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sábado, 7 de janeiro de 2012

"Liquidar o monopólio ocidental da tecnologia é também luta revolucionária"


por Domenico Losurdo
entrevistado por Tian Shigang [*]
Domenico Losurdo. Em 2005 foi publicado o seu livro "Fuga dalla storia? La rivoluzione russa e la rivoluzione cinese oggi" [1] . O que o levou a escrevê-lo?

A primeira edição do livro foi publicada em 1999. Era o momento em que o fim da guerra-fria era interpretado como o fracasso irremediável de toda tentativa de construir uma sociedade socialista, como o triunfo definitivo do capitalismo e inclusive com o "fim da história". No Ocidente, este modo de ver as coisas fazia mossa na própria esquerda: até os comunistas, ainda que declarassem querer permanecer fieis aos ideais do socialismo, na linha seguinte acrescentavam que não tinham nada a ver com a história da URSS nem com a história da China onde, diziam, se havia verificado a "restauração do capitalismo". Para me opor a esta "fuga à história" propus-me explicar a história do movimento comunista desde a Rússia da Revolução de Outubro até a China surgida das reformas de Deng Xiaoping.

No se entender, por que motivos se desmembrou a URSS?

Em 1947, quando enuncia a política da contenção, seu teórico, George F. Kennan, explica que é preciso "aumentar enormemente as tensões (strains) que a política soviética tem de suportar", a fim de "promover tendências que acabem por quebrar ou abrandar o poder soviético". Nos nossos dias não é muito diferente a política dos EUA para com a China, ainda que enquanto isso a China haja acumulado uma grande experiência política.

Para além da contenção, o que determinou a derrocada da URSS foram as suas graves debilidades internas. Convém reflectir sobre a célebre tese de Lenine: "Não há revolução sem teoria revolucionária". O partido bolchevique, sem dúvida, tinha uma teoria para a conquista do poder, mas se por revolução se entender não só a destruição da velha ordem como também a construção da nova, os bolcheviques e o movimento comunista careciam substancialmente de uma teoria revolucionária. Portanto, não se pode considerar que uma teoria da sociedade pós capitalista por construir se reduza à espera messiânica de um mundo no qual hajam desaparecido por completo os Estados, as nações, o mercado, o dinheiro, etc. O PCUS cometeu o grave erro de não fazer nenhum esforço para preencher esta lacuna.

No seu entender, que carácter e que significado tem a revolução chinesa?

No princípio do século XX a China fazia parte do mundo colonial e semi-colonial, estava submetida ao colonialismo e ao imperialismo. Um marco histórico foi a Revolução de Outubro, que desencadeou e impulsionou uma onda anti-colonialista de dimensões planetárias. A seguir, o fascismo e o nazismo foram a tentativa de revitalizar a tradição colonial. Em particular, a guerra desencadeada pelo imperialismo hitleriano e o imperialismo japonês, respectivamente, contra a União Soviética e contra a China, foram as maiores guerras coloniais da história. De modo que Stalingrado na União Soviética e a Longa Marcha e a guerra de resistência contra o Japão na China foram duas grandiosas lutas de classe, as que impediram que o imperialismo mais bárbaro efectuasse uma divisão de trabalho baseada na redução de grandes povos a uma massa de escravos ao serviço das supostas raças dos senhores.

Mas a luta de emancipação dos povos em condições coloniais e semi-coloniais não acaba com a conquista da independência política. Já em 1949, a ponto de conquistar o poder, Mao Zedong havia insistido na importância da edificação económica. Washington quer que a China se "reduza a viver da farinha estado-unidense", com o que "acabaria por ser uma colónia estado-unidense". Ou seja, sem a vitória na luta pela produção agrícola e industrial, a vitória militar acabaria por ser frágil e vazia. De certo modo Mao havia previsto a passagem da fase militar à fase económica da revolução anti-colonialista e anti-imperialista.

O que acontece nos nossos dias? Os EUA estão transferindo para a Ásia o grosso do seu dispositivo militar. Em despacho da agência Reuters de 28 de Outubro de 2011 pode-se ler que uma das acusações de Washington aos dirigentes de Pequim é fomentam ou impõem a transferência de tecnologia ocidental para a China. Está claro: os EUA pretendem conservar o monopólio da tecnologia para continuar a exercer a hegemonia e inclusive um domínio neo-colonial indirecto. Por outras palavras, ainda nos nossos dias a luta contra o hegemonismo coloca-se também no plano do desenvolvimento económico e tecnológico. É um aspecto que, lamentavelmente, a esquerda ocidental sem sempre consegue entender. Há que sublinhá-lo com força: revolucionária não é só a longa luta com que o povo chinês pôs fim ao século das humilhações e fundou a República Popular; revolucionária não é só a edificação económica e social com que o Partido Comunista Chinês livrou da fome centenas de milhões de homens; também a luta para romper o monopólio imperialista da tecnologia é uma luta revolucionária. Foi-nos ensinado por Marx. Sim, ele nos ensinou que a luta para superar, no âmbito da família, a divisão patriarcal do trabalho já é uma luta revolucionária; seria muito estranho que não fosse uma luta de emancipação a luta para acabar à escala internacional com a divisão do trabalho imposta pelo capitalismo e o imperialismo, a luta par liquidar definitivamente esse monopólio ocidental da tecnologia, que não é um dado natural e sim o resultado de séculos de domínio e opressão!

Capa da edição brasileira Em 2005 foi publicado o seu livro Controstoria del liberalismo [2] , que alcançou um grande êxito (num ano foi reeditado três vezes e a seguir traduzido em vários idiomas). O que significa esse título?

O meu livro não desconhece os méritos do liberalismo, que põe em evidência o papel do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e sublinha a necessidade de limitar o poder (ainda só a favor de uma reduzida comunidade de privilegiados). Contra-história do liberalismo polemiza com a auto-glorificação e a visão apologética dos que se entregam ao liberalismo e ao Ocidente liberal. É uma tradição de pensamento em cujo âmbito a exaltação da liberdade vai junto com terríveis cláusula de exclusão em prejuízo das classes trabalhadoras e, sobretudo, dos povos colonizados. John Locke, pai do liberalismo, legitima a escravidão nas colónias e é accionista da Royal African Company, a empresa inglesa que gere o tráfico e o comércio dos escravos negros. Mas, para além das personalidades individuais, o importante é o papel dos países que melhor encarnam a tradição liberal. Um dos primeiros actos de política internacional da Inglaterra liberal, nascida da Revolução Gloriosa de 1688-1689, é assumir o monopólio do tráfico de escravos negros.

Mais importante ainda é o papel da escravidão na história dos EUA. Durante 32 dos primeiros 36 anos de vida dos Estados Unidos, a presidência do país foi ocupada por proprietários de escravos. E isso não é tudo. Durante várias décadas o país dedicou-se a exportar a escravidão com o mesmo zelo com que hoje pretende exportar a "democracia": em meados do século XIX reintroduziram a escravidão no Texas, recém arrebatado ao México através de uma guerra.

É verdade que primeiro a Inglaterra e a seguir os Estados Unidos viram-se obrigados a abolir a escravidão, mas o lugar dos escravos negros foi ocupado pelos cules chineses e índios, submetidos a uma forma apenas dissimulada de escravidão. Além disso, depois da abolição formal da escravidão, os afro-americanos continuaram a sofrer uma opressão tão feroz que um eminente historiador estado-unidense, George M. Fredrickson, escreveu: "os esforços para preservar a "pureza da raça" no Sul dos Estados Unidos preludiavam alguns aspectos da perseguição desencadeada pelo regime nazi contra os judeus nos anos trinta do século XX".

Quando começa a enfraquecer nos EUA o regime de supremacia branca, de opressão e discriminação racial, sobretudo contra os negros? Em Dezembro de 1952 o ministro estado-unidense da Justiça envia ao Tribunal Supremo, em plena discussão sobre a integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: "A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista e também semeia dúvidas nos países amigos acerca da nossa devoção à fé democrática". Washington, observa o historiador estado-unidense que reconstrói este episódio (C. Vann Woodward), corria o risco de alienar o favor das "raças de cor" não só no Oriente e no Terceiro Mundo como também no seu próprio país. Só então o Tribunal Supremo decidiu declarar inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas.

Há um paradoxo na história. Hoje Washington não se cansa de acusar a falta de democracia na China; mas convém assinalar um elemento essencial da democracia, a superação da discriminação racial, só foi possível nos Estados Unidos graças ao repto representado pelo movimento anti-colonialista mundial, de que a China fazia e faz parte.

No meu entender, entre as muitas edições italianas do Manifesto do Partido Comunista há três que se destacam: a de Antonio Labriola, a de Palmiro Togliatti e a sua de 1999. Na sua opinião, que significado tem esta obra fundamental de Marx e Engels para os marxistas de hoje?

Na introdução da edição italiana do Manifesto do Partido Comunista tentei reconstruir o século e meio de história transcorrido desde a publicação em 1848 deste texto extraordinário. Uma confrontação pode nos ajudar a entender o seu significado. Oito anos antes, outra grande personalidade da Europa do século XIX, Alexis de Tocqueville, publica o segundo livro da Democracia na América e, num capítulo central, afirma já no título que "as grandes revoluções serão cada vez menos frequente". Mas se nos fixarmos no século e meio posterior ao ano (1840) em que o liberal francês faz esta afirmação, vemos que se trata do período talvez mais abundante em revoluções da história universal.

Não há dúvida: ao prever a rebelião contra o capitalismo, contra um sistema que implica a "transformação em máquina" dos proletários e a sua degradação em "instrumentos de trabalho", em "acessórios da máquina", um apêndice "dependente e impessoal" do capital "independente e pessoal", ao prever tudo isto, o Manifesto do Partido Comunista soube olhar mais longe. Quando descrevem com extraordinária lucidez e clarividência o que hoje chamamos globalização, Marx e Engels sabem bem que se trata de um processo contraditório, caracterizado (no âmbito do capitalismo) por crises colossais de superprodução que provocam a destruição de enormes quantidades de riqueza social e a miséria de massas ingentes de homens e mulheres. Além disso é um processo eriçado de conflitos que podem desembocar, inclusive, numa "guerra industrial de aniquilação entre as nações". O que nos leva a pensar na primeira guerra mundial.

Contra todo este mundo, o Manifesto do Partido Comunista evoca tanto as revoluções proletárias como as "revoluções agrárias" e de "libertação nacional". De modo que Marx e Engels se anteciparam a um cenário que se verificará no Terceiro Mundo, como por exemplo na China.

A propósito da China pode-se fazer uma última consideração. O Manifesto do Partido Comunista prevê a aparição de uma economia globalizada caracterizada por "indústrias novas, cuja introdução passa a ser uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não elaboram matérias-primas locais e sim matérias-primas procedentes das regiões mais remotas e cujos produtos consomem-se não só no interior do país como também em todas as partes do mundo". Portanto, ainda que centre o olhar sobre a Europa, o texto de Marx e Engels acaba por dar indicações muito valiosas para os países do Terceiro Mundo que querem alcançar um desenvolvimento económico independente.

Quais são, no seu entender, as contribuições de Antonio Gramsci à teoria marxista?

