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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

“Americanos e russos são dois lados da mesma moeda”, diz ativista síria

“Americanos e russos são dois lados da mesma moeda”, diz ativista síria


Samir Oliveira no SUL21
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Não havia problema em sair, mas eu não poderia voltar. Se quisesse voltar, teria que ser clandestinamente” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A ativista síria Sara al-Suri esteve no Brasil durante o ano passado e retornou recentemente ao país com a intenção de promover campanhas políticas contra a ditadura de Bashar al-Assad. Ex-funcionária da ONU em Damasco, ela deixou a Síria em março de 2012 e sua família precisou abandonar o país há sete meses. Com 25 anos de idade, Sara cursava Ciência Política e Sociologia na Síria.
Sara al-Suri observa que os Estados Unidos e a Rússia são “dois lados da mesma moeda” no que diz respeito às negociações em torno do regime sírio. Para ela, as duas potências desejam articular uma negociação política para a saida de Bashar al-Assad do governo. “Todos gostariam de fazer com que Bashar al-Assad, os rebeldes e a oposição burguesa simplesmente sentassem em uma mesa, apertassem as mãos, agendassem eleições para 2014 e fingissem que está tudo resolvido”, critica. Para ela, essa solução apenas levaria a uma “cosmética transição de governo dentro de um país que está em guerra”.
Nesta entrevista ao Sul21, concedida durante sua passagem por Porto Alegre na semana passada, Sara al-Suri também fala sobre a situação das mulheres na Síria. Ela ressalta que tanto os rebeldes quanto os soldados do governo são machistas. “O que a revolução fez foi dar a nós, mulheres, uma chance de sermos ativistas, de lutarmos contra a opressão, contra a exploração e contra a marginalização. Porém, é um engano pensar que a revolução, por si só, nos libertou”, comenta.
“Quanto mais comparecia aos protestos, mais eu conhecia pessoas que não encontraria na universidade ou através dos meus amigos. Era um contexto social completamente diferente”
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“O primeiro protesto que eu participei ocorreu no dia 8 de março de 2011″ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – De que lugar da Síria tu és e quando começaste a lutar contra o regime?
Sara al-Suri - Sou de Damasco, a capital. O primeiro protesto que eu participei ocorreu no dia 8 de março de 2011. Era uma manifestação em favor dos revolucionários líbios, em frente à embaixada da Líbia. Éramos um grupo de aproximadamente 50 a 60 pessoas. Foi um evento muito pequeno e insignificante comparado ao que aconteceu depois, mas muitos de nós fomos presos. Alguns foram presos por poucas horas, outros por alguns dias. Esse foi meu primeiro protesto antes da verdadeira revolução de massa, que começou no dia 15 de março na cidade da Daraa, no sul do país.
Sul21 – O que tu fazias na Síria?
Sara - Eu trabalhava na ONU e era estudante: graduanda em Ciência Política e mestranda em Sociologia. Eu também trabalhava para o World Food, programa de alimentação das Nações Unidas.
Sul21 – Por que e quando tu saíste do país?
Sara - Deixei a Síria em março de 2012. Não havia problema em sair, mas eu não poderia voltar. Se quisesse voltar, teria que ser clandestinamente. No início, minha atuação na Síria era focada na participação nos protestos. Depois, acabei me dedicando ao Comitê de Coordenação Local em Rukn Eldin – um bairro na área central de Damasco -, organizando manifestações, escrevendo panfletos, fazendo campanhas para a liberação de detidos.
Sul21 – Como está a situação deste bairro atualmente?
Sara - Atualmente é uma das maiores áreas armadas dentro de Damasco em que o regime ainda não conseguiu intervir. É um bairro de classe trabalhadora. No início, eu não me senti muito confortável lá. Meu primeiro contato com a revolução envolveu intelectuais e artistas que apoiavam o processo na Líbia. Porém, quanto mais eu comparecia aos protestos, mais eu conhecia pessoas que não encontraria na universidade ou através dos meus amigos. Era um contexto social completamente diferente. Foi aí que comecei meu ativismo. Não íamos ao centro de Damasco, mas, sim, às partes periféricas da cidade, especificamente a um local chamado Dummar, que é agora uma zona liberada. Era muito interessante, pois as pessoas saíam das áreas centrais da cidade para juntarem-se a esses protestos na periferia, já que Damasco ainda estava sob forte controle do regime.

