem. Os comandantes espanhóis dizem que os cativos haviam nascido em Cuba, colônia espanhola, e que, por isso, “nós não estamos exercendo a prática ilegal do tráfico negreiro. Assim, os escravos nos pertencem”. Os marinheiros norte-americanos, por sua vez, declaram que foram eles que identificaram o barco – “navio negreiro, sem dúvida” – e que, por isso, “somos os novos proprietários da mercadoria humana”. Os mais interessados na questão não podem se pronunciar. Os escravos assistem ainda uma vez acorrentados à deliberação alheia de seu próprio destino. 

O contexto histórico em que a disputa judicial se dá não poderia ser mais explosivo. O judiciário se vê premido pelas demandas do executivo, uma vez que o presidente procura manobrar a questão para evitar um recrudescimento das rivalidades entre o norte industrial e o sul escravista. O espectro da guerra civil ameaça cindir os Estados Unidos. 

− Mas esses negros devem ser punidos, eles chacinaram os brancos que os conduziam para Cuba, onde está a justiça neste país?! – berra o promotor que bem poderia iniciar um abaixo-assinado (extra)oficial para a formação da futura Klu Klux Klan. 

Além do ódio pelos sequestradores que lhes transformaram de homens livres em escravos, que mais teria insuflado o ímpeto de vingança dos cativos contra seus algozes? 

A armada inglesa, polícia dos mares, prendia os traficantes de escravos Atlântico afora. Quando os espanhóis se deram conta de que as tropas da rainha Vitória se acercavam do navio, um velho expediente foi utilizado para que o fardo humano transportado pelo Amistad não ultrapassasse os limites legais para o enquadramento da carga como um contingente de escravos. Entre os 100 africanos, 50 são escolhidos – seleção eugênica que aguilhoa sobretudo mulheres e crianças, os menos aptos para o trabalho na lavoura. (Os nazistas, parentes não tão distantes dos escravocratas, herdariam dos ancestrais o ímpeto pela seleção natural historicamente configurada.) Os 50 mais fortes devem se postar como plateia para aprender in loco a pedagogia do pelourinho. Os escolhidos são acorrentados uns aos outros. Uma rede repleta de pedras pesadíssimas puxará o comboio humano oceano abaixo. Quando o algoz espanhol abre um compartimento do convés e arremessa a rede repleta de pedra contra o mar, um a um os escravos são afogados. (Enquanto os fazendeiros sulistas dormem o sono dos justos e contam carneirinhos tão brancos quanto o algodão colhido por seus escravos, os africanos sobreviventes contam, uma a uma, as 50 ovelhas negras afogadas como bodes expiatórios.) Reiteremos, agora, a acusação (aos berros) do promotor de justiça: 

− Esses negros devem ser punidos, eles chacinaram os brancos que os conduziam para Cuba, onde está a justiça neste país?! 

Quando a senzala incinera a casa grande e transforma o Mississippi em chamas, apenas ocorre a devolução da nota promissória que sequer foi entregue àqueles condenados a trabalhar gratuita e compulsoriamente. 

Mas eis que o liberalismo dos fundadores dos Estados Unidos da América agora se expressa na figura do ilustre John Quincy Adams, sexto presidente dos Estados Unidos e filho do também presidente John Adams. Adams Jr. vem à tona como advogado de defesa dos cativos da Amistad espanhola. Em suas mãos, há um artigo de um político sulista que procura legitimar a escravidão. O ex-presidente dos EUA, como Sócrates, narra a cadeia de argumentos contrários antes de refutá-la cabalmente: 

− Diz o sulista em questão que a escravidão não é contrária à natureza humana, pois para onde quer que olhemos, seja para a história mundana, seja para os textos bíblicos, encontraremos exemplos que atestam que sempre houve subordinação entre os homens – líderes e liderados, senhores e escravos. Hierarquia. Assim, a escravidão não é pecaminosa ou má, mas a corroboração da tradição histórica, sua mais coerente expressão. 

John Quincy Adams, rematado orador, cala as palavras por um sutil lapso de tempo para que os jurados e os espectadores se preparem para – e anseiem por – sua contraposição:

− No entanto, o político sulista agora não mais em questão, mas em xeque, não consegue explicar por que os homens só fazem se rebelar quando se veem privados de sua propriedade mais natural, qual seja, a liberdade. Do contrário, não haveria choro, ranger de dentes, fúria e revolta diante dos feitores. Os homens aceitariam o quinhão do cativeiro de bom grado. Mas a experiência – o mesmo transcurso histórico advogado pelo sulista escravocrata – me autoriza a dizer que o homem vem da liberdade e para ela sempre propende. Tudo o mais é fruto da tirania e do arbítrio que pretende transformar a lógica de uns poucos no cárcere de quase todos. 

Hollywood e suas pesquisas de mercado – essenciais para transformar filmes em demandas artísticas que ratifiquem em termos de bilheteria os investimentos milionários – gostam da grandiloquência que leva o público às lágrimas. A realidade ficcional realiza a justiça para que a realidade histórica permaneça e se reproduza tal como está. Que dizer sobre o liberalismo de John Quincy Adams quando sabemos que o ex-presidente foi um dos principais idealizadores da Doutrina Monroe? Assim falou o presidente James Monroe: “Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afeta os direitos e os interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como suscetíveis de colonização por nenhuma potência européia”. O México, a América Central e a América do Sul bem sabem que a polícia do continente deixou de ser europeia para se tornar estanunidense. A América para os americanos – do norte. Mas, a despeito do entretenimento administrado de Hollywood, o liberalismo abolicionista foi o primeiro aríete para a luta pelos direitos civis nos EUA sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. O judeu Steven Spielberg bem sabe que a lógica do navio negreiro escreveu o prefácio histórico para as câmaras de gás de Auschwitz, Dachau e Treblinka. Nesse sentido, ‘Amistad’ não nos traz apenas a cínica contiguidade entre a amizade e a escravidão, mas insufla ar redivivo para pensarmos, narrativamente, sobre feridas históricas que nossos tempos ainda não conseguiram cicatrizar. 


*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. 


