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sábado, 31 de agosto de 2013

Marx, Lênin, Gramsci e a imprensa

Marx, Lênin, Gramsci e a imprensa

Por Altamiro Borges

Diante do poder alcançado pela mídia hegemônica e das ilusões ainda existentes sobre seu papel, revisitar as idéias de intelectuais marxistas sobre o tema é da maior importância e causam surpresa por sua enorme atualidade. Marx, Lênin e Gramsci, entre outros pensadores revolucionários, sempre destacaram o papel dos meios de comunicação. Exatamente por entenderem a importância da luta de idéias, do fator subjetivo na transformação da sociedade, fizeram questão de desmascarar o que chamavam, sem meias palavras, de “imprensa burguesa” e de realçar a necessidade da construção de veículos alternativos dos trabalhadores. 

Estes dois elementos, a denúncia do caráter de classe da imprensa capitalista e a defesa dos instrumentos próprios dos explorados, são as marcas principais destes intelectuais marxistas. Marx, Lênin e Gramsci dedicaram enorme energia ao trabalho jornalístico, escrevendo centenas de artigos e ajudando a construir vários jornais democráticos e proletários. Foram jornalistas de mão-cheia, produzindo textos que entraram para a história. Sempre estiveram sintonizados com o seu tempo, pulsando a evolução da luta de classes; nunca se descuidaram da forma, da linguagem, para melhor difundir os seus conteúdos revolucionários.

Defesa da liberdade de expressão 

Vítimas da violenta perseguição das classes dominantes, os revolucionários nunca toleraram a censura dos opressores e foram os maiores defensores da verdadeira liberdade de expressão. A própria ampliação da democracia foi decorrência das lutas dos trabalhadores, já que nunca interessou à reacionária burguesia. Mas os revolucionários nunca confundiram esta exigência democrática com a proclamada “liberdade de imprensa”, tão alardeada pela burguesia que controla os meios de produção e usa todos os recursos, legais e ilegais, ardilosos e cruéis, para castrar a própria democracia e o avanço das lutas emancipadoras. 

Numa fase ainda embrionária do movimento operário-socialista, Karl Marx logo se envolveu na atividade jornalística. Após concluir seu doutorado em filosofia, em 1841, ele pretendia seguir a carreira acadêmica e ingressar na Universidade de Bonn, mas a brutal repressão do governo prussiano inviabilizou tal projeto e o jovem filósofo alemão manteve seu sustento através do jornalismo. Em 1842, ingressou na equipe do jornal Gazeta Renana e virou o seu redator-chefe. Sob sua direção, este periódico democrático triplicou o número de assinantes e ganhou prestígio, mas durou poucos meses e foi fechado pela ditadura prussiana. 

Sem ilusões na imprensa burguesa 

Na seqüência, entre 1848/49, passou a escrever no jornal Nova Gazeta Renana, que se transformou numa trincheira de resistência ao regime autoritário. Em menos de dois anos, Marx escreveu mais de 500 textos e tornou-se um articulista de sucesso. O combate ao código de censura do governo prussiano resultou na proibição do jornal. Marx ainda escreveu para o Die Press e o New York Tribune sobre política, economia e história. “Era um jornalismo que revelava a minuciosa leitura de Marx, seu alto grau de informação não apenas sobre os fatos e conflitos, como também sobre os atores individuais e a própria imprensa”, relata José Onofre, na apresentação do livro recém-lançado “Karl Marx e a liberdade de imprensa”. 

Em sua defesa da liberdade de expressão, ele nunca vacilou na denúncia da ditadura burguesa. Para ele, o jornal deveria ser uma arma de combate à opressão e à exploração e não um veículo neutro. “A função da imprensa é ser o cão-de-guarda, o denunciador incansável dos opressores, o olho onipresente e a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Em outro texto, afirma: “O dever da imprensa é tomar a palavra em favor dos oprimidos a sua volta. O primeiro dever da imprensa é minar todas as bases do sistema político existente”. Por estas idéias libertárias, ele foi processado e perseguido. 

Poder do capital sobre a imprensa 

Outro que nunca se iludiu foi Vladimir Lênin. Atuando num período da ascensão revolucionária, ele foi ainda mais duro no combate aos jornais burgueses. Num texto intitulado “a liberdade de imprensa do capitalismo”, ele desnuda esta falácia. “A ‘liberdade de imprensa’ é também uma das principais palavras de ordem da ‘democracia pura’. Os operários sabem e os socialistas de todos os países reconheceram-no milhares de vezes que esta liberdade é um engano enquanto as melhores impressoras e os estoques de papel forem açambarcados pelos capitalistas, e enquanto subsistir o poder do capital sobre a imprensa”. 

“Com vista a conquistar a igualdade efetiva e a verdadeira democracia para os trabalhadores, é preciso começar por privar o capital da possibilidade de alugar escritores, de comprar editoriais e de subornar jornais, mas para isso é necessário destruir o jugo do capital... Os capitalistas chamam sempre ‘liberdade’ à liberdade para os ricos de manterem seus lucros e liberdade para os operários de morrerem à fome. Os capitalistas denominam de liberdade de imprensa a liberdade de suborno da imprensa pelos ricos, a liberdade de usar a riqueza para forjar e falsear a chamada opinião pública”. Nada mais atual! 

Numa outra fase histórica, em que o setor da comunicação ainda não era um poderoso ramo da economia, Lênin chegou a se contrapor à participação dos comunistas na imprensa burguesa. “Poder-se-á admitir que colaborem nos jornais burgueses? Não. A semelhante colaboração se opõe tanto as razões teóricas como a linha política e a prática da social-democracia... Dir-nos-ão que não há regra sem exceção. O que é indiscutível. Não se pode condenar o camarada que, vivendo no exílio, escreve num jornal qualquer. É por vezes difícil criticar um social-democrata que, para ganhar a vida, colabora numa seção secundária de um jornal burguês”. Mas, para ele, tais casos deveriam ser encarados como exceção e com princípios. 

“Boicote, boicote, boicote” 

Para encerrar este bloco, que evidencia que os marxistas nunca nutriram ilusões sobre o caráter de classe da imprensa burguesa e nem se embasbacaram com o seu poder de sedução, vale reproduzir uma longa citação de Antonio Gramsci, o revolucionário italiano de padeceu onze anos nos cárceres. No texto “Os jornais e os operários”, escrito em 1916, ele faz uma conclamação aos trabalhadores que bem poderia servir para uma campanha contra a revista Veja e outros veículos da mídia brasileira na atualidade: 

Para ele, a assinatura de jornal burguês “é uma escolha cheia de insídias e de perigos que deveria ser feita com consciência, com critério e depois de amadurecida reflexão. Antes de mais, o operário deve negar decididamente qualquer solidariedade com o jornal burguês. Deveria recordar-se sempre, sempre, sempre, que o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por idéias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma idéia: servir à classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. E, de fato, da primeira à última linha, o jornal burguês sente e revela esta preocupação”. 

“Todos os dias, pois, sucede a este mesmo operário a possibilidade de poder constatar pessoalmente que os jornais burgueses apresentam os fatos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa em prejuízo da política e da classe operária. Rebenta uma greve! Para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há uma manifestação! Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos e malfeitores. E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador. Apesar disso, a aquiescência culposa do operário em relação ao jornal burguês é sem limites”. 

“É preciso reagir contra ela e despertar o operário para a exata avaliação da realidade. É preciso dizer e repetir que a moeda atirada distraidamente é um projétil oferecido ao jornal burguês que o lançará depois, no momento oportuno, contra a massa operária. Se os operários se persuadirem desta elementar verdade, aprenderiam a boicotar a imprensa burguesa, em bloco e com a mesma disciplina com que a burguesia boicota os jornais operários, isto é, a imprensa socialista. Não contribuam com dinheiro para a imprensa burguesa que vos é adversária: eis qual deve ser o nosso grito de guerra neste momento, caracterizado pela campanha de assinatura de todos os jornais burgueses: Boicotem, boicotem, boicotem!”. 

Construtores da imprensa revolucionária 

Exatamente por não nutrirem ilusões na imprensa burguesa, Marx, Lênin e Gramsci sempre investiram na construção de instrumentos próprios das forças contrárias à lógica do capital. Segundo o biógrafo David Riazanov, “a Nova Gazeta Renana tratava de todas as questões importantes, de sorte que o jornal pode ser considerado um modelo de periódico revolucionário. Nenhum outro periódico russo nem europeu chegou à altura da Nova Gazeta... Seus artigos não perderam nada de sua atualidade, de seu ardor revolucionário, de sua agudeza na análise dos acontecimentos. Ao lê-los, sobretudo os de Marx, acreditamos assistir à história da revolução alemã e da revolução francesa, tão vivo é o estilo, como profundo é o sentido”. 

Já Lênin, que viveu numa fase de efervescência revolucionária, dedicou boa parte das suas energias para construção de jornais socialistas – dos mais diferentes tipos, sempre sintonizados com a evolução da luta de classes. Iskra, Vperiod, Pravda, Proletari, Rabotchaia Pravda, Nievskaia Svesdá, entre outros jornais organizados e dirigidos por ele, servirão para agregar as forças de esquerda, fazer agitação nas fábricas, aprofundar os debates ideológicos e construir o partido. Na sua mais célebre definição, Lênin sintetizou: 

“O jornal não é apenas um propagandista coletivo e um agitador coletivo. Ele é, também, um organizador coletivo. Neste último sentido, ele pode ser comparado com os andaimes que são levantados ao redor de um edifício em construção, que assinala os contornos, facilitam as relações entre os diferentes pedreiros, ajudam-lhes a distribuírem tarefas e a observar os resultados gerais alcançados pelo trabalho organizado”. A reacionária burguesia russa logo entendeu o perigo representado por estes jornais, tanto que os reprimiu ferozmente. No caso do Pravda, de um total de 270 edições, 110 foram objeto de ações judiciais e os seus redatores foram condenados a um total de 472 anos de prisão. Mas isto não abrandou o seu vigor! 

Atualidade das noções marxistas 

No caso de Gramsci, o longo período de cárcere dificultou a sua atividade jornalística e castrou seu desejo de organizar a imprensa operária. Antes da prisão, ele editou vários jornais de fábrica e empenhou-se na difusão do Ordine Nuovo. Na sua rica elaboração sobre o papel dos intelectuais e a luta pela hegemonia, ele chega a afirmar que, em momentos de crise, o jornal pode funcionar como partido político, ajudando a desnudar a ideologia dominante e a construir a ação contra-hegemônica do proletariado. Para ele, o momento da desconstrução do velho é, ao mesmo tempo, o da construção do novo. 

As contribuições de Gramsci servem para desmistificar o papel da mídia hoje, mantendo impressionante atualidade. Para ele, a imprensa burguesa é um “aparelho privado de hegemonia”, capaz de disputar os rumos da sociedade por meio de uma verdadeira guerra de posições em todas as “trincheiras ideológicas”. Através da imprensa privada e mercantil, que objetiva o lucro e que faz da notícia uma mera mercadoria, a burguesia tenta se aparentar como representante da esfera pública. Além disso, em momentos de crise da ideologia dominante e de fratura dos partidos burgueses, a imprensa se apresenta como “o partido do capital”, que organiza e amalgama os interesses das várias frações de classe da burguesia.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Em memória de Friedrich Engels: Grande lutador e professor do proletariado moderno


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Esquerda Marxista - [Vladímir Illich Ulíanov Lênin] 5 de agosto, completaram-se 118 anos da morte Friedrich Engels (Barmen, 28 de novembro de 1820 — Londres, 5 de agosto de 1895) , que com Karl Marx, estabeleceram as bases da luta pelo socialismo científico.