“Na Síria a relação entre o regime e o Estado é muito mais próxima. É impossível derrubar o regime ou o governo sem fazer cair todo o sistema”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Ficamos muito felizes por tudo ter começado na Tunísia” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual foi o sentimento das pessoas na Síria quando a primavera árabe começou, quando os primeros protestos tomaram conta da Túnisia?
Sara - Foi inacreditável, porque não podíamos nem comemorar publicamente. Ficamos muito felizes por tudo ter começado na Tunísia. (Mohamed) Bouazizi (o cidadão tunisiano que colocou fogo no próprio corpo) se tornou uma figura importante na Síria, todos usavam sua foto. O regime foi tolo o bastante de permitir isso. O clima ainda era de segurança, então podíamos falar sobre isso, desde que não publicamente. Quando Mubarak caiu no Egito, lembro que as pessoas trocavam mensagens de texto utilizando uma expressão em árabe em que uma pessoa diz “parabéns” e a outra responde “espero que você seja o próximo”. É uma expressão utilizada para felicitações em casamentos e nascimentos de crianças. Foi assim que celebramos em Damasco.
Sul21 – Por que você acha que esses protestos se transformaram em um processo revolucionário mais radical na Síria?
Sara – Penso que a Líbia e a Síria passaram por processos muito similares. Talvez na Líbia o fator “tempo” torne isso um pouco difícil de visualizar, já que lá o processo foi mais veloz. Lá, o regime era mais fraco, menos enraizado, havia os fatores do óleo e do petróleo e houve a intervenção da OTAN. A OTAN se dizia a favor dos rebeldes, mas de maneira alguma sua ação teve efeito na vitória da revolução. Na Síria, o regime é mais poderoso e possui mais aliados em nível regional e internacional — não somente a Rússia. Até o ano passado, os Estados Unidos davam declarações muito tímidas acerca do regime sírio e da revolução. Dizer que os únicos aliados do regime eram a Rússia, o Irã e o Hezbollah é subestimar totalmente o papel dos Estados Unidos no seu fortalecimento, tanto histórica quanto atualmente. Por que se tornou um processo mais radical? Porque na Síria a relação entre o regime e o Estado é muito mais próxima. É impossível derrubar o regime ou o governo sem fazer cair todo o sistema. No Egito, isso é possível, o que significa que a revolução continua e ainda tem um longo caminho a percorrer. Mas na Síria a natureza do regime e a relação que ele tem com o Estado é muito mais forte e ditatorial. O Estado foi construído com base no regime. Não há possibilidade de uma derrubada parcial, ao menos não no sentido de uma revolução democrática. Não se pode derrubar Bashar al-Assad sem desconstruir toda a pirâmide da ditadura.
Sul21 – Tu tiveste a oportunidade de ir até as chamadas “zonas liberadas” da Síria, aquelas áreas sob o controle dos rebeldes. Como é a vida nestes territórios?
Sara - Existem dois tipos de zonas liberadas. Há estados inteiros que já estão liberados e há certas áreas dentro de alguns estados. Existem mais áreas livres no norte e nordeste da Síria do que no sul ou nas fronteiras de Damasco. Em Damasco, temos algumas zonas que estão liberadas, mas sitiadas, já que o regime as cerca. São áreas muito importantes. No norte, temos uma cidade que está completamente liberada. Outra cidade, Aleppo. está repartida ao meio. Hoje existe a Aleppo ocidental e a Aleppo oriental, com estilos de vida diferentes. A travessia entre essas áreas é muito perigosa, há franco-atiradores do regime nas fronteiras. As pessoas estão divididas entre essas zonas. Há famílias de um lado e de outro. Aleppo é uma cidade histórica muito importante que vivenciou uma batalha bastante forte, e os combates ainda estão acontecendo. Trata-se de um grande centro econômico, talvez o maior da Síria, então o regime tem uma relação muito forte com a burguesia local. Ao contrário de Damasco, onde a maioria dos rebeldes é da cidade, em Aleppo aqueles que a liberaram são pessoas do interior do país. Lá a situação é um pouco frágil.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Eu diria que pelo menos 45% do país está liberado, mas é uma estimativa precária” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – É possível estimar a quantidade de território que está nas mãos dos rebeldes?
Sara - Se formos falar não de cidades, mas sim de territórios, eu diria que pelo menos 45% do país está liberado, mas é uma estimativa muito precária, pois,às vezes, esse número avança e, às vezes, retrocede. Os números em si não representam nada. Por exemplo, um deserto sob controle dos rebeldes não faz diferença nenhuma. Mas um pequeno aeroporto militar controlado pelos rebeldes vale por uma cidade inteira. Trata-se mais de uma liberação estratégica do que simplesmente geográfica.

“Somos nós, mulheres, que decidimos onde queremos ir. Não são os homens, quer sejam revolucionários ou não, que decidirão por nós.”

