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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A batalha da esquerda e as redes sociais


Consideram-se redes sociais como Facebook e suportes como Youtube exemplos do grande alcance da democratização da informação, sem perceber que se tratam de empresas privadas que, por meio de uma tecla lá de seus centros de controle, podem eliminar um conteúdo subversivo e fazer desaparecer um usuário. Já há muitos casos para contar. Por Pascual Serrano, do Rebelión

Havana – As novas tecnologias, a internet e as redes sociais têm chegado à sociedade com uma auréola de democratização, participação e igualdade que levou concomitantemente uma fascinação progressista unida ao caráter inovador inerente da tecnologia. Não se trata somente de aparatos, suportes e formatos fascinantes tecnologicamente – como toda tecnologia inovadora –, mas que também adiante resultavam, quando igualitárias e baratas, libertadoras na medida em que pareciam romper o monopólio da difusão dos grandes grupos de comunicação e grandes empresas. Não se podia querer outra coisa. E não negaremos que parte de tudo isso é verdade. Mas a questão é que existem muito mais elementos ao redor das novas tecnologias para o que devemos estar preparados; e é necessário discutir criticamente esse mito progressista que envolve esse novo fenômeno comunicativo.

Devemos nos perguntar se as redes sociais são um instrumento de socialização ou, pelo contrário, de isolamento. Já sabemos que 39% dos usuários dessas redes passam mais tempo socializado por meio desses canais do que com outras pessoas, cara a cara. As motivações que levam ao uso da rede e seus conteúdos, o exibicionismo da intimidade, a vaidade e o egocentrismo são prioritários em redes como Facebook em detrimento do interesse de formar-se cultural ou intelectualmente. Pensa-se que os formatos dessas redes são um fenômeno de revolução popular com signo progressista, mas, como na maioria dos produtos culturais promovidos pelo mercado moderno, o domínio segue sendo o da frivolidade. Um estudo do Twitter mostrou, em 2012, que o os picos de atividade coincidiram com os gols da Eurocopa, quando os usuários o usaram para comemorá-los (veja nota 1 abaixo). O jogador Fernando Torres tinha 318.714 seguidores no Twitter, e o único tweet que tinha escrito na rede era um em inglês, meio ano antes, dizendo algo como “ainda não comecei no Twitter, mas esta é a minha página oficial e já está pronta para quando chegar o momento oportuno”. De modo que centenas de milhares de pessoas estavam seguindo alguém que nada dizia.

A importância que se dá às redes sociais é tal que dizem que alguns meios selecionam seus colaboradores e colunistas segundo o número de seguidores que têm nas redes sociais. O professor francês Salim Lamrani demonstrou que a blogueira anticastrista de fama mundial, Yoani Sánchez, colaboradora em muitos jornais europeus, tinha engordado seu Twitter com seguidores falsos.

O suposto igualitarismo democratizador das redes sociais tem tido, não se pode negar, elementos positivos, como o fim do oligopólio da agenda e seleção das informações dos grandes meios, mas também tem sua face negativa. Trata-se da ausência de bula que nos oriente para distinguir o valioso do irrelevante, o rigoroso do rumor, o verdadeiro do falso, o especialista do amador, a análise genial do comentário de bar. Que eu possa palpitar sobre política com a mesma autoridade que Kissinger ou de economia com a mesma contundência que Friedman pode nos deixar orgulhosos, os críticos do controle da informação por parte dos poderes, mas não supõe necessariamente substituir o pensamento dominante do establishment pelo pensamento alternativo crítico. A torrente da internet nos oferece sem distinção o estudo rigoroso, o dado valioso, o argumento elaborado, a tese paranoica sem fundamento, a descoberta falsa, a invenção de um testemunho, o megalomaníaco mentiroso, o presunçoso vão, a trivialidade. Não quero que me confundam e, assim, se pense que estou defendendo o elitismo. A história está repleta de supostos especialistas e doutos que eram na verdade medíocres, mas, para mudar e melhorar o mundo, é necessário se orientar em meio à névoa, e a balburdia pode ser tão estéril que também pode colaborar com a reação e impedir a mudança. Minha proposta não é renunciar às redes sociais e nem a outras muitas opções que nos abre a internet, mas sim ter suas limitações às claras e tentar corrigir a inconsistência de seus conteúdos, além do uso perverso majoritário que a sociedade está dando da elas.

Um objetivo ideológico
Temos que considerar que se é fato que a aparição da internet supõe uma liberdade de informação – e desinformação – sem precedentes e também supõe o fim do oligopólio da distribuição desta mesma informação, as grandes empresas de mídia seguem sendo desproporcionadamente poderosas na internet. As grandes empresas desenvolvem métodos de presença e influência esmagadora sobre o conteúdo: através de colaboradores pagos em fóruns e webs, mediante influência em sites de busca, mudanças em planos e tecnologias que desenvolvem seus projetos na internet. Tampouco esqueçamos que o mais lido na rede, quando falamos de informações, continuam sendo os grandes meios tradicionais, inclusive são os mais citados nas redes sociais. Segundo dados do Instituto Nielsen NetRatings publicados pelo ‘Le Monde’ e citados por Ignacio Romanet, "entre os duzentos sites de informação online mais visitados dos Estados Unidos, os meios tradicionais representam 67% do tráfego" e "80% dos links que encontramos em sites de informação, blogues ou redes sociais norte-americanos remetem a meios de comunicação tradicionais". Conclui Romanet que "na internet, o fenômeno da concentração de informação e da escassez do pluralismo, ainda que de natureza diferente, não é menos importante que a imprensa tradicional" (nota 2).

Por outro lado, e recordando a Guy Debord, o formato espetacular da imagem, cor, movimento, interação e superficialidade da informação atual já é, em si mesmo, ideologia: "O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta plenamente a essência de todo o sistema ideológico: empobrecimento, servidão e negação da vida real" (nota 3).

São numerosos os elementos de ideologização que encontramos nos novos formatos e o novo padrão informativo que se está impondo. Para começar, os métodos de busca já incorporam uma inclinação reacionária e conservadora. Seus critérios prezam o majoritário, o popular, o consenso dominante, náo só na hora de priorizar as temáticas, mas também as teses sobre os temas, os autores, os portais informativos. Numa biblioteca, encontra-se o livro do pensador reacionário ao lado de um pensador crítico, entretanto agora o Google nos oferece os primeiros dez links do autor e o meio dominante, já o alternativo ou contra-corrente aparece muito depois. Os grandes veículos podem dispor de técnicos e estratégias informáticas complexas para alcançar um bom posicionamento nos resultados de busca, em alguns casos incluem em seus conteúdos determinadas palavras que sabem que são as mais usadas pelos internautas. Temos assim, uma outra - e nova - forma de adulteração da informação que é utilizada para triunfar no Google.

Proprietários
Para nos inteirarmos do ideário dos principais interessados no novo modelo informativo tecnológico, podemos fazer uma revisão rápida dos acionistas das principais empresas, ou seja, quem financia e recebe benefícios desse mesmo modelo.

Em primeiro lugar temos a gigante Google, que é listada na Nasdaq e é proprietária, entre outras empresas e serviços, do Youtube e da Motorola Mobility. Entre seus acionistas, junto aos fundadores Sergey Brin y Larry Page, encontra-se Eric Schmidt, membro do Clube Bilderberg, que foi presidente e diretor geral da Google até abril de 2011. Também Ram Shriram, antes administrador da Netscape e da Amazon. Entre os investidores internacionais, basicamente se encontram grandes fundos de investimentos de capital de risco como FMR LLC, The Vanguard Group, Inc., State Street Corporation e outros mais.

Quanto ao Facebook, sabemos que colheu cerca de 18 bilhões de dólares com a abertura de seu capital na bolsa, operação esta gerida pelo banco Morgan Stanley, ao lado de Goldman Sachs e JP Morgan. Seu fundador, Mark Zuckerberg, possui 18,4% da companhia. Entre os principais acionistas e dirigentes, se encontra Goldman Sachs, um banco que, como recordamos bem, esteve envolvido na crise financeira dos EUA em 2008. Também esteve na origem da crise financeira da Grécia de 2010-2011, visto que ajudou a esconder o déficit das contas gregas do governo conservador. Outro acionista do Facebook é Erskine Bowles (também membro do grupo diretor), que ocupava alto cargo na administração Clinton e agora, na gestão Obama, é como presidente da Comissão Nacional de Responsabilidade Fiscal e Reforma. Além disso, é membro do grupo que administra a General Motors, Morgan Stanley e Norfolk Southern Corporation. Também temos a Sheryl Sandberg, que trabalhou para Google e para o Banco Mundial. Foi chefe de gabinete no Departamento do Tesouro na gestão Clinton. Pertence ao corpo da direção de empresas como Walt Disney e Starbucks. Além desses, Reed Hastings, diretor executivo da NetFlix (um provedor de internet estadunidense), e membro do conselho administrativo da Microsoft, sem contar do Facebook.

A maioria dos acionistas do Twitter vem de agências de capital de risco como Spark Capital, Union Square Ventures, Kleiner Perkinsm Benchmark Capital, Institutional Venture Partners, T. Rowe Price e DST Group. A empresa está obcecada para que não sejam mais de 500 acionistas para, assim, não ter que citá-los na bolsa e não trazê-los a público. Sabe-se que entre os acionistas do Twitter está o príncipe saudita Alwaleed bin Talal, que anunciou em dezembro de 2011 que tinha comprado uma participação de 300 milhões de dólares. O Skype foi comprado recentemente pela Microsoft e o Tuenti é propriedade, em sua maior parte, da Telefónica.

A tudo que listamos podemos adicionar os interesses empresariais dos consórcios de fabricação de celulares, a indústria da informática e as operadoras de telefonia e internet. Por trás das empresas dos novos formatos de comunicação, enfim, estão os grandes grupos de investimento mundiais junto com alguns multimilionários da nova economia, então é fácil deduzir a ideologia que vão promover.