Juntos desvendaram os segredos da exploração capitalista e dotaram o proletariado internacional dos meios e instrumentos para vencer o capital e terminar com o regime da propriedade privada dos meios de produção.Como homenagem a este grande homem, republicamos um artigo de Lenin sobre sua morte. Uma excelente hora para reler seus trabalhos e aprender a compreender e transformar o mundo.
"Meu azar é que, desde o momento em que perdemos Marx, cumpre-me ter de representá-lo. Ao longo de minha vida, fiz aquilo para que fui talhado, i.e. tocar o segundo violino, e creio ter realizado meu papel de modo inteiramente tolerável. Tive sorte por haver tido um primeiro violino tão famoso como Marx. Porém, se agora devo representar, em questões de teoria, a posição de Marx, isso não poderá transcorrer sem que incida em alguns equívocos e ninguém percebe isso mais do que eu mesmo. Apenas quando os tempos ficarem algo mais movimentados, tornar-se-á bem sensível para todos nós então o que é que foi que perdemos com Marx. Nenhum de nós possui aquela sua visão de conjunto, consoante a qual haveria de tão rapidamente agir, em determinado momento, adotando sempre a decisão correta e indo imediatamente ao ponto decisivo. Em tempos de calmaria, ocorreu, possivelmente, de os eventos terem-me dado razão em relação a Marx, porém, nos momentos revolucionários, seu julgamento era praticamente infalível."
Carta de Friedrich Engels a Johann Philipp Becker[2]
"Que tocha da razão deixou de arder!
Que coração deixou de bater!"
Nikolai Alekseievitch Nekrassov[3]
Em 5 de agosto de 1895, segundo o antigo calendário 24 de julho, faleceu na cidade de Londres, Friedrich Engels.
Depois de seu amigo Karl Marx (falecido em 1883), Engels foi o mais notável cientista e professor do proletariado moderno de todo o mundo civilizado.
A partir do momento em que o destino aproximou Karl Marx e Friedrich Engels, os dois amigos devotaram o trabalho de suas vidas a uma causa comum.
Por isso, para que entendamos o que fez Friedrich Engels pelo proletariado, há que ter uma ideia clara do significado dos ensinamentos e da obra de Marx para o desenvolvimento do movimento contemporâneo da classe trabalhadora.
Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe trabalhadora e suas reivindicações constituem um produto necessário do presente sistema econômico que, juntamente com a burguesia, cria e organiza, de maneira inevitável, o proletariado.
Demonstraram que não são as tentativas de pessoas individuais bem intencionadas, mas sim a luta de classes do proletariado organizado que libertará a humanidade dos males que presentemente a oprimem.
Em seus trabalhos científicos, Marx e Engels foram os primeiros a esclarecer que o socialismo não é uma invenção de sonhadores, senão o objetivo final e o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade moderna.
Toda a história registrada até os dias de hoje tem sido a história da luta de classes, da sequência da dominação e da vitória de certas classes sociais sobre outras.
E isso continuará sendo assim até que os fundamentos da luta de classes e da dominação de classe – a propriedade privada e a desordenada produção social – desapareçam.
Os interesses do proletariado exigem a destruição desses fundamentos e, sendo assim, a luta de classes consciente dos trabalhadores organizados há de ser dirigida contra esses últimos.
Toda a luta de classes é, porém, uma luta política.
Essas concepções de Marx e Engels foram acolhidas, na atualidade, por todo o proletariado que se encontra lutando por sua emancipação.
Porém, quando nos anos 40 do século XIX, esses dois amigos interviram na produção literária socialista e nos movimentos sociais daquela época seus pontos vistas eram inteiramente novidadeiros.
Havia, então, muitas pessoas talentosas e sem talento, honestas e desonestas, que, absorvidas pela luta em prol de liberdade política, contra o despotismo dos monarcas, autoridades policiais e padres, deixavam de ver o antagonismo, existente entre os interesses da burguesia e os do proletariado.
Tais pessoas não admitiam a ideia de os trabalhadores atuarem como força social independente.
Por outro lado, existiam muitos sonhadores – alguns deles verdadeiros gênios – que pensavam ser apenas necessário convencer os governantes e as classes dominadoras da injustiça da ordem social contemporânea para que fossem, então, facilmente estabelecidas a paz e o bem geral sobre a face da terra. Sonhavam com um socialismo sem lutas.
Por fim, quase todos os socialistas daquela época e os amigos da classe trabalhadora entreviam, geralmente, no proletariado apenas uma úlcera e observavam aterrorizados como essa úlcera crescia, concomitantemente com o crescimento da indústria.
Por essa razão, todos eles conjecturavam dos meios para deter o desenvolvimento da indústria e do proletariado, para fazer parar "a roda da história".
Opondo-se a esse temor generalizado, nutrido ante o desenvolvimento do proletariado, Marx e Engels depositavam, pelo contrário, todas as suas esperanças no contínuo desenvolvimento deste.
Quanto mais proletários houver, tanto maior a sua força enquanto classe revolucionária, tanto mais próximo e possível há de se tornar o socialismo.
Os serviços prestados por Marx e Engels à classe trabalhadora podem ser expressos em poucas palavras da seguinte forma: Ambos ensinaram a classe trabalhadora a conhecer-se a si mesma, tornando-se consciente de si mesma, e, assim procedendo, substituíram os sonhos pela ciência.
É por esse motivo que o nome e a vida de Engels devem ser conhecidos por todos os trabalhadores.
Eis por que, em nossa compilação de ensaios, cujo objetivo é o de despertar a consciência de classe dos trabalhadores da Rússia – objetivo esse também o de todas as nossas publicações -, temos de fornecer um bosquejo da vida e da obra de Friedrich Engels, um dos dois grandes professores do proletariado moderno.
Engels nasceu em 1820, na cidade de Barmen, Província do Reno do Reino da Prússia. Seu pai foi um fabricante. Em 1838, sem ter completado seus estudos ginasiais, Engels foi forçado, por circunstâncias devidas à sua vida familiar, a começar a trabalhar como empregado, em uma casa comercial, na cidade de Bremen.
As atividades comerciais não impediram Engels de dar continuidade à sua educação científica e política. Ainda quando se achava no ginásio, havia passado a odiar a autocracia e a tirania dos burocratas.
Os estudos da filosofia levaram-no a seguir adiante. Naquela época, o ensino da doutrina de Hegel dominava a filosofia alemã e Engels tornou-se um de seus discípulos.
Embora o próprio Hegel tivesse sido um venerador do Estado Prussiano autocrático, a cujo serviço se colocara na qualidade de Professor da Universidade de Berlim, a doutrina de Hegel era revolucionária.
A fé de Hegel na razão humana e nos Direitos do homem, bem como a tese fundamental da filosofia hegeliana de que o universo encontra-se submetido a um permanente processo de mudanças e desenvolvimento, levaram alguns dos discípulos do filósofo de Berlim – aqueles que se haviam recusado a aceitar a situação então existente – à ideia de que a luta contra essa mesma situação, a luta contra as injustiças existentes e o mal dominante, achava-se, igualmente, enraizada na lei universal do desenvolvimento eterno.
Se todas as coisas se desenvolvem, se determinadas instituições são substituídas por outras, por que deveriam subsistir por todo o sempre a autocracia do Reino da Prússia ou o Czarismo da Rússia, o enriquecimento de uma minoria insignificante a expensas da maioria esmagadora ou ainda a dominação da burguesia sobre o povo?
A filosofia de Hegel falava do desenvolvimento do espírito e das ideias: era uma filosofia idealista. A partir do desenvolvimento do espírito, conduzia ao desenvolvimento da natureza, do ser humano e das relações humanas e sociais. Preservando a ideia de Hegel sobre o eterno processo de desenvolvimento, Marx e Engels rechaçaram, porém, sua concepção idealista preconcebida[4].
Dedicando-se ao estudo da vida, viram que não é o desenvolvimento do espírito que explica o desenvolvimento da natureza, mas sim, inversamente, que cumpre explicar o espírito a partir da natureza, da matéria...
Diferentemente de Hegel e outros hegelianos, Marx e Engels eram materialistas.
Contemplando o mundo e a humanidade de modo materialista, aperceberam-se do fato de que, tal como as causas materiais subjazem a todos os fenômenos naturais, também o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desenvolvimento das forças materiais, das forças produtivas.
Do desenvolvimento das forças produtivas dependem as relações que os homens mantêm, uns com os outros, na produção das coisas, imprescindíveis à satisfação das necessidades humanas.
Nessas relações, reside a elucidação de todos os fenômenos, relacionados com a vida social, as aspirações humanas, as ideias e as leis.
O desenvolvimento das forças produtivas cria relações sociais que se baseiam na propriedade privada.
Porém, vemos, agora, que esse próprio desenvolvimento das forças produtivas priva a maioria dos seres humanos de sua propriedade, concentrando-a nas mãos de uma ínfima minoria.
Ele suprime a propriedade, base da moderna ordem social, tendendo, por si mesmo, para o próprio objetivo que os socialistas fixaram para si mesmos.
Tudo que os socialistas têm a fazer é entender qual é a força social que, devido à sua posição na sociedade moderna, encontra-se interessada em realizar o socialismo, imprimindo, então, a essa força a consciência de seus interesses e de sua tarefa histórica.
A força em questão é o proletariado.
Engels veio a conhecer o proletariado na Inglaterra, em Manchester, no centro da indústria inglesa, onde se alojou em 1842, quando começou a trabalhar em uma firma comercial, da qual seu pai era um dos acionistas.
Aqui, Engels não se cingiu às atividades do escritório da firma, mas sim peregrinou pelos bairros miseráveis em que os trabalhadores achavam-se amontoados, testemunhando, com seus próprios olhos, a pobreza e indigência dos que trabalhavam.
Além disso, não se restringiu a formular suas observações pessoais.
Leu tudo aquilo que havia sido revelado antes dele acerca da condição da classe trabalhadora britânica e estudou, detidamente, todos os documentos oficiais aos quais podia ter acesso.
O produto desses estudos e observações foi o livro de sua autoria, surgido em 1845, sob o seguinte título: "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra."[5]
Já mencionamos acima qual foi grande mérito de Engels, por ter redigido o livro em destaque. Mesmo antes de Engels, muitas pessoas haviam descrito os sofrimentos do proletariado e realçado a necessidade de prestar-lhe ajuda. Engels foi, porém, o primeiro a dizer que o proletariado não é apenas uma classe que sofre, senão também que, na realidade, é a vergonhosa condição econômica do proletariado que o conduz, irresistivelmente, a marchar para diante, forçando-o a lutar em prol de sua emancipação definitiva.
Assim, é o proletariado em luta que há de ajudar-se a si mesmo. O movimento político da classe trabalhadora há de inevitavelmente conduzir os trabalhadores à compreensão de que sua única salvação encontra-se no socialismo.
Por outro lado, o socialismo tornar-se-á uma força apenas quando converter-se em objetivo da luta política da classe trabalhadora.
Eis as principais ideias do livro de Engels sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ideias essas que, agora, surgem acolhidas por todos os proletários que raciocinam e combatem, mas que, outrora, revelavam-se inteiramente novas.
Tais ideias foram apresentadas em um livro, redigido em estilo cativante e permeado de imagens autênticas e comoventes da miséria do proletariado da Inglaterra. O livro em apreço representou uma terrível peça de acusação do capitalismo e da burguesia, produzindo profunda impressão. O livro de Engels passou a ser citado por todos os lados, como sendo a obra que melhor fornecia um quadro da situação do proletariado moderno.
E, com efeito, nem antes nem depois de 1845 produziu-se um quadro literário tão marcante e fidedigno sobre a miséria da classe trabalhadora. Apenas na Inglaterra, Engels tornou-se socialista.
Em Manchester, estabeleceu contatos com pessoas que atuavam no movimento operário britânico, naquele momento histórico, e começou a escrever para publicações socialistas, editadas na Inglaterra.
Em 1844, quando voltava à Alemanha, conheceu Marx, em Paris, com quem já havia iniciado a troca de correspondências. Em Paris, sob a influência da vida e dos socialistas franceses, também Marx havia-se tornado socialista. Nessa cidade, os dois amigos escreveram juntos um livro, dotado do seguinte título: "A Sagrada Família"[6]
O livro em destaque, que surgiu um ano antes do aparecimento de "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra" e foi redigido, na sua maior parte, por Marx, contém os fundamentos do socialismo materialista revolucionário, cujas principais ideias apresentamos acima.
"A Sagrada Família" é uma referência jocosa feita aos Irmãos Bauer e seus seguidores filósofos. Esses senhores pregavam uma doutrina crítica, situada acima de toda a realidade, acima dos partidos e da política, que rejeitava toda a atividade prática, vislumbrando apenas "criticamente" o mundo circunjacente e os eventos que nele se processavam. Os Senhores Bauer deitavam os seus olhos desdenhosamente sobre o proletariado, considerando-o como massa despojada de espírito crítico.
Marx e Engels opuseram-se, vigorosamente, a essa tendência absurda e nociva.