Creio que as contribuições da obra deste grande pensador foram pelo menos quatro:

a) Gramsci evidenciou a importância da "hegemonia" para a conquista e conservação do poder político. Num texto de 1926 explica: o proletariado só dá mostras de possuir uma consciência de classe madura quando se eleva a uma visão da sua classe de pertença como núcleo dirigente de um bloco social muito mais amplo, chamado a conduzir a revolução à vitória.

b) Em segundo lugar, Gramsci mostra-se plenamente consciente da complexidade que implica o processo de construção do socialismo. A princípio será "o colectivismo da miséria, do sofrimento". Mas não podo ficar nisso, tem que enfrentar o desenvolvimento das forças produtivas. É neste âmbito que deve ser situada a importante tomada de posição de Gramsci a propósito da NEP (a Nova Política Económica introduzida após o "comunismo de guerra"). A realidade da URSS daquele momento coloca-nos na presença de um fenómeno "nunca visto na história": uma classe politicamente "dominante" encontra-se "globalmente em condições de vida inferiores às de certos elementos da classe dominada e submetida". As massas populares, que continuam a padecer uma vida de privações, estão desorientadas diante do espectáculo do "nepman" [o homem da NEP] afundado no seu casaco de peles, que tem à sua disposição todos os bens da terra", mas isto não deve ser motivo de escândalo ou repulsa, pois o proletariado, o mesmo que não pode conquistar o poder, tão pouco pode mantê-lo se for incapaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos "interesses gerais e permanentes da classe". Trata-se, naturalmente, de uma situação transitória. O que Gramsci sugere aqui pode ser útil à esquerda ocidental para compreender a realidade de um país como a China actual.

c) Gramsci dá-nos algumas indicações valiosas sobre outro aspecto. Devemos imaginar o comunismo como a dissipação total não só dos antagonismos de classe como também como do Estado e do poder político, assim como das religiões, das nações, da divisão do trabalho, do mercado, de qualquer fonte possível de conflito? Questionando o mito da extinção do Estado e da sua dissolução na sociedade civil, Gramsci assinala que a própria sociedade civil é uma forma de Estado. Também destaca que o internacionalismo não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades nacionais, que subsistirão muito depois da queda do capitalismo. Quando ao mercado, Gramsci considera que conviria falar de "mercado determinado", ao invés de mercado em abstracto. Gramsci ajuda-nos a superar o messianismo, que dificulta gravemente a construção da sociedade pós capitalista.

d) Finalmente, ainda que condenem o capitalismo, as Cartas do cárcere evitam interpretar a história moderna e as revoluções burguesa como um tratado de "teratologia", ou seja, um tratado que se ocupa de monstros. Os comunistas devem criticar os erros, por vezes graves, de Staline, Mao e outros dirigentes, sem reduzir nunca estes capítulos da história do movimento comunista a uma "teratologia", uma história de monstros.
15/Dezembro/2011
1. Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas hoje, Ed. Revan , Rio de Janeiro, 2004, 206 p., ISBN: 8571063052
2. Contra-história do liberalismo, Ed. Ideias e Letras , S. Paulo, 2010, 400 p., ISBN: 8598239755
3. Do liberalismo ao "comunismo crítico", Ed. Revan, Rio de Janeiro, 2006, 288 p., ISBN 8571063400


[*] Da revista Chinese Social Sciences Today

O original em italiano encontra-se em domenicolosurdo.blogspot.com/... , a versão em castelhano em http://albared.org/node/89 e a versão em francês em http://www.jolimai.org/?p=177


Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A esquerda que não desejamos mais


O jogo está perdido? Poderiam os eleitores e militantes de esquerda mais interessados no conteúdo do que nos rótulos ter esperanças, inclusive nos países ocidentais, de combater a direita junto com camaradas conquistados pelo liberalismo, mas ainda eleitoralmente hegemônicos?
por Serge Halimi no LeMondebrasil


Os norte-americanos que se manifestam contra Wall Street protestam também contra seus contatos dentro do Partido Democrata e da Casa Branca. Certamente eles não sabem que os socialistas franceses continuam invocando Barack Obama como exemplo. Segundo estes, o presidente norte-americano teria sabido, ao contrário de Nicolas Sarkozy, agir contra os bancos. Seria mesmo um equívoco? Quem não quer (ou não pode) atacar os pilares da ordem liberal (financeirização, globalização dos fluxos de capitais e mercadorias) é tentado a personalizar a catástrofe, a imputar a crise do capitalismo aos erros de concepção ou gestão de seu adversário interno. Na França, o culpado seria Sarkozy; na Itália, Berlusconi; na Alemanha, Merkel. Muito bem, mas e no resto do mundo?
Em todo o mundo, e não apenas nos Estados Unidos, líderes políticos há muito apresentados como referência pela esquerda moderada também enfrentam cortejos de indignados. Na Grécia, George Papandreou, presidente da Internacional Socialista, está colocando em prática uma política de austeridade draconiana que combina privatizações maciças, supressão de emprego no serviço público e entrega da soberania econômica e social de seu país a uma “troika” liberal.1Os governos da Espanha, de Portugal e da Eslovênia também ajudam a lembrar que o termo “esquerda” está tão gasto que não remete mais a nenhum conteúdo político específico.
Um dos melhores críticos do impasse da social-democracia europeia é Benoît Hamon, atual porta-voz do Partido Socialista (PS) francês. Em seu último livro, Tourner la page [Virar a página], ele destaca: “Dentro da União Europeia, o Partido Socialista Europeu (PSE) está historicamente vinculado, devido ao compromisso que o liga à democracia cristã, à estratégia de liberalização do mercado interno e suas consequências em termos de direitos sociais e serviços públicos. São socialistas os governos que negociaram os planos de austeridade desejados pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional. Na Espanha, em Portugal e na Grécia, os protestos contra os planos de austeridade dirigem-se evidentemente ao FMI e à Comissão Europeia, mas também aos governos socialistas nacionais. [...]Parte da esquerda europeia não contesta mais a concepção de que seria necessário, a exemplo da direita europeia, sacrificar o Estado de bem-estar social para restaurar o equilíbrio orçamentário e bajular os mercados. [...]Em diversos lugares do globo, nós teríamos sido um obstáculo para o avanço do progresso. Eu não aceito isso”.2
Outros, em compensação, consideram a transformação irreversível, pois ela teria raízes no aburguesamento dos socialistas europeus. Ainda que bastante moderado, o Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro acredita que a esquerda latino-americana deve pegar o bastão da esquerda do Velho Mundo, capitalista demais, norte-americanizada demais, portanto cada vez menos legítima na afirmação da defesa dos interesses populares. Em setembro, um documento preparatório para o congresso do PT indicava: “Hoje existe um deslocamento geográfico da direção ideológica da esquerda no mundo. Nesse contexto, a América do Sul se destaca. [...] A esquerda dos países europeus, que tanto influenciou a esquerda do mundo inteiro desde o século XIX, não conseguiu fornecer respostas adequadas à crise e parece entregar-se à dominação neoliberal”.3 O declínio da Europa talvez seja o crepúsculo da influência ideológica do continente que viu nascer o sindicalismo, o socialismo e o comunismo – e que parece, mais que outros, resignar-se com sua supressão.
 
Presos na lógica eleitoral

O jogo está perdido? Poderiam os eleitores e militantes de esquerda mais interessados no conteúdo do que nos rótulos ter esperanças, inclusive nos países ocidentais, de combater a direita junto com camaradas conquistados pelo liberalismo, mas ainda eleitoralmente hegemônicos? A dança realmente virou ritual: a esquerda reformista distingue-se dos conservadores pelo tempo de uma campanha, por uma ilusão de óptica. Depois, quando chega o momento, ela se põe a governar do mesmo modo que seus adversários, evita perturbar a ordem econômica, protege a prataria do castelo.
A transformação social cuja necessidade – e até urgência – é proclamada pela maioria dos candidatos de esquerda no exercício das responsabilidades governamentais requer que estes a vejam como algo além de retórica eleitoral. Mas também demanda que eles cheguem ao poder. E é nesse ponto que a esquerda moderada pretende dar lições aos “radicais” e outros “indignados”. Ela não está esperando pela “grande noite” (ver debate entre Samuel Gompers e Morris Hillquit na pág. 26), muito menos sonha em refugiar-se numa contrassociedade isolada das impurezas do mundo e povoada por seres excepcionais. Nas palavras de François Hollande, ela não quer “impedir, em vez de fazer. Frear, em vez de agir. Resistir, em vez de conquistar”. E acredita que “não derrotar a direita é conservá-la, portanto, optar por ela”.4Já a esquerda radical preferiria, segundo ele, “aproveitar a primeira fúria que passar” a fazer “a opção pelo realismo”.5
A esquerda de governo – e este é seu trunfo – dispõe “aqui e agora” de forças eleitorais e quadros impacientes, que lhe permitiriam garantir prontamente a sucessão. Mas “derrotar a direita” não tem status de programa ou perspectiva. Uma vez vencida a eleição, as estruturas já arraigadas – nacionais, europeias, internacionais – podem barrar a vontade de mudança expressa na campanha. Nos Estados Unidos, Obama pôde alegar que os lobbies da indústria e a obstrução parlamentar dos republicanos minaram um voluntarismo e um otimismo (“Yes, we can”) aprovados por ampla maioria popular.
Em outros países, governantes de esquerda dão como desculpa, para justificar sua prudência ou covardia, certas “limitações” ou “heranças” (falta de competitividade internacional do setor produtivo, nível de endividamento etc.) que teriam diminuído sua margem de manobra. Em 1992, Lionel Jospin já fazia essa análise: “Nossa vida pública é dominada por uma estranha dicotomia. Por um lado, o poder [socialista]é acusado pelo desemprego, pela precariedade dos bairros periféricos, pelas frustrações sociais, pelo extremismo de direita, pela desesperança da esquerda. Por outro, é instado a lançar mão de uma política financeira que torna muito difícil tratar dos problemas denunciados”.6Vinte anos depois, a formulação dessa contradição continua novinha em folha.
Os socialistas se lembram disso a cada vez que explanam seus argumentos em favor do “voto útil”: uma derrota eleitoral da esquerda engendra a aplicação, pela direita, de um arsenal de “reformas” liberais – privatizações, redução dos direitos sindicais, amputação das receitas públicas – que destroem as possíveis ferramentas de qualquer outra política. Essa derrota também pode ter virtudes pedagógicas. Hamon, por exemplo, admite que na Alemanha “o resultado das eleições legislativas [de setembro 2009], que rendeu ao SPD [Partido Social-Democrata] sua pior pontuação [23% dos votos]em um século, convenceu a direção do partido das necessárias mudanças de orientação”.7
Uma “recuperação doutrinal” de amplitude bastante modesta deu-se também na França, após a derrota legislativa dos socialistas em 1993; no Reino Unido, após a vitória do Partido Conservador em 2010. E sem dúvida constataremos em breve um cenário idêntico na Espanha e na Grécia, já que parece improvável que os atuais governantes socialistas desses países atribuam sua próxima derrota a uma política exageradamente revolucionária... Em defesa de Papandreou, a deputada socialista grega Elena Panaritis chegou a utilizar uma referência inesperada: “Margaret Thatcher precisou de onze anos para levar a cabo suas reformas, em um país que tinha problemas estruturais muito menores. Nosso programa foi criado há apenas catorze meses!”.8Em suma, “Papandreou, melhor que Thatcher!”.
 