Censura
A propriedade privada das empresas tecnológicas e seus suportes tecnológicos modernos permitem todo tipo de censura, que, assombrosamente, é aceito pela sociedade e poderes públicos. Consideram-se redes sociais como Facebook e suportes como Youtube exemplos do grande alcance na democratização da informação, sem perceber que se tratam de empresas privadas que, por meio de uma tecla lá de seus centros de controle, podem eliminar um conteúdo subversivo e fazer desaparecer um usuário, com a complacência de uma sociedade que nunca percebe que estamos ante um ataque à liberdade de expressão. O Facebook veta imagens que não o agrada e expulsa de suas páginas coletivos que lhe parece indesejáveis. Em junho de 2012, o Facebook censurou uma imagem de capa de perfil da revista de humor ‘El Jueves’, que fazia alusão a Merkel e Rajoy, e comunicou ao administrador que lhe tiraria o direito, por 30 dias, de poder subir qualquer conteúdo na rede social (nota 4). Se a revista continuava sendo distribuída com normalidade nas bancas e, em outro lado, na rede social Facebook não se permitia e se impedia o usuário de vê-la, estávamos sofrendo, a partir das mãos das redes sociais, um retrocesso da liberdade de expressão.

As notícias de grupos sociais que tem suas páginas eliminadas no Facebook são constantes. Em abril de 2011 vários coletivos que protestavam no Reino Unido contra os cortes do governo denunciaram o fechamento de suas páginas (nota 5). Neste mesmo mês, alguns ativistas espanhóis do 15M denunciaram que o anúncio de sua manifestação, com mais de 23 mil participantes confirmados, fora apagado de várias de suas páginas (nota 6). Youtube elimina vídeos baseado em qualquer argumento insustentável, como aconteceu com a conta do portal Cubadebate por um vídeo que denunciava o apoio financeiro que recebia o terrorista Luis Posada Carriles (nota 7), autor intelectual da explosão de um avião civil cubano que causou a morte de 73 pessoas. Outros usuários também denunciaram a desativação de vídeos do Youtube, bem como suas contas de usuário, argumentando que violavam direitos autorais, quando na verdade se tratavam de imagens de televisões públicas que as cedem para uso livre (nota 8).

As denúncias dos afetados nunca têm grande espectro nem qualquer viabilidade legal, posto que são empresas privadas que, com seu quase monopólio do serviço e com sua imagem internacional de comunicação gratuita e livre, aplicam a censura corriqueiramente. Por sua vez, os internautas cubanos denunciaram que o Google vetou aos habitantes deste país o uso do serviço Google Analytics, meio pelo qual os administradores de páginas na web têm acesso às estatísticas de visitação. No entanto, a empresa pode usar estes dados para seus cálculos e negócios (nota 9). É ingenuidade pensar que vão nos ceder suas logísticas, é como se um grupo de Panteras Negras quisesse se reunir num McDonalds. O modelo de funcionamento das redes pode ser evidentemente reacionário e conservador. Observemos, por exemplo, que no Facebook aparece sempre a opção "Curtir", mas não existe a correspondente "Não curtir". "Se trata de impedir, obviamente, a crítica a marcas e produtos que podem se tornar futuros anunciantes ou investidores. Mas também se inscreve completamente nesse ciberotimismo, por se incitar a produção constante (inteligência coletiva) e depreciar a crítica, e, sobretudo, a inação, a greve, a renúncia" (nota 10).

Ciberativismo
"O risco da internet é pensar que se vive a democracia de maneira direta, quando só é se trata de uma democracia virtual. Internet não é mais que a continuação da utopia de querer falar diretamente com o mundo todo; o problema é pensar que isso vai resolver nossos problemas reais" (nota 11).

Nosso ativismo político despenca por um declive para a virtualidade dos manifestos e empresas na rede, o sexo alcançou a higiene absoluta e a desinibição total graças ao mundo virtual, os amigos não mais estão no bar, mas no Facebook, e continuarão na rede ainda que morram amanhã. As vias são virtuais porque são as "vias da informação". Mas enquanto tudo isto acontece, as guerras e a fome nada virtuais, com seus mortos nada virtuais, armamentos e criminosos que as provoca, menos virtuais ainda, seguem existindo. Do mesmo modo, nosso salário e nossos serviços sociais estão sendo reduzidos, enquanto seguimos conectados ao mundo virtual.

A ofensiva tecnológica-virtual parece projetada para fugirmos da realidade autêntica e nos metermos numa realidade virtual para assim nos neutralizar. Existem jogos na internet para crianças – e adultos – que o sistema lhe premia com "créditos" para comprar objetos virtuais, depois de enviar uma mensagem de texto do celular com custo real. Isto é, troca-se com toda a inconsequência dinheiro real por virtual. Do mesmo modo atua grande parte da revolução tecnológica: rouba-nos a vida real, sobretudo se uma vida potencialmente crítica e subversiva, e nos dá em troca a vida virtual. Esse é um dos objetivos da assim chamada "brecha digital", enquanto pobres do mundo morrem de fome, os que têm de comer são detidos e levados ao mundo virtual, o mundo feliz de Aldous Huxley onde não terão de se preocupar com os pobres. Toda esta enxurrada tecnológica tem como resultado principal o isolamento do indivíduo.

Expor esta tese em Cuba, onde seus cidadãos sofrem grandes dificuldades para usar a internet, um resultado do bloqueio dos EUA que impede que a Ilha tenha acesso normal ao ciberespaço, pode parecer inoportuno, mas eu venho de uma Europa abduzida pelas redes sociais e acredito ser necessário alertar os cubanos sobre esta possibilidade.


Notas

[1] “Eurocopa 2012: Twitter celebra los goles de la televisión”. Periodistas 21, 2-7-2012 http://periodistas21.blogspot.com.es/2012/07/eurocopa-twitter-celebra-los-goles-de.html

[2] Ramonet, Ignacio. La explosión del periodismo. Clave Intelectual, Madrid, 2011.

[3] Debord, Guy. La sociedad del espectáculo. Pre-Textos, Valencia, 2010

[4] El Jueves, 14-6-2012 http://www.eljueves.es/2012/06/14/facebook_veta_nuestra_portada_merkel_rajoy_plan_sadomaso.html#

[5] The Guardian, 24-4-2012 http://www.guardian.co.uk/technology/2011/apr/29/facebook-accused-removing-activists-pages

[6] Barrapunto.com, 12-4-2011 http://barrapunto.com/~manje/journal/35852

[7] Cubadebate.cu, 13-1-2011 http://www.cubadebate.cu/noticias/2011/01/13/censura-de-youtube-a-cubadebate-desato-movimiento-solidario/

[8] lubrio.blogspot.com.es , 13-6-2012 http://lubrio.blogspot.com.es/2012/06/rcn-y-venevision-usan-youtube-para.html

[9] La pupila insomne. 19-6-2012 http://lapupilainsomne.wordpress.com/2012/06/19/google-roba-datos-de-sitios-cubanos/

[10] Baños Boncompain, Antonio, Posteconomía. Hacia un capitalismo feudal, Barcelona, Los libros del lince, 2012

[11] Citado por Rivière, Margarita. La fama. Iconos de la religión mediática. Crítica, Barcelona, 2009.

*A segunda parte deste texto será divulgada em breve

Tradução: Caio Sarack

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

‘Mídia brasileira ataca ´Ley de Medios` argentina por temer projeto semelhante no Brasil’

 Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA



Após cinco anos de sua idealização, a Argentina conseguiu concretizar a vigência de uma nova Lei de Mídia, redigida a fim de regulamentar a arena das comunicações e reordenar a ocupação do espectro eletromagnético, quebrando os monopólios da mídia comercial. Neste contexto, vários anos se passaram com os mesmos grupos empresariais dominantes bombardeando o governo de Cristina Kirchner, que estaria a “atentar contra a liberdade de expressão”.

Dessa forma, é para elucidar a chamada Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais que o Correio da Cidadania entrevistou o estudioso das comunicações, e editor da revista Caros Amigos, Laurindo Lalo Leal Filho. Com anos de estudo sobre os diferentes níveis de regulação midiática encontrados mundo afora, Lalo assegura que a nova lei é da mais alta consistência, além de amplamente debatida na sociedade: “são dois os grandes aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política”.

Como se trata de uma legislação que assegura grande parte das concessões audiovisuais para veículos de comunicação estatais e comunitários, abrindo grande campo para que movimentos e expressões sociais, inclusive minoritários, se manifestem, não foi nada imprevisível o rancor da mídia burguesa, cujos veículos comerciais se apresentam como únicos arautos da democracia.

“A Sociedade Interamericana de Imprensa (órgão que representa a mídia comercial nas Américas) é uma organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações sobre as quais ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa”.

Para avançarmos no debate da democratização das comunicações, Laurindo Lalo também recomenda que a lei argentina seja estudada nas escolas de comunicação do país, o que poderá gerar uma real compreensão de sua importância. Uma boa saída para o Brasil, haja vista nosso atual estágio de monopólio midiático, ao lado das dificuldades a serem enfrentadas para a aprovação de uma lei com tal conteúdo em um Congresso densamente permeado pelos interesses dos donos de concessões rádio-televisivas.

“Acredito que não só este governo, mas todos têm um receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. É uma disputa bastante difícil, mas que aqui no Brasil já está passando da hora”.

A entrevista completa com o jornalista pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o projeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais, promulgada pelo governo argentino em 2009 e que passou a vigorar a partir do último dia 7 de dezembro, ainda que sob embargo de instâncias intermediárias da justiça local?

Laurindo Lalo Leal Filho: Por ora está embargado, é preciso aguardar um pouco, mas nos próximos tempos devemos ter nova decisão. De toda forma, avalio que essa lei de regulação audiovisual é a mais moderna e avançada de todo o mundo no momento. Serve como exemplo para a América Latina. São dois os objetos centrais da formulação da lei – de 2007. O primeiro é de que foi construída a partir de uma ampla análise jurídica e até acadêmica das legislações hoje existentes em países democráticos de todo o mundo, em relação à radiodifusão. Ela incorpora o que há de mais moderno e avançado em legislações da Europa, EUA e até América Latina.

A lei é muito consistente do ponto de vista teórico, pois, incorporando um pouco de cada uma das leis estudadas, avança para além delas, inclusive sobre os recentes avanços tecnológicos, respondendo também às exigências tecnológicas de hoje. Tenho dito que é muito importante que as escolas de comunicações estudem essa lei, discutindo-a com seus alunos, pois a partir daí vão descobrir como os países democráticos estão estruturados para dar conta das novas tecnologias da comunicação hoje em dia, no campo do audiovisual.