Em nome da pessoa humana real – em nome do trabalhador, pisoteado pelas classes dominantes e o Estado – exigiram não a contemplação, senão a luta, a ser travada em prol de uma melhor ordem social.
Evidentemente, consideraram o proletariado como força capaz de impulsionar essa luta, estando por ela interessado.
Mesmo antes do surgimento de "A Sagrada Família", Engels publicara nos "Anais Franco-Alemães" de Marx e Ruge seu "Ensaio Crítico sobre Economia Política", em que examinou os principais fenômenos da ordem econômica contemporânea, desde um ponto de vista socialista, focalizando-os como consequências necessárias da dominação da propriedade privada.[7]
O contato que Marx estabeleceu com Engels representou, indubitavelmente, uma importante contribuição para a sua decisão de ocupar-se com o estudo da econômica política, ciência essa na qual sua obra veio a produzir verdadeira revolução.
De 1845 a 1847, Engels viveu em Bruxelas e Paris, combinando trabalho científico e atividades práticas, empreendidas junto a trabalhadores alemães de ambas essas cidades.
Aqui, Marx e Engels estabeleceram contato com o grupo clandestino alemão "Liga dos Comunistas", que os encarregou da exposição dos principais princípios do socialismo que haviam elaborado[8]. Referida exposição surgiu apresentada no famoso « Manifesto do Partido Comunista » de Marx e Engels, publicado em 1848.
Surgindo na forma de uma pequenina brochura, vale por livros inteiros: até os dias de hoje, seu espírito inspira e dirige todo o proletariado organizado e combatente do mundo civilizado.
A Revolução de 1848 que irrompeu, primeiramente, na França e, então, expandiu-se por outros países da Europa Ocidental, reconduziu Marx e Engels a seu país de origem.
Na Prússia Renana, assumiram o jornal democrático "Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana)", publicado na cidade de Colônia[9]. Os dois amigos constituíam o coração e a alma de todas as aspirações democrático-revolucionárias no Reino da Prússia.
Combateram até às últimas consequências em defesa da liberdade e dos interesses do povo contra as forças da reação. Estas, como sabemos, acabaram triunfando. O "Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana)" foi proibido. Marx, que durante seu exílio havia perdido sua cidadania prussiana, foi deportado.
Engels participou da Insurreição Armada Popular, combatendo pela liberdade em três batalhas. Depois da derrota dos insurgentes revolucionários, fugiu, através da Suíça, para Londres. Marx também se instalou em Londres.
Engels logo voltou a trabalhar como empregado de escritório e, a seguir, tornou-se acionista da firma comercial de Manchester, na qual atuara, ao longo dos anos 40. Até 1870, viveu em Manchester, enquanto Marx vivia em Londres. Porém, esse fato não impediu que ambos mantivessem um intercâmbio de ideias extremamente vivo: correspondiam-se praticamente todos os dias.
Nessa sua correspondência, os dois amigos intercambiavam pontos de vista e descobertas, continuando a colaborar na elaboração do socialismo científico.
Em 1870, Engels mudou-se para Londres e a vida intelectual que ambos impulsionavam em conjunto, marcada pelo caráter mais laborioso, continuou até 1883, quando Marx faleceu.
Da parte de Marx, o fruto desse processo foi "O Capital", o maior trabalho de Economia Política de nossa era e, da parte de Engels, um número de trabalhos, quer de grande, quer de pequena dimensão.
Marx escreveu sobre a análise dos complexos fenômenos da economia capitalista. Engels, por sua vez, em trabalhos redigidos com simplicidade e frequentemente em tom de polêmica, tratou de problemas científicos de ordem mais geral e de diversos fenômenos do passado e do presente, consoante a lógica da concepção materialista da história e a teoria econômica de Marx.
Entre os trabalhos de Engels, insta mencionar os seguintes:
· O trabalho polêmico dirigido contra Dühring, examinando problemas nimiamente importantes, no domínio da filosofia, ciências naturais e sociologia[10];
· "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado", traduzido em língua russa, publicado em São Petersburgo, 3ª edição de 1895;
· "Ludwig Feuerbach", tradução russa e notas de G. Plekhanov, Genebra, 1892;
· Um artigo sobre a Política Externa do Governo Russo, traduzido em russo, no "Sotsial-Demokrat" (O Social-Democrata)[11];
· Esplêndidos artigos tratando da "A Questão da Habitação"[12] ;
· E, finalmente, dois pequenos, porém valiosos, artigos sobre o desenvolvimento econômico da Rússia, "Friedrich Engels sobre a Rússia", traduzido em língua russa por Zassulitch, Genebra, 1894[13].
Marx faleceu antes que pudesse elaborar os retoques finais de seu vasto trabalho sobre o capital. Contudo, o esboço do material já se encontrava finalizado e, após a morte de seu amigo, Engels empreendeu a pesada tarefa de preparar e publicar o Livro II e o Livro III de "O Capital". Publicou o Livro II, em 1885, e o Livro III, em 1894 (sua morte impediu-o de preparar a publicação do Livro IV).[14]
A publicação desses dois livros exigiu-lhe a prestação de uma colossal quantidade de trabalho. Adler, socialdemocrata austríaco, observou, corretamente, que, ao publicar o Livro II e Livro III de « o Capital », Engels erigiu um majestoso monumento ao gênio que fora seu amigo, um monumento no qual, sem expressamente pretendê-lo, insculpiu indelevelmente o seu próprio nome. Com efeito, esses dois livros de «O Capital» constituem o trabalho de dois homens: Marx e Engels.
Lendas da Antiguidade contêm vários exemplos comoventes de amizade. O proletariado europeu pode afirmar que sua ciência foi criada por dois sábios e lutadores, cujo relacionamento de um para com o outro sobre passa as mais comoventes histórias da Antiguidade sobre a amizade entre os homens.
Engels sempre – e, geralmente, de modo inteiramente correto – colocava a si mesmo em uma posição posterior a de Marx. Certa vez, escreveu a um velho amigo: "No tempo em que Marx viveu, eu tocava o segundo violino."[15]
Seu apreço por Marx, enquanto este viveu, e sua reverência à memória de Marx eram ilimitados. Esse lutador pertinaz e pensador austero possuía uma alma profundamente amável.
No exílio, depois do movimento de 1848-1849, Marx e Engels não ficaram enclausurados na pesquisa científica. Em 1864, Marx fundou a Associação Internacional dos Trabalhadores e dirigiu essa organização por toda uma década.[16]
Também Engels participou ativamente nas atividades da organização em foco.
O trabalho da Associação Internacional dos Trabalhadores que, consoante a ideia de Marx, unificou proletários de todos os países, foi de gigantesco significado para o desenvolvimento do movimento da classe trabalhadora.
Porém, mesmo com o encerramento da Associação Internacional dos Trabalhadores, ocorrido no curso dos anos 70, o papel de unificação, desempenhado por Marx e Engels, não deixou de existir.
Pelo contrário: vale dizer que sua importância enquanto dirigentes espirituais do movimento da classe trabalhadora cresceu continuadamente, porquanto o próprio movimento floresceu ininterruptamente.
Depois da morte de Marx, Engels prosseguiu sozinho como conselheiro e dirigente dos socialistas europeus. Seus conselhos e diretivas eram procurados tanto pelos socialistas alemães, cuja força amplificou-se rápida e solidamente – a despeito das perseguições governamentais -, quanto pelos representantes dos países atrasados, tais quais os espanhóis, romenos e russos, os quais foram obrigados a refletir e sopesar acerca de seus primeiros passos. Todos eles aproveitavam o rico cabedal de conhecimentos e experiências do velho Engels.
Marx e Engels conheciam ambos a língua russa e liam livros em russo, ao mesmo tempo em que possuíam vivaz interesse por esse país. Acompanhavam o movimento revolucionário russo com simpatia e mantinham contato com revolucionários russos.
Ambos se tornaram socialistas, depois de haverem sido democratas, de modo que o sentimento democrático de ódio ao despotismo político nos dois era extraordinariamente intenso.
O imediato sentimento político, associado à profunda compreensão teórica acerca da conexão, existente entre o despotismo político e a opressão econômica, bem como sua rica experiência de vida, tornaram Marx e Engels incomumente sensíveis, na esfera da política.
É por isso que a luta heroica, travada por um punhado de revolucionários russos contra o governo czarista todo-poderoso, encontrou a mais viva ressonância nos corações desses provados revolucionários.
De outra parte, a tendência de dar as costas – mercê das ilusórias vantagens econômicas - à tarefa mais importante e imediata dos socialistas russos, nomeadamente a conquista da liberdade política, surgia naturalmente suspeita aos seus olhos e foi, até mesmo, por eles considerada como uma traição direta da grande causa da revolução social.
"A emancipação dos trabalhadores deve ser obra da própria classe trabalhadora", prelecionaram constantemente Marx e Engels. Porém, a fim de lutar por sua emancipação econômica, o proletariado tem de conquistar para si próprio certos direitos políticos.
Ademais, Marx e Engels entenderam, claramente, que uma Revolução política na Rússia haveria de ser também de tremenda importância para o movimento da classe trabalhadora da Europa Ocidental.
A Rússia autocrática sempre foi um bastião da reação europeia, em geral. A posição internacional extraordinariamente favorável, desfrutada pela Rússia por decorrência da Guerra de 1870 – país esse que, por muito tempo, semeou discórdia entre a Alemanha e a França – nada fez senão incrementar evidentemente a importância da Rússia autocrática, enquanto força reacionária.
Apenas uma Rússia livre, uma Rússia que não careça de oprimir poloneses, finlandeses, alemães, armênios e outras pequenas nações nem de atiçar, constantemente, a França e a Alemanha a lutarem uma contra a outra, permitiria à Europa moderna, redimida dos fardos da guerra, respirar livremente, enfraquecendo todos os elementos reacionários da Europa, fortalecendo a classe trabalhadora europeia.
Eis por que Engels aspirou, ardentemente, à introdução da liberdade política na Rússia, pois isso também favoreceria o movimento da classe trabalhadora no ocidente.
Com a morte de Engels, os revolucionários russos perderam seu melhor amigo.
Honremos, pois, a memória de Friedrich Engels, grande lutador e professor do proletariado!
[1] Publicado por Lenin em "Rabotnik (O Trabalhador)", Nº 1/2, março de 1896.
[2] FRIEDRICH ENGELS, "Carta a Johann Philipp Becker" (5/10/1884).
[3] Versos extraídos da poesia de NIKOLAI ALEXEIEVITCH NEKRASSOV redigida "Em Memória de Dobroliubov" e usados por Lenin na epígrafe de seu ensaio dedicado a Friedrich Engels.
[4] Nessa passagem, Lenin escreve ao pé da página: "Marx e Engels destacaram, por diversas vezes, que muito deviam em seu desenvolvimento intelectual aos grandes filósofos alemães e, em particular, a Hegel. Sem a filosofia alemã, dizia Engels, não existiria o socialismo científico".
[5] "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra", novembro 1844 – Março 1845.
[6] "A Sagrada Família ou a Crítica da Crítica Crítica contra Bruno Bauer e Consortes", setembro/novembro 1844.
[7] "Esboços para uma Crítica da Economia Nacional", revista "Anais Franco-Alemães", janeiro de 1844 A revista "Anais Franco-Alemães" foi fundada por Karl Marx e Arnold Ruge, em Paris. Editou-se apenas um número (duplo), em fevereiro de 1844, em língua alemã. Nesse número, surgiram publicados os ensaios de Marx, intitulados "Sobre a Questão Judia" e "Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", bem como os ensaios de Engels, "Esboços para uma Crítica da Economia Nacional" e "A Situação da Inglaterra".
[8] A Liga dos Comunistas foi fundada em junho de 1847, em Londres, durante a Conferência da Liga dos Justos que aprovou, por proposta de Marx e Engels, a conversão da Liga em Liga dos Comunistas. A antiga palavra-de-ordem da Liga dos Justos, "Todos os Seres Humanos são Irmãos", foi, então, substituída por "Proletários de Todo o Mundo, Uni-vos!". A Liga dos Comunistas continuou existindo até novembro de 1852. ENGELS escreveu "Sobre a História da Liga dos Comunistas", em 1885.
[9] A "Nova Gazeta Renana" foi editada de 1° de junho de 1848 a 19 de maio de 1849, na cidade de Colônia, sob a direção de Karl Marx e Friedrich Engels. Seu redator-chefe era Karl Marx.
[10] Lenin fez a seguinte nota de pé de página: "Trata-se de um livro extraordinariamente instrutivo e rico de conteúdo. Dele traduziu-se para a língua russa apenas uma pequena parte que contém um esboço histórico do desenvolvimento do socialismo."
[11] "A Política Exterior do Czarismo Russo", dezembro de 1889 – fevereiro de 1890.
[12] "Sobre a Questão da Habitação", junho de 1872/fevereiro de 1873.
[13] "Questões Sociais da Rússia", 1894, Karl Marx e Friedrich Engels.
[14] Conforme indicação de Engels, Lenin chamou o livro quatro de "O Capital" de "Teorias da Mais-Valia". No prefácio ao livro dois de "O Capital", Engels escreveu: "Reservo-me o direito de publicar a parte crítica desse manuscrito sob a forma de Livro IV de "O Capital", após a remoção de diversas passagens já exauridas no Livro II e no Livro III."
[15] "Carta de Engels a Johann Philipp Becker", 15/10/1884.
[16] A Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional) foi a primeira organização internacional do proletariado mundial. Foi fundada em Londres, no outono de 1864, por iniciativa de Karl Marx. A I Internacional deixou praticamente de existir em 1872, vindo a ser formalmente dissolvida em 1876.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A questão do Estado, questão central de cada revolução