Sul21 – Qual vem sendo o papel das mulheres neste processo e como a vida delas tem sido alterada com a revolução?
Sara – Não podemos presumir que a ordem social que existia durante o regime seja completamente diferente daquela que estamos vivenciando durante a revolução. O que a revolução fez foi dar a nós, mulheres, uma chance de sermos ativistas, de lutarmos contra a opressão, contra a exploração e contra a marginalização. Porém, é um engano pensar que a revolução, por si só, nos libertou. Ela nos libertou politicamente, mas cabe a nós organizarmo-nos e combatermos o machismo. O revolucionário, a quem eu respeito, e o soldado, que é meu inimigo, têm uma coisa em comum: ambos são machistas. Algumas mulheres, depois da libertação, juntaram-se aos combates. Algumas estão atuando através do jornalismo, algumas estão nos comitês de organização local… As mulheres estão atuando em todos os ambientes. Mas, ao mesmo tempo, há certas vilas na Síria que continuam extremamente rurais e extremamente retrógradas, mesmo depois da revolução. Se formos à área rural de Aleppo, constataremos que lá pouca coisa mudou. Há uma revolução e, nesse momento, as mulheres precisam se politizar e se organizar a fim de conseguir o que não poderia ser feito durante o regime de Bashar al-Assad. A questão maior não é em si a emancipação da mulher, mas. Sim, a nova capacidade de o sexo feminino participar da espera política do país.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Quando eu estava em uma área liberada, meu próprio irmão estava segurando uma arma, mas eu me senti muito desconfortável”| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – As mulheres estão se dando conta dessa situação e estão se organizando?
Sara - Sim, mas em certas áreas isso é mais difícil. Isso porque o próprio militarismo é um fenômeno muito machista. Mesmo os rebeldes revolucionários são, por definição, machistas. Quando eu estava em uma área liberada, meu próprio irmão estava segurando uma arma, mas eu me senti muito desconfortável. Afinal de contas, existe essa impressão de que a arma é uma extensão do pênis do homem, e isso é intimidador. Não que eu não esteja disposta a pegar em uma arma e lutar, mas os homens de lá não são simultaneamente rebeldes e ativistas sociais. Na Síria, existe um conservadorismo social. A exploração da mulher e da mulher trabalhadora ocorre não somente dentro dos moldes do capitalismo – com sua proteção à unidade familiar – mas, também, em diferentes setores religiosos que reafirmam o papel secundário da mulher. O problema é que o regime de Bashar al-Assad era concebido como laico, e isso é uma verdade apenas parcial. O regime, por ter um imenso setor público, empregou várias mulheres. Então, para alguns, a emancipação das mulheres está associada com a ditadura, enquanto que a ideia de voltar aos tempos antigos, quando a mulher era mantida dentro de casa, é vista por esses setores como um avanço. É essa mentalidade que temos que combater. Bashar al-Assad nunca foi realmente um libertador. Ele é tão opressor e machista quanto qualquer outro homem da sociedade síria. Somos nós, mulheres, que decidimos onde queremos ir. Não são os homens, quer sejam revolucionários ou não, que decidirão por nós. É um processo longo, está muito longe de terminar e vai ser muito difícil, mas pelo menos agora temos, em algumas áreas, a liberdade política para começar essa luta.

“As mulheres estão atraídas pela revolução porque sentem que se trata não somente da libertação de uma ditadura política, mas, também, da chance de se livrar da própria sociedade patriarcal”.