Fonte: Carta Maior

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Dachau, a memória como antídoto contra a barbárie




Najla Passos no CARTA MAIOR
Najla Passos

Dachau - No momento em que o Brasil começa a discutir a pertinência de se criar ou não centros de memória para garantir às novas gerações o conhecimento histórico sobre as barbáries cometidas pela ditadura, um olhar sobre o tratamento destinado pelos alemães aos horrores nazistas pode ser revelador. Lá, como cá, o acerto de contas com o passado está longe do fim, embora infinitamente mais avançado, com julgamentos e prisões em larga escala já efetuados. Mas lá, ao contrário de cá, o resgate da memória é cobrança social, é política de estado, é fato consumado.




 
Lá, como cá, ninguém tem dúvidas que seja difícil ensinar aos jovens que o mundo não é um conto de fadas como pode fazer crer as histórias de reis e rainhas. Mas o fato é que lá, ao contrário de cá, os mesmos adolescentes que visitam o castelo do louco rei Ludovico – aquela obra prima da arquitetura que inspirou Walt Disney a criar o da sua Cinderela - também são estimulados, inclusive por excursões escolares do sistema público de educação, a conhecerem memoriais como o do Campo de Concentração de Dachau, pequeno município de cerca de 40 mil habitantes, a 15 Km de Munique, capital da Baviera, no Sul da Alemanha.

A visita não é fácil. Por isso, os sobreviventes e familiares das vítimas que compõem o comitê gestor do memorial não a indicam para menores de 12 anos e estimulam que as excursões escolares ocorram apenas para maiores de 14. Além dos estudantes, turistas de todas as partes do mundo visitam o local. Segundo os administradores, Dachau recebe, em média, 900 pessoas por dia. Há mapas, placas explicativas e áudio-guias em nove diferentes línguas. No cineteatro construído na antiga sede administrativa, um documentário sobre o campo é exibido em quatro línguas alternadas, com legendas em outras três. Na livraria do memorial, há livros, panfletos, estudos acadêmicos e vídeos em diversos idiomas.
 
Uma biblioteca com 14 mil títulos e um arquivo público com documentos, fotos e relíquias também estão abertos à consulta pública. Só sai de lá sem informação quem quiser. 


Campo modelo

O campo de concentração da cidade de Dachau foi o primeiro inagurado pelos nazistas, em março de 1933, apenas seis semanas após Hitler chegar ao poder e, com o discurso de combater o avanço do comunismo, suspender as liberdades individuais e dar início ao seu estado policialesco. Posteriormente, serviu de modelo para os outros 44 construídos na Alemanha e nos países ocupados. Por ele passaram quase 200 mil prisioneiros. Nos primeiros anos, eles eram os presos políticos que se levantaram contra o nazistas: comunistas, socialdemocratas e sindicalistas, judeus ou não, além de sacerdotes cristãos e testemunhas de Jeová.

 
Em seguida, vieram os classificados como “antissociais”: homossexuais, ciganos, criminosos comuns. Só depois de 1938, com o início do programa genocida batizado de “Solução final”, os judeus começaram a chegar em grande número: foram 11 mil só no primeiro ano. Com a sobrecarga, as péssimas condições de sobrevida no campo tornaram-se ainda mais duras: originalmente construído para seis mil prisioneiros, chegou a abrigar 30 mil ao mesmo tempo.

Não havia espaço para quem não estava apto ao trabalho escravo necessário para o sustento da máquina de guerra de Hitler: prisioneiros em condições precárias de saúde, enfermos graves e pacientes psiquiátricos, eram imediatamente enviados a outros campos onde o extermínio em massa era prática institucionalizada. Mas em Dachau também se morria fartamente. Há registros de 41,5 mil mortes por execução, castigo extremo, desnutrição, fadiga, tifo. E são números parciais: não há informação suficiente, por exemplo, de quantos oficiais soviéticos foram executados ali.

O pequeno crematório instalado em 1938, com um forno, funcionava quase que ininterruptamente e, ainda assim, não dava vazão aos corpos abatidos no campo.
 
Em 1940, foi instalado um maior, equipado com quatro fornos e com uma câmara de gás, disfarçada de chuveiro. Ainda assim, quando os aliados libertaram os 30 mil prisioneiros que sobreviveram ao regime nazista, três mil corpos em estado avançado de decomposição se acumulavam em caminhões. A cena registrada em fotos e filme é uma das mais fortes do documentário.

Visita ácida

O nó no estômago já se instala no antigo portão que dá acesso campo, onde a inscrição “O trabalho liberta” parece afrontar à vida e à história. Dentro da grande área cercada por arame farpado, valas e sete torres de guarda, o clima parece mais frio do que os termômetros são capazes de registrar. Já no início do inverno, o dia amanhece tarde com uma fina camada de gelo cobrindo todo o espaço externo. Impossível acreditar que seres humanos descalços, inadequadamente vestidos e mal alimentados pudessem sobreviver ali por muito tempo. Mais: que ainda conseguissem vencer os trabalhos forçados ou as experiências “científicas” a que eram submetidos.


Na grande área principal do campo, funcionava a administração, em prédio hoje transformado em museu. Mais adiante, 36 galpões abrigavam os prisioneiros, divididos por categorias. Os 2,7 mil sacerdotes de 20 países ali detidos ficavam em galpões específicos. Só os alemães tinham autorização para celebrar a eucaristia.
 
Os de outras nacionalidades, se pegos exercendo sua fé, eram imediatamente executados. Presos políticos e comuns, ciganos, homossexuais, judeus dividiam os outros prédios e trabalhavam na construção de estradas e na indústria bélica. Para isso, outros 36 subcampos de trabalho foram construídos nas imediações de Dachau. O envolvimento da cidade com o extermínio está fartamente documentado no museu do campo.

As condições dos alojamentos eram as piores possíveis. Destruídos pelas tropas aliadas, eles foram reproduzidos em duas unidades idênticas às originais: banheiros coletivos que desrespeitavam qualquer vestígio de crença no caráter humano dos prisioneiros, além de quartos gelados e tão desconfortáveis que mais pareciam poleiros para criação de aves. A alimentação fornecida consistia em sopa rala uma vez ao dia. O índice de morte por desnutrição era altíssimo. Nos últimos anos, o tifo também dizimou muitas vidas.

Do lado esquerdo da cerca de arame farpado, separada do campo principal por um rio gelado, ficava a área do crematório, o chamado Galpão X, operado pelos próprios prisioneiros. Era nesta área que ocorriam também as execuções dos aliados capturados, incluindo os oficiais soviéticos e as mulheres do batalhão britânico que saltaram de paraquedas para ajudar a resistência francesa a lutar contra o nazismo.