Rupturas necessárias

Para sair dessa armadilha, é preciso enumerar as condições necessárias para enquadrar a globalização financeira. Mas imediatamente surge um problema: dada a abundância e a sofisticação dos dispositivos que há trinta anos submetem o desenvolvimento econômico dos Estados à especulação capitalista, mesmo uma política relativamente benevolente de reformas (menor injustiça fiscal, progressão moderada do poder de compra dos salários, manutenção do orçamento da educação etc.) exige agora um número significativo de rupturas. Ruptura com a atual ordem europeia e com as políticas passadas dos socialistas.
Por falta, por exemplo, de um questionamento da “independência” do Banco Central Europeu (com a garantia, pelos tratados europeus, de que sua política monetária escaparia a qualquer controle democrático); por falta de uma flexibilização do Pacto de Estabilidade e Crescimento (que em tempos de crise sufoca qualquer estratégia de luta contra o desemprego); por falta de denunciar a aliança entre liberais e social-democratas no Parlamento Europeu (levando estes últimos a apoiar a candidatura de Mario Dragui, ex-banqueiro da Goldman Sachs, para a direção do BCE); sem falar do livre-comércio (doutrina da Comissão Europeia), da auditoria da dívida pública (de modo a não reembolsar os especuladores que apostaram contra os países mais fracos da zona do euro) –9por falta de tudo isso, o jogo já começaria errado.
E até perdido. Nada leva a crer que Hollande, na França, Sigmar Gabriel, na Alemanha, ou Edward Miliband, no Reino Unido, teriam êxito no que Obama, José Luis Zapatero e Papandreou falharam. Imaginar que “uma aliança que faça da união política da Europa o coração de seu projeto” seja capaz, como espera Massimo d’Alema, na Itália, de “garantir o renascimento do progressismo”10 é (na melhor das hipóteses) sonhar acordado. No estado atual das forças políticas e sociais, uma Europa federal só poderia apertar ainda mais os dispositivos liberais já sufocantes e privar ainda mais o povo de sua soberania, confiando o poder a instâncias tecnocráticas opacas. A moeda e o comércio já não são áreas “federalizadas”?
Entretanto, na medida em que os partidos de esquerda moderados continuam a representar a maioria do eleitorado progressista – seja por adesão a seu projeto ou pelo sentimento de que eles constituem a única perspectiva de alternância próxima –, as formações políticas mais radicais (ou os ambientalistas) encontram-se condenadas ao papel de figurantes, forças de apoio, papagaios de pirata. Mesmo com 15% dos votos, 44 deputados, quatro ministros e uma organização com dezenas de milhares de militantes, entre 1981 e 1984 o Partido Comunista Francês (PCF) nunca pesou na definição das políticas econômicas e financeiras de François Mitterrand. O naufrágio do Partido da Refundação Comunista (PRC), na Itália, prisioneiro da aliança com os partidos de centro-esquerda, não é um exemplo mais animador. Na época, a questão era impedir a qualquer custo que Silvio Berlusconi retornasse ao poder – o que ele acabaria fazendo, embora mais tarde.
A Frente de Esquerda (da qual o PCF faz parte) tem a esperança de contrariar esses presságios. Pressionando o PS, ela espera que ele escape de “seus atavismos”. A priori, a aposta parecia um feitiço. No entanto, se ele integra outros dados além da relação de forças eleitoral e das limitações institucionais, ele pode prevalecer-se de precedentes históricos. Assim, nenhuma das grandes conquistas sociais da Frente Popular (férias pagas, semana de 40 horas etc.) constava do programa (muito moderado) da coligação vitoriosa em abril-maio de 1936 – foi o movimento grevista de junho que as impôs ao patronato francês e à direita.
A história desse período não se resume, no entanto, à pressão irresistível de um movimento social sobre partidos de esquerda tímidos ou assustados. Foi a vitória eleitoral da Frente Popular que liberou um movimento de revolta social, dando aos trabalhadores o sentimento de que eles não enfrentariam, como antes, o muro da repressão policial e patronal. Entusiasmados, eles também sabiam que nada seria dado pelos partidos nos quais acabavam de votar sem que eles forçassem um pouco a barra. Daí a dialética vitoriosa – mas muito rara – entre eleição e mobilização, urnas e fábricas. No atual estado de coisas, um governo de esquerda que não enfrentasse uma pressão desse tipo imediatamente se veria a portas fechadas com uma tecnocracia que perdeu o hábito de fazer qualquer outra coisa além de liberalismo. Sua única obsessão seria seduzir agências de classificação de risco, as quais – não é nenhum segredo – “rebaixam” qualquer país que empreenda uma verdadeira política de esquerda.
Então, ousadia ou estagnação? Os riscos da ousadia – isolamento, inflação, rebaixamento – são martelados em nossos ouvidos o dia inteiro. Sim, mas e os da estagnação? Analisando a situação da Europa dos anos 1930, o historiador Karl Polanyi recorda que “o impasse em que se encontrava o capitalismo liberal” tinha então desembocado, em vários países, em “uma reforma da economia de mercado realizada à custa da extirpação de todas as instituições democráticas”.11 Um socialista moderado como Michel Rocard alarma-se: o endurecimento das condições impostas aos gregos poderia provocar a suspensão da democracia no país. Assim, ele escreveu no mês passado: “No estado de cólera em que esse povo estará, pode-se duvidar que algum governo grego possa sustentar-se sem o apoio do Exército. Essa triste reflexão provavelmente vale para Portugal e/ou Irlanda e/ou outros, maiores. Até onde isso vai chegar?”.12
Embora atravessada por toda uma parafernália institucional e midiática, a república do centro balança. Há uma disputa entre o endurecimento do autoritarismo liberal e uma ruptura com o capitalismo. Esta ainda parece distante. Mas quando o povo deixa de acreditar em um jogo político de dados viciados, quando observa que os governos foram despojados de sua soberania, quando persiste em exigir a submissão dos bancos, quando se mobiliza sem saber aonde levará sua cólera, isso significa que a esquerda ainda está viva.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).

Ilustração: Daniel Kondo


1 Composto pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
2 Benoît Hamon, Tourner la page, Flammarion, Paris, 2011, p.14-9.
3 AFP, 4 de setembro de 2011.
4 François Hollande, Devoirs de vérité [Deveres de verdade], Stock, Paris, 2006, p.91 e 206.
5 Ibidem, p.43 e 51.
6 Lionel Jospin, “Reconstruire la gauche” [Reconstruir a esquerda], Le Monde, 11 de abril de 1992.
7 Benoît Hamon, op. cit., p.180.
8 Citado por Alain Salles, “L’odyssée de Papandréou” [A odisseia de Papandreou], Le Monde, 16 de setembro de 2011.
9 “Não é possível que a esquerda apresente-se aos franceses nas eleições e peça que eles paguem essa conta”, avalia, por exemplo, Hamon.
10 Massimo d’Alema, “Le succès de la gauche au Danemark annonce un renouveau européen” [O sucesso da esquerda na Dinamarca anuncia uma renovação europeia], Le Monde, 21 de setembro de 2011.
11 Karl Polanyi, La grande transformation [A grande transformação], p.305-7.
12 Michel Rocard, “Un système bancaire à repenser” [Um sistema bancário a ser repensado], Le Monde, 4 de outubro de 2011.

domingo, 11 de dezembro de 2011

2011: Bem vindos ao século XXI

Lucas Morais no DIARIO LIBERDADE

Talvez o século XXI tenha sido oficialmente inaugurado com o golpe de Estado de 2001 nos Estados Unidos que, após os suspeitos atentados terroristas não interrompidos pelas forças armadas, instaurou nesta nação, em nome da suposta segurança nacional, um verdadeiro Estado policial-militar. Tudo isso enquanto rasgava a legislação internacional com a desculpa do combate ao terror para a promoção de guerras de ocupação e a penetração em mais de 120 países de modos distintos.

É a Guerra Global ao Terrorismo, doutrina promovida pelas forças armadas e secretas dos Estados Unidos para construírem, uma vez terminada a Guerra Fria, os bodes expiatórios para chantagearem as nações não-alinhadas, e ocuparem se preciso (sob o pretexto de “combater o terrorismo”) aqueles países que interessam às corporações transnacionais sob comando do Estado norte-americano, como nos casos da Líbia, Afeganistão e Iraque. Esta ofensiva imperialista estadunidense atinge diretamente os interesses dos povos árabes, africanos, latino-americanos, asiáticos, persas, palestinos, etc. As próximas vítimas podem ser a Síria ou o Irã, mas os EUA têm mesmo em sua mira prejudicar os interesses estratégicos da China e da Rússia.

Da Primavera Árabe ao Pesadelo Árabe?

A chamada crise alimentar, marcada pela concentração cada vez maior da produção de alimentos sob poder dos monopólios capitalistas transnacionais, afetou drasticamente todos estes povos, especialmente os povos do Chifre da África, que vivem uma das maiores secas em 60 anos e ameaçou a vida de mais de 11 milhões de pessoas na Etiópia, Somália, Quênia, Sudão, Sudão do Sul e Djibuti. Durante dois anos, nenhuma gota d'água caiu dos céus na Somália, Etiópia e Quênia. Mais de 10 mil seres humanos foram mortos.
Para se ter ideia, mais de 800 mil somalianos do sul fugiram rumo ao Quênia e Etiópia em busca de alimentos. Os campos de Dadaab, no Quênia, acolheram perto de 440 mil refugiados, 300% a mais de sua capacidade. São cerca de 1.400 somalianos em fuga por dia nas fronteiras, enquanto preços de alimentos são manipulados de modo a promover maiores lucros aos acionistas de grandes empresas como a Monsanto, afetando diretamente a vida de todos os povos que convivem com a escassez de alimentos em função da especulação capitalista.
Esta crise, junto à violenta manutenção dos regimes ditatoriais em países do norte da África e do Oriente Médio, impediram um maior desenvolvimento da produtividade do trabalho nos países mais desenvolvidos desta região e aprofundaram as consequências da crise capitalista global para estes povos que vivem historicamente submersos na pobreza e na miséria. São estes e vários outros fatores que levaram ao que chamamos hoje de Primavera Árabe.
Entretanto, a Primavera Árabe, que nasceu como um movimento libertário na luta por democracia no Iêmen, Bahrein, Egito, Tunísia e em menor escala na Líbia, transmutou-se para uma contrarrevolução aberta orquestrada pelo Pentágono e a CIA aliada ao braço europeu, a OTAN, e o braço israelense Mossad, junto aos regimes monárquicos da Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes. Todo este aparato está montado contra os interesses de real democratização nestes países e, simultaneamente, contra os interesses estratégicos das potências BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, grupo emergente que se articula conjuntamente para defender seus interesses estratégicos em contraposição política e econômica ao bloco atlantista dos EUA-União Europeia), que possuem investimentos por parte de suas transnacionais por toda esta região e também por toda a África.
Com a conquista da Líbia pelas forças do Pentágono e da OTAN, está sendo viabilizada a instalação da primeira grande base de operações militares dos Estados Unidos na África, o Africom. No Egito, Tunísia e Iêmen as transições estão sendo orquestradas pelo alto, mantendo-se os antigos regimes e o apoio ao/do imperialismo estadunidense. Enquanto isso fortalecem-se as organizações islâmicas conservadoras, que venceram com maioria as eleições na Tunísia e no Egito, enquanto no Iêmen é negociado o afastamento do ditador Ali Abdullah Saleh e a situação ainda segue incerta no país mais pobre e de mais civis armados do Oriente Médio.
O Egito e a Tunísia deverão formar assembleias constituintes e construir jovens democracias capitalistas com inspiração no islamismo conservador a la Turquia, dado que os partidos deste bloco possuem atualmente maior força político-partidária e aptidão para negociar as concessões “democráticas” e as manutenções autoritárias com os antigos regimes.
Esta chama de lutas em um contexto de ditaduras genocidas historicamente apoiadas pelo imperialismo ocidental acabou por reacender e influenciar também as lutas sociais dos povos nas nações centrais do capitalismo global, esfriadas especialmente após 1968.

A juventude ocupa as ruas na Europa contra a austeridade

No Estado espanhol, o Movimento 15 de Março logo irrompeu, com sua juventude fortemente afetada pela crise capitalista, sem perspectivas não somente para o futuro, mas principalmente para o momento atual. Quando movimentos similares começavam a dar sinais na França, logo foram reprimidos com brutalidade pela polícia parisiense sob o tacão de Sarkozy. Na Inglaterra uma ampla rebelião de jovens ingleses e imigrantes sem perspectivas incendiou vários pontos tradicionais de Londres, expressando uma guerra aberta em um contra-ataque enfurecido contra a repressão policial e as políticas de austeridade. O movimento Occupy London resiste em sua luta enquanto no dia 30 de novembro mais de 80 mil trabalhadores do setor público foram às ruas de todo o Reino Unido protestar contra as políticas de austeridade do governo da coalizão conservadora-liberal encabeçada por David Cameron, protagonizando a maior greve dos últimos 30 anos na Inglaterra.
Na Grécia, apesar das contundentes manifestações e das mais de sete greves gerais, governa agora a direita ligada aos bancos, que está quebrando ainda mais o país com suas políticas de desmantelamento do setor público e de todas as conquistas sociais e trabalhistas, em um verdadeiro ataque que mostra o que vem por aí para Portugal, Irlanda, Itália e o Estado espanhol. Por outro lado, na Islândia, o país que não se fala, o povo se organizou, chamou por um plebiscito que votou contra o pagamento das dívidas ilegítimas e está organizando uma Assembleia Constituinte que está dando o exemplo para os povos europeus afogados na inviabilidade dos absurdos pagamentos das dívidas de seus países.
A chamada “austeridade”, que nada mais é que a ofensiva capitalista em meio a sua crise geral, vai se transformando no acirramento das lutas entre as classes capitalistas e trabalhadoras, enquanto os novos jovens proletarizados são os mais atacados e afetados, já que, quando encontram emprego, logo são submetidos a acordos trabalhistas flexibilizados e a salários mínimos.