Sul21 – Tu achas que é possível transformar o processo revolucionário em um processo que também confira autonomia e liberdade às mulheres?
Sara – É um processo que pode nos dar a liberdade política para sermos capazes de trabalhar pela libertação. Em árabe, a palavra “revolução” é feminina. As mulheres estão atraídas pela revolução porque sentem que se trata não somente da libertação de uma ditadura política, mas, também, da chance de se livrar da própria sociedade patriarcal. Existe esse sentimento, mas há muitos desafios. O desafio da superação do regime; o desafio da superação de uma sociedade patriarcal e retrógrada; o desafio da questão religiosa — independentemente de ser islâmica ou não –, já que a religião representa uma proteção à unidade familiar e, portanto, reafirma o papel secundário da mulher. Temos uma série de desafios. Será uma batalha dura para as mulheres.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Estão enfrentando outra espécie de força opressora, que é o fundamentalismo religioso” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual é o programa político dos rebeledes?
Sara - Não há um programa político muito articulado. Há muito poucos partidos políticos oficiais na Síria e muitos destes partidos com um programa político não se engajariam na revolução. Porém, há um processo em curso no qual mesmo os rebeldes estão sentindo que precisam de um programa. É possível notar isso pelas discussões deles. Eles não necessariamente se dão conta disso, mas o que precisam é de um partido político. O programa deles é derrubar o regime, mas no momento estão enfrentando outra espécie de força opressora, que é o fundamentalismo islâmico, como, por exemplo, a Al-Qaeda. Eles estão sendo confrontados agora, e eu acho isso bom. É melhor que eles sejam confrontados nesse momento do que depois, porque ainda se trata de um processo revolucionário radical. Ao serem confrontados pela presença da Al-Qaeda em suas fileiras, eles se perguntam: “o que é isso, como nós podemos lidar com isso?”. Eles entendem que apenas derrubar o regime não vai ser suficiente. Também precisam lutar contra o fundamentalismo religioso, o Conselho Nacional e a oposição burguesa. Sem que os rebeldes percebam, seus inimigos estão se ampliando. Mesmo que falte experiência política e organizacional, há um processo em curso que está se radicalizando, pelo menos em alguns segmentos dos grupos rebeldes. Se a situação, em termos de guerra, não se deteriorar violentamente, pode haver uma chance. O que está impedindo a vitória não é somente a falta de experiência política, mas sim a própria guerra. Não se tem comida, aviões do governo bombardeiam as áreas sob controle rebelde, há destruição e deslocamentos em massa de refugiados. Uma cidade com 300 mil habitantes rapidamente fica com 70 mil pessoas. São condições muito duras e adversas. Se isso continuar, progredir politicamente será muito difícil. A guerra precisa terminar e Bashar al-Assad precisa ser derrubado para que qualquer progresso político e qualquer programa possa ser desenvolvido pelos rebeldes.

“Não é possível ser verdadeiramente marxista e não apoiar a revolução na Síria”

Sul21 – Como você vê essa possibilidade de uma intervenção militar dos Estados Unidos na Síria?
Sara - Se lermos as declarações oficiais dos Estados Unidos e da Rússia desde que as armas químicas foram usadas pelo governo sírio, poderemos notar que a administração americana está sendo extremamente cuidadosa com suas palavras. Eles dizem: “não iremos derrubar o regime, nós vamos puni-lo com um ataque de forma cirúrgica”. É como se estivessem andando nas pontas dos pés quando se trata da Síria e da revolução. O governo estadunidense não sabe mais o que fazer. Os Estados Unidos levaram um tapa no rosto, já que os limites estabelecidos por Obama foram desrespeitados por Bashar al-Assad. Fica claro que os americanos e os russos querem uma negociação política. Neste momento, eles são dois lados da mesma moeda. Nem os Estados Unidos, nem a Rússia querem uma quebra radical do status quo. Ninguém quer ficar inseguro quanto ao que acontecerá nos próximos anos. Todos gostariam de fazer com que Bashar al-Assad, os rebeldes e a oposição burguesa simplesmente sentassem em uma mesa, apertassem as mãos, agendassem eleições para 2014 e fingissem que está tudo resolvido. Porém, isso é ilusão. Mesmo que se tente, não acontecerá. Hipoteticamente, se acontecer, teríamos uma cosmética transição de governo dentro de um país que está em guerra! As cabeças do regime estão cientes de que os Estados Unidos e a Rússia estão muito próximos de chegarem a um acordo. O que me preocupa são os grupos paramilitares de Assad. Se os americanos não atacarem nesse momento, esses grupos vão se sentir fortalecidos. Irão pensar que mesmo Obama não pode derrubar Assad. Neste sentido, creio que ainda veremos muitas atrocidades nas próximas semanas.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“As organizações de esquerda que são contra as revoluções na Síria e na Líbia tornaram-se tão burocratizadas que se afastaram da massa de trabalhadores que dizem representar” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como tu vês os posicionamentos de organizações de esquerda a respeito do que vem acontecendo na Síria? No Brasil, muitos partidos e entidades apoiam o regime.
Sara – Primeiro, há ignorância. Depois, há puro oportunismo. As organizações de esquerda que são contra as revoluções na Síria e na Líbia tornaram-se tão burocratizadas que se afastaram da massa de trabalhadores que dizem representar. Para mim, não são organizações de esquerda. Um militante de um partido comunista brasileiro me disse que a classe trabalhadora que está se juntando à revolução na Síria na verdade é composta por mercenários. Criticam isso enquanto aplaudem o governo brasileiro, que é absolutamente capitalista, baseado na conciliação de classes e não respeita nenhuma minoria: classe trabalhadora, indígenas, negros… São essas pessoas que vêm me dizer que os rebeldes no meu país são mercenários! Não há condições de argumentar. Percorri o Brasil no ano passado em campanha contra o regime sírio e até hoje não conheci nenhum líder de nenhuma organização de esquerda que continuasse apoiando a ditadura depois de saber o que realmente estava acontecendo. Não é possível ser verdadeiramente marxista e não apoiar a revolução na Síria.