Não há registro de que a câmara de gás tenha sido usada em Dachau para assassinatos em grande escala, embora os historiadores não descartem a possibilidade de que tenha sido utilizada para testes do sistema amplamente adotado em outros campos. A propaganda nazista, fartamente documentada no memorial, chega ao extremo de alegar que o crematório foi construído posteriormente pelas tropas aliadas para acusar os oficiais da SS de crimes contra a humanidade. Depoimentos dos sobreviventes e documentos históricos resgatados desmentem a tese.

Vítimas, imprensa e classe médica

O prédio da administração, hoje transformado em museu, se propõe a reconstruir não só a memória das vítimas, com documentos, fotografias e objetos pessoais, mas também a recriar as condições históricas em que o nazismo se implantou na Alemanha. Merece destaque o acerto de contas com a imprensa que, por motivação ideológica, poder, dinheiro ou tudo isso junto, apoiou o regime de Adolf Hitler. São inúmeros os jornais propagadores dos ideais e das mentiras nazistas recuperados e registrados ali, para que ninguém jamais se esqueça.

 Também há farto material sobre as experiências científicas que usaram seres humanos como cobaias, resultando em muitas mortes e nenhuma descoberta digna de nota. Assim como os jornalistas, a classe médica que compactuou com tamanha barbárie também não passa impune à memória histórica ali bem resgatada. Prisioneiros eram submetidos à descompressão, hipotermia, perda de sangue e quaisquer outras técnicas que ajudassem a ciência nazista a detectar os níveis de resistência humana em condições extremas. O objetivo era aplicá-las na guerra, em favor do exército alemão. Também eram cobaias em testes de medicamentos contra a tifo e a malária, por exemplo, que dizimavam as tropas. Muitos morreram assim. Outros ficaram incapacitados para sempre.

Resgate da memória

O memorial do campo foi inaugurado em 1965, por iniciativa dos seus sobreviventes e familiares, reunidos em um movimento que, em uma tradução livre, foi batizado de “Para que não se esqueça”. O governo da Baviera, que havia recuperado a área do campo após o fim da guerra, investiu os recursos necessários. Na memorial, foram construídos diversos monumentos às vítimas, criados por artistas europeus, como o iugoslavo Nandor Glid, que assina uma escultura onde cospos esquálidos se amontoam, erguida em frente ao antigo prédio administrativo. Há também quatro templos religiosos: um católico, um judaico, um ortodoxo russo, um luterano e outro ecumênico.

Ao longo dos anos, as instalações foram sendo aprimoradas e o acervo histórico, ampliado. Ciganos e homossexuais, preteridos em um primeiro momento, também conquistaram seus espaços. Após o término dos 486 julgamentos em tribunais militares e com o avanço das pesquisas acadêmicas sobre o período, a história pode ser melhor contada. Até hoje, nem todos os detalhes tenham sido reconstituídos, mas as pesquisas continuam.

As visitas são gratuitas. A administração cobra apenas pequenas taxas para os interessados em áudio-guias (de 2,5 a 3 euros) ou visitas guiadas (3 euros). Grandes grupos, escolares ou turísticos, pagam 70 euros por visitas guiadas personalizadas. Os sobreviventes que administram o memorial o definem como “espaço de educação cívica”. Mas quem visita Dachau sabe que ele é muito mais do que isso: no mínimo, um local para reflexão do quanto é necessário preservar a memória da barbárie como forma de vacinar as novas gerações contra sua possível reincidência.


Créditos da foto: Najla Passos

domingo, 12 de janeiro de 2014

Gilmar Mendes: perguntas e respostas


Gilmar Mendes: perguntas e respostas

Do blog Diário do Centro do Mundo:


E eis que o ministro Gilmar Mendes está de novo nas primeiras páginas - como de hábito, em situação desfavorável.

Mendes é uma das estrelas do livro Operação Banqueiro, do jornalista Rubens Valente, lançado neste final de semana.

Nele, Valente mostra como Daniel Dantas, um banqueiro de atuação obscura, recebeu a proteção de Mendes no STF.

Meses atrás, Mendes se destacara na mídia digital - sempre negativamente - depois de conceder habeas corpus para uma funcionária da Receita Federal que tentou sumir com a documentação relativa a uma dívida multimilionária da Globo com o fisco.

Sua atuação política foi sublinhada, involuntariamente, num perfil laudatório escrito, alguns anos atrás, pela jornalista Eliane Cantanhede para uma revista da Folha. No texto, Cantanhede informou – provavelmente sem se dar conta do absurdo do que escrevia – que Mendes é “tucano demais”.

Para ajudar os leitores do Diário a se situarem, montamos um grupo de perguntas e respostas sobre Gilmar.

Quem indicou Gilmar Mendes para o STF?
Fernando Henrique Cardoso.

Como a indicação de Gilmar Mendes para o STF foi recebida por juristas ilibados?
No dia 8 de maio de 2002, a Folha de S. Paulo publicou um artigo do professor Dalmo Dallari, a propósito da indicação de Gilmar Mendes para o Supremo Tribunal Federal, sob o título de Degradação do Judiciário.

Qual era o ponto de Dallari?
“Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado”, afirmou Dallari, “não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional.”

Por quê?
Gilmar, segundo Dallari, especializou-se em “inventar” soluções jurídicas no interesse do governo. “Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito”, escreveu Dallari. ”No governo Fernando Henrique, o mesmo Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.”.

Como Gilmar, no cargo de advogado- geral da União, definiu o judiciário brasileiro depois de suas derrotas judiciais?
Ele fez uma afirmação textual segundo a qual o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio judiciário”.

Como os juízes responderam a isso?
Em artigo publicado no “Informe”, veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, um juiz observou que “não são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”.

Havia alguma questão ética contra Gilmar quando FHC o indicou?
Sim. Em abril de 2002, a revista “Época” informou que a chefia da Advocacia Geral da União, isto é, Gilmar, pagara R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público – do qual o mesmo Gilmar é um dos proprietários – para que seus subordinados lá fizessem cursos.

O que Dallari disse desse caso?
“Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação ilibada”, exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo”, afirmou Dallari.

Em outros países a indicação de juízes para o STF é mais rigorosa?
Sim. Nos Estados Unidos, por exemplo, um grande jurista conservador, Robert Bork, indicado por Reagan, em 1987, foi rejeitado (58 votos a 42), depois de ampla discussão pública.