Ocupe Wall Street

Eis que 2011 chega aos Estados Unidos em torno de um chamado para o Occupy Wall Street, convocado principalmente pelas redes sociais da Internet, rapidamente difundido e já nos primeiros dias contando com presença massiva de alguns milhares de manifestantes, que foram reprimidos com gás de pimenta, cassetetes, bombas lacrimogêneas e, claro, prisões. O movimento ganhou solidariedade, se ampliou, espelhou-se por dezenas das principais cidades deste país e hoje é uma das principais praças de luta dos 99% contra os 1%. A luta é abertamente contra o capitalismo e conta com mais simpatia dos estadunidenses do que o movimento ultraconservador republicano Tea Party.
O movimento é composto fundamentalmente por jovens, tanto nos Estados Unidos quanto nas lutas sociais da Europa. Vale lembrar que em 1968, na vanguarda das revoltas europeias, estavam sempre a combativa juventude, com os partidos comunistas e centrais sindicais, que então possuíam grande força e influência entre o povo, coisa que mudou muito nestes mais de 40 anos.

Para onde vamos nesta tormenta perfeita?

Mas, talvez o século XXI, o nosso século XXI, tenha somente começado em 2011 na Praça Tahrir, a praça da libertação. Não cabe especular o que será destes movimentos, basta notar que eles são sintoma da crise capitalista global, que deverá entrar em fases ainda mais críticas nos próximos meses e anos. Por outro lado, são também expressões das resistências a esta ordem social decadente e destrutiva, que cada vez mais depende do monopólio e do aumento da violência para sobreviver.
Esta juventude tem cada vez mais consciência dos limites da democracia capitalista e, não à toa, lutam por uma “Democracia real já”. Já os trabalhadores de todo o mundo vivem uma crise permanente especialmente a partir da década de 1980. Suportarão por quanto tempo a intensificação da exploração sem se rebelar contra o sistema explorador de seus patrões?
Que venha 2012!

Lucas Morais é jornalista, tradutor e editor de Diário Liberdade.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O lugar de Rosa Luxemburgo na história

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Revolutas - [Tonny Cliff] Franz Mehring, biógrafo de Marx, não exagerava quando disse que Rosa Luxemburgo era o melhor cérebro depois de Marx. Mas ela não trouxe apenas seu cérebro para o movimento da classe trabalhadora, deu tudo o que tinha. Seu coração, sua paixão, sua forte vontade, sua própria vida.

Rosa foi, acima de tudo, uma socialista revolucionária. E entre os principais líderes socialistas revolucionários ela tem um lugar histórico próprio.
Quando o reformista rebaixou o movimento socialista para exigir apenas o "estado de bem estar”, negociando com o capitalismo, tornou-se de fundamental importância fazer uma crítica revolucionária deste servo do capitalismo. É verdade que outros líderes do marxismo - Lênin, Trotsky, Bukharin, etc - conduziram uma luta revolucionária contra o reformismo. Mas eles tinham uma frente limitada contra a qual lutar. Na Rússia, seu país, as raízes desta erva daninha eram tão fracas e finas, que poderiam ser arrancadas de uma vez. Num lugar em que estava muito presente a ameaça de exílio na Sibéria ou morte pela forca para cada socialista ou democrata, quem poderia se opor, em princípio, ao uso de violência por parte do movimento operário? Quem, na Rússia czarista, poderia ter sonhado com uma via parlamentar para o socialismo? Quem poderia argumentar a favor de uma política de governo de coalizão, e que não tinha de fazê-lo? Onde apenas existiam sindicatos, quem poderia considerá-los como a panaceia do movimento operário? Lênin, Trotsky e outros dirigentes bolcheviques russos não precisavam combater os argumentos do reformismo com uma análise cuidadosa e precisa. Tudo o que precisavam era de uma vassoura para varrer o monte de esterco da história.
Na Europa Central e Ocidental, o reformismo conservador tinha suas raízes muito mais profundas, influência muito mais ampla sobre os pensamentos e maneira de ser dos trabalhadores. Os argumentos dos reformistas tinham que ser respondidos por outros melhores, e nisto Rosa foi excelente. Nestes países, o bisturi é uma arma muito mais útil do que a marreta de Lênin.
Na Rússia czarista, a maioria dos trabalhadores não estava organizada em partidos políticos ou sindicatos. Não havia a ameaça de surgirem poderosos aparatos controlados por uma burocracia ascendente da classe trabalhadora, como os movimentos operários bem organizados na Alemanha, e era natural que Rosa tivesse uma visão antecipada e mais clara do papel da burocracia sindical do que Lênin ou Trotsky. Ela percebeu muito antes que a iniciativa dos trabalhadores era a única força capaz de romper o emaranhado da burocracia. Seus textos sobre este assunto podem ser uma inspiração para os trabalhadores nos países industriais avançados, e são uma contribuição à luta para libertar os trabalhadores da ideologia perniciosa do reformismo burguês mais valiosa do que a de qualquer outro marxista.
Na Rússia, os bolcheviques sempre formaram uma grande e importante parcela dos socialistas organizados. Mas nem sempre, como seu nome sugere, eram a maioria. Por isso nunca emergiu realmente como um problema a questão da atividade de uma pequena minoria marxista conduzindo de forma conservadora uma organização massa. Demorou muito tempo para Rosa Luxemburgo desenvolver a correta aproximação a esta questão vital. O princípio que a guiava era: estar com as massas em todos os seus movimentos, e tentar ajudá-la. Por isso se opôs ao abandono da principal corrente do movimento operário, qualquer que fosse seu grau de desenvolvimento. Sua luta contra o sectarismo é extremamente importante para o movimento operário no Ocidente, especialmente hoje, quando o estado de bem-estar é um sentimento tão presente. O movimento trabalhista britânico, em particular, tem sofrido com o sectarismo e pode se inspirar em Rosa Luxemburgo para estabelecer uma luta contra o reformismo, com cuidado para não degenerar em uma fuga. Ela ensinou que um revolucionário não deve nadar com a corrente do reformismo, ou sentar-se a margem e olhar na direção oposta, ele deve nadar contra a corrente.
O conceito de Rosa Luxemburgo sobre as estruturas das organizações revolucionárias, que deviam ser construídas de baixo para cima, sobre uma consistente base democrática, se adapta às necessidades do movimento dos trabalhadores nos países avançados muito mais que a concepção de Lênin de 1902-1904, copiada pelos stalinistas em todo o mundo, adicionando um toque de burocracia.
Ela compreendeu mais claramente do que ninguém que a estrutura do partido revolucionário e as relações mútuas entre o partido e a classe teria grande influência, não só na luta contra o capitalismo e pelo poder dos trabalhadores, mas também sobre o destino deste poder. Estabeleceu profeticamente que sem a ampla democracia dos trabalhadores, "burocratas atrás de suas mesas" tomariam o poder político das mãos dos trabalhadores. Ela disse: "O socialismo não pode ser concedido ou implementado por um decreto".
A combinação de espírito revolucionário e compreensão clara da natureza do movimento operário na Europa ocidental e central estava relacionada, de alguma forma, com sua determinada marca de nascimento no Império czarista, sua longa permanência na Alemanha e sua plena atividade no movimento operário polonês e alemão. Qualquer um de menor estatura teria sido assimilado em um dos dois ambientes, mas não Rosa Luxemburgo. Para a Alemanha ela levou o espírito "russo", o espírito da ação revolucionária. Para a Polônia e a Rússia levou o espírito "ocidental" de confiança, democracia e auto-emancipação dos trabalhadores.
Sua obra “A acumulação do capital” é uma contribuição importante para o marxismo. Ao lidar com as relações entre os países industriais avançados e países agrários atrasados, dá destaque para a importante ideia de que o imperialismo, ao mesmo tempo em que estabiliza o capitalismo por um longo período, ameaça enterrar a humanidade sob suas ruínas.
Sua interpretação da história, que ela concebia como o resultado da atividade humana era crítica, dinâmica e não fatalista, e ao mesmo tempo revelava as profundas contradições do capitalismo. Rosa não considerou como inevitável a vitória do socialismo. Pensava que o capitalismo poderia ser tanto a ante-sala do socialismo como da barbárie. Nós, que vivemos à sombra da bomba H devemos interpretar este aviso e usá-lo como um estímulo à ação.
No final do século 19 e início do século 20, o movimento operário alemão, após décadas de paz, caiu na ilusão de continuidade desta situação. Aqueles que testemunharam as negociações sobre o desarmamento controlado, as Conferências de Cúpulas, Nações Unidas... o melhor que podemos fazer é aprender a partir da análise clara de Rosa Luxemburgo sobre os laços inquebráveis entre a guerra e o capitalismo, e sua insistência de que a luta pela a paz é inseparável da luta pelo socialismo.
Sua paixão pela verdade, fez Rosa Luxemburgo ter repulsa por qualquer pensamento dogmático. No período em que o stalinismo, transformou grande parte do marxismo em seu dogma, espalhando desolação no campo das ideias, seus textos são revigorantes e vitalizantes. Para ela não havia nada mais intolerável que reverenciar as "autoridades infalíveis." Como verdadeira seguidora de Marx, foi capaz de pensar e agir de forma independente do seu mestre. Apesar de compreender o espírito dos seus ensinamentos, Rosa Luxemburgo não perdeu as suas próprias faculdades críticas simplesmente repetindo as palavras de Marx, mas adaptando suas conclusões a diferentes situações. A independência de pensamento de Rosa Luxemburgo é a maior inspiração a todos os socialistas, em todos os lugares e a qualquer hora. Assim, ninguém censuraria mais fortemente do que ela qualquer tentativa de canonizá-la, torná-la uma "autoridade infalível" na condução de uma escola de pensamento ou ação. Rosa gostava muito do conflito de ideias como um meio de se aproximar da verdade.
Num período em que tantos se consideram marxistas e privam o marxismo de seu conteúdo humanista mais profundo, ninguém pode fazer mais do que Rosa Luxemburgo para nos livrar da cadeia sem vida do materialismo mecanicista. Para Marx, o comunismo (ou socialismo) era um "verdadeiro humanismo", "uma sociedade em que o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo é o princípio dominante" (1). Rosa Luxemburgo foi a personificação dessas paixões humanas. A simpatia pelos pobres e oprimidos era motivo central em sua vida. Sua profunda emoção e sentimentos com os sofrimentos do povo e todas as coisas vivas estão expressos em tudo o que disse ou escreveu, em suas cartas da prisão e nos escritos de sua mais profunda pesquisa teórica.
Rosa Luxemburgo sabia que onde há tragédia humana em uma escala épica, as lágrimas não ajudam. Seu lema, como de Spinoza, poderia ter sido: "Não chore, não ria, mas compreenda", embora ela mesma teve sua cota de lágrimas e risos. Seu método voltava-se para a revelação das tendências da vida social, a fim de ajudar a classe trabalhadora a usar o seu potencial da melhor maneira possível em conjunto com o desenvolvimento objetivo. Ela apelou mais para a razão humana do que para a emoção.
Uma profunda simpatia humana, um desejo sincero de verdade, uma coragem e um cérebro primeira linha foram unidos em Rosa Luxemburgo para torná-la uma socialista revolucionária. Como expressou Clara Zetkin, sua amiga íntima, em seu funeral de despedida:
"Em Rosa Luxemburgo a ideia socialista foi uma paixão dominante e poderosa do coração e do cérebro, uma paixão verdadeiramente criativa que queimava incessantemente. A principal tarefa e a ambição dominante desta incrível mulher foi preparar o caminho para a revolução social, abrindo o caminho da história para o socialismo. Sua maior felicidade foi a experiência da revolução, lutar em todas suas batalhas. Devotou sua vida inteira e todo o seu ser para o socialismo com uma vontade, determinação, desprendimento e fervor que as palavras não podem expressar. Ela se entregou totalmente à causa do socialismo, não só pela sua morte trágica, mas ao longo de sua vida, cada dia e a cada minuto, através das lutas de muitos anos ... Foi a espada afiada, a chama viva da revolução ".