“É inconcebível que uma grande potência como o Brasil não tenha uma posição clara sobre a Síria”

Sul21 – Como tu avalias a posição do governo brasileiro a respeito da Síria?
Sara - O governo brasileiro não tem posicionamento. É engraçado… Eu sou uma cidadã síria e meu único passaporte é sírio. Eu tive que implorar pelo visto, tivemos que ligar para amigos que conheciam pessoas e eu precisei esperar na embaixada por sete horas. Foi nojento e muito humilhante. Consegui o visto para apenas um mês, sendo que pretendo ficar no Brasil por um ano. Meu irmão, que é sírio mas também possui passaporte americano, foi até a embaixada brasileira na Turquia e lhe disseram: “não se preocupe, seu visto sairá em cinco dias, está tudo bem”. Então o governo brasileiro não tem posicionamento sobre a Síria. Mas não ter posicionamento já é uma forma de se posicionar. Com relação aos refugiados, é quase impossível para os sírios virem ao Brasil. As pessoas de lá que querem vir ao Brasil são aquelas que costumam ter suas famílias aqui. O governo brasileiro está tornando impossível para os sírios virem ao país e isso é uma das coisas que deveria ser combatida. É algo incompreensível: ser contra o regime de Bashar al-Assad e ao mesmo tempo ser contra os cidadãos sírios. O governo brasileiro afirma que a Síria é um grande país e que precisa ser protegido, mas quando sua população bate às portas do Brasil ele exige que fiquem do lado de fora. Isso é algo muito asqueroso em relação ao Brasil. É inconcebível que uma grande potência como o Brasil não tenha uma posição clara sobre a Síria.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“A história nos prova que mesmo as guerras mais sangrentas podem durar muito” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Quanto tempo tu achas que a guerra ainda poderá durar?
Sara – Acho que pode durar um bom tempo. A história nos prova que mesmo as guerras mais sangrentas podem durar muito. A guerra em sua forma atual talvez não se estenda tanto, mas outras formas de guerra e de caos vão continuar. Mesmo que Bashar al-Assad seja derrubado da presidência, a guerra não acabará. Há grupos paramilitares que não estão dispostos a negociar com ninguém, mesmo que seu presidente esteja. Esses grupos acreditam que a revolução não é uma revolução e que os revolucionários são extremistas sunitas que querem aniquilar todas as minorias religiosas. Eles irão até o fim. Lidar com isso de maneira inteligente também é um desafio para os rebeldes, mesmo que pareça injusto que eles, que estão morrendo, tenham que carregar ainda a obrigação de dizer às pessoas não irão matá-las. Mas precisamos convencer a base social que apoia o regime – pelo menos as pessoas que ainda não sujaram as mãos com sangue – de que Bashar al-Assad não irá protegê-las. Mesmo que elas não se juntem à revolução, pelo menos podem retirar o apoio ao regime. Isso é algo muito difícil. Depois de tanta morte, há muito ódio e sentimentos que nunca serão consertados, especialmente durante esta geração.
Sul21 – Quem está vencendo a guerra atualmente: os rebeldes ou o governo?
Sara – Se levarmos em consideração o equilíbrio de poder, os rebeldes estão perdendo. Mas se você levarmos em consideração o armamento utilizado pelos rebeldes… São armas do tempo da segunda guerra mundial, totalmente disfuncionais. Alguns rebeldes têm armas substanciais, como equipamento antiaéreo, mas são a minoria. Enquanto isso, o regime dispõe de uma poderoa máquina militar. Se considerarmos os equipamentos dos rebeldes e do regime, veremos que a revolução está vencendo. Mas essa é uma equação muito frágil. Precisamos de armas pesadas para que possamos dar um fim nisso. Se a guerra não terminar logo, quanto mais tempo demorar, mais sangrento irá se tornar o confronto e menor será a chance de vitória da revolução. Quem pode fornecer esse aramento para nós? Os Estados Unidos, a Arábia Saudita, o Catar, a Turquia e a França. Esses países não querem armar rebeldes radicais, portanto estamos presos em um ciclo vicioso. Precisamos de armas daqueles que não querem apoiar uma solução radical para o país. É aí que está o perigo: a menos que a revolução seja capaz de avançar e tomar para si o arsenal do regime, o desfecho poderá ser muito ruim.