O segundo aspecto que dá consistência à lei é o fato de ter sido formulada através de um amplo debate na sociedade. É uma lei claramente construída de baixo pra cima. Quem tiver paciência de olhá-la por inteiro, poderá perceber que vários artigos e determinações são oriundos de propostas feitas por entidades do movimento social, dentre outras representações da sociedade, incluindo empresariais. Não foi formulada por um grupo fechado, de políticos ou acadêmicos, e imposta à sociedade. Começou com algumas e chegou, ao final de sua elaboração, a contar com praticamente 300 organizações sociais. É uma lei amplamente democrática, consolidada a partir da vontade popular.

Portanto, são dois os grandes aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política.

Correio da Cidadania: A seu ver, quais são os pontos mais importantes e que justificariam a aprovação da “Ley de Medios”?

Laurindo Lalo Leal Filho: O primeiro e mais polêmico, que segue dando pano pra manga e foi o que mais dificultou a aprovação da lei, é aquele que rompe um processo não só argentino, mas latino-americano, de concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos. Esse é o aspecto central, pois faz com que a lei amplie a liberdade de expressão na Argentina. Ou seja, um espectro eletromagnético hoje ocupado por poucos grupos passa a ser ocupado por um número maior de atores. Setores da sociedade que estão calados por não terem espaço de colocarem suas vozes terão agora a oportunidade. Como diz o documento “Hablemos todos”, todos têm o direito de falar.

Assim, esse é o aspecto prático mais importante da lei, dividindo o espectro de forma mais equilibrada, seja para as emissoras públicas, estatais ou comerciais. É uma lei que amplia a liberdade de expressão ao mesmo tempo em que quebra monopólios. Isso tem um desdobramento político muito importante porque representa um aprofundamento da democracia. Não é só uma questão do campo das comunicações. Quando se amplia o número de vozes, idéias e valores, amplia-se a participação democrática da sociedade. Exemplo disso é o ponto que garante o espaço também para os grupos originários, como o de Bariloche, cujo grupo de habitantes de povos originários está colocando no ar sua emissora de TV. Um grupo que sempre esteve calado. Mas, com um terço do espaço reservado às emissoras públicas, agora também poderão falar à sociedade.

Portanto, esse é o aspecto fundamental, a voz a setores sempre silenciados. Mas existem outros, como a garantia da produção nacional, o que abre espaço a muitos grupos que querem mostrar seu trabalho. Há a classificação indicativa estabelecida em lei, porcentagens máximas de publicidade, enfim, uma série de aspectos, todos voltados não só ao aumento da participação pública, mas também à qualidade do que é oferecido ao público.

Correio da Cidadania: Como se viu, é necessário um grande movimento para levar adiante um combate aos monopólios midiáticos, tocando fortes interesses políticos e econômicos com diversos tentáculos de influência. O que teria a dizer, neste sentido, da decisão parcial da justiça de permitir que o grupo Clarín siga adiando seu processo de desmembramento, no qual deve abrir mão de boa parte de seus veículos de comunicação?

Laurindo Lalo Leal Filho: O grupo Clarín, como o grupo Globo aqui, foi ocupando os espaços, gradativamente, pela falta de uma presença mais forte do Estado na regulação. Quando o espaço estava vazio, era como um terreno baldio, e foi se criando o latifúndio. E depois se consolidou um grupo muito forte, como se viu, com 240 concessões de TV a cabo, 4 de TVs abertas, 9 emissoras de rádio AM e FM... É um grupo que tem um poder econômico e político muito grande.

Se fosse qualquer outro ramo social ou comercial, poderia ter só o poder econômico. O problema nas comunicações é que, quando se detém o poder econômico, também se detém o poder político. É um poder muito grande, que sempre se confrontou com o Estado, jogando muita influência sobre os outros poderes, isto é, o legislativo e judiciário. O poder judiciário também sofre muitas pressões do grupo Clarín. A lei foi promulgada em outubro de 2009 e até agora não se conseguiu aplicá-la pelas diversas ações promovidas pelo grupo Clarín sobre os vários poderes.

Superados pelo executivo e legislativo, que já deram vigência à lei (o judiciário também, em suas instâncias maiores), restam as instâncias intermediárias do judiciário para pressionar e conseguir recursos no sentido de adiar a aplicação da lei. O que acontece agora é uma disputa entre um grupo poderoso e os poderes da República.

Correio da Cidadania: O que você responderia aos setores críticos da lei, inclusive aqueles do próprio meio midiático, como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)?

Laurindo Lalo Leal Filho: A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) é uma organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações que ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa. Quer defender os mercados nos quais atua. Portanto, não tem sustentação política alguma.

É uma organização comercial, que tem a sustentá-la empresas comerciais da América que sempre sustentaram governos conservadores e até ditaduras. As ditaduras da América latina, dos jornais e da própria SIP. Basta lembrar que ela foi fundada durante a ditadura de Fulgencio Batista, antes da revolução cubana. Tem uma articulação com os regimes conservadores de direita muito grande.

Na verdade, quando esses governos populares da América Latina – como os da Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela – começaram a colocar algum limite ao poder de seus filiados, a SIP obviamente saiu em defesa deles. Mas é uma defesa de mercado, não tem nada a ver com cidadania, liberdade de expressão, de imprensa. Tem a ver com os interesses comerciais das empresas que a SIP representa.

Correio da Cidadania: Ainda quanto às críticas à nova lei, e talvez nesse mesmo sentido explicado, a maioria dos meios de comunicação de nosso país bombardeia que, a despeito de serem razoáveis as precauções contra o monopólio das comunicações, o que se vê na Argentina é uma “descarada perseguição movida pela presidente Cristina Kirchner contra um grupo de mídia, o Clarín, cujo principal pecado é publicar reportagens e opiniões que a desagradam” (segundo Editorial da Folha de S. Paulo, 09/12/2012). O que diria frente a um argumento desta natureza?

Laurindo Lalo Leal Filho: É uma forma de distorcer o debate, ofuscar o debate real. A mídia ressalta essa divergência existente entre o governo e o grupo Clarín para esconder a realidade da lei, que é a ampliação da liberdade de expressão. Pegam um aspecto – o confronto – e o colocam em destaque. O grupo Clarín representa hoje a oposição política ao governo Cristina. Mas isso é um aspecto parcial, é direito deles fazer oposição ao governo. Isso não tem nada a ver com uma questão muito maior, o debate em torno da ampliação do espaço para outras vozes e grupos, a fim de que possam estes também se manifestar.

Pra deixar claro, a lei não toca em momento algum nos meios impressos. É uma lei de comunicação audiovisual. E quando os jornais, como Folha, Estadão e Globo, falam em “ataques do governo ao Clarín” parece que o governo argentino está querendo intervir no jornal Clarín. Este jornal continuará fazendo o que faz hoje, com liberdade total. O que acontecerá com a aplicação da lei é que o grupo Clarín, não o jornal, será obrigado a abrir mão de licenças de rádio e TV que vão além do limite estabelecido pela lei.

Creio ser um aspecto importante porque aqui no Brasil os meios de comunicação gostam de misturar mídia impressa com eletrônica. A lei argentina é sobre a mídia eletrônica. A lei de mídia que se começa a discutir no Brasil também é sobre a mídia eletrônica. Porque a nossa lei é de 1962. O que esses grupos brasileiros fazem, para atacarem a Ley de Medios argentina, na verdade revela seu temor de que o exemplo argentino sirva de inspiração para os movimentos populares do Brasil e leve, finalmente, o governo a apresentar projeto de lei semelhante. O governo Lula, no final de seu segundo governo, através de seu ministro Franklin Martins, chegou a deixar pronto o projeto de lei, repassado ao governo Dilma para ser levado ao Congresso, guardando semelhanças com a Ley de Medios argentina.

Portanto, a carga que a mídia brasileira traz sobre o projeto argentino é uma forma de tentar evitar uma “contaminação” no cenário brasileiro pelo avanço ocorrido na Argentina.

Correio da Cidadania: E trazendo o assunto para o Brasil, como acredita que deveríamos olhar para a lei argentina e que tipo de debate podemos levar adiante?

Laurindo Lalo Leal Filho: Já cansamos de falar, mas o Brasil está atrasado em mais de 50 anos. A lei brasileira das comunicações é de 1962, assinada por João Goulart, e mesmo assim houve uma série de vetos deste governo, que foram derrubados por um Congresso onde os rádiodifusores tinham domínio total - como continuam tendo, configurando o poder que sempre se contrapôs ao avanço de uma legislação da área no Brasil.

Temos muita dificuldade em avançar porque essa é uma questão que ainda não está enraizada no Brasil. Não temos massa crítica para um debate público e popular, como o que existe na Argentina. Mas estamos avançando. Se formos pensar em quinze anos atrás, não tínhamos o debate que hoje já temos. O principal exemplo foi a realização da Conferência Nacional das Comunicações, no final de 2009, que mobilizou entidades da sociedade em número já razoável, indo além dos debatedores tradicionais, que eram as universidades, os sindicatos... Hoje não, temos associações de classe, mulheres, movimento negro, movimentos sociais, entidades regionais, que já começam a discutir pelo país a criação de uma Lei de Mídia.

O caminho para acompanharmos esse processo natural é mais ou menos o modelo argentino. É preciso enraizar socialmente o debate, mas é preciso também contar com o governo. Apesar de toda essa participação popular, o impulso final foi dado pelo governo de Cristina Kirchner, que sem dúvida alguma sancionou a lei usando, principalmente, os canais públicos de rádio e TV para conseguir levar o debate à sociedade. Enquanto isso não acontecer, fica muito difícil para o cidadão comum entender o que significa uma lei dessas.

Correio da Cidadania: Como analisa o governo brasileiro em sua atuação no campo das comunicações e sua relação com os grupos midiáticos?