Como o Senado americano tratou Bork?
Defensor declarado dos trustes, Bork foi arrasado pelo senador Edward Kennedy A América de Bork – disse Kennedy – será aquela em que a polícia arrombará as portas dos cidadãos à meia-noite, os escritores e artistas serão censurados, os negros atendidos em balcões separados e a teoria da evolução proscrita das escolas.

O caso foi tão emblemático que to bork passou a ser verbo. Mais tarde, em outubro de 1991, o juiz Clarence Thomas por pouco não foi rejeitado, por sua conduta pessoal. Aos 43 anos, ele foi acusado de assédio sexual – mas os senadores, embora com pequena margem a favor (52 votos a 48), o aprovaram, sob o argumento de que seu comportamento não o impedia de julgar com equidade.

Na forte campanha contra sua indicação as associações femininas se destacaram. E o verbo “borquear” foi usado por Florynce Kennedy, com a sua palavra de ordem “we’re going to bork him”.

Já no Supremo, Gilmar continuou a agir contra os interesses dos índios, como fizera antes?
Sim. Em 2009, o governo cedeu aos guaranis-caiovás a terra que eles ocupavam então. Em 2010, o STF, então presidido por Gilmar Mendes, suspendeu o ato do governo, em favor de quatro fazendas que reivindicam a terra.

A mídia tem cumprido seu papel de investigar Gilmar?
Não, com exceção da Carta Capital. Na edição de 8 de outubro de 2008, a revista revelou a ligação societária entre o então presidente do Supremo Tribunal Federal e o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

O que é o IDP?
É uma escola de cursinhos de direito cujo prédio foi construído com dinheiro do Banco do Brasil sobre um terreno, localizado em área nobre de Brasília, praticamente doado (80% de desconto) a Mendes pelo ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz.

O que a Carta Capital revelou sobre o IDP?
O autor da reportagem, Leandro Fortes, revelou que o IDP, à época da matéria, fechara 2,4 milhões em contratos sem licitação com órgãos federais, tribunais e entidades da magistratura, “ volume de dinheiro que havia sido sensivelmente turbinado depois da ida de Mendes para o STF, por indicação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”.

Quem dava aulas no IDP, segundo a Carta Capital?
O corpo docente do IDP era formado, basicamente, por ministros de Estado e de tribunais superiores, desembargadores e advogados com interesses diretos em processos no Supremo. “Isso, por si só, já era passível de uma investigação jornalística decente”, escreveu em seu blog o autor da reportagem. “O que, aliás, foi feito pela Carta Capital quando toda a imprensa restante, ou se calava, ou fazia as vontades do ministro em questão.”

O jornalista deu algum exemplo?
Sim. Na época da Operação Satiagraha, dois habeas corpus foram concedidos por Mendes ao banqueiro Daniel Dantas, em menos de 48 horas. Em seguida, conforme Leandro Fortes, “a mídia encampou a farsa do grampo sem áudio, publicado pela revista Veja, que serviu para afastar da Agência Brasileira de Inteligência o delegado Paulo Lacerda, com o auxílio do ministro da Defesa, Nelson Jobim, autor de uma falsa denúncia sobre existência de equipamentos secretos de escuta telefônica que teriam sido adquiridos pela Abin”.

Como Gilmar reagiu às denúncias?
A Carta Capital e o repórter, por revelarem as atividades comerciais paralelas de Gilmar Mendes, acabaram processados pelo ministro.

Mendes acusou a reportagem de lhe “denegrir a imagem” e “macular sua credibilidade”. Alegou, ainda, que a leitura da reportagem atacava não somente a ele, mas serviria, ainda, para “desestimular alunos e entidades que buscam seu ensino”.

Como a justiça se manifestou sobre o processo?
Em 26 de novembro de 2010, a juíza Adriana Sachsida Garcia, do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgou improcedente a ação de Gilmar Mendes e extinguiu o processo.

O que ela disse?
“As informações divulgadas são verídicas, de notório interesse público e escritas com estrito animus narrandi. A matéria publicada apenas suscita o debate sob o enfoque da ética, em relação à situação narrada pelo jornalista. (…) A população tem o direito de ser informada de forma completa e correta. (…) A documentação trazida com a defesa revela que a situação exposta é verídica; o que, aliás, não foi negado pelo autor.”

É verdade que Ayres Brito, que prefaciou o livro de Merval Pereira sobre o Mensalão, proferiu aula magna no IDP?
Sim.

Procede a informação de que, em pleno Mensalão, Gilmar foi ao lançamento de um livro de Reinaldo Azevedo em que os réus eram tratados como “petralhas”?
Sim.

E agora, como entender a crise entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso?
Nas palavras do colunista Janio de Freitas, esta crise “não está longe de um espetáculo de circo, daqueles movidos pelos tombos patéticos e tapas barulhentos encenados por Piolim e Carequinha. É nesse reino que está a “crise”, na qual quase nada é verdadeiro, embora tudo produza um efeito enorme na grande arquibancada chamada país”.

É verdade que o Congresso aprovou um projeto que submete decisões do Supremo ao Legislativo?
Não. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, como explicou Janio de Freitas, nem sequer discutiu o teor do projeto que propõe a apreciação de determinadas decisões do STF pelo Congresso. “A CCJ apenas examinou, como é de sua função, a chamada admissibilidade do projeto, ou seja, se é admissível que seja discutido em comissões e eventualmente levado a plenário”, explicou Jânio. “A CCJ considerou que sim. E nenhum outro passo o projeto deu.”

E qual foi a atitude de Gilmar neste caso?
Ele afirmou que os parlamentares “rasgaram a Constituição”. Isso só é equiparável, segundo Jânio, à afirmação de Gilmar de que “o Brasil estava sob “estado policial”, quando, no governo Lula, o mesmo ministro denunciou a existência de gravação do seu telefone, jamais exibida ou comprovada pelo próprio ou pela investigação policial”.

É verdade que a mulher de Gilmar Mendes trabalha no escritório de advocacia que defende Daniel Dantas?
Sim. É o escritório de Sérgio Bermudes, no Rio de Janeiro.

Isto configura um conflito de interesses, já que o STF pode julgar causas do escritório de Bermudes?
Sim.