“Dizem que é uma guerra civil. É a típica retórica despolitizada promovida pelas grandes mídias burguesas”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Internacionalmente, o noticiário se limita a uma fria contagem do número de mortos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como tu avalias a cobertura da mídia – tanto na Síria quanto da imprensa internacional – a respeito do que vem ocorrendo no país?
Sara – Dentro da Síria chega a ser engraçado. A mídia estatal mostra corpos de rebeldes e diz: “nós matamos os terroristas que queriam pegar vocês”, ao som de música nacionalista. Mostram um exército bonzinho e soldados inofensivos indo falar com crianças pequenas. “Terroristas” é o termo mais empregado para se referir aos rebeldes. O regime detém a mídia tradicional: eles têm a TV, as rádios e os jornais. Os rebeldes não têm nada. Há páginas de Facebook e alguns pequenos jornais locais. O poder da retórica do regime com sua mídia e propaganda é muito mais forte do que qualquer coisa que os rebeldes poderiam produzir. É claro que isso tem efeitos na guerra. Internacionalmente, o noticiário se limita a uma fria contagem do número de mortos, sem adentrar nos pormenores da revolução. Se a cobertura é feita de outra forma, geralmente vem de ativistas, e não de grandes veículos de comunicação. Ou temos a velha retórica de guerra civil. Dizem que é uma guerra civil, que existem dois lados, que os sírios estão matando uns aos outros, que está uma bagunça e que os turistas não devem ir até o país. É a típica retórica despolitizada promovida pelas grandes mídias burguesas. Há também a cobertura feita por veículos do Golfo Árabe. Na Arábia Saudita e no Catar acontece o oposto. A revolução é propagandeada, mas a propaganda veiculada é de uma revolução que não é minha. Eles só filmam os islamitas. Há tantos lados na revolução síria que se torna complicado reportar sobre ela. Em menos de um ano se tornou muito mais difícil falar sobre a revolução síria.
Sul21 – O que tu pretendes fazer no Brasil agora que não podes retornar à Síria?
Sara - Vim ao Brasil no ano passado como uma ativista independente. Conheci muitas pessoas da CSP-Conlutas, do PSTU e fiquei impressionada com a sua organização, com seu grande interesse pela revolução síria e pelas lutas no Brasil, apesar de todos os problemas. Eu senti que precisava dessa dessa experiência de organização, então me juntei à Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT). Meu plano nesse momento é ficar no Brasil por um tempo para que eu possa ganhar mais experiência em termos de organização política. Na próxima semana, outro rebelde chegará ao Brasil. É um jovem de 22 anos que deixou sua universidade, lutou nas linhas de frente e fez parte de um conselho local. Ele é líder de uma das brigadas e passará pelo Brasil, pela América Latina e espero que também pela Europa, tentando estabelecer mais conexões. Sei que o Brasil é um país muito distante da Síria. As pessoas me perguntam por que não fui à Europa. Há organizações de esquerda na Europa. Elas são muito propagandistas e dão declarações muito bonitas. Mas as únicas organizações de esquerda que realmente apoiaram a revolução síria não só politicamente como materialmente foram a LIT e a CSP-Conlutas. Solidariedade não são só palavras, precisamos de dinheiro.

Sul21 – Tua família ainda está na Síria?
Sara – A minha família está em Beirute, no Líbano. Eles deixaram a Síria há sete meses. Meu irmão estava até agora lutando na linha de frente, mas acabou de conseguir o visto e está vindo para o Brasil.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Luciana Genro: “PSOL não pode cair na lógica de ganhar eleições a qualquer custo”