Laurindo Lalo Leal Filho: Acredito que não só este governo, mas todos têm um receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Escrevi um artigo chamado “A síndrome Jango, aos 50”, no qual coloco que o fato de os grupos de comunicação terem praticamente empurrado pra rua o governo Jango, colaborando muito para o golpe de 64, que depois sustentaram, fez com que todos os governos de lá pra cá tenham muitos cuidados, estejam sempre cheios de dedos para dialogar com a mídia. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. Não só esse, mas todos os governos sempre tiveram um receio muito grande de ir à frente com um debate pra colocar a mídia e, principalmente, os meios eletrônicos em um enquadramento democrático.

Podemos perceber algumas pesquisas que mostram que, desde 1988, da Constituinte pra cá, já foram elaborados 20 projetos de lei pelos governos, mas que nunca foram colocados em debate na sociedade, muito menos levados ao Congresso Nacional. Pois, em determinado momento da discussão, vinha a ameaça de que o governo poderia ser alvo de uma campanha difamatória muito grande, que poderia até levá-los à desestabilização.

Portanto, é uma disputa muito delicada, sendo necessária uma vontade política muito grande. Mas essa vontade é necessária. E para ser vitoriosa, não basta que seja vontade política dos governos. É preciso que seja combinada com os movimentos sociais. É uma disputa bastante difícil, mas que aqui no Brasil já está passando da hora.

Correio da Cidadania: Acredita que o governo Dilma possa se espelhar no exemplo argentino e buscar caminhos para uma maior democratização do espectro midiático, tão dependente de poucos grupos empresariais?

Laurindo Lalo Leal Filho: Tenho visto a presidente Dilma tomar medidas que antes a gente achava impossíveis de serem tomadas. São os casos da redução da taxa de juros e agora da redução da tarifa da energia elétrica – mais a disputa que trava agora com as três empresas elétricas controladas pelo PSDB. Ela mostra muita coragem nesses enfrentamentos. Não posso descartar essa possibilidade, ainda mais agora que percebemos que ela tem uma estreita relação com a Cristina Kirchner. Assim, parece-me que a Dilma acompanha bem de perto o que acontece lá com a Ley de Medios. Acredito que o exemplo ela tem, o modelo está traçado. O modelo argentino cabe perfeitamente no Brasil, com pequenas adaptações.

É difícil dizer se fará ou não. É difícil acreditar totalmente porque o Brasil tem uma dificuldade a mais: a presença no Congresso Nacional de muitos parlamentares radiodifusores, ou seus representantes, e que fazem parte da base de apoio ao governo, principalmente dentro do PMDB. Esta é uma dificuldade real, coisa que na Argentina acabou sendo enfrentada, e a lei passou.

Não sei até que ponto o governo teria possibilidade de ir à frente numa lei de mídia contando com tal base de sustentação política no Congresso. É luta política, de conquista de apoio, indo à frente e enfrentando essa dificuldade. É muito difícil saber se será possível travá-la no primeiro mandato de Dilma, embora o movimento social e a luta pela democratização da comunicação já tenham claro que estamos muito atrasados, e ficaremos cada vez mais em relação a outros países latino-americanos.

Correio da Cidadania: Em sua opinião, quais seriam os pontos mais importantes de uma imaginária “Ley de Medios à brasileira”?

Laurindo Lalo Leal Filho: Sem dúvidas, tal como lá, um ponto é a divisão do espectro para ampliar a participação de outras vozes no debate político e cultural brasileiro. Em outras palavras, enfrentar o monopólio. Estabelecer limites máximos pra que grupos econômicos tenham determinado número de concessões de rádio e TV, permitindo que outros grupos da sociedade civil possam participar das disputas. Creio ser esta a questão central, tanto na Argentina como no Brasil.

E temos de ir além, porque o Brasil, com as dimensões continentais que tem, necessita de uma lei que dê conta de uma difusão maior nas concessões, estimulando a produção regional. Isso porque tivemos não só a concentração dos meios nas mãos de poucas empresas, mas também uma concentração regional dos meios, determinando que todas as pautas e valores que circulam pelo país continuem sendo produzidos no eixo Rio-São Paulo, passando um pouco por Brasília. A regionalização é fundamental e a lei precisa dar conta disso.

Além do mais, há outras coisas importantes, que nada mais são que a necessidade de regulamentar a Constituição Federal brasileira. A lei tem de vir pra regulamentar artigos da Constituição que garantem uma maior democratização da comunicação e que até hoje não foram colocados em prática. Tem a ver com a regionalização, tem a ver com cotas pra produção nacional, cotas pra produção independente... A lei deve dar conta de tudo isso, para que a comunicação seja algo de todos para todos, e não como é hoje, (feita) de poucos para muitos.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Para conhecer Outro Israel – o que luta pela paz


ESCRITO POR SERGIO STORCH   


O Brasil teve o privilégio de abrigar, na semana passada, o Fórum Social Mundial pela Palestina Livre (FSMPL), na cidade-berço dessa invenção que está na raiz do pensamento de uma nova cultura política. Lá se vão quase 13 anos desde que criamos este campo de novas possibilidades: “um outro mundo é possível”, conforme o dístico criado em sua fundação. Para alcançar o sentido da importância deste Fórum pela Palestina é importante lembrar a origem do FSM, nascido em 2001 por iniciativa de um grupo de brasileiros, bem conhecidos na nossa sociedade civil, desde a resistência à ditadura militar.

A este Fórum pela Palestina reagiram, apreensivos com possíveis impactos de protestos e manifestações, setores hegemônicos da comunidade judaica brasileira, manifestando pela mídia críticas aos governos federal, estadual e municipal de Porto Alegre, por apoiarem esse evento que, numa visão cartesiana, aparenta desafinação em relação ao discurso de equidistância dos polos do conflito: Israel e Palestina.

É, pois, oportuno registrar a existência de uma outra visão judaica. É bem antiga, remontando aos valores já expressos no Pentateuco, que trouxe em sua legislação o reconhecimento do outro, dos seus direitos e da responsabilidade de cada indivíduo com todos os demais, de seu povo ou estrangeiros. “V’ahavta l’reacha kamocha” (amai ao próximo como a ti mesmo) está nos ensinamentos da Torá, conforme o Rabi Akiva, ícone da ética judaica. Não há nada a temer. Rancor contra Israel haverá, podendo por vezes resvalar para chamamentos à destruição do país e para o antissemitismo rasteiro, como derivação de ignorância que existe de forma recíproca também da parte dos que apoiam incondicionalmente Israel. Todos conhecemos muito pouco de nossas matrizes e histórias, tanto das nossas quanto as dos outros povos. Aos que criticam o FSMPL e os governos que o acolhem, é bom estudarem um pouco.

E aqui vão algumas informações úteis para os que a ele se opõem precipitadamente ao FSMPL. As comunidades judaicas em todo o mundo enfrentam fissuras na pretensa unidade que lideranças institucionais procuram aparentar, tentando cobrir o sol com a peneira. Em Israel, o debate livre pela imprensa é a maior evidência.

Há um abismo, separando ao menos metade da sociedade israelense (que, segundo as pesquisas, apoiam a solução de Dois Estados) dos seguidores da coalizão de direita que está no governo há três anos. É bom lembrar que, em mandato anterior (1996-1999), o primeiro-ministro Benyamin Netanyahu já havia atentado contra os acordos celebrados em Oslo (1993), com o palestino Yasser Arafat, por seus adversários israelenses, Itzhak Rabin e Shimon Peres (atual presidente do país, de oposição). As seguidas procrastinações de Netanyahu, e as provocações feitas por ele, ao ampliarem os assentamentos de colonos judeus em territórios palestinos ocupados, fizeram vencer, à época, o prazo de cinco anos fixado em Oslo para um acordo de paz permanente.

Surgiu, em consequência, uma insatisfação crescente entre as massas palestinas, que explodiu, já de forma incontrolável, na segunda Intifada, no ano 2000. O primeiro-ministro é um personagem de convicções inabaláveis e perseverantes, que não hesita em abusar da memória de tragédias históricas sofridas pelos judeus para justificar uma estratégia míope, baseada tão somente na força militar.

A extensão do abismo que existe em Israel, e não é novo, pode ser apreciada por este trecho de uma carta de Leah Rabin (viúva de Itzhak Rabin, assassinado por um extremista judeu em 1995), na época do primeiro mandato do atual chefe de governo: “Netanyahu é um mentiroso corrupto que está destruindo tudo que nossa sociedade tem de bom”. (...) Netanyahu e seu governo não representam uma unidade dos judeus israelenses, nem tampouco dos judeus na maior comunidade da Diáspora, a estadunidense”.

Há um olhar judaico em Israel que busca – e encontra – o parceiro palestino. Ao contrário da propaganda desse governo manipulador do medo e da insegurança, que martela a ideia de que não existem parceiros para a paz, há inúmeros exemplos de parcerias. O escritor e jornalista israelense Amos Oz colabora com o filósofo palestino Sari Nusseibeh, reitor da universidade Al-Quds. O músico Daniel Barenboim teve como parceiro o maior intelectual palestino, Edward Said, para a formação da sua orquestra de jovens israelenses e árabes, hoje mantida pelo governo da Andaluzia, na Espanha. A cantora israelense Noa canta com sua amiga palestina Mira Awad. Há ex-soldados israelenses e ex-militantes palestinos da luta armada que se encontram no Combatants for Peace. O líder de direitos humanos Edward Kaufman (que levamos no dia 20/11 ao Itamaraty) leciona com um parceiro palestino sobre direitos humanos e resolução de conflitos (seu amigo Manuel Hassassian é embaixador da Autoridade Palestina na Inglaterra).

Nada mais falso do que a mistificação de que não há parceiros para a paz. Há 130 ONGs em que atuam ombro a ombro israelenses e palestinos na defesa dos direitos violentados pelas políticas dos governos israelenses, desde a detenção de prisioneiros sem culpa formada por tempo indeterminado, até a desobediência civil de mulheres israelenses que regularmente contrabandeiam mulheres palestinas para tomarem banho de mar em Tel Aviv ou Haifa.

Falemos da maior comunidade da Diáspora judaica, a estadunidense, cuja população (5 milhões) não é muito menor que a judaica israelense (6 milhões). A tradição liberal dessa comunidade, que teve líderes marchando ao lado de Martin Luther King nos anos 1960 e combatendo à guerra do Vietnã nos anos 70, se expressa hoje em organizações como o Jewish Voice for Peace(do qual rabinos participaram das flotilhas que chamaram a atenção do mundo para o bloqueio israelense a Gaza), o Tikkun (liderado pelo rabino Michael Lerner, que é ativista pela paz desde a resistência à guerra do Vietnã), e o JStreet, um lobby judaico no Congresso que se opõe ao mal-denominado “lobby sionista”, a AIPAC (The American Israel Public Affairs Committee).