1. Marx, K; O Capital, Vol.I, p.649.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sete teses sobre Walter Benjamin e a teoria crítica

271111_wbBlog da Boitempo - [Michael Löwy]

I – Walter Benjamin pertence à teoria crítica em sentido amplo, isto é, à corrente de pensamento inspirada em Marx que, a partir ou em torno da Escola de Frankfurt, pôs em questão não só o poder da burguesia, mas também os fundamentos da racionalidade e da civilização ocidental. Amigo íntimo de Theodor Adorno e Max Horkheimer, ele sem dúvida influenciou seus escritos e, sobretudo, a obra capital que é a Dialética do esclarecimento, em que se encontram muitas de suas ideias e, às vezes, “citações” sem referência à fonte. Ele, por sua vez, foi sensível aos principais temas da Escola de Frankfurt, mas distingue-se dela por alguns traços que lhe são particulares e constituem sua contribuição específica à teoria crítica.

Benjamin nunca conseguiu um cargo em universidades: a reprovação de sua tese – sobre o drama barroco alemão – condenou-o a uma existência precária de ensaísta, “homem de letras” e jornalista free-lancer, que, é claro, decaiu consideravelmente nos anos de exílio em Paris (1933-40). Exemplo ideal típico da freischwebende Intelligenz de que falava Mannheim: ele era um Aussenseiter em sentido estrito, um outsider, um marginal. Essa situação talvez tenha contribuído para a acuidade subversiva de seu olhar.

II – Benjamin foi, nesse grupo de pensadores, o primeiro a questionar a ideologia do progresso, filosofia “incoerente, imprecisa, sem rigor”, que só percebe no processo histórico “o ritmo mais ou menos rápido com que homens e épocas avançam no caminho do progresso” (“A vida dos estudantes”, 1915). Ele também foi mais longe do que os outros na tentativa de livrar o marxismo de uma vez por todas da influência das doutrinas burguesas “progressistas”; assim, em Passagens, ele se propunha o seguinte objetivo: “Também se pode considerar como alvo metodologicamente visado neste trabalho a possibilidade de um materialismo histórico que tenha anulado em si mesmo a ideia de progresso. É justamente se opondo aos hábitos do pensamento burguês que o materialismo histórico encontra forças”. Benjamin estava convencido de que as ilusões “progressistas”, especialmente a convicção de “nadar na corrente da história”, e uma visão acrítica da técnica e do sistema produtivo existentes contribuíram para a derrota do movimento operário alemão diante do fascismo. Entre essas ilusões nefastas, ele incluía o espanto de que o fascismo pudesse existir em nossa época, numa Europa moderna, produto de dois séculos de “processo de civilização” (no sentido dado por Norbert Elias), como se o Terceiro Reich não fosse precisamente uma manifestação patológica dessa mesma modernidade civilizada.

III – Se a maioria dos pensadores da teoria crítica partilhava o objetivo de Adorno de pôr a crítica romântica conservadora da civilização burguesa a serviço dos objetivos emancipadores das Luzes, Benjamin talvez tenha sido aquele que mostrou mais interesse pela apropriação crítica dos temas e das ideias do romantismo anticapitalista. Em Passagens, ele se refere a Korsch para destacar a dívida de Marx, via Hegel, com os românticos alemães e franceses, mesmo os mais contrarrevolucionários. Ele não hesitou em usar argumentos de Johannes von Baader, Bachofen ou Nietzsche para derrubar os mitos da civilização capitalista. Encontramos nele, como em todos os românticos revolucionários, uma surpreendente dialética entre o passado mais longínquo e o futuro emancipado; daí seu interesse pela tese de Bachofen – que inspirou tanto Engels quanto o geógrafo anarquista Elisée Réclus – sobre a existência de uma sociedade sem classes, sem poderes autoritários e sem patriarcado na aurora da história.
Essa sensibilidade permitiu que Benjamin compreendesse melhor que seus amigos da Escola de Frankfurt o significado e o alcance de um movimento romântico libertário como o surrealismo, ao qual ele atribuiu, num artigo de 1929, a missão de captar a força do inebriamento (Rausch) para a causa da revolução. Marcuse também se deu conta da importância do surrealismo como tentativa de associar arte e revolução, mas isso aconteceu quarenta anos depois.

IV – Mais do que os outros pensadores da teoria crítica, Benjamin soube mobilizar de forma produtiva os temas do messianismo judeu para o combate revolucionário dos oprimidos. Os temas messiânicos estão presentes em certos textos de Adorno (especialmente em Minima Moralia) ou Horkheimer, mas foi em Benjamin e, em particular, em suas teses “Sobre o conceito de história” que o messianismo se tornou um vetor central de refundação do materialismo histórico – para poupá-lo do destino de autômato que teve nas mãos do marxismo vulgar (social-democrata ou stalinista). Em Benjamin existe uma espécie de correspondência (no sentido baudelairiano da palavra) entre a irrupção messiânica e a revolução como interrupção da continuidade histórica – a continuidade da dominação.
No messianismo como Benjamin o entende (ou melhor, inventa), a questão não é alcançar a salvação de um indivíduo excepcional, de um profeta enviado pelos deuses: o “Messias” é coletivo, já que a cada geração foi dada “uma fraca força messiânica”, que deve ser exercida da melhor maneira possível.

V – De todos os autores da teoria crítica, Benjamin foi o mais apegado à luta de classes como princípio de compreensão da história e transformação do mundo. Como escreveu nas teses de 1940, a luta de classes “está sempre presente para o historiador formado pelo pensamento de Marx”. De fato, ela está sempre presente em seus textos, como elo essencial entre o passado, o presente e o futuro, e como lugar da unidade dialética entre teoria e prática. Para Benjamin, a história não aparece como um processo de desenvolvimento das forças produtivas, mas como um combate até a morte entre opressores e oprimidos. Rejeitando a visão evolucionista do marxismo vulgar, que percebe o movimento da história como uma acumulação de “conquistas”, ele insiste nas vitórias catastróficas das classes reinantes.
Ao contrário da maioria dos outros membros da Escola da Frankfurt, Benjamin apostou – até seu último suspiro – nas classes oprimidas como força emancipadora da humanidade. Profundamente pessimista, mas nunca resignado, considera a “última classe subjugada” – o proletariado – aquela que, “em nome das gerações vencidas, leva a cabo a obra de libertação” (Tese XII). Apesar de não compartilhar o otimismo míope dos partidos do movimento operário sobre sua “base de massa”, ele vê nas classes dominadas a única força capaz de derrubar o sistema de dominação.

VI – De todos os pensadores da teoria crítica, Benjamin era talvez o mais obstinadamente fiel à ideia marxiana de revolução. Na verdade, contrariando Marx, ele a definiu não como “locomotiva da história”, mas como interrupção de seu curso catastrófico, como ação salvadora de uma humanidade que puxa o freio de emergência. Mas a revolução social permanece o horizonte de sua reflexão, o ponto de fuga messiânico de sua filosofia da história, a pedra angular de sua reinterpretação do materialismo histórico.
Apesar das derrotas do passado – desde a revolta dos escravos liderada por Espártaco na Roma antiga até o levante do Spartakusbund de Rosa Luxemburgo, em janeiro de 1919 – “a revolução como Marx a concebeu”, o “salto dialético”, ainda é possível (Tese XIV). Sua dialética consiste em realizar, graças a “um salto de tigre no passado”, uma irrupção no presente, no “tempo de hoje” (Jetztzeit).

VII – O pensamento de Benjamin está profundamente enraizado na tradição romântica alemã e na cultura judaica da Europa Central e responde a uma conjuntura histórica precisa, a da época das guerras e das revoluções que vai de 1914 a 1940. E, no entanto, os temas principais de sua reflexão e, em particular, suas teses “Sobre o conceito de história” são de uma universalidade admirável: eles nos fornecem ferramentas para compreender realidades culturais, fenômenos históricos, movimentos sociais em outros contextos, outros períodos e outros continentes. Mas, em última análise, isso vale também para toda a teoria crítica.
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Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (Boitempo, 2009) e organizador de Revoluções (2009),  dentre outras publicações. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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Em Walter Benjamin: aviso de incêndio, Michael Löwy faz uma aprofundada análise das teses “Sobre o conceito de história”. O livro integra a Coleção Marxismo e Literatura, coordenada por Leandro Konder, e ganhará versão eletrônica (ebook) em breve.
Traduzido do francês por Mariana Echalar.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Crise econômica neoliberal reaviva pensamento de Marx


Karl Marx, um retorno?

Geraldo Hasse
 
Especial para o Sul21

A atual crise do capitalismo financeiro internacional está reabilitando o pensamento do filósofo Karl Marx, o primeiro pensador econômico a fazer – no século XIX – uma profunda análise crítica do sistema de produção dominante no mundo desde a Revolução Industrial. Esta foi a principal conclusão de um debate realizado nesta quinta (27/10) na Fundação de Economia e Estatística (FEE), em Porto Alegre.
Não poderia ser mais oportuna a ideia da FEE de colocar em debate o tema da mais-valia, a maior sacada de Karl Marx (1818-1883), co-autor do Manifesto Comunista de 1848 e autor de O Capital (1867), que se tornou a bíblia do socialismo, embora seja mais citado do que lido.
A mais-valia é a diferença entre o valor da mercadoria e a soma dos meios empregados em sua produção (da mercadoria). Na prática, é desse “plus” tirado do trabalho de cada operário que o empresário constrói o lucro, chave-mestra da dinâmica capitalista.
Entretanto, como a análise marxista se concentrou no binômio agricultura-indústria, generalizou-se nas últimas décadas a crença de que as teorias de Marx perderam a atualidade, não só porque o comunismo pregado por ele faliu na União Soviética no final do século XX, mas porque a economia vem se concentrando em atividades terciárias, especialmente na área de serviços, onde o resultado do trabalho humano é definido como imaterial.
A dúvida sobre a pertinência da teoria da mais-valia no mundo atual foi respondida sem dificuldades pelo professor Eduardo Maldonado, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Falando para uma centena de pessoas, mescla de estudantes e veteranos do ensino e da pesquisa, ele lembrou didaticamente que nos anos 1960, quando o capitalismo atravessava um ciclo de prosperidade que vinha desde o Pós-Guerra, estudantes e trabalhadores quiseram mudar o mundo e ressuscitaram Marx, que se tornou muito mais conhecido do que tinha sido até então.
Em 1970, o economista norte-americano Paul Samuelson (1915-2009) ganhou uma bolsa de um ano para escrever um ensaio sobre Marx. Não teve dúvidas em afirmar que o pensamento do filósofo alemão era inconsistente. E deu um conselho: “Jovens radicais, estudem Leontief e Sraffa!” Referia-se a Wassily Leontief (1905-1999), economista russo que migrou em 1933 para os EUA onde elaborou o conceito da matriz insumo-produto; e Piero Sraffa (1898-1983), economista italiano que editou criticamente a obra do economista clássico inglês David Ricardo (1772-1823).
Nas décadas seguintes, houve uma enxurrada de estudos sobre as teorias de Marx. Um dos mais importantes difusores da obra de Marx foi o economista norte-americano Paul Sweezy (1910-2004), um neomarxista que estudou as mudanças da concorrência provocadas pela monopolização da economia e a supremacia do capital financeiro sobre as demais atividades.
Ao fim de tamanha onda, sobraram duas perguntas básicas. Primeira: teriam a concentração econômica e a mudança do padrão de acumulação de capital furado a teoria de Marx, particularmente quanto à mais-valia? Pergunta 2: os conceitos marxistas não se ajustariam mais, estariam obsoletos diante das profundas mudanças do mundo moderno, especialmente após a proliferação das tecnologias da informação?
Eduardo Maldonado no evento Diálogos para Ação em agosto deste ano | Foto: Fetrafi-RS