 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Ex-deputada estadual e federal, Luciana Genro é pré-candidata do PSOL à Presidência da República | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Samir Oliveira e Iuri Müller *no SUL21
Depois de sucessivos mandatos como deputada estadual e federal, e impedida pela lei eleitoral de concorrer a cargo legislativo no ano que vem, Luciana Genro prepara-se para tentar a Presidência da República pelo PSOL. O congresso nacional do partido, marcado para dezembro, pode referendar o nome de Luciana como candidata da sigla ao Planalto – ainda que outros nomes, como o senador Randolfe Rodrigues (AP) e o deputado federal Chico Alencar (RJ), possam também disputar essa indicação.
Em conversa com o Sul21, Luciana Genro defendeu sua pré-candidatura como uma reafirmação da disposição do PSOL em fazer política sem comprometer-se com métodos que descaracterizem o ideário da sigla. “Vou até o final nessa disputa”, acentuou, citando também pontos que considera fundamentais na eventualidade do PSOL chegar ao poder – o principal deles, a convocação de uma assembleia popular constituinte. “A partir dessa assembleia constituinte, rediscutiríamos as formas de representação e as formas como as instituições do país se organizam”, explica a pré-candidata.
Na entrevista, Luciana Genro tratou também dos protestos que tomaram conta do Brasil no mês de junho – manifestações que, segundo ela, demonstraram que o PT não mais dialoga com movimentos sociais – e da necessidade de incorporar as indignações expressas nas ruas dentro da construção de uma nova concepção de atividade política. Além disso, falou sobre a saída de Heloísa Helena do PSOL e de sua própria situação política – como seu pai, Tarso Genro, é governador do RS, ela foi impedida de concorrer a vereadora de Porto Alegre nas eleições do ano passado. O que, mesmo impedindo seu retorno às atividades parlamentares enquanto o pai for governador, ela garante não lamentar de todo. “Ficar sem mandato me permitiu participar dos movimentos e das atividades partidárias em uma outra posição”, diz ela.
Sul21 – Como foi a indicação da tua pré-candidatura à presidência pelo PSOL?
Luciana –
 O PSOL vive um processo de debate político muito rico. Em dezembro teremos o nosso quarto congresso, que acontece em um momento muito positivo da conjuntura política do país, principalmente depois das jornadas de junho. A nosso ver – e essa é uma avaliação bastante homogênea no PSOL –, as manifestações de junho mudaram de forma bastante consistente a conjuntura política e as perspectivas da política no Brasil. O levante de junho, como temos chamado, acabou fortalecendo dentro do PSOL a ideia de que precisamos ser um partido que se diferencie do conjunto de partidos colocados na política nacional. Isso já era uma definição desde a fundação. Quando decidimos fundar o PSOL, foi porque não aceitávamos a lógica da política tradicional, de fazer promessas na campanha e depois as enterrar em nome do pragmatismo e da governabilidade. Por isso eu, o Babá, a Heloísa Helena e o João Fontes fomos expulsos do PT há dez anos. O mote foi a reforma da previdência, que foi comprada com o mensalão.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Randolfe defende política desconectada da necessidade do PSOL ser um partido sem resquício de pragmatismo e alianças”, aponta Luciana Genro | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Teu nome ainda precisa passar por votação no congresso do partido?
Luciana -
 O congresso acontece nesse caldeirão político, em dezembro, e o meu nome foi apresentado. São três correntes dentro do PSOL que estão defendendo meu nome. Dentro do partido, existe um grupo chamado Bloco de Esquerda, que se contrapõe à ala que é dirigida pelo presidente Ivan Valente – e que tem nas suas fileiras, como possível candidato à presidência, o senador Randolfe Rodrigues. Primeiro, haviam lançado o Randolfe como candidato a presidente pelo PSOL. Então o Bloco de Esquerda, inconformado, se organizou e algumas correntes dentro do Bloco apresentaram o meu nome. É este o debate político que estamos construindo. Mas o Randolfe mudou de ideia, não se sabe bem se vai ser ele o candidato a presidente do outro grupo.
Sul21 – Qual a diferença política entre esses dois grupos?
Luciana -
 O Randolfe e o grupo que ele representa defendem uma linha política que, na nossa opinião, está desconectada da necessidade de o PSOL ser um partido fora da ordem, de abandonar qualquer resquício de pragmatismo e de alianças, particularmente – mas não só isso -, para ganhar eleições. No Amapá, onde o Randolfe tem sua base, o PSOL ganhou a eleição para prefeitura da capital, Macapá, o que foi uma vitória importante. Mas ganhou em um esquema político que não ajuda no processo de construção do partido enquanto alternativa de esquerda que realmente renega as formas tradicionais de fazer política. Lá, o PSOL chegou a ter o apoio do DEM no segundo turno e fez alianças com partidos da base do governo Dilma. Tudo isso está gerando um debate político que é muito bom para o partido, porque ajuda a desenvolver as caracterizações, avaliações e o próprio pensamento da militância.
“A principal preocupação é que o PSOL não reproduza a lógica de ganhar eleições a qualquer custo. Política vai muito além de postos institucionais”