A questão do Estado, questão central de cada revolução

Álvaro Cunhal

O odiario.info vem, com a publicação deste texto do grande patriota, internacionalista, político comunista, revolucionário e multifacetado intelectual que foi Álvaro Cunhal, associar-se às comemorações do centenário do seu nascimento.
No momento em que amplas massas da juventude portuguesa manifestam nas ruas, nos blogues, nas acções de contestação do governo da burguesia que nos oprime, esclarecer o que é o Estado numa sociedade de classes, como, por que se formou e para que serve, e que a superação da ditadura da burguesia, desta ou de qualquer outra, não se faz no quadro da importante luta dentro das instituições, enfim, divulgar Álvaro Cunhal, o seu pensamento e a política do Partido por ele dirigido é, seguramente, a melhor forma de o recordar.




A 30 quilómetros a noroeste de Leninegrado, Razliv é hoje um lugar histórico. Aí, num sítio ermo, se pode ver a reconstituição da cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se pode ver também o cepo de uma árvore que Lénine utilizava como mesa para escrever.
O Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da burguesia, se formara um outro governo com «uma existência real e incontestável»: os sovietes de deputados operários e soldados (Lénine, «Sobre a dualidade dos poderes», Obras, edição francesa, vol. 24, p. 28) [1]. Os mencheviques e socialistas-revolucionários, impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num «governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se colocaram ao proletariado e ao seu partido, o Partido Bolchevique. Como escreveu Lénine, se até [4 de] Julho «o desenvolvimento pacífico da revolução russa era ainda possível», a partir de então a questão punha-se em novos termos: «ou a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução» (“Resposta», Obras, edição francesa, vol, 25, pp. 231 e 236).
Nas vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever febrilmente no cepo de árvore em Razliv? Esse problema era o problema do Estado, e a obra que então Lenine escrevia viria a constituir uma obra fundamental: O Estado e a Revolução.
Já nas Teses de Abril Lénine caracterizara a situação como a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia, para a segunda etapa, que deveria dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato (Ver Obras, edição francesa, vol. 24, p. 12) [2].
De Abril a Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a Revolução que não só expõe de uma forma sistematizada a teoria de Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências do movimento revolucionário.
Nas vésperas da revolução socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí­-lo por um novo Estado.

1

A teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas.

Marx descobriu e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão da sociedade em classes, como necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para manter a exploração da maioria.
O Estado é uma «organização especial do poder», «um poder especial de repressão», «a organização da violência», um aparelho militar e burocrático constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia, pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo funcionalismo.
Aparentemente acima da sociedade e das classes, o Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de uma classe sobre outras classes.
A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se coloca na ordem do dia a tomada do poder.
Marx descobriu que a luta de classes que se trava na sociedade capitalista conduz necessariamente à revolução, à conquista do poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no Manifesto Comunista como o «proletariado organizado como classe dominante» (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, p. 53) [3].
Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que não lhe cabia a ele o mérito nem de ter descoberto a existência das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que fiz de novo (sublinhava) foi demonstrar: 1) Que a existência das classes não está ligada senão a determinadas fases do desenvolvimento histórico da produção; 2) Que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) Que esta ditadura não constitui ela própria senão a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes» (Carta a Weydemeyer, 5-3-1852, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 2, p. 452) [4].
O papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas próprias características como classe na sociedade capitalista. «De todas as classes que hoje defrontam a burguesia (proclamava o Manifesto Comunista) só proletariado é uma classe realmente revolucionária.» «Os proletários só têm a perder as próprias algemas. Eles têm um mundo a ganhar.” (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, pp. 43 e 65.) [5]
Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao fim», pode ser «o guia de todas as massas laboriosas e exploradas, que frequentemente a burguesia explora, oprime e esmaga não menos mas mais que aos proletários, e que são incapazes de uma luta independente pela sua libertação». Por isso, o poder da burguesia só pode ser abatido «se o proletariado se transforma em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime económico todas as massas laboriosas e exploradas» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, p. 437) [6].
O proletariado «transformado em classe dominante», como escreveu Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante», como definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o novo Estado Proletário. «O proletariado (insistia Lénine) tem necessidade do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores, como para dirigir a grande massa da população - os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários - na edificação da economia socialista» (Ibid.) [7]
Mas como organizar o poder do Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do Estado? A esta questão capital, Marx deu uma primeira e clara resposta, que depois Lenine desenvolveu.
Estudando atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852 que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado, pois «os partidos que lutavam uns após outros pelo poder consideravam a conquista deste imenso edifício do Estado como a principal presa do vencedor» («O 18 Brumário», Obras Escolhidas em dois volumes, edição inglesa, vol.1, p. 333) [8]. A experiência da grande revolução proletária do século XIX, a Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido nas revoluções burguesas, «a classe operária (ao conquistar o poder político) não pode contentar-se com o tomar a máquina completamente pronta do Estado e fazê-la funcionar para a realização dos seus fins» («A Guerra Civil em França», 1871, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol, 1, p. 463) [9].
É nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua revolução.
A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é impossível «sem a supressão do aparelho do poder de Estado criado pela classe dominante” e a sua substituição «por um poder especial de repressão” exercido contra a burguesia pelo proletariado» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, pp. 420 e 430) [10].
Lénine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista se o proletariado e as classes oprimidas se limitassem a tomar conta do aparelho do Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista.
Tal é a essência da ditadura do proletariado.

2

Quando se fala da teoria marxista-leninista do Estado deve ter-se sempre presente o significado da palavra «ditadura» empregada tanto em relação aos Estados capitalistas - à «ditadura da burguesia», como em relação aos Estados socialistas - à «ditadura do proletariado». A clara explicação desse significado é essencial para a compreensão da teoria do Estado e da teoria da revolução e para a determinação da posição das várias classes e forcas políticas em relação ao problema da democracia. Os ideólogos burgueses, incluindo os liberais e socialistas, baralham os dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses liberais e socialistas é em nome da democracia que se opõem à ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como «ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade.

A verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagónicas é sempre uma ditadura. A expressão “ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagónicas, Estado é sinónimo de Ditadura.
As formas de dominação, tanto na ditadura da burguesia como na ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura burguesa pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a «ditadura burguesa». A ditadura do proletariado pode também exercer-se com a existência de um ou mais partidos, com um sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de organização do poder. As experiências históricas das democracias populares já mostraram que o sistema soviético não é o único possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a forma única e obrigatória dum Estado socialista.
O facto de quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária indiferente a essas formas de dominação.
Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata de capitalismo. A repressão e o terror são utilizados precisamente contra o proletariado, para impedir o desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista. Enquanto subsistir o capitalismo o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo.
Nada tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns «ultra-revolucionários» ao afirmarem que, nas condições do Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado, seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas condições do fascismo. O Partido Comunista Português não considera a revolução antifascista como uma revolução democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste que o fim do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central, compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo. Lénine numerosas vezes sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram a luta pelo socialismo da luta pela liberdade política» («As tarefas dos sociais-democratas russos», Obras, edição francesa, vol. 2, p. 347).
Ao mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a burguesia contra o proletariado, protege e defende a exploração dos trabalhadores e, se a luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos abertamente terroristas.
Como marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza, é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da sociedade em classes antagónicas, o Estado proletário é o instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do termo da divisão da sociedade em classes.
Uma democracia burguesa, por mais amplas que sejam as «liberdades democráticas», e por muito grande que seja a autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia; qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas «ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa.