E não acontece nada para coibir esse conflito?
Não.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

“A ANP está comprometida com Israel”


“A ANP está comprometida com Israel”

Companheira de líder da resistência palestina preso revela que polícia palestina se comporta como guarda do exército israelense

José Coutinho Júnior
enviado especial à Palestina pelo BRASILDEFATO
“Tenho que trabalhar, cuidar da família e lutar pela libertação do meu marido”. Assim Abla Sa’dat define sua luta. Abla é esposa de Ahmad Sa’adat, líder do partido marxista palestino Frente Popular pela Libertação da Palestina, segundo homem mais influente na Organização Para a Libertação da Palestina (OLP), entidade que reúne os diversos partidos palestinos que buscam uma solução para a questão palestina e a principal liderança da esquerda palestina atualmente.
Por sua influência, Ahmad sempre foi perseguido pelo exército de Israel, vivendo como um fugitivo durante anos. Em 2002, já vivendo na clandestinidade, foi convocado pelo então presidente do governo da Autoridade Nacional da Palestina (ANP), Yasser Arafat. Ao chegar no local da reunião, foi emboscado e preso pelo governo. Os salários dos funcionários da Autoridade Palestina vêm da ONU, mas são entregues para Israel, que então repassa para o governo. Arafat alegou que Israel exigia sua prisão, senão reteria os salários. Sa’adat ficou em uma prisão palestina em Jericó até 2006, quando tropas israelenses invadiram o local, o capturaram e o levaram para uma prisão israelense. Desde então, está preso em Israel, sem saber se será solto algum dia. Abla é uma das principais vozes na luta pela liberação dos presos políticos palestinos, realizando campanhas internacionais de solidariedade e denunciando os abusos das autoridades Israelenses. Confira entrevista de Abla Sa’dat:
Brasil de Fato – Abla, onde o Ahmad está hoje, e como está a saúde dele?
Abla Sa’dat – Ele está preso na região do norte de Israel, ocupada em 1948. O Ahmad ficou isolado numa cela individual de 2009 a 2012, sem conexão e contato com as pessoas. Ele só saiu de lá porque os prisioneiros fizeram uma greve de fome para tirar 23 presos da solitária e acabar com a política de isolamento. Ele está bem de saúde. Se cuida fazendo exercícios físicos e parou de fumar. Se ele ficar doente e tiver de ir a uma clínica militar, voltará pior do que foi. Ele sofre com alergias, então mudam ele de celas constantemente de propósito para que ele pegue alergias e fi que doente.
Que motivos Israel alega para ter realizado a prisão e mantê-lo cativo?
Ahmed está preso por ser o líder da Frente Popular, essa é a única queixa, não há uma condenação concreta contra ele. Inclusive, a alegação do juiz para isolá-lo foi a de que “essa pessoa pode fazer os palestinos se voltarem contra Israel só com o olhar”.
As prisões são ilegais, pois os presos políticos lutam pela liberdade de uma terra ocupada. Mesmo as leis israelenses não justificam a prisão de Ahmad. É uma questão puramente política e ideológica. Realizamos de 17 a 24 de outubro deste ano uma campanha internacional de solidariedade, na qual organizações e pessoas solidárias enviaram cartas a ele e às autoridades israelenses, para pressionar por sua libertação.
Depois que Ahamad foi preso, como é sua vida, seu dia a dia?
Nos casamos em 1983 e vivi em paz com ele até 1985 apenas. Nos anos seguintes, ou ele estava na cadeia ou foragido. Temos duas filhas e dois filhos, que eu criei praticamente sozinha. Quando ele foi preso em 1987, fui presa também.
Tínhamos um fi lho de nove meses na época. Em 2003, fui presa novamente, quando ia para o Fórum Social Mundial em Porto Alegre – fiquei na prisão por quatro meses. Nesses períodos, nossa família viveu sem pai e mãe. É uma vida muito difícil. Tenho que trabalhar, cuidar da família e lutar pela libertação do meu marido. Mas como mulher palestina, é minha função com todo o povo.
Qual é a posição da ANP em relação à prisão de Ahmad?
Quem realizou a prisão foi a ANP [Autoridade Nacional Palestina], em Ramallah. Ahmad ficou três anos em Jericó, até o exército israelense invadir a prisão e o levar para Israel. O discurso do governo é de que se deve libertar os presos, mas na verdade eles estão comprometidos com Israel.
No começo de outubro, o exército israelense invadiu o campo de refugiados de Geni e prendeu cinco ativistas da Jihad islâmica. A polícia palestina não faz nada contra o exército, são guardas de Israel, que ajudam a prender os militantes que discordam e se opõem às políticas do governo, como os do Hamas, da Jihad e a esquerda palestina.
Como é o processo de visitas na prisão?
A humilhação começa antes de fazer a visita. De toda a nossa família, só eu e meu filho mais velho podemos visitá-lo, porque nós temos um cartão de identidade de Jerusalém. Os presos que são do norte são levados para cadeias do sul e vice-versa, para dificultar as visitas dos familiares. Temos que ir junto com a Cruz Vermelha, senão não entramos.
Quando chegamos, ficamos do lado de fora da prisão, não tem lugar para sentar. Preenchemos ali uma lista com os nomes de quem vamos visitar. Quando entramos, passamos por um detector de metais e uma revista corporal.
Não podemos levar comida ou mesmo cigarros conosco; existe uma loja na prisão, e se quisermos dar essas coisas aos presos, temos de comprar lá a preços muito altos, e se algum preso quiser assinar um dos três jornais de Jerusalém para se manter informado, deve pagar 800 dólares pela assinatura de um jornal que não custa nem um dólar. E os jornais geralmente chegam atrasados; os assinantes recebem todas as edições no final do mês.
É permitido levar livros, mas todos são lidos para checar se existe material subversivo antes de ser entregues. Como Ahmad gosta dos livros perigosos, eles costumam fi car retidos. Geralmente levo uns seis livros comigo e distribuo entre os outros visitantes. Caso os outros presos consigam receber, eles passam para o Ahmad. Só podemos levar roupas novas para eles duas vezes ao ano, quando as estações mudam.
Na hora da visita, 11 pessoas entram juntas na sala. Lá dentro, existe um vidro que separa o visitante do prisioneiro, a conversa é gravada, e depois de 45 minutos, a janela fecha e o telefone é desligado. Muitas vezes não dá nem para se despedir.
Fotos: Brigada Gassan Kanafani