A resposta é negativa para as duas perguntas, afirma Maldonado. “Hoje toda a crítica feita recentemente a Marx é considerada errada”, diz ele, salientando porém que a crise do neoliberalismo vem provocando uma curiosa releitura das teorias marxistas.
Na esquerda econômica, predomina a ideia de que é preciso voltar a John Maynard Keynes (1883-1946), o economista inglês que pregava a intervenção do Estado na regulagem dos negócios, particularmente na definição dos investimentos.
Pela direita, representada por veículos como o Financial Times de Londres e The Time de Nova York, alguns articulistas escreveram recentemente que Marx estava certo ao afirmar que o capitalismo constrói a sua própria destruição. Já um executivo da União de Bancos Suíços escreveu um artigo intitulado “Dê Uma Chance a Marx” (“naturalmente, para salvar o capitalismo”, acrescentou Maldonado).
A irracionalidade da atual crise econômica internacional vem gerando episódios que seriam inexplicáveis em outro contexto. Maldonado citou um artigo recente de um jornalista inglês que lembrou a visita a um colega operador de Wall Street. Estavam ambos à beira da piscina tomando um campari quando o amigo afirmou: “Quanto mais estou em Wall Street, mais admiro Marx”.
Frase de efeito, fruto do cinismo ou do álcool? O fato é que o neoliberalismo – um mero apelido do capitalismo, segundo se concluiu em outro debate recente da FEE – colocou a economia mundial numa sinuca que, paradoxalmente, reaviva a chama do pensamento marxista. Por incrível que possa parecer, os economistas modernos encontram em textos de Marx abundantes subsídios para analisar aspectos contemporâneos da vida das empresas, como a terceirização da fabricação de artigos de grandes marcas mundiais que oferecem trabalho sem gerar emprego. “Há dois anos, havia em Bangladesh dois milhões de pessoas trabalhando 14 horas por dia, sete dias por semana”, lembrou Maldonado.
Ao mesmo tempo em que os trabalhadores de diversos países se enquadram em modernos esquemas escravagistas, em países mais adiantados cresce o número de pessoas empenhadas em tarefas analíticas ou simbólicas, que dependem de altos níveis de cooperação e cuja produção é imaterial e/ou intangível. Mesmo aí sobrevive o conceito fundamental da teoria econômica de Marx.
“A produção imaterial não é incompatível com a teoria da mais-valia”, concluiu Maldonado, destacando que a economia política contribuiu muito pouco para a compreensão do capitalismo porque se limitou basicamente a duas coisas: de um lado, a negar Marx; de outro, a reabilitá-lo.
Assim, como comentou no final o sociólogo Carlos Roberto Winkler, pauteiro dos debates da FEE, o marxismo se tornou um espectro que mais uma vez ronda o planeta – agora, via internet –, sem que se saiba onde foi parar ou o que estaria premeditando o proletariado, categoria apontada por Marx como agente-coveiro do capitalismo.
Os debates da FEE, realizados em média quinzenalmente, refletem o desejo dos veteranos, em vias de aposentar-se, de preparar as novas gerações para a análise da conjuntura econômica e de outros ramos da ciência. Na mesa e na platéia costumam misturar-se estudantes, professores e pesquisadores. Fundada em 1973, a FEE deu continuidade ao trabalho estatístico iniciado na primeira década do século XX, mas se firmou como uma instituição rigorosamente crítica.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Desenvolvimento e ciências humanas


Por Márcio Pochmann no GRABOIS
 
O Renascentismo Europeu, ao final do século XIV, inaugurou uma nova fase de entendimentos acerca da natureza do homem e do funcionamento do mundo, o que concedeu às ciências humanas um valor estratégico substancial. Por meio de um conjunto filosófico comum e acompanhado do método de aprendizado fundamentado na razão e evidência empírica, as humanidades terminaram por subverter a perspectiva espiritualista predominante até então no mundo medieval.
Com o desafio estabelecido de compreender a realidade em sua totalidade, floresceram as universidades e a pesquisa comprometidas com o papel central de organização, produção e difusão técnico-científico de caráter universal. Concomitantemente às revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX, as ciências, sobretudo as aplicadas, foram incorporadas às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial. Ou seja, foram incorporadas à vida nas cidades, uma vida constituída pela materialidade do consumismo decorrente da produção de bens e serviços em escala cada vez mais global.

Para isso, a partilha do conhecimento em múltiplas especializações se fez crescente, gerando fragmentação do ensino e pesquisa compatível com os requisitos de maior produtividade técnico-científica exigidos por distintos setores de atividade econômica. A aplicação recorrente do conhecimento técnico-científico à produção material de bens e serviços modernos tornou possível agregar valor ao processo de acumulação de capital e impor progresso material inimaginável às sociedades urbano-industriais.

A perspectiva de crescente especialização da produção técnico-científica, que até então se encontrava encastelada em contidos centros de pesquisas, possibilitou a emergência de novos laboratórios e investimentos em pesquisa inseridos nos plano de negócios empresariais. Assim, a associação entre diversos centros difusores das ciências humanas - públicos e privados - fortaleceu gradualmente a crença de que a mercantilização do trabalho imaterial deveria atender às exigências do padrão de desenvolvimento urbano-industrial.

Tudo isso, contudo, não deixou de produzir colateralmente o esvaziamento de uma unidade filosófica comum que concedia às ciências humanas o valor estratégico no entendimento totalizante da realidade do mundo e do homem. Certa cegueira situacional passou a acompanhar o desenvolvimento fragmentado das ciências humanas, com inegáveis graus de alienação na produção do conhecimento.

Tanto assim que a partir dos últimos 25 anos do século XX, a produção do conhecimento, anteriormente centrado nas universidades tradicionais, foi sendo substituída pelas chamadas universidades corporativas, responsáveis por funções como a formação de quadros e capacitação permanentes dos trabalhadores nas grandes empresas. Nos dias de hoje, somente as 500 maiores corporações transnacionais respondem por cerca de 4/5 de toda a produção global de investimentos em ciência e tecnologia. Em vários países do mundo, a quantidade de universidades corporativas supera as universidades tradicionais.

A reação radicalizada do sistema universitário tradicional foi o de se comprometer com a maior elevação da produtividade nas ciências, especialmente por meio do aprofundamento das especializações, o que a dispensou de vez de qualquer compromisso com a existência de algum corpo filosófico integrador do entendimento acerca do homem e do mundo. Por conta disso, currículos foram simplificados e esvaziados da identidade comum, enquanto as ciências humanas seguiram aprendizagem desinteressante e descomprometida da referência e aplicação prática na realidade.

No mesmo sentido, as agências públicas de financiamento da pesquisa concentraram-se no fomento setorial e individualizado da produção do conhecimento comprometido fundamentalmente com a perspectiva de elevação da produtividade sistêmica das ciências humanas. Apostaram-se também na competição inter e intrauniversitária movida pelo uso de tecnologias das competências, o que rompeu com a fronteira nacional dos conteúdos curriculares. De caráter cada vez mais internacionalizado, as medidas nacionais de avaliação e monitoramento do ensino e pesquisa subordinam-se à coordenação exógena e descolada dos interesses nacionais. Tanto assim que não tem sido incomum conceder à produção técnico-científica valorização superior com publicação externa e descontextualizada do que aquela comprometida com as exigências da realidade nacional.

Esse modelo internalizado nos países não-desenvolvidos não reduziu o fosso que separa a produção técnico-científica das exigências associadas ao setor produtivo. Da mesma forma, o movimento de internacionalização do parque produtivo tornou mais interessante a importação da tecnologia dominante na mesma medida em que empresas multinacionais realizam concentradamente em suas matrizes os maiores esforços de desenvolvimento da pesquisa em ciência e tecnologia. É isso que faz com que somente 10% dos 11 mil doutores formados anualmente no Brasil possam se estabelecer nos centros de pesquisa vinculados ao setor produtivo, bem ao contrário de outros países.

A recuperação da unidade filosófica comum nas ciências humanas e o seu engajamento no entendimento do mundo e do homem atual constituem peças fundamentais de uma estratégia de superação do atraso subdesenvolvimentista. Do contrário, produção do conhecimento e exigências do padrão de desenvolvimento poderão continuar a andar em sentido distinto.

Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Fonte: Valor Econômico

domingo, 28 de agosto de 2011

Carta às esquerdas

 
Livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação de algumas ideias. A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas.

Boaventura de Sousa Santos * por email de Marcos Vargas


Não ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte importante.
Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As principais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação?
As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de violentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a queda do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros atores e linguagens que as esquerdas não puderam entender.
Entretanto, livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias.
Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo.
Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, ele a reduz à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas.
Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas).
Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente.
Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito.
Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar).
Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um patrimônio das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar.
Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas.
Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca.
Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima.
* Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A Experiência Socialista na URSS

 
Por Rogério Lustosa*na GRABOIS
 
Durante um período de 27 anos, de 1928 a 1955, o crescimento industrial na União Soviética foi, em média, de 13% ao ano. Um índice jamais visto no mundo capitalista. Em 1954, a produção industrial deste país era 18 vezes maior que a de 1929. Em comparação com este êxito formidável do socialismo, as grandes potências capitalistas apresentaram resultados ridículos. Em 1954, a produção dos EUA representava apenas o dobro, a da Inglaterra 72% a mais, e a da França 14% a mais daquela obtida em 1929.
Mas alguma coisa de muito grave aconteceu depois disto. A tal ponto que o atual dirigente soviético, Mikhail Gorbachev, confessou, em seu livro Perestroika, que, na segunda metade dos anos 1970, "o país começou a perder impulso (...). Começaram a aparecer na vida social elementos do que chamamos de estagnação e certos fenômenos estranhos ao socialismo (...). Nos últimos 15 anos, a taxa de crescimento da renda nacional caíra para mais da metade e, no início dos anos 1980, chegara a um nível próximo da estagnação econômica".

LEIS OBJETIVAS

Sabe-se que o desenvolvimento de um país não se dá aleatoriamente e sim de acordo com leis econômicas objetivas que, como indica Stalin, "refletem o caráter regular de processos que se realizam independentemente da vontade dos homens". O socialismo cresceu de forma extraordinária, não simplesmente pela genial idade de tal ou qual pessoa, mas, fundamentalmente, porque a revolução de 7 de novembro de 1917 socializou os meios de produção, destruiu as bases da exploração burguesa e libertou as forças produtivas das amarras estabelecidas, até então, pela propriedade privada capitalista sobre elas.

No sistema capitalista, enquanto a produção toma cada vez mais um caráter social, com milhões de trabalhadores organizados e escravizados nas fábricas, a forma de propriedade sobre as máquinas e todos os demais meios de produção – e, em consequência, das mercadorias produzidas – é privada. Esta contradição leva fatalmente às crises. Marx dizia que "a sociedade burguesa assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar as forças infernais que pôs em movimento com suas palavras mágicas (...). O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio".

A revolução foi o instrumento concreto para fazer valer a lei da correspondência obrigatória entre as relações de produção e o caráter das forças produtivas. Com a tomada do poder pelo proletariado, a Rússia passou a um novo patamar do desenvolvimento, o socialismo, onde as riquezas e as forças produtivas passam a ser utilizadas em favor da sociedade.

Evidentemente, a simples tomada do poder não resolveu de imediato todos os problemas. Com ela inicia-se "a batalha entre o socialismo, ainda débil, mas vitorioso, e o capitalismo, derrotado mas ainda forte", como indicou Lênin. Deixam de atuar, ou têm seu raio de ação muito reduzido, as leis que regiam o capitalismo e entram em cena as leis econômicas do novo sistema socialista.

Mas, enquanto as leis das ciências naturais ao serem identificadas não encontram grandes obstáculos, a aplicação das novas leis econômicas afeta interesses das classes em decadência, que usufruíam do velho sistema de exploração.

REAÇÃO BURGUESA

Durante três anos, o jovem poder soviético enfrentou a intervenção armada das potências imperialistas e a sabotagem dos "contras" daquela época, igualmente financiados, armados e insuflados pela burguesia internacional. Só em 1920 foi possível estabelecer o primeiro plano econômico, que tinha como objetivo imediato reorganizar a economia, arrasada pela guerra e pela atividade contra-revolucionária. Depois de consolidar o poder político, o proletariado se lançava à tarefa de derrotar economicamente a burguesia.

Na luta de classes que se desenrolou, os antigos donos do poder resistiram desesperadamente na defesa de seus privilégios. E sua resistência encontrava eco dentro do próprio partido de vanguarda do proletariado, através de elementos que não conseguiam assimilar a ideologia marxista.
Era possível bater o capitalismo e passar à construção do socialismo? Era possível, nas novas condições, promover o desenvolvimento acelerado das forças produtivas? A democracia proletária podia realmente funcionar e colocar em atividade milhões e milhões de trabalhadores na edificação de uma nova sociedade?