Vale destacar que este último, embora financeiramente forte, é tão pouco representativo da maioria da comunidade judaica que sua campanha ostensiva por Mitt Romney nas últimas eleições (doação US$ 100 milhões só da parte do seu presidente, Sheldon Adelson, magnata dos cassinos de Las Vegas) foi respondida pela maioria, de 70%, do voto judaico em favor de Barack Obama. Esse lobby vem corroendo por dentro a democracia israelense, com o investimento em mídia impressa que hoje domina 90% dos leitores do país. E é abertamente aliado a outra força das mais retrógradas da sociedade estadunidense, o chamado “sionismo cristão”, dos fundamentalistas evangélicos, no qual atuam figuras do Tea Party que, como o ex-candidato Glenn Beck, vão a Israel para incitar à distância os seus seguidores nos Estados Unidos (vercomentário na imprensa israelense. A nata da extrema direita norte-americana tem a AIPAC como instrumento. Não pode ser denominada “lobby sionista” ou “lobby judaico”, pois nessa complexa sociedade há revistas progressistas de um século ou mais – The NationForward etc. –, povoadas por judeus destacados).

O anti-lobby JStreet (abreviação de Jewish Street, ou seja, a “rua judaica”) está no seu quarto ano de existência, e tem realizações constantes ao trazer para contato com congressistas e secretários de Obama pessoas eminentes de Israel, que incluem até mesmo generais e oficiais de alto escalão dos serviços de inteligência. Comparecem para demonstrar à opinião pública e aos políticos dos EUA a importância de pressionar o governo israelense no sentido de mudar de direção.

A arrogância dos próceres da diplomacia israelense, hoje chefiada por um ministro que lidera a extrema-direita no país, e visto por muitos embaixadores como destruidor de competências que Israel chegou a ter com figuras lendárias como Abba Eban, vai a ponto de pressionarem governos do Ocidente a não reconhecerem aos palestinos sequer o direito de fazerem parte de instituições como a Unesco. Atribuem ao terrorismo palestino uma natureza cultural dos muçulmanos, enquanto fecham aos palestinos os caminhos do combate não violento pelos seus direitos.

Vale ressaltar a linguagem eivada de ironia e intervencionismo, como a expressa nesta frase de um adido israelense ao Uruguai, por ocasião da celebração de acordo do Mercosul com a Autoridade Palestina: “o acordo do bloco do Cone Sul com a Palestina não é a melhor forma de estimular o processo de paz no Oriente Médio”. Qual seria a alternativa? Aprofundar oapartheid na zona C da Cisjordânia, com a construção de mais colônias de ocupação, enquanto não se dão licenças de construção para os moradores palestinos?

A realização bem-sucedida do Fórum Social Mundial pela Palestina Livre abre, no Brasil, uma oportunidade rara. Permite que brasileiros — de origem judaica, árabe ou qualquer outra — proponham um novo olhar: uma mirada de ação afirmativa que, em vez de recusar os direitos de um ou de outro lado, afirme e defenda esses direitos.

A primeira ação, que pode ter efeitos contínuos e duradouros, pode ser a proposta de um tratamento Fair Trade (Comércio Justo) para o azeite de oliva palestino. Chegaria às mesas de brasileiros dispostos a lutar pela paz. Permitiria, além de consumir um produto de qualidade e repleto de simbologia, estimular contatos com os que o produzem — desde o cultivo das oliveiras à industrialização artesanal. Lembraria que a oliveira, símbolo da paz, é plantada por gente comum que zela pela subsistência de suas famílias, e arrancada às vezes por vândalos, ou destruída por bulldozers que fazem a preparação do terreno para construção do muro de separação.

Importar e distribuir o azeite palestino será trazer ao conhecimento do consumidor-cidadão a existência de filmes como Budrus, que mostram a realidade na escala do humano de palestinos que resistem de forma não violenta, apoiados por israelenses com esse outro olhar.

Há inúmeras formas de intervirmos – nós, brasileiros – com uma pauta de ações afirmativas, no programa “Lado a lado: a construção da paz no Oriente Médio – um papel para as Diásporas”, lançado pelo Itamaraty e que certamente contará, mais cedo ou mais tarde, com apoio das lideranças judaicas mais esclarecidas.

Temos uma grande vantagem: é muito mais fácil arregimentarmos num movimento nesse sentido setores crescentes de uma comunidade pequena – e em certos aspectos provinciana, de 100 mil pessoas – do que seria possível na maior comunidade judaica, 50 vezes maior.

A oportunidade está à nossa frente. Em termos judaicos, poder-se-ia dizer que o Fórum Social Mundial está às vésperas de celebrar o seu Bar Mitzvá, o ritual que marca a passagem dos jovens para a responsabilidade moral pelos seus atos, aos 13 anos. Que possamos amadurecer ações afirmativas para celebrá-las no 13º FSM, na Tunísia, em abril de 2013.

Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve em Outras Palavras a coluna Outro Israel

sábado, 17 de novembro de 2012

O que está por trás dos novos ataques sionistas?

   


 
DIARIOLIBERDADE.ORG
Avigdor LiebermanIsrael - PCO - Perante as eleições de janeiro de 2013, a direita sionista tenta criar um fato contra a população de Gaza, que vive num cárcere a céu aberto, para calar a voz de qualquer oposição e manter a bilionária ajuda dos EUA.

Os sionistas israelenses empreenderam uma nova agressão em larga escala contra os palestinos da Faixa de Gaza. A imprensa burguesa, seguindo o roteiro de sempre, se apressou a justificar a ação e a culpar o Hamas e os militantes de outros grupos da resistência por ter lançado foguetes contra as cidades de Israel. Mas além da versão sionista e do imperialismo, o que realmente está acontecendo em Gaza e por quê?
O primeiro ponto que deve ser destacado são as eleições gerais que acontecerão em Israel no próximo mês de janeiro. A direita sionista, liderada pelo primeiro ministro Benjamin Netanyahu, busca gerar um barulho diversionista e, principalmente, distrair a atenção do aprofundamento da crise capitalista no País, silenciando os setores oposicionistas, em cima do aumento da histeria sobre os “terroristas islâmicos” e os perigos aos quais a “democrática” nação judia está submetida.
Ao mesmo tempo, a agressão ajuda aumentar a pressão dos lobistas sionistas sobre o governo Obama para que a ajuda militar, que soma em torno de US$ 3 bilhões, seja mantida no contexto das discussões sobre o chamado “abismo fiscal” e os cortes no orçamento público. O cinismo é recorrente. Após os sionistas atacarem e arrasarem o sul do Líbano em 2006, mas tendo sido derrotados, na prática, pelas milícias do Hizbolá, o governo norte-americano liberou uma ajuda bilionária especial para reconstruir as localidades que sofreram danos no norte de Israel, enquanto as Nações Unidas chamaram a desarmar o Hizbolá.
Os especuladores financeiros também agradecem à nova agressão, pois ajudou a segurar os preços do petróleo que há mais de uma semana tinham caído abaixo de US$ 110 o barril, o que hoje tem um enorme impacto devido ao esgotamento da especulação financeira nos mercados futuros de commodities provocada pela queda dos preços das matérias primas minerais e, nas últimas semanas, também de algumas matérias primas agrícolas, como a soja. 
Como a nova ofensiva iniciou e por quê o líder militar do Hamas foi assassinado?
Durante os últimos meses, tinham acontecido vários ataques da aviação israelense que a resistência tinha respondido basicamente com o lançamento de mísseis a Israel.
O Hamas e o grupo Jihad Islâmica buscaram uma trégua com o governo sionista, com a intermediação do governo do Egito. O primeiro ministro de Gaza, Ismail Haniyed, chegou a declarar, no dia 12 de novembro, a satisfação pelo fato dos principais grupos da resistência terem concordado com a trégua. A própria imprensa noticiou as declarações, começando pela agência Reuters no dia seguinte.
Umas horas mais tarde, o exército sionista assassinou o chefe da brigada al-Qassam, o braço militar do Hamas, Ahmad al-Jaffari, lançando um míssil contra o seu automóvel. al-Jaffari tenha sido um dos principais orquestradores da trégua com Israel e um elemento moderado do Hamas. Pouco antes dele ter sido morto, de acordo com o jornal israelense Haaretz e confirmado em blogs de ativistas palestinos, al-Jaffari tinha recebido uma primeira versão de um acordo de cesse ao fogo a longo prazo proposto pelos principais grupos da resistência palestina. Apesar da propaganda sionista, al-Jaffari era tido como uma espécie de “empreiteiro” político de Israel na Faixa de Gaza, durante os últimos cinco anos e meio, com a condição de que mantivesse a segurança sob controle. Ou seja, o governo israelense queria evitar a trégua e detonar uma guerra em condições favoráveis.
Não é a primeira vez que os sionistas “fabricam” uma crise para justificar massacres contra a população palestina com o objetivo de encobrir interesses escusos. O fizeram em dezembro de 2008, por exemplo, numa operação que, em dois meses, matou 1.400 palestinos. Desta vez, também vários civis têm sido mortos ou feridos, inclusive o filho de um fotografo da BBC, que tinha menos de dois anos de idade. Vários outros casos gritantes foram praticamente silenciados pela imprensa burguesa, como o do menino de 13 anos de idade, Hameed Abu Daqqa, que foi atingido no estômago, enquanto jogava futebol com os amigos, desde um helicóptero. 
Por quê Gaza?
De fato, o verdadeiro interesse da direita sionista enlouquecida, liderada por Netanyahu, gostaria de atacar o Irã, pois o impacto seria muito maior. Até o exército e o Massad rejeitaram a ideia nos últimos meses, segundo foi amplamente divulgado na imprensa burguesa. Por esse mmotivo, a aposta era a eleição do candidato republicano Mitt Romney, nos EUA.
A vitória de Obama levou a questão do Irã novamente aos trilhos diplomáticos e distanciou a possibilidade de uma agressão militar. Este inclusive foi um dos motivos pelos quais setores majoritários da burguesia imperialista apoiaram Obama – até figuras republicanas bem direitistas, como o prefeito de Nova Iorque, Bloomberg, o governador de New Jersey, Richie, e a revista The Economist apoiaram publicamente Obama.
O regime dos aiatolás do Irã está muito longe de representar uma ameaça importante para o imperialismo e os sionistas. O programa nuclear também não representa uma ameaça nuclear real por vários motivos – as negociações, para o uso nuclear civil, que começaram a ser intermediadas pelo governo Lula e o governo turco, em 2010, tinham sido encomendadas pelo próprio Obama, mas logo a seguir desautorizadas pelo forte lobbysionista. Por trás estão os interesses dos setores ligados ao setor de armamentos nos EUA, os especuladores que dependem dos altos preços do petróleo e a direita israelense que depende das fartas ajudas dos EUA.
Mas um ataque sionista ao Irã poderia ser uma operação suicida e incendiar o Oriente Médio.  As próprias tentativas de sufocar as revoluções árabes pela via democrática (Tunísia, Egito e Iêmen), pelo controle militar das milícias (Líbia e Síria), ou mesmo pela força militar direta (Bahrein), poderiam facilmente sair do controle imperialista e provocar a escalada do ascenso revolucionário na região, que é responsável pela maior parte da produção mundial de petróleo e pelos próprios petrodólares – base da ditadura do dólar e da especulação financeira.
A chamada operação “Pilar das Nuvem” contra a Faixa de Gaza, que a imprensa sionista e imperialista apresentam como uma espécie de base avançada do Irã, teria o mesmo objetivo, numa escala muito menor, mas com riscos muito menores, simplesmente confrontando uma população indefesa, cercada, que vive numa espécie de prisão a céu aberto, com baixa capacidade de reação contra uma das mais poderosas máquinas de guerra em escala mundial.
A tentativa de prejudicar o avanço das negociações entre o imperialismo norte-americano e o regime dos aiatolás pretende também criar uma provocação ao estilo do Golfo de Tonkin, que em 1964 levou o Congresso a autorizar os ataques contra o então Vietnam do Norte.
A política da direita israelense, em relação à população palestina, é elimina-la do mapa para poder viabilizar o sonho sionista da Grande Israel. Por esse motivo, mesmo a expansão dos assentamentos judaicos nas regiões ocupadas, longe de terem sido congelados, conforme o próprio Obama solicitou em 2010, continuam a todo vapor.
Logo após a escalada dos ataques sionistas o governo norte-americano e a imprensa imperialista propagandearam as centenas de mísseis que o Hamas teria lançado contra Israel e o direito dos sionistas a se “defenderem dos terroristas”.
As reacionárias monarquias do Golfo e a União Europeia, muito preocupadas em reconhecer o reacionário CNS (Conselho Nacional Sírio), com o qual querem sufocar a revolução na Síria, não se pronunciaram.
As massas populares palestinas somente podem contar com elas mesmas, e com a solidariedade internacionalista dos demais povos árabes, na luta anti-imperialista e pelo justo direito à autodeterminação.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A cobertura da mídia sobre Gaza: nós sabemos!