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

50 verdades sobre Nelson Mandela


As grandes potências ocidentais se opuseram até o último instante a sua luta e apoiaram o governo racista de Pretória


O herói da luta contra o apartheid marcou para sempre a história da África. No crepúsculo de sua existência, Nelson Mandela é venerado por todos. Ainda assim, as grandes potências ocidentais se opuseram até o último instante à sua luta pela emancipação humana e apoiaram o governo racista de Pretoria.
1.       Nascido no dia 18 de julho de 1918, Nelson Rolihlahla Mandela, apelidado de Madiba, é o símbolo por excelência da resistência à opressão e ao racismo na luta pela justiça e pela emancipação humana.
2.       Procedente de uma família de treze filhos, Mandela foi o primeiro a estudar em uma escola metodista e a cursar direito na Universidade de Fort Hare, a única que aceitava, então, pessoas de cor no governo segregacionista do apartheid.
3.       Em 1944, aderiu ao Congresso Nacional Africano (CNA) e, particularmente, à sua Liga da Juventude, de inclinação radical.
4.       O apartheid, elaborado em 1948 depois da vitória do Partido Nacional Purificado, instaurava a doutrina da superioridade da raça branca e dividia a população sul-africana em quatro grupos distintos: os brancos (20%), os índios (3%), os mestiços (10%) e os negros (67%). Esse sistema segregacionista discriminava 4/5 da população do país.
5.       Foram criados “bantustões”reservas territoriais destinadas às pessoas de cor, para amontoar as pessoas não brancas. Assim, 80% da população tinha de viver em 13% do território nacional, muitas vezes sem recursos naturais ou industriais, na total indigência.
6.       Em 1951, Mandela se transformou no primeiro advogado negro de Johanesburgo e assumiu a direção do CNA na província de Transvaal um ano depois. Também foi nomeado vice-presidente nacional.
7.       À frente do CNA, lançou a defiance campaign, contra o governo racista do apartheid, e utilizou a desobediência civil contra as leis segregacionistas. Durante a manifestação do dia 6 de abril de 1952, data do terceiro centenário da colonização da África do Sul pelos brancos, Mandela foi condenado a um ano de prisão. De sua prisão domiciliar em Johanesburgo, criou células clandestinas do CNA.

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8.       Em nome da luta contra o apartheid, Mandela preconizou a aliança entre o CNA e o Partido Comunista Sul-africano. Segundo ele, “o CNA não é um partido comunista, mas um amplo movimento de libertação que, entre seus membros inclui comunistas e outros que não o são. Qualquer pessoa que seja membro leal do CNA, e que respeite a disciplina e os princípios da organização, tem o direito de pertencer às suas filas. Nossa relação com o Partido Comunista Sul-Africano como organização é baseada no respeito mútuo. Nos unimos ao Partido Comunista Sul-Africano em torno daqueles objetivos que nos são comuns, mas respeitamos a independência de cada um e sua identidade visual. Não houve tentativa alguma por parte do Partido Comunista Sul-Africano de subverter o CNA. Pelo contrário, essa aliança nos deu força política.”
9.       Em dezembro de 1956, Mandela foi preso e acusado de traição com mais de uma centena de militantes antiapartheid. Depois de um processo de quatro anos, os tribunais o absolveram.
10.   Em março de 1960, depois do massacre de Sharperville, perpetrado pela polícia contra os manifestantes antisegregação, que custou a vida de 69 pessoas, o governo do apartheid proibiu o CNA.
11.   Mandela fundou então o Umkhonto we Sizwe (MK)  e preconizou a luta armada contra o governo racista sul-africano. Antes de optar pela doutrina da violência legítima e necessária, Mandela se inspirou da filosofia da não violência de Gandhi: “Embora tenhamos pegado em armas, não era nossa opção preferida. Foi o governo do apartheid que nos obrigou  a pegar em armas. Nossa opção preferida sempre foi a de encontrar uma solução pacífica para o conflito do apartheid.”
12.   O MK multiplicou, então, os atos de sabotagem contra os símbolos e as instituições do apartheid, preservando ao mesmo tempo as vidas humanas, lançou com sucesso uma greve geral e preparou o terreno para a luta armada com o treinamento militar de seus membros.
13.   Durante sua estada na Argélia, em 1962, depois da intervenção do presidente Ahmed Ben Bella, Mandela aproveitou para aperfeiçoar seus conhecimentos sobre a guerra de guerrilhas. A Argélia colocou à disposição do CNA campos de treinamento e deu apoio financeiro aos residentes antiapartheid. Mandela recebeu ali uma formação militar. Inspirou-se profundamente na guerra da Frente de Libertação Nacional do povo argelino contra o colonialismo francês. Quando libertado, Mandela dedicaria sua primeira viagem ao exterior à Argélia, em maio de 1990, e renderia tributo ao povo argelino: “Foi a Argélia que fez de mim um homem. Sou argelino, sou árabe, sou muçulmano! Quando fui ao meu país para enfrentar o apartheid, me senti mais forte”. Recordaria ter sido “o primeiro sul-africano treinado militarmente na Argélia.”