A Revolução de Outubro trouxe a grande primeira comprovação histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da humanidade.
Notas:
[1] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!” -Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1984-1989, t. 3, p. 132. (N. Ed.)
[2] Cf. V 1. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições “Avante!”-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1977-1979, t. 2, p. 14. (N. Ed.)
[3] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1997, p. 56. (N.Ed.)
[4] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982-1985, t. 1, p. 555. (N. Ed.)
[5] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., pp. 46 e 73. (N. Ed.)
[6] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3, pp. 207-208. (N. Ed.)
[7] Cf. Ibidem, pp. 208-209. (N. Ed.)
[8] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t. 1, p. 502. (N. Ed.)
[9] Cf. Karl. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t 2, p. 237. (N. Ed.)
[10] Cf. V l. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3,pp. 194 e 202. (N. Ed.)

Texto (Introdução, 1 e 2) e notas da 2ª edição, Editorial “Avante!”, 2007

terça-feira, 14 de maio de 2013

A REVOLUÇÃO FRANCESA DE MAIO DE 1968





Alan Woods
Alan Woods estava na França em maio de 68 buscando contatar trabalhadores e jovens. Neste relato-análise, publicado pela primeira vez em maio de 2008, ele fala do que viu nesta que foi a maior greve geral da história e que colocou o poder praticamente nas mãos da classe trabalhadora.
Previsão e assombro
O Maio de 1968 foi a maior greve geral da história. Este poderoso movimento aconteceu no ponto culminante do auge econômico capitalista do pós-guerra. Naquele momento, como agora, a burguesia e seus apologistas se vangloriavam, já que, para eles, as revoluções e a luta de classes eram coisas do passado. Então, quando chegam os acontecimentos franceses de maio de 1968, parecem, para eles, relâmpagos em um límpido céu azul. Também a esquerda foi pega de surpresa, já que a maior parte dela havia descartado a classe trabalhadora européia como força revolucionária.
Em maio de 1968, The Economist publicou um suplemento especial sobre a França para comemorar os dez anos do governo gaullista. Neste suplemento, Norman Macrae elogiava os êxitos do capitalismo francês, destacava que os franceses tinham níveis de vida mais altos que os britânicos, comiam mais carne, possuíam mais automóveis e outras coisas mais. Citava a “grande vantagem nacional” da França sobre seu vizinho do outro lado do canal: seus sindicatos eram “pateticamente fracos”. Mal havia secado a tinta do artigo de Macrae e a classe trabalhadora francesa assombrou o mundo com uma insurreição social sem precedentes nos tempos modernos.
Os acontecimentos de maio não foram previstos pelos estrategistas do capital, nem na França nem em nenhum outro lugar. Não foram previstos pelos dirigentes estalinistas nem pelos reformistas. As damas e cavalheiros intelectuais, que se consideravam marxistas (a maioria deles passou décadas falando de “luta armada”, de insurreição, etc.), não só deixaram de prever o movimento dos trabalhadores franceses, eles simplesmente negavam qualquer possibilidade de movimento dos trabalhadores.
Tomemos um dos “teóricos” marxistas acadêmicos, André Gorz. Este indivíduo escreveu em um artigo o seguinte: “no futuro previsível não haverá nenhuma crise do capitalismo europeu radical o suficiente para levar as massas de trabalhadores a greves gerais revolucionárias ou insurreições armadas em apoio a seus interesses vitais” (A. Gorz, Reform and Revolution, Publicado em The Socialist Register 1968, ênfase minha). Estas linhas foram publicadas em meio à maior greve geral revolucionária da história.
Gorz não era o único que descartava a luta revolucionária da classe trabalhadora. O “grande marxista” chamado Ernest Mandel, apenas um mês antes destes grandes acontecimentos, falou em uma reunião em Londres. Durante sua intervenção, falou sobre tudo o que há abaixo do sol, mas não dedicou uma só palavra à situação da classe trabalhadora francesa. Quando na sala uma ou duas pessoas lhe perguntaram sobre esta contradição, sua resposta foi: “os trabalhadores estão aburguesados e ‘americanizados’”; os trabalhadores franceses não protagonizariam nenhum acontecimento deste tipo durante os próximos vinte anos. 
O contexto
O que nenhum destes cavalheiros compreendia era que o longo período de auge capitalista que começou em 1945 transformou a correlação de forças de classe e fortaleceu enormemente a classe trabalhadora européia. Depois da experiência da Comuna de Paris a burguesia francesa passou a ter um medo mortal do crescimento do proletariado e tratou de evitá-lo desenvolvendo uma economia rentista, parasitária muito baseada no capital financeiro, nos bancos e nas colônias. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial a indústria francesa se desenvolveu profundamente e provocou um rápido fortalecimento do proletariado e um declive geral do campesinato.
O desenvolvimento da indústria tornou o proletariado muito mais forte do que nos anos trinta e ainda mais forte do que na época da Comuna de Paris, quando praticamente todos os trabalhadores se encontravam em pequenas empresas. Inclusive, em 1931, quase dois terços de todas as empresas industriais da França não empregavam trabalhadores assalariados e o terço restante empregava menos de dez. Somente 0,5% das empresas industriais empregavam mais de cem trabalhadores.
Na crise revolucionária de 1936 a metade da população francesa obtinha seu sustento da agricultura, hoje a população rural é inferior a 6% da população. Em 1968 a classe assalariada havia crescido não só em número, mas também em termos de seu potencial de luta. Em 1968 essa mudança fundamental pôde ser vista no papel chave desempenhado pelas gigantescas fábricas como a Renault de Flins, com uma planta de 10.500 trabalhadores, dos quais 10.000 participaram dos piquetes e com um mínimo de 5.000 trabalhadores assistindo regularmente às assembléias de greve.
Em 1936, quando a correlação de forças de classe era infinitamente menos favorável, numa situação onde nem um décimo havia avançado, Trotski disse que o PCF e o PSF poderiam ter tomado o poder:
“Se o partido de León Blum realmente fosse socialista, poderia, baseando-se na greve geral, ter derrotado a burguesia, em junho, quase sem guerra civil, com mínimos transtornos e sacrifícios. Porém, o partido de Blum é um partido burguês, o irmão mais novo do podre Radicalismo”. (Leon Trotski. On France, p. 178, ênfase minha).
A correlação de forças em 1968 era imensamente mais favorável. Era possível a transformação pacífica se os dirigentes do PCF tivessem agido como marxistas. É importante insistir neste ponto. Somente a traição dos dirigentes reformistas, que se negaram a tomar o poder quando existiam as circunstâncias mais favoráveis, impediu que os trabalhadores franceses tomassem o poder.
O papel dos estudantes
Os estudantes sempre são um barômetro sensível às tensões que estão se acumulando nas profundezas da sociedade. A onda de manifestações e ocupações estudantis que precederam os acontecimentos de maio foi como um relâmpago que anuncia a tormenta. Nos meses anteriores a maio já havia uma efervescência entre os estudantes que havia se expressado em uma série de manifestações e ocupações.
Frente à onda ascendente de protestos estudantis o reitor da prestigiosa universidade Sorbone decidiu fechá-la, era a segunda vez em seus setecentos anos de história. A primeira vez aconteceu em 1940 quando os nazistas ocuparam Paris. A tentativa da polícia de liberar o pátio da Sorbone em 03 de maio foi a centelha que acendeu o fogo.
A violência irrompeu no Bairro Latino, com o resultado de mais de cem feridos e 596 presos. No dia seguinte os cursos foram suspensos na Sorbone. As principais organizações estudantis, a UNEF e a Snesup, convocaram greves indefinidas. Em 06 de maio houve novos enfrentamentos no Bairro Latino: 422 presos, 345 policiais e uns 600 estudantes ficaram feridos. A repressão provocou uma indignação generalizada.
Os estudantes enfurecidos arrancaram paralelepípedos para arremessar contra os policiais e levantaram barricadas seguindo a boa e velha tradição francesa. Os estudantes das universidades de toda a França saíram em seu apoio.
Na noite de 10 de maio houve uma ampla revolta no Bairro Latino. Os manifestantes levantaram barricadas e a polícia os atacou com grande violência. Os bandidos armados da CRS (polícia anti-distúrbios) tomaram de assalto apartamentos privados e golpearam selvagemente gente simples e corrente, até mesmo uma mulher grávida. Mas, se depararam com uma resistência que não esperavam. Os parisienses de suas janelas bombardearam a polícia com vasos de plantas e outros objetos pesados. Dos 367 hospitalizados, 251 eram policiais. Outras 720 pessoas ficaram feridas e 468 foram presas. Carros foram destruídos ou queimados. O Ministro da Educação insultou os manifestantes: “Ni doctrine, ni foi, ni loi” (Nem doutrina, nem fé, nem lei).
Durante a primeira semana, os dirigentes do PCF haviam menosprezado os estudantes e os dirigentes sindicais e tentaram ignorá-los. L’Humanité publicou um artigo daquele que seria o futuro líder do PCF, George Marchais, com o título: Os falsos revolucionários têm de ser desmascarados. Mas, ante a indignação geral da população e a pressão da base, a burocracia sindical teve que entrar em ação. No dia 11 de maio os principais sindicatos, CGT, CFDT e FEN, convocaram uma greve geral para 13 de maio. Umas 200.000 pessoas manifestaram-se gritando palavras de ordem tais como: “De Gaulle assassino!”.
George Pompidou, então primeiro ministro, regressou rapidamente a Paris e anunciou a reabertura da Sorbone nesse mesmo dia. Pretendia com este gesto abrir as portas para um compromisso visando evitar uma explosão social. Mas, era demasiado pouco e demasiado tarde. As massas entenderam isso como um sinal de debilidade e seguiram adiante.
A greve geral
A efervescência entre os estudantes era apenas a manifestação mais evidente do descontentamento da sociedade francesa. Apesar do auge econômico, os empresários franceses haviam aplicado uma pressão violenta sobre os trabalhadores. Abaixo da superfície de aparente calma existia um enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração. Já em janeiro houve violentos conflitos durante uma manifestação de grevistas em Caen.
A greve geral de 13 de maio marcou um ponto de inflexão qualitativo. Centenas de milhares de estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas de Paris. Uma idéia da situação é a descrição que se segue da poderosa manifestação de um milhão de pessoas que tomaram as ruas de Paris no dia 13 de maio:
“Fileiras passavam incessantemente. Havia seções inteiras de trabalhadores de hospitais com seus jalecos brancos, alguns carregavam cartazes onde se podia ler: ‘Où sont les disparus des hôpitaux?' (Onde estão os feridos desaparecidos?). Cada fábrica, cada centro de trabalho importante parecia estar representado. Havia numerosos grupos de ferroviários, carteiros, gráficos, metroviários, aeroportuários, comerciários, eletricistas, advogados, garis, bancários, trabalhadores da construção civil, vidreiros, químicos, faxineiros, empregados municipais, pintores e decoradores, trabalhadores do gás, balconistas, escriturários, trabalhadores do cinema, motoristas de ônibus, professores, trabalhadores das novas indústrias de plástico, todos eles em fila, o sangue da sociedade capitalista moderna, uma massa interminável, uma força que podia arrastar tudo que estivesse em seu caminho, se assim o desejasse”. (Citado em Revolutionary Rehearsals, p.12).