"Sim", diziam os bolcheviques. "Reorganizar toda a indústria, sobre a base da grande produção coletiva e sobre uma novíssima técnica (baseada na eletrificação de toda a economia)" era a orientação de Lênin para este período. Ele chegou a dizer, naquele momento, que "o comunismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país".

"Não", gritava Trotsky. Para ele, o regime soviético só podia avançar se viesse em seu socorro a revolução vitoriosa nos principais países da Europa. "Não", repetia Bukhárin. A Rússia, segundo ele, não estava "madura" para a revolução. Precisava entrar num acordo com os empresários estrangeiros e com os elementos capitalistas russos.

Para impulsionar a economia, o Partido Comunista tratou de interessar mais os camponeses na produção, oferecendo-lhes certas vantagens e permitindo, sob certo controle do Estado, o comércio privado. Ao mesmo tempo, promoveu o funcionamento normal dos sindicatos, nas novas condições da classe operária no poder.

Bukharin, refletindo os sentimentos dos kulaks (burguesia do campo) e dos comerciantes, passou a defender a liberdade completa do comércio privado, o livre jogo dos preços no mercado e a abolição do monopólio estatal sobre o comércio exterior.
Em outras palavras, enquanto os bolcheviques conduziam a economia no sentido de limitar a atuação da lei do valor, que regula o mercado capitalista, Bukharin pregava a capitulação do novo sistema aos mecanismos de oferta e procura da velha sociedade em decadência.

DEMOCRACIA DA CHIBATA

Em relação à democracia socialista, Trotsky se insurgiu de forma mais evidente. Impregnado por concepções burguesas, ele manifestou-se contrário ao abandono da disciplina militar adotada durante o "comunismo de guerra". E defendeu abertamente, no IX Congresso do Partido Comunista, em 1920: "Os operários devem estar ligados a seu emprego, sujeitos a ser transferidos; é necessário dizer-lhes o que devem fazer (...). Quem cuida disso? O sindicato. Ele cria o novo regime. É a militarização da classe operária”. Para isto os sindicatos deveriam ser estritamente subordinados ao Estado, e com dirigentes nomeados pelo governo.

Apesar de derrotado por ampla maioria, ele foi ainda mais longe no III Congresso dos Sindicatos: "É mesmo verdade que o trabalho obrigatório seja sempre improdutivo? Este é o preconceito liberal mais lamentável e mais miserável: os bandos de escravos também eram produtivos”. E ainda recebeu o apoio de Bukharin nesta comparação absurda entre o operário, que se tornara dono de seu destino e força dirigente da sociedade, com o escravo.

Lênin, em nome do Comitê Central do Partido, escreveu um folheto desmascarando estas sandices: "Trotsky e Bukharin apresentam as coisas desse modo: vejam, nós nos preocupamos com o aumento da produção e vocês unicamente com a democracia. Essa imagem é falsa pois a questão se coloca assim: sem uma posição política justa, uma dada classe não pode manter sua dominação e, em consequência, não pode também desincumbir-se de sua tarefa na produção”.

Isto demonstra que embora a revolução e a construção do socialismo sejam decorrência da lei econômica da correspondência obrigatória entre as relações de produção e o caráter das forças produtivas, isto não se realiza, na prática, de forma automática. Para transformar a possibilidade em realidade, é preciso que os homens estudem as leis econômicas, aprendam a aplicá-las e a traçar planos que reflitam corretamente as exigências de cada uma delas. Por isto mesmo, a cada passo é indispensável promover o acompanhamento das tarefas e proceder aos reajustes necessários. Aí, sim, é que se revela a genialidade ou a incompetência dos dirigentes e dos partidos.

ECONOMIA PLANEJADA

Em 1925, concluída a recuperação da economia, a URSS tinha condições de desenvolver a pleno vapor as potencialidades do socialismo. Stalin assinalava então com clarividência: "Marchamos com atraso de 50 a 100 anos em relação aos países adiantados. Em 10 anos temos que cobrir esta distância. Ou o fazemos ou nos aplastam”. O XIV Congresso do Partido colocou a industrialização no centro das preocupações dos trabalhadores soviéticos.

Aqui vale destacar uma característica própria do socialismo. O capitalismo cresce como resultado da busca coordenada do lucro máximo. Por isto mesmo, inicia o seu desenvolvimento pela indústria leve, que proporciona rápido retorno dos investimentos capitalistas. Só a partir de certo grau de acumulação de capital é que pode dedicar-se à indústria pesada. O socialismo, pelo contrário, tem como lei fundamental a satisfação das necessidades materiais e culturais dos trabalhadores. A economia é centralizada nas mãos do Estado e pode ser cientificamente planejada. Em função disto, é possível ao governo arregimentar enormes recursos – antes usados para sustentar a burguesia, pagar dívidas e alimentar a máquina de guerra – e investir na produção de bens de produção, máquinas e equipamentos fundamentais para o crescimento rápido e seguro da economia.

Os resultados da industrialização na URSS mostraram o vigor do novo sistema. Em 1925, dois terços da produção do país vinha da agricultura e apenas um terço da indústria. Em dois anos a indústria elevou a sua participação para 42%. O setor socialista da economia cresceu 81%, entre 1924 e 1925, e 86%, entre 1926 e 1927.

DESENVOLVIMENTO HARMÔNICO

Entra em cena aqui outra lei do desenvolvimento econômico do socialismo. Todos os ramos da indústria crescem harmonicamente, e o mesmo ocorre entre indústria e agricultura. A indústria encontra na agricultura a aplicação para as máquinas construídas e, por sua vez, tem aí sua fonte de matérias-primas e alimentos.

Isto não pode se realizar no capitalismo. Devido à busca do lucro, os capitais são atraídos irresistivelmente para os ramos rentáveis, resultando num crescimento desordenado. E, como regra geral, a agricultura não acompanha os passos da indústria, devido ao fato de os investimentos nesta área terem de se conformar com os prazos relativamente longos entre o plantio e a colheita.

No socialismo, a lei do valor, embora ainda exerça influência pelo fato de haver ainda produção de mercadorias, tem seu campo muitíssimo restringido. Os meios de produção, as máquinas, as terras, deixam de ser compradas e vendidas, não são mais mercadorias, passam a ser propriedade social. Mesmo as terras, quando permanecem nas mãos dos camponeses ou na posse das cooperativas, não podem mais ser vendidas. E a força de trabalho dos operários deixa também de ser mercadoria.
Stalin observa que no socialismo, apesar do campo reduzido em que atua a lei do valor, não se descuida da rentabilidade das empresas. Mas o assunto é tratado de forma diversa daquela do capitalismo. "Se considerarmos a rentabilidade, não do ponto de vista de algumas empresas isoladas ou de ramos da produção isolados, e não no período de um ano, mas sim do ponto de vista de toda a economia nacional e durante um período, digamos de 10-15 anos, que seria aliás a única maneira acertada de enfocar o problema, verificaríamos que a rentabilidade temporária e inconsistente desta ou daquela empresa, ou ramo de produção, não pode em absoluto comparar-se com a forma superior de sólida e permanente rentabilidade que nos dão a ação da lei do desenvolvimento harmonioso da economia nacional e a planificação da mesma, ao livrar-nos das crises econômicas periódicas que destroem a economia nacional, causam enormes danos materiais, e ao assegurar-nos o desenvolvimento ininterrupto da economia e o elevado ritmo desse desenvolvimento”.

AGRICULTURA MODERNA

Com a arrancada da indústria, o poder soviético dotou a agricultura de máquinas modernas capazes de elevar aceleradamente a sua produtividade. E, ao mesmo tempo, criou as condições objetivas para ultrapassar a pequena produção patriarcal camponesa – voltada basicamente para o consumo –, assim como a pequena produção mercantil dos camponeses médios e dos artesãos, e a produção dos kulaks. As relações atrasadas, tanto o trabalho individual ou familiar como a exploração assalariada, podem então ser substituídas pelo trabalho socializado.

Foram criadas as ''estações de máquinas e tratores" – empresas estatais que forneciam equipamentos e técnica avançada para as cooperativas. Estes poderosos meios de produção permaneciam nas mãos do Estado – propriedade social –, mas eram colocados à disposição dos camponeses mediante contrato, de acordo com as condições de cada estabelecimento.
A atividade revolucionária orientou-se no sentido da mecanização do campo e para o estabelecimento do trabalho coletivizado – seja através dos kolkhoses (cooperativas agrícolas) ou dos sovkhoses (fazendas estatais). No início, taticamente, foram feitas restrições aos kulaks e, logo a seguir, com o fortalecimento da coletivização, passou-se à liquidação desse tipo de exploração.

Como não podia deixar de ser, a burguesia resistiu ferozmente. Só nos cinco primeiros meses de 1929, foram praticados 1.141 atos terroristas pelos kulaks. E esta atividade teve sua correspondência na atuação dos oportunistas no seio do Partido.

Os trotskistas argumentavam com a "pouca rentabilidade" dos sovkhoses e pregavam sua dissolução. Afirmavam também que os kolkhoses eram "fictícios". De outro lado, os bukharinistas atacavam, baralhando as diferenças entre camponeses pobres e médios, forças aliadas na construção do socialismo, e os kulaks, inimigos de classe do proletariado. Pregavam a "incorporação" desta burguesia rural ao socialismo. Tendo alcançado postos-chave no Conselho Econômico, elementos deste grupo chegaram a tomar medidas diminuindo o número de máquinas agrícolas destinadas aos camponeses e aumentando o número entregue aos kulaks.

As vitórias da coletivização foram surpreendentes, para desespero dos sabotadores. Entre 1927 e 1930 a produção de cereais das cooperativas multiplicou-se por 10. A produção de trigo, em particular, passou de 573 mil toneladas para 6 milhões e meio de toneladas.

UM NOVO PAÍS

Em 1934, no XVII Congresso do PCUS, Stalin anunciava: "o país se transformou radicalmente. Converteu-se de um país agrário em um país industrial. Converteu-se de um país de pequenas explorações agrícolas individuais em um país de grandes explorações agrícolas mecanizadas".
Como se explica que com um crescimento tão impetuoso não se registrassem crises de superprodução? Nos países capitalistas, com ritmos muito inferiores, rapidamente a sociedade é sacudida por violento antagonismo entre as riquezas incalculáveis acumuladas, de um lado, e pela miséria brutal dos que as produzem. Os armazéns ficam superlotados de mercadorias que não têm saída.

Ocorre que no capitalismo, os trabalhadores transformam, com seu trabalho, a matéria bruta em instrumentos de todo tipo. E, pela propriedade particular de sua força de trabalho, acrescentam valor ao que produzem – a mais-valia, apropriada pelo dono dos meios de produção. Recebem em troca um salário, que mal dá para garantir sua manutenção. O capital cresce à custa do trabalho não pago aos operários. Evidentemente os salários não podem acompanhar o ritmo de crescimento do capital. As crises fazem parte da essência do sistema.

No socialismo, os próprios trabalhadores detêm a propriedade social dos meios de produção. As forças produtivas e as riquezas produzidas passam a ser utilizadas em seu benefício. Eles se apropriam individualmente dos bens de consumo necessários à sua vida, lazer e desenvolvimento cultural, alimentos, roupas, utensílios domésticos etc. Segundo a forma de distribuição socialista, cada um recebe de acordo com seu trabalho.