Agência Efe

14.   Mandela estudou minuciosamente os escritos de Mao e de Che Guevara. Transformou-se em um grande admirador do guerrilheiro cubano-argentino. Depois de ser libertado, declararia: As “façanhas revolucionárias [de Che Guevara] — inclusive no nosso continente — foram de tal magnitude que nenhum encarregando de censura na prisão pôde escondê-las. A vida do Che é uma inspiração para todo ser humano que ame a liberdade. Sempre honraremos sua memória.”
15.   Cuba foi uma das primeiras nações que deu sua ajuda ao CNA. A esse respeito, Nelson Mandela destacou: “Que país solicitou a ajuda de Cuba e lhe foi negada? Quantos países ameaçados pelo imperialismo ou que lutam pela sua libertação nacional puderam contar com o apoio de Cuba? Devo dizer que quando quisemos pegar em armas nos aproximamos de diversos governos ocidentais em busca de ajuda e somente obtivemos audiências com ministros de baixíssimo escalão. Quando visitamos Cuba fomos recebidos pelos mais altos funcionários, os quais, de imediato, nos ofereceram tudo o que queríamos e necessitávamos. Essa foi nossa primeira experiência com o internacionalismo de Cuba.”
16.   No dia 5 de agosto de 1962, depois de 17 meses de vida clandestina, Mandela foi levado à prisão em Johanesburgo, graças à colaboração dos serviços secretos dos Estados Unidos com o governo de Pretoria. A CIA deu às forças repressivas do apartheid a informação necessária para a captura do líder da resistência sul-africana.
17.   Acusado de ser o organizador da greve geral de 1961 e de sair ilegalmente do território nacional, ele foi condenado a cinco anos de prisão.
18.   Em julho de 1963, o governo prendeu 11 dirigentes do CNA em Rivonia, perto de Johanesburgo, sede da direção do MK. Todos foram acusados de traição, sabotagem, conspiração com o Partido Comunista e complô destinado a derrubar o governo. Já na prisão, Mandela foi acusado das mesmas coisas.
19.   No dia 9 de outubro de 1963, começou o famoso julgamento de Rivonia na Corte Suprema de Pretoria. No dia 20 de abril de 1964, frente ao juiz africâner Quartus de Wet, Mandela desenvolveu sua alegação brilhante e destacou que, frente ao fracasso da desobediência civil como método de combate para conseguir a liberdade, a igualdade ou a justiça, frente aos massacres de Sharperville e à proibição de sua organização, o CNA não teve outro remédio senão recorrer à luta armada para resistir à opressão.
20.   No dia 12 de junho de 1964, Mandela e seus companheiros foram declarados culpados de motim e condenados à prisão perpétua.

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21.   O Conselho de Segurança das Nações Unidas denunciou o julgamento de Rivonia. Em agosto de 1963, condenou o governo do apartheid e pediu às nações do mundo que suspendessem  o fornecimento de armas à África do Sul.
22.   As grandes nações ocidentais, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, longe de respeitarem a resolução do Conselho de Segurança, apoiaram o governo racista sul-africano e multiplicaram o fornecimento de armas.
23.   De Charles de Gaulle, presidente da França de 1959 a 1969, até o governo de Valéry Giscard d'Estaing, presidente da França de 1974 a 1981, a França foi um fiel aliado do poder racista de Pretoria e se negou sistematicamente a dar apoio ao CNA em sua luta pela igualdade e pela justiça.
24.   Paris nunca deixou de fornecer material militar para Pretoria, provendo até mesmo a primeira central nuclear da África do Sul, em 1976. Sob os governos de De Gaulle e de Georges Pompidou, presidente entre 1969 e 1974, a África do Sul foi o terceiro maior cliente da França em matéria de armamento.
25.   Em 1975, o Centro Francês de Comércio Exterior (CFCE) disse que “a França é considerada o único verdadeiro apoio da África do Sul entre os grandes países ocidentais. Não apenas fornece ao país o essencial em matéria de armamentos necessários para sua defesa, mas também tem se mostrado benevolente, ou, mais ainda, um aliado nos debates e nos votos das organizações internacionais.”
26.   Preso em Robben Island, com o número 466/64, Mandela viveu 18 anos de sua existência em condições extremamente duras. Não podia receber mais de duas cartas e duas visitas ao ano e esteve separado de sua esposa Winnie — que não tinha permissão para visitá-lo — durante 15 anos. Foi condenado a realizar trabalhos forçados, o que afetou seriamente a sua saúde, sem conseguir jamais quebrar sua força moral. Dava cursos de política, literatura e poesia a seus camaradas de destino e clamava pela resistência. Mandela gostava de recitar o poema Invictus de William Ernest Henley: “It matters not how strait the gate/How charged with punishments the scroll./I am the master of my fate:/I am the captain of my soul”. (Não importa quão estreito é o portão/ E quantas são as punições listadas/ Eu sou o mestre do meu destino/ Eu sou o capitão da minha alma)
27.   No dia 6 de dezembro de 1971, a Assembleia Geral das Nações Unidas qualificou o apartheid como crime contra a humanidade e exigiu a libertação de Nelson Mandela.
28.   Em 1976, o governo sul-africano propôs a Mandela sua libertação em troca de que ele renunciasse à luta. Madiba negou firmemente a proposta do governo segregacionista.

Agência Efe

29.   Em novembro de 1976, depois das revoltas de Soweto e da sangrenta repressão que o governo do apartheid desatou, o Conselho de Segurança das Nações Unidos impôs um embargo sobre as armas destinadas à África do Sul.
30.   Em 1982, Mandela foi transferido para a prisão de Pollsmoor, perto de Cape Town.
31.   Em 1985, Pieter Willen Botha, presidente de fato da nação, propôs libertar Mandela se ele se comprometesse, em troca, a renunciar à luta armada. O líder da luta antiapartheid recusou a proposta e exigiu a democracia para todos: “um homem, um voto.”
32.   Frente ao recrudescimento das operações de guerrilha do MK, o governo segregacionista criou esquadrões da morte com a finalidade de eliminar os militantes do CNA na África do Sul e no exterior. O caso mais famoso é o de Dulci September, assassinada em Paris no dia 29 de março de 1988.
33.   A mobilização internacional a favor de Nelson Mandela culminou em um show em Wembley, em junho de 1988, em homenagem aos 70 anos do resistente sul-africano, que foi assistido por 500 milhões de pessoas pela televisão. 

34.   O elemento decisivo que pôs fim ao apartheid foi a estrepitosa derrota militar que tropas cubanas infringiram ao exército sul-africano em Cuito Cuanavale, no sudeste de Angola, em janeiro de 1988. Fidel Castro enviou seus melhores soldados a Angola depois da invasão do país pelo governo de Pretoria, apoiada pelos Estados Unidos. A vitória de Cuito Cuanavale também permitiu à Namíbia, até então ocupada pela África do Sul, conseguir sua independência.