Os dirigentes dos sindicatos esperavam que esta manifestação fosse suficiente para deter o movimento, não tinham intenção de continuar e estender a greve geral. Para eles a manifestação era apenas uma maneira de liberar vapor. Porém, uma vez iniciado o movimento imediatamente ganhou vida própria. A convocatória de greve geral foi como uma grande rocha lançada sobre um lago tranqüilo. As ondas se estenderam a cada canto da França. Ainda que houvesse apenas aproximadamente três milhões de trabalhadores organizados em sindicatos, participaram da greve cerca de 10 milhões e começou uma série de ocupações de fábricas em toda França.
No dia 14 de maio, um dia depois da manifestação de massas em Paris, os trabalhadores ocuparam a Sud-Aviation em Nantes e a fábrica da Renault em Cléon, seguidos pelos trabalhadores da Renault em Flins, Le Mans e Boulogne-Billancourt. Greves foram iniciadas em outras fábricas por toda a França, como em RATP e SNCF. Os jornais não saíram. No dia 18 de maio, os mineiros do carvão pararam de trabalhar e o transporte público ficou paralisado em Paris e em outras cidades importantes. Os trens foram os próximos, depois o transporte aéreo, os estaleiros, os trabalhadores do gás e da eletricidade (que decidiram manter o abastecimento doméstico), os correios e as barcas que atravessam o Canal da Mancha.
Os trabalhadores tomaram o controle dos recursos petroleiros em Nantes, negaram a entrada a todos os caminhões tanques que não tivessem a autorização do comitê de greve. Foi formado um piquete no único fornecedor de gasolina que funcionava na cidade, assim garantiu-se que o único combustível liberado era para os médicos. Foram estabelecidos contatos com as organizações camponesas nas zonas periféricas, organizou-se o abastecimento de comida, os preços foram fixados pelos trabalhadores e camponeses. Para evitar a especulação, as lojas tinham que deixar à vista um adesivo com as palavras: “Esta loja está autorizada a abrir. Os preços estão sob supervisão permanente dos sindicatos”. O adesivo ia assinado pela CGT, CFDT e FO. Um litro de leite era vendido por 50 centavos, seu preço normal era de 80 centavos. O quilo da batata baixou de 70 para 12 centavos. O quilo da cenoura passou de 80 a 50 centavos e assim sucessivamente.
Os estudantes, os professores, os profissionais, camponeses, cientistas, jogadores de futebol, até mesmo as bailarinas do Follies Bergères foram à luta. Em Paris os estudantes ocuparam a Sorbone. O teatro l’Odeon foi ocupado por 2.500 estudantes e os estudantes do ensino médio ocuparam suas escolas:
“A febre de ocupação afetou a intelligentsia. Os médicos radicais ocuparam as sedes da Associação Médica, os arquitetos radicais proclamaram a dissolução de sua associação, os atores fecharam todos os teatros da capital, os escritores encabeçados por Michel Butor ocuparam a Societe de Gens de Lettres no Hotel de Massa. Inclusive os executivos das empresas participaram ocupando durante um tempo o edifício do Conseil National du Patronat Français, depois se deslocaram para a Confederation Generale des Cadres”. (David Caute. Sixty Eight, the Year of the Barricades, p.203).
Como as escolas estavam fechadas, os professores e os estudantes organizaram vigílias, brincadeiras, comidas gratuitas e atividades para os filhos dos grevistas. Foram criados comitês de mulheres de grevistas que tiveram um papel importante na organização do abastecimento de alimentos. Não só os estudantes, como também os advogados profissionais estavam infectados pelo vírus da revolução. Os astrônomos ocuparam um observatório. Houve uma greve no centro de pesquisa nuclear de Saclay, onde a maioria dos 10.000 empregados eram pesquisadores, técnicos, engenheiros e cientistas. Até a igreja foi afetada. No Bairro Latino, jovens católicos ocuparam a igreja e exigiam debates no lugar das missas.
O poder nas ruas
Os distúrbios continuavam em Paris, os trabalhadores e estudantes desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Em uma só noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram incendiar a Bolsa de Paris considerada um símbolo odiado do capitalismo. Um comissário de polícia foi morto em Lyon por um caminhão.
Uma vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão. No dia 25 de maio, a rádio televisão estatal, a ORTF, entrou em greve. Suprimiram as notícias das oito da noite. Os gráficos e jornalistas impuseram uma espécie de controle operário sobre a imprensa. Os jornais burgueses tinham que submeter seus editoriais ao escrutínio e deviam publicar as declarações dos comitês de trabalhadores.
A Assembléia Nacional discutiu a crise universitária e as batalhas do Bairro Latino. Porém, os debates nos salões da assembléia já eram irrelevantes. O poder havia escapado das mãos dos legisladores e agora estava nas ruas. No dia 24 de maio, o presidente De Gaulle anunciou o referendo no rádio e na televisão. O plano de De Gaulle de celebrar um referendo foi frustrado pela ação dos trabalhadores. O general foi incapaz até mesmo de imprimir as cédulas do referendo devido à greve dos trabalhadores das gráficas franceses e a negativa de seus colegas belgas de atuar como fura greves. Este não foi o único exemplo de solidariedade internacional. Os condutores de trens alemães e belgas detinham seus trens na fronteira francesa para não romper a greve.
As forças da reação, até esse momento em estado de choque e obrigadas a estar na defensiva, começaram a se organizar. Foram criados Comitês de Defesa da República, CDR, como tentativa de mobilizar a classe média contra os trabalhadores e estudantes. A correlação de forças de classe não é uma questão puramente numérica do tamanho da classe trabalhadora em relação ao campesinato e da classe média em geral. Uma vez que o proletariado entre na luta decisiva e demonstra ser uma força poderosa na sociedade, atrai rapidamente a massa explorada de camponeses e de pequenos comerciantes que são vítimas dos bancos e dos monopólios. Este fato era evidente em 1968, quando os camponeses levantaram bloqueios nas estradas ao redor de Nantes e distribuíram comida grátis aos grevistas.
O mito do “Estado forte”
O movimento pegou a classe dominante e o governo totalmente desprevenidos. Estavam aterrorizados ante o movimento dos estudantes, Pompidou admitia em suas memórias: 
“Alguns... pensaram que, ao reabrir a Sorbone e ao libertar os estudantes, eu havia demonstrado fraqueza e que havia posto a agitação em marcha novamente. Eu responderia simplesmente o seguinte: suponhamos que na segunda-feira 13 de maio a Sorbone permanecesse fechada sob proteção policial. Quem poderia imaginar que a multidão, avançando até Denfert-Rocearau não conseguiria entrar levando tudo a sua frente como um rio em uma inundação? Preferi dar a Sorbone aos estudantes que vê-la tomada pela força”. (G. Pompidou. Por Rétablir une Verité, pp. 184-185). 
Em outra parte acrescenta:
“A crise era infinitamente mais séria e mais profunda; o regime se manteria ou seria derrotado, mas não poderia ser salvo com uma simples remodelação ministerial. Não era minha posição que estava em dúvida. Era o general De Gaulle, a Quinta República e, até certo ponto, o próprio poder republicano”. (Ibíd., p. 197, ênfase minha).
A que se referia Pompidou quando falava que “o próprio poder republicano” estava em perigo? O que queria dizer é que o Estado burguês estava em perigo de ser derrotado. E, nessa idéia, tinha bastante razão. Mais a frente Pompidou tentou acabar com a crise reabrindo a Sorbone, mas o movimento simplesmente foi além, com uma manifestação de 250.000 pessoas. Aterrorizado com a possibilidade dos estudantes se unirem aos trabalhadores e tomar o Elysée, o palácio presidencial foi evacuado.
De Gaulle, inicialmente, depositou sua confiança nos dirigentes estalinistas para salvar a situação. Disse a seu ajudante de Campo Naval, François Flohic: “Não se preocupe, Flohic, os comunistas os manterão sob controle”. (Phillippe Alexandre. L’Elysée em péril, p.299).
O que essas palavras demonstram? Nem mais nem menos que o sistema capitalista não poderia existir sem o apoio dos dirigentes operários reformistas (e estalinistas). Este apoio lhes é muito mais valioso do que qualquer quantidade de tanques e policiais. De Gaulle, como burguês inteligente, entendia isso perfeitamente. Em uma tentativa de demonstrar sua suprema indiferença em relação aos acontecimentos na França, o presidente De Gaulle fez uma visita de estado à Romênia, onde foi recebido com os braços abertos pelo “comunista” Ceausescu. Contudo, a confiança do general não duraria muito.
A essência de uma revolução, o que a caracteriza, é o fato das massas começarem a participar ativamente dos acontecimentos, começarem a tomar os problemas em suas próprias mãos. Quando voltou à França, os dirigentes “comunistas” estavam perdendo o controle. A bandeira vermelha tremulava nas fábricas, escolas e universidades, nas agências de emprego e até mesmo em observatórios espaciais. O governo era impotente, estava suspenso no ar devido à insurreição. O “Estado forte” gaullista estava paralisado. O poder estava de fato nas mãos da classe trabalhadora.
Os informes da rápida deterioração da situação em Paris chocaram De Gaulle. Frente à maré crescente de rebelião o presidente teve que abandonar sua pose de indiferença, interromper sua viagem a Romênia e regressar rapidamente a França. No palácio de Elysée, o presidente De Gaulle proferiu as palavras imortais: “La réforme, oui; la chienlit, non” (Reforma, sim, crianças pirracentas, não!). A palavra chienlit é difícil de ser traduzida, se refere a uma criança que ainda não aprendeu a utilizar o mictório.
Ao utilizar esta linguagem, De Gaulle expressou seu desprezo pelos “garotos” nas ruas. Porém, o movimento já havia ido mais além da etapa das manifestações estudantis. Era como uma enorme bola de neve descendo uma íngreme montanha, ganhando força e impulso a cada momento. As mais inesperadas camadas sociais se viram arrastadas pelo rodamoinho da luta revolucionária. Os profissionais do cinema ocuparam o festival de cinema de Cannes. Importantes diretores do cinema francês retiraram seus filmes da competição e o corpo de jurados renunciou, obrigando o cancelamento do festival.
Calcula-se que no dia 20 de maio 10 milhões de pessoas estavam em greve, o país estava praticamente paralisado. No dia 22 de maio uma moção de censura apresentada pelos partidos da oposição não foi aprovada, faltaram-lhes 11 votos para obter a maioria na Assembléia Nacional. O governo estava em uma situação instável e De Gaulle recolhido ao desespero. Foi precisamente neste momento que os dirigentes das confederações sindicais lançaram um bote salva-vidas para De Gaulle, fazendo uma declaração, na qual demonstravam sua disposição a negociar com a associação de empresários e com o governo.
A Assembléia Nacional aprovou uma anistia para os manifestantes. Naturalmente! Não conseguiram esmagar o movimento através da repressão, então as autoridades recorreram às concessões para tentar esfriar a situação e ganhar tempo. Desta maneira, tanto o governo como os dirigentes sindicais colaboraram para desviar o movimento revolucionário e conduzi-los a canais seguros. Enquanto ofereciam concessões aos dirigentes estudantis e sindicais, o Estado continuava com a repressão seletiva dirigida contra aqueles que eram considerados elementos subversivos. Como no caso de Daniel Cohn-Bendit, retiraram deste estudante anarquista o visto de permanência no País. Foi um movimento estúpido já que a influência real de Cohn-Bendit no movimento era mínima. Mas a ação do governo conseguiu provocar uma manifestação de massas em Paris para protestar contra esta medida. 
De Gaulle desmoralizado
O biógrafo de De Gaulle, Charles Williams, descreve de maneira gráfica seu estado de ânimo às vésperas de seu discurso a nação no dia 24 de maio:
“Não há dúvidas que depois da excitação na Romênia, o general estava profundamente abalado com o que encontrou em seu regresso a França. Durante os seguintes três dias, a alguém que o visitasse depois de algum tempo o general pareceria velho e indeciso, seu andar encurvado estava cada vez mais acentuado. Parecia que tudo isso estava sendo demais para ele.
“O discurso de 24 de maio, quando se deu, foi um fracasso total. O general parecia e soava pouco sincero, assustado. É certo, anunciou um referendo sobre ‘participação’, mas não estava claro qual seria o conteúdo concreto da pergunta e pareceu um truque para aqueles que lhe escutaram. Disse que era o dever do Estado assegurar a ordem pública, mas faltava a sua voz a velha ressonância e suas frases, ainda que usasse a velha linguagem solene, de alguma maneira já não possuía a mesma convicção. Apresentou-se como um homem velho, cansado e ferido. Sabia que tinha perdido. ‘Não alcancei o objetivo’, disse nesta noite. O melhor que Pompidou lhe disse foi: ‘Poderia ter sido pior’.
“Mas o estado de ânimo de De Gaulle na manhã do dia 25 de maio havia piorado. Estava, nas palavras de um de seus ministros, ‘prostrado, encurvado, envelhecido’. Repetia uma e outra vez, ‘isto é uma confusão’. Outro ministro se deparou com um homem velho que não ‘tinha planos para o futuro’. O general mandou buscar seu filho Phillippe, que encontrou seu pai ‘cansado’ e se deu conta de que quase não havia dormido. Phillippe sugeriu que o pai poderia partir para o porto atlântico de Brest – sombras de 1940 – mas disse a ele que não se renderia.
“Do dia 25 ao dia 28 de maio, De Gaulle permaneceu em um estado de profundo pessimismo. As negociações de Pompidou com os sindicatos foi uma farsa. Simplesmente havia dado a eles tudo o que pediam: grandes aumentos salariais, benefícios sociais e um aumento de 35% para o salário mínimo. O único obstáculo era que, inclusive depois de ter assinado, a CGT insistiu que tinham que ser ratificados por seus militantes. George Séguy, o dirigente da CGT, foi rapidamente ao bairro parisiense de Billancourt, onde 12.000 trabalhadores da Renault estavam em greve. Quando apresentou o acordo aos trabalhadores, estes o humilharam rechaçando-o de imediato. Os ditos acordos de Grenelle foram abortados.
“O conselho de ministros se reuniu às três da tarde do dia 27 de maio, pouco depois dos trabalhadores rechaçarem os acordos de Grenelle. O general presidia o conselho, mas notou-se que seu coração e sua mente estavam longe. Olhava seus ministros sem vê-los, seus braços jogados sobre a mesa a sua frente, ombros caídos, aparentemente ‘totalmente indiferente’ ao que se passava a seu redor. Houve uma discussão sobre o referendo, o general aparentemente só ouviu pedaços da discussão” (C. Williams, The Last Great Frenchman, A life of General De Gaulle, pp. 463-4-5, ênfase minha).
Estes fragmentos da biografia favorável a De Gaulle reproduzem uma imagem intensa de total desorientação, pânico e desmoralização em que estava imerso. Segundo o embaixador norte-americano, De Gaulle lhe havia dito: “o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”.
Intervenção militar?
A situação alcançou um ponto onde já não podia mais ser resolvida por métodos parlamentares normais. O que poderia ser feito? A intervenção militar foi uma das opções cogitadas por De Gaulle desde o começo da greve geral. Nas primeiras etapas da greve, planos foram elaborados para deter e aprisionar mais de 20.000 ativistas de esquerda no estádio de inverno, onde seriam vítimas de um destino similar ao de seus homólogos chilenos cinco anos mais tarde.
Porém, a operação nunca foi posta em prática. Estes planos do governo francês são idênticos aos planos de todas as classes dominantes na história quando se deparam com a revolução. O governo do Czar Nicolau (“o sangrento” como era chamado) era repleto de tais planos militares de contingência antes de fevereiro de 1917. Mas, outra coisa bem diferente era executar esses planos, como descobriu Nicolau a duras penas. O decisivo de uma revolução não são os planos dos regimes, e sim a correlação real de forças na sociedade. De Gaulle era um burguês muito astuto, plenamente consciente da situação real (a princípio, como veremos, subestimou o movimento, o resultado foi um erro muito sério. Como os demais, não esperava que os trabalhadores franceses entrassem em movimento).
De Gaulle estava à beira do abismo. Aterrorizado pelo imenso alcance do movimento, o general estava completamente pessimista. Estava convencido de que os dirigentes comunistas chegariam ao poder. Inúmeras testemunhas confirmam que De Gaulle estava totalmente atônito e desmoralizado, e que pelo menos duas vezes contemplou a idéia de fugir do país. Seu próprio filho havia pedido que ele escapasse por Brest, outras fontes dizem que considerou a possibilidade de permanecer na Alemanha Ocidental, onde visitaria o general Massu. De Gaulle era um político inteligente e calculista que nunca agia por impulsos e raramente perdia os nervos. Disse ao embaixador norte-americano: “o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”. Acreditava nisso. E não era só ele, a maioria da classe dominante também acreditava.
No papel, De Gaulle tinha a disposição uma formidável máquina de repressão. Havia cerca de 144.000 policiais (armados) de diferentes categorias, dos quais 13.500 eram da tristemente famosa polícia anti-distúrbios (CRS), e cerca de 261.000 soldados a postos na França ou na Alemanha Ocidental. Se a questão é abordada de um ponto puramente quantitativo, então deveria ser descartada não só a possibilidade de uma transformação pacífica, como também da revolução em geral, e não somente na França de 1968. Deste ponto de vista, nenhuma revolução jamais poderia triunfar em toda a história. Mas a questão não pode ser colocada desta maneira.
Em toda revolução levantam-se vozes que tentam assustar a classe oprimida com o espectro da violência, o derramamento de sangue e a “inevitabilidade da guerra civil”. Kamenev e Zinoviev falavam exatamente da mesma forma em vésperas da insurreição de Outubro. Hoje, Heinz Dieterich e os reformistas na Venezuela utilizam a mesma linha de argumentação para tentar colocar freios à revolução venezuelana.
“Os adversários da insurreição, até mesmo nas fileiras do Partido Bolchevique, encontravam muitos motivos para suas deduções pessimistas. Zinoviev e Kamenev advertiam que não se podiam subestimar as forças do adversário. ‘Petrogrado decide, mas em Petrogrado os inimigos dispõem de forças importantes: cinco mil junkers perfeitamente armados e que sabem lutar; um Estado Maior; batalhões de choque; cossacos; e uma parte importante da guarnição, mais uma considerável artilharia disposta em leque ao redor de Petrogrado. Além disso, quase seguramente os adversários tentarão trazer tropas do front com a ajuda do Comitê Executivo Central... ”
Trotsky respondeu às objeções de Kamenev e Zinoviev da seguinte forma:
“A lista soa imponente, mas é apenas uma lista. Se um exército, em seu conjunto, é um reflexo da sociedade, então quando a sociedade se divide abertamente, ambos os exércitos são cópias dos bandos em combate. O exército dos possuidores levava dentro de si o verme do isolamento e da desagregação” (Leon Trotski, Historia de la Revolución Rusa, p. 1042).
Vítima do pânico De Gaulle desapareceu de repente, viajou para a Alemanha onde teve uma reunião secreta com o general Massu, o homem responsável pelas tropas francesas a postos em Baden-Wurttemberg. O conteúdo preciso destas conversas nunca foi conhecido, mas não é necessária muita imaginação para se ter uma idéia do que foi perguntado: “Podemos contar com o exército?” A resposta não está registrada em nenhuma fonte escrita por razões óbvias. Contudo, The Times enviou seu correspondente à Alemanha para entrevistar os soldados franceses, a grande maioria era de filhos da classe trabalhadora que cumpriam o serviço militar obrigatório. Um dos entrevistados respondeu à pergunta de se ele abriria fogo contra os trabalhadores: “Nunca! Acho que seus métodos (dos trabalhadores) podem ser um tanto duros, mas sou filho de um trabalhador”.
Em seu editorial The Times fazia a seguinte pergunta: “De Gaulle pode utilizar o exército?” e respondia sua própria pergunta dizendo que talvez pudesse utilizá-lo uma vez. Em outras palavras, bastaria apenas um enfrentamento sangrento para romper em pedaços o exército. Esta era a avaliação dos estrategistas mais duros do capital internacional daquela época. Não há nenhuma razão para duvidar de sua palavra nesta ocasião.
Crise do Estado
No dia 13 de maio uma organização sindical da polícia que representava 80% do corpo policial publicou uma declaração em que “... considera a declaração do primeiro-ministro um reconhecimento de que os estudantes tinham razão, e uma renúncia total às ações da força policial que o próprio governo ordenou. Nessas circunstâncias é surpreendente que não se buscasse um diálogo efetivo com os estudantes antes que se produzissem estes lamentáveis acontecimentos”. (Le Monde, 15/5/1968).
Se esta era a postura da polícia, o efeito da revolução sobre a base do exército seria ainda maior. E assim era, apesar da falta de informação, existiam relatos de efervescência entre as forças armadas e inclusive um motim na marinha. O porta-aviões Clemenceau, deveria ir ao Pacífico para um teste nuclear, de repente deu meia volta e regressou a Toulon sem explicações. Chegaram notícias de um motim a bordo que dizia que haviam sido “perdidos no mar” vários marinheiros (Le Canard Enchiné. 19/6/68; foi publicado um relato completo em Action dia 14 de junho, mas foi confiscado pelas autoridades).
Segundo um famoso aforismo de Mao: “o poder emana da ponta do fuzil”. Porém, os fuzis são empunhados por soldados que não vivem no espaço sideral, estes também são influenciados pelo estado de ânimo das massas. Em qualquer sociedade, a polícia é mais atrasada que o exército. Contudo, na França, a polícia, citando um editorial de The Times (31/5/1968), “ferve de descontentamento”.
“Ferve de descontentamento com o tratamento que o governo lhes dá” dizia o artigo, “e o departamento encarregado da informação sobre a atividade estudantil esteve deliberadamente privando o governo de informação sobre os dirigentes estudantis, em apoio a suas reivindicações salariais.
“... Tampouco a polícia esteve muito impressionada com o comportamento do governo desde que começaram os distúrbios. ‘Estão aterrorizados em perder nosso apoio’ disse um homem.
“Tal descontentamento é uma das razões da aparente inatividade da polícia de Paris nestes últimos dias. Na semana passada, homens de diferentes departamentos locais negaram-se a sair dos cruzamentos e praças da capital” (The Times; 31/5/1968; ênfase minha).
Um panfleto publicado por membros do RIMECA (regimento de infantaria mecanizada) localizado em Mutzig, perto de Estrasburgo, indicava que seções do exército já estavam sendo afetadas pelo ânimo das massas. Incluía os seguintes fragmentos: 
"Como todos os soldados da leva, estamos confinados aos quartéis. Estão nos preparando para intervir como forças repressivas. Os trabalhadores e os jovens precisam saber que os soldados do contingente NUNCA DISPARARÃO CONTRA OS TRABALHADORES. Nós dos Comitês de Ação nos opomos a todo custo que os soldados cerquem as fábricas.
“Amanhã ou depois de amanhã esperam que cerquemos uma fábrica de armamentos, cujos trezentos trabalhadores querem-na ocupar. CONFRATERNIZAREMOS.
“Soldados do contingente, formem vossos comitês! (Citado em Revolutionary Reherasals; p. 26).