 



Em texto manifesto, linguistas denunciam a manipulação do notíciário pela grande imprensa para camuflar o massacre do povo palestino, apelam a jornalistas para que não sirvam de joguetes e para que as pessoas se informem pela mídia independente. Entre os signatários, Noam Chomsky. Confira a íntegra.




Enquanto países na Europa e América do Norte relembravam as baixas militares das guerras presentes e passadas, em 11 de Novembro, Israel estava alvejando civis. Em 12 de novembro, leitores que acordavam para uma nova semana tiveram já no café da manhã o coração dilacerado pelos incontáveis relatos das baixas militares passadas e presentes.

Leia também:
Faixa de Gaza: Israel autoriza convocação de 30 mil reservistas
Faixa de Gaza: Israel intensifica ofensiva militar

Não havia, porém, nenhuma ou quase nenhuma menção ao fato de que a maioria das baixas das guerras modernas de hoje são civis. Era também difícil alguma menção, nessa manhã de 12 de novembro, aos ataques militares à Gaza, que continuaram pelo final de semana. Um exame superficial comprova isso na CBC do Canada, Globe and mail, na Gazette de Montreal e na Toronto Star. A mesma coisa no New York Times e na BBC

De acordo com o relato do Centro Palestino para os Direitos Humanos (PCHR, pela sigla em inglês) de domingo, 11 de Novembro, cinco palestinos, entre eles três crianças, foram assassinados na Faixa de Gaza, nas 72 horas anteriores, além de dois seguranças. Quatro das mortes resultaram das granadas de artilharia disparadas pelos militares israelenses contra jovens que jogavam futebol. Além disso, 52 civis foram feridos, seis dos quais eram mulheres e 12 crianças. (Desde que este texto começou a ser escrito, o número de mortos palestinos subiu, e continua a aumentar.)

Artigos que relatam os assassinatos destacam esmagadoramente a morte de seguranças palestinos. Por exemplo, um artigo da Associated Press publicado no CBC em 13 de novembro, intitulado "Israel estuda retomada dos assassinatos de militantes de Gaza", não menciona absolutamente nada de civis mortos e feridos. Ele retrata as mortes como alvos "assassinados". O fato de que as mortes têm sido, na imensa maioria, de civis, mostra que Israel não está tão engajado em "alvos" quanto em assassinatos "coletivos". Assim, mais uma vez, comete o crime de punição coletiva.

Outra notícia de AP na CBC de 12 de novembro diz que os foguetes de Gaza aumentam a pressão sobre o governo de Israel. Traz a foto de uma mulher israelense olhando um buraco no teto de sua sala. Novamente, não há imagens, nem menção às numerosas vítimas sangrando ou cadáveres em Gaza. Na mesma linha, a manchete da BBC diz que Israel é atingido por rajadas de foguetes vindos de Gaza. A mesma tendência pode ser vista nos grandes jornais da Europa.

A maioria esmagadora das noiticias enfatizam que os foguetes foram lançados de Gaza, nenhum dos quais causaram vítimas humanas. O que não está em foco são os bombardeios sobre Gaza, que resultaram em numerosas vítimas graves e fatais. Não é preciso ser um especialista em ciências da mídia para entender que estamos, na melhor das hipóteses, diante de relatos distorcidos e de má qualidade e, na pior, de manipulação propositadamente desonesta.

Além disso, os artigos que se referem à vítimas palestinas em Gaza relatam consistentemente que as operações israelenses se dão em resposta ao lançamento de foguetes a partir de Gaza e à lesão de soldados israelenses. No entanto, a cronologia dos eventos do recente surto começou em 5 de novembro, quando um inocente, aparentemente mentalmente incapaz, homem de 20 anos, Ahmad al-Nabaheen, foi baleado quando passeava perto da fronteira. Os médicos tiveram que esperar seis horas até serem autorizados a buscá-lo. Eles suspeitam que o homem pode ter morrido por causa desse atraso. Depois, em 08 de novembro, um menino de 13 anos que jogava futebol em frente de sua casa foi morto por fogo do IOF, que chegou ao território de Gaza em tanques e helicópteros. O ferimento de quatro soldados israelenses na fronteira em 10 de novembro, portanto, já era parte de uma cadeia de eventos que começou quando os civis de Gaza foram mortos.

Nós, os signatários, voltamos recentemente de uma visita à Faixa de Gaza. Alguns de nós estamos agora conectados aos palestinos que vivem em Gaza através de mídias sociais. Por duas noites seguidas, palestinos em Gaza foram impedidos de dormir pela movimentação contínua de drones, F16, e bombardeios indiscriminados sobre vários alvos na densamente povoada Faixa de Gaza . A intenção clara é de aterrorizar a população, e com sucesso, como podemos verificar a partir de relatos dos nossos amigos. Se não fosse pelas postagens no Facebook, não estaríamos conscientes do grau de terror sentido pelos simples civis palestinos em Gaza. Isto contrasta totalmente com a consciência mundial sobre cidadãos israelenses chocados e aterrorizados.

O trecho de um relato enviado por um médico canadense que esteva em Gaza, servindo no hospital Shifa ER no final de semana, diz: " os feridos eram todos civis, com várias perfurações por estilhaços: lesões cerebrais, lesões no pescoço, hemo-Pneumo tórax, tamponamento cardíaco, ruptura do baço, perfurações intestinais, membros estraçalhados, amputações traumáticas. Tudo isso sem monitores, poucos estetoscópios, uma máquina de ultra-som. .... Muitas pessoas com ferimentos graves, mas sem a vida ameaçada foram mandadas para casa para ser reavaliadas na parte da manhã, devido ao grande volume de baixas. Os ferimentos por estilhaços penetrantes eram assustadores. Pequenas feridas com grandes ferimentos internos. Havia muito pouca Morfina para analgesia."

Aparentemente, tais cenas não são interessantes para o New York Times, a CBC, ou a BBC.

Preconceito e desonestidade com relação à opressão dos palestinos não é nada novo na mídia ocidental e tem sido amplamente documentado. No entanto, Israel continua seus crimes contra a humanidade com a anuência plena e apoio financeiro, militar e moral de nossos governos, os EUA, o Canadá e a União Europeia. Netanyahu está ganhando apoio diplomático ocidental para operações adicionais em Gaza, que nos fazem temer que outra operação Cast Lead esteja no horizonte. Na verdade, os novos acontecimentos são a confirmação de que tal escalada já começou, como a contabilização das mortes de hoje que aumenta.

A falta generalizada de indignação pública a estes crimes é uma conseqüência direta do modo sistemático em que os fatos são retidos ou da maneira distorcida que esses crimes são retratados.

Queremos expressar nossa indignação com a cobertura repreensível desses atos pela mainstream mídia (grande imprensa corporativa). Apelamos aos jornalistas de todo o mundo que trabalham nessas mídias que se recusem a servir de instrumentos dessa política sistemática de camuflagem. Apelamos aos cidadãos para que se informem através de meios de comunicação independentes, e exprimam a sua consciência por qualquer meio que lhes seja acessível.