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35.   Em um artigo intitulado “Cuito Cuanavale: a batalha que acabou com o apartheid”, o historiador Piero Gleijeses, professor da Universidade John Hopkins, de Washington, especialista na política africana de Cuba, aponta que “a proeza dos cubanos nos campos de batalha e seu virtuosismo na mesa de negociações foram decisivos para obrigar a África do Sul a aceitar a independência da Namíbia. Sua exitosa defesa de Cuito foi o prelúdio de uma campanha que obrigou o exército sul-africano a sair de Angola. Essa vitória repercutiu para além de Namíbia.”
36.   Nelson Mandela, durante sua visita história a Cuba, em julho de 1991, lembrou-se daquele episódio: “A presença de vocês e o reforço enviado para a batalha de Cuito Cuanavale têm uma importância verdadeiramente histórica. A derrotada esmagadora do exército racista em Cuito Cuanavale constituiu uma vitória para toda a África! Essa contundente derrota do exército racista em Cuito Canavale deu a Angola a possibilidade de desfrutar da paz e de consolidar sua própria soberania. A derrota do exército racista permitiu que o povo combatente da Namíbia alcançasse finalmente a sua independência! A decisiva derrota das forças agressoras do apartheid destruiu o mito da  invencibilidade do opressor branco! A derrota do apartheid serviu de inspiração para o povo combatente da África do Sul! Sem a derrota infringida em Cuito Cuanavale nossas organizações não teriam sido legalizadas! A derrota do exército racista em Cuito Cuanavale possibilitou que hoje eu possa estar aqui com vocês! Cuito Cuanavale é um marco na história da luta pela libertação da África austral! Cuito Cuanavale marca a virada da luta para libertar o continente e nosso país do flagelo do apartheid! A decisiva derrota infringida em Cuito Cuanavale alterou a correlação de forças da região e reduziu consideravelmente a capacidade do governo de Pretoria para desestabilizar seus vizinhos. Este feito, em conjunto com a luta do nosso povo dentro do país, foi crucial para fazer Pretoria entender que tinha de se sentar à mesa de negociações.”
37.   No dia 2 de fevereiro de 1990, o governo segregacionista, moribundo depois da derrota de Cuito Cuanavale, viu-se obrigado a legalizar o CNA e aceitar as negociações.
38.   No dia 11 de fevereiro de 1990, Nelson Mandela foi finalmente libertado, depois de 27 anos de prisão.
39.   Em junho de 1990 foram abolidas as últimas leis segregacionistas depois da pressão feita por Nelson Mandela, pelo CNA e pelo povo.
40.   Eleito presidente do CNA em junho de 1991, Mandela recordou os objetivos: “No CNA sempre estaremos ao lado dos pobres e dos que não têm direitos. Não apenas estaremos junto deles. Vamos garantir antes cedo que tarde os pobres e sem direitos rejam a terra onde nasceram e que — como expressa a Carta da Liberdade — seja o povo que governe.”
41.   Fortemente criticado por sua aliança com o Partido Comunista Sul-Africano por causa das potências ocidentais que seguiam apoiando o governo do apartheid durante o processo de paz, Mandela replicou de modo contundente. “Não temos a menor intenção de fazer caso aos que nos sugerem e aconselham que rompamos essa aliança [com o Partido Comunista]. Quem são os que oferecem esses conselhos não solicitados? Provêm, em sua maioria, dos que nunca nos deram ajuda alguma. Nenhum desses conselheiros fez jamais os sacrifícios que fizeram os comunistas pela nossa luta. Essa aliança nos fortaleceu e a tornaremos ainda mais estreita.”
42.   Em 1991, Mandela condenou o persistente apoio dos Estados Unidos ao governo do apartheid:  “Estamos profundamente preocupados com a atitude que a  administração Bush adotou sobre esse assunto. Este foi um dos poucos governos que esteve em contato habitual conosco para examinar a questão das sanções e lhe fizemos ver claramente que eliminar as sanções seria prematuro. No entanto, essa administração, sem nem nos consultar, simplesmente nos informou que as sanções estadunidenses seriam anuladas. Consideramos isso totalmente inaceitável.”

Agência Efe

43.   Em 1993, Mandela recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua obra a favor da reconciliação nacional.
44.   Durante a primeira votação democrática da história da África do Sul, no dia 27 de abril de 1994, Nelson Mandela, de 77 anos, foi eleito presidente da República com mais de 60% dos votos. Governou até 1999.
45.   No dia 1 de dezembro de 2009, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em votação unânime de seus 192 membros, uma resolução que decreta o dia 18 de julho como Dia Internacional Nelson Mandela, em homenagem à luta do herói sul-africano contra todas as injustiças.
46.   Se hoje Mandela é cumprimentado por todos, por décadas as potências ocidentais o consideraram um homem perigoso e o combateram apoiando o governo do apartheid.
47.   Estados Unidos, França e Grã-Bretanha foram os principais aliados do governo do apartheid, o qual apoiaram até o último momento.
48.   Se os Estados Unidos veneram hoje em dia Nelson Mandela, de Clinton a Bush passando por Obama, é conveniente lembrar que ele foi mantido na lista de membros de organizações terroristas até o dia 1 de janeiro de 2008.
49.   Nelson Mandela lembrou varias vezes dos lanços inquebrantáveis que atavam a África do Sul a Cuba. “Desde seus primeiros dias, a Revolução Cubana tem sido uma fonte de inspiração para todos os povos amantes da liberdade. O povo cubano ocupa um lugar especial no coração dos povos da África. Os internacionalistas cubanos deram uma contribuição para a independência, para a liberdade e a justiça na África que não tem paralelo pelos princípios e pelo desinteresse que a caracterizam. É muito o que podemos aprender da sua experiência. De modo particular, nos comove a afirmação do vínculo histórico com o continente africano e seus povos. Seu invariável compromisso com a erradicação sistemática do racismo não tem paralelo. Somos conscientes da grande dívida que existe hoje com o povo de Cuba. Que outro país pode mostrar uma história mais desinteressada que a que teve Cuba em suas relações com a África?
50.   Thenjiwe Mtintso, embaixadora da África do Sul em Cuba, lembrou-se da verdade histórica a propósito do compromisso de Cuba na África. “Hoje a África do Sul tem muitos amigos novos. Ontem, estes amigos se referiam aos nossos líderes e aos nossos combatentes como terroristas e nos acusavam enquanto apoiavam a África do Sul do apartheid. Esses mesmos amigos hoje querem que nós denunciemos e ilhemos Cuba. Nossa resposta é muito simples, é o sangue dos mártires cubanos e não destes amigos que corre profundamente na terra africana e nutre a árvore da liberdade em nossa pátria.”
 

*Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama The Economic War Against Cuba. A Historical and Legal Perspective on the U.S. Blockade [A Guerra Econômica contra Cuba. Uma Perspectiva Histórica e Legal do Bloqueio dos EUA], New York, Monthly Review Press, 2013, com prólogo de Wayne S. Smith e prefácio de Paul Estrade.