A publicação deste panfleto foi claramente um exemplo excepcional dos elementos mais revolucionários entre os conscritos. Mas, em meio a uma revolução de proporções tão massivas, é possível duvidar que a base do exército rapidamente se contagiasse com o vírus da rebelião? Os estrategistas do capital internacional não duvidavam disso, muito menos seus homólogos franceses.
Quem salvou De Gaulle?
Não foi absolutamente o exército nem a polícia (estes estavam tão desmoralizados que inclusive a reacionária inteligência, como vimos, se negou a colaborar com o governo contra os estudantes) que salvaram o capitalismo francês, e sim a atuação dos dirigentes sindicais e estalinistas. Esta conclusão não é apenas nossa, também encontra apoio na Enciclopédia Britânica:
“De Gaulle parecia incapaz de controlar a crise ou de compreender sua natureza. Contudo, os dirigentes comunistas e sindicais proporcionaram-lhe um respiro, opuseram-se a qualquer levantamento mais ousado, evidentemente temiam a perda de seus seguidores frente a seus rivais mais extremistas e anarquistas”.
Acuado, Georges Pompidou aceitou negociar com todos. Quando a classe dominante está ameaçada de perder tudo não se importa em alterar seus planos originais e torna-se disposta a fazer grandes concessões. Para tirar os trabalhadores das fábricas ocupadas e dissolver seu poder não hesitaram em oferecer aos dirigentes sindicais coisas além do que estes últimos pediam originalmente, aumento do salário mínimo, redução da jornada de trabalho e da idade de aposentadoria, restauração do direito de organização, etc.; em uma tentativa de deter os estudantes, Pompidou aceitou a demissão do Ministro da Educação.
Tanto o governo como os dirigentes sindicais estavam alarmados com o alcance do movimento e estavam decididos a detê-lo. No dia 27 de maio chegou-se a um acordo entre os sindicatos, as associações de empresários e o governo. Mas os dirigentes sindicais tinham a árdua tarefa de apresentar o acordo aos trabalhadores. Apesar das grandes concessões, os trabalhadores da Renault e de outras grandes empresas negaram-se a voltar ao trabalho. Lembro-me que estava em Paris em um bar com outras pessoas assistindo as assembléias de massas pela televisão dentro da gigantesca fábrica da Renault, onde se congregava um grande número de trabalhadores, alguns deles sentados nas gruas e nos cavaletes para escutar George Ségui, o secretário geral da CGT, que leu uma lista com aquilo que os empresários ofereciam: grandes aumentos salariais, pensões, redução da jornada e assim sucessivamente. Mas no meio de seu discurso foi interrompido pelos trabalhadores que cantavam: "Gouvernement populaire! Gouvernement populaire!". Lembro-me que ele não pôde terminar sua intervenção.
Nesse momento os trabalhadores já tinham consciência de sua própria força, tinham o poder a seu alcance e não estavam dispostos a abrir mão dele. Às 17 horas, 30.000 estudantes e trabalhadores marcharam desde Boelins ao estádio Cherléty, onde celebraram uma reunião com a presença de Pierre Mendés-France. Nesse mesmo dia a CGT convocou, previamente a este acordo, uma manifestação que conseguiu meio milhão de trabalhadores e estudantes nas ruas de Paris. Uma vez mais, o objetivo dos dirigentes sindicais e do Partido Comunista era proporcionar uma válvula de escape ao movimento, controlar o que deslizava de suas mãos.
A iniciativa passa a reação
No dia 30 de maio no rádio, o presidente De Gaulle anunciou a dissolução da Assembléia Nacional e disse que as eleições seriam realizadas dentro do calendário habitual. George Pompidou continuaria sendo o primeiro-ministro. Insinuou também que usaria a força para manter a ordem, se necessário. Era uma mensagem dirigida aos dirigentes sindicais e ao Partido Comunista. Estava oferecendo a eles a tentadora perspectiva das eleições e uma futura secretaria ministerial sob o regime burguês, e ao mesmo tempo era uma advertência de que a burguesia não entregaria o poder sem lutar.
O gabinete foi remodelado e as eleições convocadas para os dias 23 e 30 de junho. Ao mesmo tempo, De Gaulle tentou mobilizar suas forças fora do parlamento. Algumas dezenas de milhares de apoiadores do governo se manifestaram desde a Concordia até o Étoile. Foram realizadas manifestações similares de apoio ao governo em toda a França. Mas uma olhada mais atenta nas fotografias revelava imediatamente a verdadeira natureza dessas manifestações: prefeitos aposentados enrolados em faixas tricolores, cidadãos de classe média barrigudos, pensionistas e outras figuras parecidas indignadas e insatisfeitas com a sociedade.
Basta comparar estas fotografias com as manifestações massivas do proletariado alguns dias antes para descobrir a verdadeira correlação de forças. Tudo de vivo, forte e vibrante da sociedade francesa se reuniu sob a bandeira da revolução, enquanto que tudo de opaco, velho e decadente estava do outro lado das barricadas. Um bom empurrão bastava para derrubar tudo. O que faltava era um golpe de misericórdia, mas este nunca foi dado.
A classe trabalhadora não pode permanecer em uma situação de agitação constante. Não pode ser ligada ou desligada como uma lâmpada. Quando a classe se mobiliza para mudar a sociedade deve ir até o final ou fracassa. Ocorre o mesmo em uma greve. No início os trabalhadores estão entusiasmados e dispostos a participar nas assembléias de massas. Estão dispostos a lutar e fazer sacrifícios. Mas se a greve não tem um final à vista, o ambiente muda. Começando pelos elementos mais débeis, o cansaço finalmente chega. O comparecimento às assembléias de massas cai e os trabalhadores voltam ao trabalho.
Os dirigentes sindicais fizeram bom uso das concessões cedidas apressadamente pelos capitalistas, como um homem desesperado que lança um salva-vidas de um barco que afunda. O salário mínimo subiu para três francos à hora, os salários aumentaram e foram concedidas outras melhorias. Na ausência de outra perspectiva, muitos trabalhadores aceitaram o acordo que os dirigentes sindicais apresentaram como uma vitória. Na terça-feira, depois de um fim de semana com feriado no início de junho, a maioria dos grevistas pouco a pouco abandonou a luta, e os trabalhadores regressaram a seus trabalhos. 
1968 foi uma revolução
O que é uma revolução? Trotski explica que uma revolução é uma situação tal onde a massa de homens e mulheres normalmente apática começa a participar de maneira ativa na vida da sociedade, quando adquire consciência de sua força e se move para tomar seu destino em suas mãos. Isso é uma revolução. E foi o que aconteceu em uma escala colossal na França em maio de 1968.
Os trabalhadores franceses estenderam os músculos, tiveram consciência do enorme poder que tinham em suas mãos. Vimos aqui o imenso poder da classe trabalhadora na sociedade moderna: não se acende nem uma lâmpada, nenhuma roda se move e nenhum telefone toca sem a permissão dos trabalhadores. O maio de 1968 foi a resposta final a todos os covardes e céticos que duvidam da capacidade do proletariado para mudar a sociedade.
A correlação de forças da classe se expressou, não como um mero potencial ou uma estatística abstrata, e sim como um poder real nas ruas e nas fábricas. Na realidade, o poder estava nas mãos dos trabalhadores, mas eles não sabiam. Como qualquer outro exército, a classe trabalhadora necessita de uma direção. E isso era o que estava ausente em maio de 1968. Aqueles que deveriam ter proporcionado a direção, os dirigentes das organizações de massas da classe, os sindicatos e o Partido Comunista, não tinham a perspectiva da tomada do poder. Sua única preocupação era terminar a greve o mais rápido possível, devolver o poder a burguesia e retornar à “normalidade”.
Uma greve geral é diferente de uma greve normal porque coloca a questão do poder. O que está em jogo não é esse ou aquele aumento salarial, e sim quem é que manda na casa? No transcurso da luta a consciência dos trabalhadores aumentou a uma velocidade vertiginosa. Começaram a compreender que não se tratava de uma greve normal por reivindicações econômicas, mas algo maior. Tiveram consciência do poder em suas mãos e enxergavam a debilidade daqueles que se supunha representar todo o poder do Estado. A única coisa que faltou foi a eleição de delegados em cada centro de trabalho e a vinculação de comitês de greve em cada cidade e região, culminando na formação de um comitê nacional, que poderia ter tomado o poder em suas mãos, arremessando o velho poder estatal na lata de lixo da história.
Porém, nada disso foi feito e o enorme potencial revolucionário do movimento evaporou-se, como o vapor que se dissipa inofensivamente no ar se não há uma câmara de pistões que o concentre. Por fim, os trabalhadores regressaram ao trabalho e a classe dominante concentrou novamente o poder em suas mãos. Quando o movimento começou a minguar, o Estado iniciou sua vingança. Houve incidentes violentos, sobretudo no dia 11 de junho com 400 feridos, 1.500 detidos e um manifestante morto com um tiro em Montbéliard. No dia seguinte, foram proibidas as manifestações na França, pouco depois, os estudantes foram expulsos do Odéon e, dois dias mais tarde, da Sorbone.
Começou então a criminalização. Na cadeia estatal de rádio e televisão, ORTF, foram demitidos 102 jornalistas por suas atividades durante os acontecimentos. Enviaram a polícia às universidades de Nanterre e Sorbone para controlar os documentos de identidade dos estudantes e não saíram de lá antes de 19 de dezembro. Foi aprovado um pacote de medidas de austeridade no dia 28 de novembro na Assembléia Nacional. O Estado que não hesitou em esmagar os crânios dos estudantes e grevistas nas manifestações agora demonstrava clemência para com os fascistas, os terroristas de extrema direita da OAS. Enquanto Cohen-Bendit era expulso da França, Georges Bidault poderia regressar e Raoul Salan era libertado da prisão.
Os dirigentes reformistas e estalinistas foram castigados por sua covardia e a classe dominante negou-lhes os postos que almejavam intensamente. A campanha eleitoral começou em 10 de junho. No primeiro turno das eleições, a federação dos partidos de esquerda e os comunistas perderam terreno. No segundo turno, uma semana mais tarde, os partidos de direita conseguiram uma esmagadora maioria. A esquerda perdeu 61 cadeiras e os comunistas 39. Pierre Mendés-France (uma figura histórica da esquerda francesa) não foi reeleito em Grenoble. O Partido Comunista, que em 1968 era o principal partido da classe trabalhadora francesa, entrou em declínio e foi superado mais tarde pelo Partido Socialista, que em 1968 conseguira apenas quatro por cento dos votos e, portanto, parecia morto. O sindicato comunista, CGT, perdeu apoio frente à CFDT que em 1968 manteve uma posição mais combativa.
O maravilhoso movimento dos trabalhadores terminou em derrota. Porém, as tradições de Maio de 1968 permanecem na consciência dos trabalhadores da França e do mundo. Hoje, depois de um longo período de boom, o sistema capitalista está entrando novamente em crise e sairão à superfície todas as contradições que se acumularam durante os últimos vinte anos. Em toda a Europa estarão na ordem do dia grandes enfrentamentos de classe.
Não temos tempo para aqueles ex-revolucionários pequeno-burgueses que falam de 1968 em termos sentimentais e nostálgicos, como se fosse história antiga sem relevância prática alguma para o mundo em que vivemos. Mais cedo ou mais tarde os acontecimentos de 1968 reaparecerão, mas em um nível inclusive superior. Qual é o candidato mais provável para este cenário? Poderia perfeitamente ser a França, mas também a Itália, Grécia, Portugal ou Espanha ou qualquer outro país, e não só na Europa. Esperamos com impaciência o futuro. Desejamo-lo e nos preparamos para ele. Estamos tentando preparar a vanguarda, assim da próxima vez triunfaremos. E diante deste glorioso aniversário dizemos: A revolução não morreu. Viva a revolução!