Mas, socialmente, os trabalhadores se apropriam de tudo o mais que é produzido, que se transforma em fábricas, escolas, hospitais, meios de transporte, e do que é reinvestido para ampliar a produção. Não existe contradição entre a produção e a apropriação. Embora seja possível haver distorções nos planos, que podem não corresponder plenamente às exigências das leis econômicas em dado momento, tais incorreções não conduzem a crises. E podem ser corrigidas durante a sua aplicação.
Os números são mais eloquentes que as teorizações:

Em 1927, existiam 18 mil tratores em todo o país. Até 1932, foram produzidos outros 120 mil novos. Em 1940, já eram 531 mil tratores e 18 mil ceifadeiras debulhadoras. De 1929 a 1937, o ritmo de desenvolvimento anual médio da indústria soviética foi de 20%, enquanto nos países capitalistas a média foi de 0,3%. Em 1937, o capital fixo investido na indústria era 5,5 vezes maior que em 1928. E na indústria de meios de produção em particular, esta cifra alcançava 7,7 vezes. O número de operários industriais cresceu de 3,8 milhões para 10 milhões. E o de trabalhadores especializados cresceu ainda mais rapidamente, 6,8 vezes mais torneiros mecânicos e 13 vezes mais frezadores, entre 1926 e 1939. De 1926 a 1940, a produção industrial cresceu 8,5 vezes! Neste ano, o consumo de leite duplicou em relação ao de 1913, e o de ovos quadruplicou.

REVOLUÇÃO NA CULTURA

O socialismo não cuidou apenas da produção e do bem-estar material do povo. O novo regime fez prodígios na elevação do nível de consciência e na formação cultural dos trabalhadores. Só em 1933, foram enviados ao campo 17 mil ativistas do Partido para atuar como propagandistas junto às estações de máquinas e tratores. A orientação do governo era a da incorporação voluntária dos camponeses aos kolkhoses e sovkhoses, pelo convencimento, pela argumentação e pela demonstração com resultados práticos. Os alunos das escolas primárias passaram de 7,9 milhões, em 1914, para 29,6 milhões, em 1937. Os estudantes dos cursos superiores, de 117 mil para 547 mil. O número de livros editados cresceu de 86,7 milhões para 673,5 milhões e o de jornais publicados foi de 2,7 milhões para 36,2 milhões.

As mulheres, em particular, romperam com entusiasmo os grilhões da ignorância e da submissão a que estavam submetidas pelo regime burguês. Em 1936, cerca de 42% dos alunos nas escolas superiores, e 48% nas escolas técnicas eram do sexo feminino. A proporção de mulheres nas escolas industriais superiores, em 1935, na URSS, era 7 vezes maior que na Alemanha, 10 vezes maior que na Inglaterra e 20 vezes maior que na Itália. Em 1940, 60% dos médicos no país eram mulheres.
O avanço das forças produtivas impulsionava modificações nas relações de produção entre os homens. E estas, por sua vez, facilitavam o maior desenvolvimento dos meios de produção.

CRÍTICA BURGUESA

Gorbachev não tem como negar esta impressionante demonstração da capacidade de os operários construírem um novo mundo. Mas ao falar deste período é obrigado a revelar sua verdadeira posição de classe.

"A viabilidade dos planos do Partido – diz ele no livro Perestroika –, que a massa entendia e aceitava, e dos slogans e projetos impregnados com a energia ideológica revolucionária, manifestou-se no entusiasmo com que milhões de soviéticos se juntaram aos esforços para a construção da indústria nacional”.

E reconhece: "Se finalmente tentarmos fazer uma avaliação correta dos verdadeiros resultados da coletivização, há uma única conclusão inevitável: foi um ato histórico grandioso, a mudança social mais importante desde 1917 (...) O futuro progresso de nosso país teria sido impossível sem ele”.
Mesmo a contragosto, confirmando a genialidade das previsões feitas por Stalin, em 1925, ele observa: "Onde estaria agora o mundo, se a URSS não tivesse impedido o caminho da máquina de guerra de Hitler? Nosso povo derrotou o fascismo com o poder criado nos anos 1920 e 1930. Se não tivesse havido a industrialização, teríamos nos visto desarmados
diante do fascismo e seríamos esmagados pelas esteiras de seus tanques”.
"Todavia – diz ele mostrando de que lado está – os métodos e as formas de executar essas reformas nem sempre se harmonizaram com os princípios, ideologia e filosofia socialistas”.
Que métodos e formas? O povo entendia e aceitava. Os projetos eram impregnados de ideologia revolucionária. Milhões de trabalhadores acorreram ao chamamento do Partido. Era uma tarefa indispensável da qual dependia o futuro do país e mesmo os destinos do mundo, sob a ameaça dos tanques nazistas. Mas, mas... este rumo contrariava os kulaks e as velhas oligarquias derrotadas, enfurecia a burguesia internacional e seus agentes infiltrados dentro da URSS. O ato histórico e grandioso se realizava apesar da sabotagem de Bukharin e Trotsky.

"A ditadura do proletariado – indicava Lênin – é a guerra mais abnegada e mais implacável da nova classe contra o inimigo mais poderoso, contra a burguesia, cuja resistência se vê decuplicada por seu derrocamento”. Entretanto, certas pessoas tentam rever este conceito marxista e dizer que esta guerra implacável não se harmoniza com os princípios socialistas. E que as batalhas de classe devem ser computadas como "métodos brutais de Stalin".

SUPERIORIDADE PROVADA

Na Segunda Guerra Mundial, o nazismo alemão, atuando como ponta-de-lança do imperialismo, atirou-se contra a pátria do socialismo. O exército burguês, melhor apetrechado e treinado para a guerra, lançou, a partir de 22 de junho de 1941, suas divisões de elite contra o povo soviético. Matou 20 milhões de pessoas. Destruiu 1.700 cidades, 70 mil povoados, 31.800 indústrias, 98 mil kolkhoses, 2.890 estações de máquinas e tratores. Mas foi derrotado.

Como se explica que a URSS tivesse capacidade para enfrentar e vencer tamanho poderio? Como se explica, senão pela confiança e unidade inquebrantáveis entre o povo e o Partido, que os soviéticos tenham defendido tão heroicamente sua pátria socialista? E como se pode entender que a URSS tenha recebido manifestações de solidariedade de tão grande intensidade dos povos de todo o mundo? Só um regime que interpretasse fielmente os anseios das grandes massas trabalhadoras poderia executar uma façanha desta envergadura.

A recuperação da URSS depois da guerra mostrou, mais uma vez, a superioridade do socialismo. De 1947 a 1954, o pão e a carne ficaram 3 vezes mais baratos, e o açúcar 2,3 vezes. No geral, em termos relativos, os gêneros essenciais tiveram seus preços rebaixados de 1.000 para 433. Em 1954, o salário real dos trabalhadores já era 74% superior ao de 1940.

O resultado de 37 anos de socialismo, de 1917 a 1954, sem crises e sem estagnação é uma demonstração de que as leis de desenvolvimento deste novo sistema permitem um crescimento seguro e ininterrupto.

A capacidade instalada de energia elétrica passou de 1,9 bilhão de kw/hora, para 149 bilhões. O ganho real dos trabalhadores multiplicou-se por seis. De 1925 a 1954, os meios de produção cresceram 60 vezes. O volume dos artigos de consumo multiplicou-se por 16. O número de estudantes foi de 8 milhões para 50 milhões. Em 1957, revelando a dianteira alcançada também no terreno tecnológico, a URSS lançou ao espaço o primeiro satélite artificial. E, em 1955, colocou em funcionamento a primeira usina de energia nuclear.

Vale registrar que na pequena Albânia a experiência do socialismo continua, nos dias atuais, a confirmar a capacidade de desenvolvimento sem nenhum dos abalos característicos do sistema capitalista. A produção industrial global do país, em 1984, representava 164 vezes a de 1938 (antes da guerra), também num ritmo de crescimento ininterrupto.

COISAS ESTRANHAS

Em 1956, Nikita Kruschev assaltou a direção do PCUS e enveredou pela traição ao socialismo. Em 1957, as estações de máquinas e tratores passaram a ser vendidas para as cooperativas. Os bens de produção voltaram a se integrar no mercado. A lei do valor logicamente expandiu o seu raio de ação. Em 1962, os efeitos se fizeram sentir com a elevação dos preços da carne e dos derivados do leite entre 20 e 30%.

Novas medidas foram sendo adotadas, daí para frente, por seus sucessores, no sentido de dar maior independência aos diretores de empresas. Inclusive para decidir sobre a aquisição de máquinas e até sobre a demissão de trabalhadores. A centralização da economia foi golpeada pela extinção dos ministérios econômicos e sua substituição por 105 conselhos econômicos regionais.

As leis capitalistas, da oferta e da procura, da competição em busca do ganho maior, do desenvolvimento anárquico, foram conquistando espaços cada vez maiores.
Com pouco mais de 10 anos de direção revisionista, a restauração do capitalismo produzia frutos. O crescimento industrial caiu, da média de 13%, entre 1928 a 1955, para 7,4% entre 1971 e 1975 e, em 1980, já estava em 3,6%. Em 1985, o próprio Gorbachev fala em estagnação e crise.
No livro Perestroika, o líder revisionista revela uma série de mazelas na atual sociedade soviética: "a prática de se colocar itens falsos nos relatórios só para auferir ganhos (...) Iniciou-se uma gradual erosão dos valores ideológicos e morais de nosso povo (...) Os elogios e o servilismo foram encorajados (...) Surgiu um clima de vale-tudo e começou-se a negligenciar a disciplina e a responsabilidade (...) Surgiu o desrespeito pela lei e o encorajamento de trapaças e o suborno (...) Uma porção considerável da riqueza nacional transformou-se em capital ocioso”.

Diante deste quadro, Gorbachev defende "inovações" que já estão em curso na URSS, entre elas: "Empreendimentos conjuntos com empresas estrangeiras; indústrias e fábricas, fazendas estatais coletivas, todas auto-financiadas; suspensão de restrições quanto a produtos alimentícios produzidos em fazendas para empresas e administradas por elas; mais atividades cooperativistas; encorajamento de empresa individual com produção e comércio em pequena escala; e o fechamento de fábricas e indústrias que operam com prejuízo”.

Ele prega abertamente "encorajar a competição econômica (entre as empresas) para melhor satisfação das exigências do consumidor, e a renda dos empregados deve depender estritamente dos resultados finais da produção e dos lucros".

FENÔMENOS CAPITALISTAS

Por acaso, toda esta lista de problemas e "soluções" não é típica do sistema capitalista? No socialismo, ainda que possam ser cometidos erros na formulação dos planos, as leis econômicas que regem o sistema não conduzem a tais fenômenos.

As propostas enumeradas por Gorbachev, tais como joint-ventures com empresas multinacionais, mais força para as empresas competirem – através do que ele chama autofinanciamento –, falência para as que sucumbem à concorrência, legalização de pequenas (por ora) empresas individuais, só aprofundam a via capitalista. As consequências dessa degeneração caem logo nas costas dos trabalhadores.

Neste terreno das relações sociais, o inventor da "Perestroika" revela incrível caradurismo. Ele diz: "Os salários de muitos trabalhadores diminuíram, mas a melhoria da qualidade era uma exigência da sociedade, e eles encararam a nova medida com compreensão. Não houve protestos de sua parte pelo contrário, os trabalhadores agora dizem: é vergonhoso receber o que você não ganhou”.

Em relação às mulheres, que deram saltos gigantescos no período em que vigorou o socialismo, Gorbachev é de um cinismo inédito: "Ao longo dos anos de nossa difícil e heróica história, deixamos de dedicar atenção a seus direitos e necessidades específicas, em seu papel de mães e donas-de-casa, e sua indispensável função educacional no que diz respeito às crianças (...) As mulheres não encontraram mais tempo para executar suas tarefas cotidianas no lar – o serviço de casa, a criação dos filhos e a formação de uma boa atmosfera doméstica”.

Fica evidente, com tudo isto, que as coisas estranhas ao socialismo começaram a acontecer com a subida de Kruschev ao poder. E tornam-se cada dia mais estranhas com as orientações da "Perestroika". Estas coisas, ao contrário do que diz Gorbachev, não indicam que o socialismo "não está segurado" contra as crises. Apenas comprovam que o abandono do socialismo e a restauração do capitalismo levam obrigatoriamente à colheita dos frutos podres deste sistema caduco.

Mas, se o restabelecimento do capitalismo já tem como consequência visível o reaparecimento das crises, seria bom os senhores revisionistas recordarem que, junto com o lucro vem, inevitavelmente, o agravamento de um fenômeno sempre presente na sociedade burguesa, a luta de classes. A mesma classe que derrubou a opressão czarista e o domínio burguês, em 1917, mais cedo ou mais tarde, se levantará contra os novos exploradores.