Hagit Borer, linguist, Queen Mary University of London (UK)

Antoine Bustros, composer and writer, Montreal (Canada)

Noam Chomsky, linguist, Massachussetts Institute of Technology, US

David Heap, linguist, University of Western Ontario (Canada)

Stephanie Kelly, linguist, University of Western Ontario (Canada)

Máire Noonan, linguist, McGill University (Canada)

Philippe Prévost, linguist, University of Tours (France)

Verena Stresing, biochemist, University of Nantes (France)

Laurie Tuller, linguist, University of Tours (France)

Foto: Morre uma criança de 7 anos durante o bombardeio israelense a Gaza

Fonte: Ciranda da Informação Independente

terça-feira, 13 de novembro de 2012

O governo Dilma financia a direita


Assim, realmente, não dá para se entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos?

Rui Martins* no BRASIL DE FATO



Berna (Suíça) – Daqui de longe, vendo o tumulto provocado com o processo mensalão e a grande imprensa assanhada, me parece assistir a um show de hospício, no qual os réus e suspeitos financiam seus acusadores. O Brasil padece de sadomasoquismo, mas quem bate sempre é a direita e quem chora e geme é a esquerda.
Não vou sequer falar do mensalão, em si mesmo, porque aqui na Suíça, país considerado dos mais honestos politicamente, ninguém entende o que se passa no Brasil. Pela simples razão de que os suíços têm seu mensalão, perfeitamente legal e integrado na estrutura política do país.
Cada deputado ou senador eleito é imediatamente contatado por bancos, laboratórios farmacêuticos, seguradoras, investidores e outros grupos para fazer parte do conselho de administração, mediante um régio pagamento mensal. Um antigo presidente da Câmara dos deputados, Peter Hess, era vice-presidente de 42 conselhos de administração de empresas suíças e faturava cerca de meio milhão de dólares mensais.
Com tal generosidade, na verdade uma versão helvética do mensalão, os grupos econômicos que governam a Suíça têm assegurada a vitória dos seus projetos de lei e a derrota das propostas indesejáveis. E nunca houve uma grita geral da imprensa suíça contra esse tipo de controle e colonização do Parlamento suíço.
Por que me parece masoca a esquerda brasileira e nisso incluo a presidente Dilma Rousseff e o PT? Porque parecem gozar com as chicotadas desmoralizantes desferidas pelos rebotalhos da grande imprensa. Pelo menos é essa minha impressão ao ler a prodigalidade com que o governo Dilma premia os grupos econômicos seus detratores.
Batam, batam que eu gosto, parece dizer o governo ao distribuir 70% da verba federal para a publicidade aos dez maiores veículos de informação (jornais, rádios e tevês), justamente os mais conservadores e direitistas do país, contrários ao PT, ao ex-presidente Lula e à atual presidenta Dilma.
Quando soube dessa postura masoquista do governo, fui logo querer saber quem é o responsável por essa distribuição absurda que exclui e marginaliza a sempre moribunda mídia da esquerda e ignora os blogueiros, responsáveis pela correta informação em circulação no país.
Trata-se de uma colega de O Globo, Helena Chagas, para quem a partilha é justa – recebe mais quem têm mais audiência!, diz ela.
Mas isso é um raciocínio minimalista! Então, o povo elege um governo de centro-esquerda e, quando esse governo tem o poder, decide alimentar seus inimigos em lugar de aproveitar o momento para desenvolver a imprensa nanica de esquerda?
O Brasil de Fato, a revista Caros Amigos, o Correio do Brasil fazem das tripas coração para sobreviver, seus articulistas trabalham por nada ou quase nada, assim como centenas de blogueiros, defendendo a política social do governo e a senhora Helena Chagas com o aval da Dilma Rousseff nem dá bola, entrega tudo para a Veja, Globo, Folha, SBT, Record, Estadão e outros do mesmo time?
Assim, realmente, não dá para se entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos?
Aqui na Europa, onde acabei ficando depois da ditadura militar, existe um equilíbrio na mídia. A França tem Le Figaro, mas existe também o Libération e o Nouvel Observateur. Em todos os países existem opções de direita e de esquerda na mídia. E os jornais de esquerda têm também publicidade pública e privada que lhes permitem manter uma boa qualidade e pagar bons salários aos jornalistas.
Comunicação é uma peça-chave num governo, por que a presidenta Dilma não premiou um de seus antigos colegas e colocou na sucessão de Franklin Martins um competente jornalista de esquerda, capaz de permitir o surgimento no país de uma mídia de esquerda financeiramente forte?
Exemplo não falta. Getúlio Vargas, quando eleito, sabia ser necessário um órgão de apoio popular para um governo que afrontava interesses internacionais ao criar a Petrobras e a siderurgia nacional. E incumbiu Samuel Wainer dessa missão com o Última Hora. O jornal conseguiu encontrar a boa receita e logo se transformou num sucesso.
O governo tem a faca e o queijo nas mãos – vai continuar dando o filet mignon aos inimigos ou se decide a dar condições de desenvolvimento para uma imprensa de esquerda no Brasil?

Rui Martins é escritor e jornalista, vive na Suíça, e é colaborador do Brasil de Fato.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

CQC e o humorismo reacionário

 



Por Paulo Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:
O Brasil, conforme constatou agudamente um leitor do Diário, tem uma esquisitice humorística: os comediantes são reacionários. Não vou entrar no fato de que são essencialmente sem graça. Me atenho apenas ao conservadorismo. Comediantes, como artistas em geral, costumam, em todo o mundo, ser progressistas. Eles quase sempre têm uma forte consciência social que os leva a criticar situações de grande desigualdade e a ser antiestablishment.

Os comediantes brasileiros fogem da regra, e esta é uma das razões pelas quais são tão sem graça. Marcelo Madureira é um caso extremo de conservadorismo petrificado e completo alinhamento com o chamado “1%”. Marcelo Tas é outro caso. De Londres, não o acompanhei, mas ao passar algumas semanas no Brasil, agora, pude ver – sem sequer assistir a um episódio de seu programa – o quanto ele é mentalmente velho.

O que o CQC fez a Genoíno em nome da piada oscila entre o patético, o ridículo e o grotesco. Não me refiro apenas ao episódio em si de explorar o drama de Genoíno. Também a sequência foi pavorosa. Vi no YouTube Tas ter uma disenteria verbal ao falar de Genoíno. Corajosamente, aspas, chamou-o repetidas vezes, aos gritos, de “mequetrefe”.

Não sou petista.

Jamais votei uma única vez em Genoíno.

Mas Tas tem condições morais — e conhecimento, pura e simplesmente — para julgar e condenar Genoíno? Várias vezes ele diz que Genoíno foi condenado pela justiça. E daí? Quem acredita na infabilidade da justiça brasileira acredita em tudo, como disse Wellington.

O que me levou a procurar Tas no YouTube foi uma mensagem pessoal que recebi de Ana Carvalho. Ela estava no local em que houve a confusão entre o humorista Oscar Filho e amigos de Genoíno. Ana acabou sendo citada num texto que OF escreveu, e ficou tão indignada que decidiu escrever sua versão dos fatos numa carta aberta que ela, cerimoniosamente, me pediu que lesse. Li. Primeiro, ela esclarece: ao contrário do que OF escreveu, ela não é militante do PT. Estava apenas votando, com a família, no lugar do tumulto, e tentou ajudar a serenar os ânimos, como boa samaritana.

Ana relata o que ouviu, na refrega, do produtor do CQC e de Genoíno. Do produtor, berros que diziam que os “mensaleiros filhos da puta” iam ser punidos: em vez de um minuto, o programa falaria horas do caso. De Genoíno, ela ouviu: “Calma, calma, sem bater, sem bater”. Mas quem publicaria o que ela ouviu? Essa pergunta Ana fez a si mesma, e é um pequeno retrato da maneira distorcida com que a grande mídia trata assuntos de política no Brasil. A resposta é: ninguém. Nem Folha e nem Estadão e nem Veja e nem Globo publicariam o relato de Ana – embora ela fosse testemunha privilegiada da confusão.

Há formas e formas de violência. O que o pessoal do CQC fez foi uma violência mental, uma tortura. Não faz muito tempo, o mundo soube que presos nos Estados Unidos tinham sido torturados com sessões de música ininterrupta da série Vila Sésamo. Vinte e quatro horas, sete dias por semana. (O autor ficou perplexo com o uso dado a sua canções tão inocentes.)

O que o CQC fez tem um nome: tortura moral. Humor não é isso. Citei, em outro artigo, os repórteres do Pânico que invadiram o funeral de Amy Winehouse para fazer piada. Tivessem sido pilhados, terminariam na cadeia – e teriam formidável dificuldade para convencer a justiça londrina de que a liberdade de expressão, aspas, os autorizava a fazer o que fizeram.

Humor sem graça, como o feito no Brasil, é um horror. Mas consegue ficar ainda pior quando à falta de espírito se junta um reacionarismo patológico, uma completa desconexão com o povo brasileiro, e este é o caso de Marcelo Tas e seu CQC.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O golpe imaginário de Ayres Britto

 



Por Paulo Moreira Leite, na coluna Vamos combinar: via BLOG DO MIRO
Confesso que ainda estou chocado com o voto de Ayres Britto, ao condenar oito réus do mensalão, ontem.

O ministro disse:

“[O objetivo do esquema era] um projeto de poder quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”.

Denunciar golpes de Estado em curso é um dever de quem tem compromissos com a democracia.

Denunciar golpes de Estado imaginários é um recurso frequente quando se pretende promover uma ruptura institucional.

O caso mais recente envolveu Manoel Zelaya, o presidente de Honduras. Em 2009 ele foi arrancado da cama e, ainda de pijama, conduzido de avião para um país vizinho.

Acusava-se Zelaya de querer dar um golpe para mudar a Constituição e permanecer no poder. Uma denúncia tão fajuta que – graças ao Wikileaks – ficamos sabendo que até a embaixada dos EUA definiu a queda de Zelaya como golpe. Mais tarde, ao reavaliar o que mais convinha a seus interesses de potência, a Casa Branca mudou de lado e encontrou argumentos para justificar a nova postura, fazendo a clássica conta de chegar para arrumar fatos e os argumentos.

Em 31 de março de 64, tivemos um golpe de Estado de verdade, que jogou o país em 21 anos de ditadura.

O golpe foi preparado pela denúncia permanente de um golpe imaginário, que seria preparado por João Goulart para transformar o país numa “república sindicalista.” Basta reconstituir os passos da conspiração civil-militar para reconhecer: o toque de prontidão do golpismo consistia em denunciar projetos anti democráticos de Jango.

Considerando antecedentes conhecidos, o voto de Ayres Britto é preocupante porque fora da realidade.

Vamos afirmar: não há e nunca houve um projeto de golpe no governo Lula. Nem de revolução. Nem de continuísmo chavista. Nem de alteração institucional que pudesse ampliar seus poderes de alguma maneira.

Lula poderia ter ido as ruas pedir o terceiro mandato. Não foi e não deixou que fossem. Voltou para São Bernardo mas, com uma história maior do que qualquer outro político brasileiro, não o deixam em paz. Essa é a verdade. Temos um ex grande demais para o papel. Isso porque o PT quer extrair dele o que puder de prestígio e popularidade. A oposição quer o contrário. Sabe que sua herança é um obstáculo imenso aos planos de retorno ao poder.

Ouvido pelo site Consultor Jurídico, o professor Celso Bandeira de Mello, um dos principais advogados brasileiros, deu uma entrevista sobre o mensalão, ainda no começo do processo:

ConJur: Como o senhor vê o processo do mensalão?

Celso Antônio Bandeira de Mello: Para ser bem sincero, eu nem sei se o mensalão existe. Porque houve evidentemente um conluio da imprensa para tentar derrubar o presidente Lula na época. Portanto, é possível que o mensalão seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas não posso excluir que não seja.


Bandeira de Mello é amigo e conselheiro de Lula. Foi ele quem indicou Ayres Britto para o Supremo. A nomeação de Brito – e de Joaquim Barbosa, de Cesar Pelluzzo – ocorreu na mesma época em que Marcos Valério e Delúbio Soares andavam pelo Brasil para, segundo o presidente do Supremo, arrumar dinheiro para o “continuísmo seco, raso.”

Os partidos políticos podem ter, legitimamente, projetos duradouros de poder. É inevitável, porque poucas ideias boas podem ser feitas em quatro anos.

Os tucanos de Sérgio Motta queriam ficar 25 anos. Ficaram oito. Lula e Dilma, somados, já garantiram uma permanência de 12.

Tanto num caso, como em outro, tivemos eleições livres, sob o mais amplo regime de liberdades de nossa história.

Para quem gosta de exemplos de fora, convém lembrar que até há pouco o padrão, na França, eram governos de 14 anos – em dois mandatos de sete. Nos Estados Unidos, Franklin Roosevelt foi eleito para quatro mandatos consecutivos, iniciando um período em que os democratas passaram 20 anos seguidos na Casa Branca. Os democratas de Bill Clinton poderiam ter ficado 12 anos. Mas a Suprema Corte, com maioria republicana, aproveitou uma denúncia de fraude na Flórida para dar posse a George W. Bush, decisão ruinosa que daria origem a uma tragédia de impacto internacional, como todos sabemos.

O ministro me desculpe mas eu acho que, para falar do mensalão como parte de projeto de “continuísmo seco, raso,” é preciso considerar o Brasil uma grande aldeia de Gabriel Garcia Márquez. Em vez da quinta ou sexta economia do mundo, jornais, emissoras de TV, bancos poderosos, um empresariado dinâmico, trabalhadores organizados e 100 milhões de eleitores, teríamos de coronéis bigodudos com panças imensas, latifúndios a perder de vista, cidadãos dependentes, morenas lindas e apaixonadas, capangas de cartucheira.

No mundo de Garcia Marquez, não há democracia, nem conflito de ideias. Não há desenvolvimento, apenas estagnação, tédio e miséria. Naquelas aldeias do interior remoto da Colômbia, homens e mulheres famintos vivem às voltas de um poder único e autoritário. Esmolam favores, promoções, presentes, pois ninguém tem força, autonomia e muito menos coragem para resolver a própria vida. Desde a infância, todos os cidadãos são ensinados a cortejar o poder, bajular. É seu modo de vida. Como recompensa, recebem esmolas.

No mensalão de Macondo, seria assim.

Será esta uma visão adequada do Brasil?

Em 1954, no processo que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, também se falou em golpe.

Com apoio de uma imprensa radicalizada, em campanhas moralistas e denuncias – muitas vezes sem prova – contra o governo, dizia-se que Vargas pretendia permanecer no posto, num golpe continuísta, com apoio do ”movimento de massas.”

Era por isso, dizia-se, que queria aumentar o salario mínimo em 100%. Embora o mínimo tivesse sido congelado desde 1946, por pressão conservadora sobre o governo Eurico Dutra, a proposta de reajuste era exibida como parte de um plano continuísta para agradar aos pobres – numa versão que parece ter lançado os fundamentos para as campanhas sistemáticas contra o Bolsa-Família, 50 anos depois.

Embora falasse em mercado interno, desenvolvimento industrial e até tivesse criado a Petrobrás, é claro que Vargas queria apenas, em aliança com o argentino Juan Domingo Perón (o Hugo Chávez da época?), estabelecer uma comunhão sindicalista na América do Sul e transformar todo mundo em escravo do peleguismo, não é assim? E agora você, leitor, vai ficar surpreso. Um dos grandes conspiradores contra Getúlio Vargas, especialista em denunciar golpes imaginários, foi parar no Supremo. Chegou a presidente, teve direito a um livro luxuoso com uma antologia de suas sentenças.

Estou falando de Aliomar Baleeiro, jurista que entrou no tribunal em 1965, indicado por Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo militar, e aposentou-se em 1975, o ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob tortura pelo porão da ditadura.

Baleeiro deixou bons momentos em sua passagem pelo Supremo. Defendeu várias vezes o retorno ao Estado de Direito.

Chegou a dar um voto a favor de frades dominicanos que faziam parte do círculo de Carlos Marighella, principal líder da luta armada no Brasil.

A ditadura queria condenar os frades. Baleeiro votou a favor deles.

Tudo isso é muito digno mas não vamos perder a o fio da história que nos ajuda a ter noção das coisas e aprender com elas.

Em várias oportunidades, o ministro que faria a defesa do Estado de Direito contribuiu para derrotá-lo.

O ministro chegou ao STF com uma longa folha de serviços anti democráticos.

Em 1954, ele era deputado da UDN, aquele partido que reunia a fina flor de um conservadorismo bom de patrimônio e ruim de votos.

Um dos oradores mais empenhados no combate a Getúlio Vargas , Baleeiro foi a tribuna da Câmara para pedir um “golpe preventivo”. ( Pode-se conferir em “Era Vargas — Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade,” página 411, UNESP editora.)

Os adversários de Vargas tentaram a via legal, o impeachment. Tiveram uma derrota clamorosa, como diziam os locutores esportivos de vinte anos atrás: 136 a 35.

Armou-se, então, uma conspiração militar. Alimentada pelo atentado contra Carlos Lacerda, que envolvia pessoas do círculo de Vargas, abriu-se uma pressão que acabaria emparedando o presidente, levado ao suicídio.

Baleeiro permaneceu na UDN e conspirou contra a campanha de JK, contra a posse de JK e contra o governo JK. Sempre com apoio nos jornais, foi um campeão de denúncias. Era aquilo que, mais uma vez com ajuda da mídia, muitos brasileiros pensavam que era o Demóstenes Torres – antes que a verdade do amigo Cachoeira viesse a tona.

Baleeiro estava lá, firme, no golpe que derrubou Jango para combater a subversão e a …corrupção.

Foi logo aproveitado pelo amigo Castelo Branco para integrar o STF. Já havia denuncia de tortura e de assassinatos naqueles anos. Mortos que não foram registrados, feridos que ficaram sem nome. Não foram apurados, apesar do caráter supremo das togas negras.

Entre 1971 e 1973, Baleeiro ocupava a presidência do STF. Nestes dois anos, o porão do regime militar matou 70 pessoas.

Nenhum caso foi investigado nem punido, como se sabe. Nem na época, quando as circunstâncias eram mais difíceis. Nem quarenta anos depois, quando pareciam mais fáceis.

Em 1973, José Dirceu, que pertenceu a mesma organização que Marighella, vivia clandestinamente no Brasil. Morou em Cuba mas retornou para seguir na luta contra o regime militar. Infiltrado no grupo, o inimigo atirou primeiro e todos morreram. Menos Dirceu. Os ossos de muitos levaram anos para serem identificados. Nunca soubemos quem deu a ordem.

Não se apontou, como no mensalão, para quem tinha o domínio do fato para a tortura, as execuções.

Um dos principais líderes do Congresso da UNE, entidade que o regime considerava ilegal, Dirceu foi preso em 1968 e saiu da prisão no ano seguinte. Não foi obra da Justiça, infelizmente, embora estivesse detido pela tentativa de reorganizar uma entidade que desde os anos 30 era reconhecida pelos universitários como sua voz política.

(Figurões da ditadura, como o pernambucano Marco Maciel, que depois seria vice presidente de FHC, Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo no tempo de Geisel, tinham sido dirigentes da UNE, antes de Dirceu).

A Justiça era tão fraca , naquele período, que Dirceu só foi solto como resultado do sequestro do embaixador Charles Elbrick, trocado por um grupo de presos políticos. Mas imagine.

Foi preciso que um bando de militantes armados, em sua maioria garotos enlouquecidos com Che Guevara, cometesse uma ação desse tipo para que pessoas presas arbitrariamente, sem julgamento, pudessem recuperar a liberdade. Que país era aquele, não? Que Justiça, hein?

Preso no Congresso da UNE, também, Genoíno foi solto e ingressou na guerrilha do Araguaia.

Apanhado e torturado em 1972, Genoíno conseguiu esconder a verdadeira identidade durante dois meses. Estava em Brasília quando a polícia descobriu quem ele era. Foi levado de volta a região da guerrilha e torturado em praça pública, como exemplo.

Ontem a noite, José Dirceu e José Genoíno foram condenados por 8 votos a 2 e 9 votos a 1.

Foi no final da sessão que Ayres Britto falou em “projeto de poder de continuísmo seco, raso. Golpe, portanto”.