Sul21 – Como tu avalias as mudanças pelas quais o partido passou agora com a conquista das prefeituras de Macapá e de Itaocara (Rio de Janeiro)? Quais as diferenças nesses dois processos?
Luciana –
 É difícil fazer uma comparação justa, porque são prefeituras bem diferentes. Uma é capital e a outra é uma cidade bastante pequena. Mas algumas questões de método são interessantes de se comparar. Por exemplo, a forma como foram escolhidos os secretários. Em Itaocara, cujo prefeito integra uma das correntes da esquerda do PSOL – a corrente do Babá, a CST – o secretariado foi escolhido com a participação da comunidade e do funcionalismo público. Houve um debate muito mais sobre as qualificações técnicas e políticas das pessoas do que indicações partidárias. Há um processo de mobilização muito positivo na cidade, que, inclusive já havia conquistado o passe livre para estudantes antes mesmo do levante de junho. Já em Macapá, temos indícios de participações de pessoas indicadas por filiados de partidos da direita.
Sul21 – A eleição de 2012 intensificou o debate sobre alianças e pragmatismo eleitoral no PSOL?
Luciana –
 A principal preocupação é que o PSOL não reproduza a lógica de ganhar eleições a qualquer custo. É óbvio que ter parlamentares é uma coisa muito importante para o partido, assim como ganhar prefeituras. Mas a política vai muito além de postos institucionais. As ruas mostraram, em junho, que amplas parcelas da população não se sentem representadas nas instituições tradicionais da política. O PSOL tem que revolucionar a política. Isso significa que temos que disputar, sim, processos eleitorais. No Rio de Janeiro, chegamos a quase 30% dos votos para prefeitura da capital. Lá, fazemos uma política que é institucional e, ao mesmo tempo, anti-regime. Uma política que enfrenta as formas tradicionais de fazer política, que tem uma figura pública que é o Marcelo Freixo. O PSOL tem o desafio de andar no fio da navalha, de conseguir ao mesmo tempo ter uma participação na política institucional, mas não se render aos métodos tradicionais da política.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Candidato a governo do RS pelo PSOL ainda está em aberto: “é possível que seja o Roberto Robaina”, diz Luciana | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Falava-se que o Chico Alencar poderia ser um nome de consenso para representar o PSOL na disputa presidencial.
Luciana – 
Ele poderia ter sido, mas não é mais. Quando foi lançado o Randolfe e lançado o meu nome, em consequência, houve uma movimentação de um setor do próprio Bloco de Esquerda para que o Chico fosse candidato. O grupo que tinha me lançado disse que se o Chico topasse, dentro de uma linha política acordada por todos, seria consenso. Só que, a partir dali, o Chico fez uma movimentação política totalmente de alinhamento com a corrente do Ivan. Então já não há mais a possibilidade de consenso. Vou na disputa até o final. Eu só abriria mão da disputa para o Marcelo Freixo. Antes de lançar meu nome, procuramos ele, conversamos. Mas ele não pode ser candidato a presidente porque não pode ficar sem mandato, já que é uma pessoa perseguida pelas milícias, justamente porque mexeu no coração da corrupção política do Rio de Janeiro.
Sul21 – Como o partido está se preparando para as eleições do ano que vem em nível estadual?
Luciana –
 Teremos candidato a governador, ainda não sabemos quem será. É possível que seja o Roberto Robaina, mas isso ainda está em debate. Nossa meta mínima é a eleição de um deputado estadual, mas temos expectativa de poder ir além. Ainda não se sabe como exatamente essa insatisfação com a política tradicional vai refletir no processo eleitoral e em que medida o PSOL vai conseguir se credenciar enquanto um partido que está fora da ordem tradicional da política. Acredito que temos chances de crescer. Uma parte significativa dessa juventude já tem relações com o PSOL ou se organiza no Juntos, que é um movimento de juventude independente, mas onde muitos militantes do PSOL atuam. Temos a expectativa de atrair um setor importante dessa juventude que se mobilizou e está em busca de uma alternativa política.
“O modelo uruguaio é limitado, ataca somente um dos pontos das drogas, que é a maconha. Mas deixa de fora a cocaína. Esse debate tem que se abrir”

Sul21 – E qual é a tua plataforma política na disputa interna pela indicação à presidência pelo PSOL?
Luciana –
 A primeira questão é que o Brasil necessitaria de uma assembleia popular constituinte para reorganizar o conjunto das instituições do país. A eleição para essa assembleia já teria que ser feita sob novas regras, sem a interferência do capital privado; com a possibilidade de candidaturas avulsas, para que as pessoas que não se sentem representadas por partidos possam concorrer; com tempos de televisão minimamente igualitários para todos. Teria que ser um processo eleitoral que não fosse marcado pela venda de candidatos como produtos, mas sim pelo debate político real. A partir dessa assembleia constituinte, rediscutiríamos as formas de representação e as formas como as instituições do país se organizam, além de medidas de democracia direta, onde o povo pudesse interferir nas decisões que são fundamentais do país, como a questão da dívida pública.
Sul21 – De que forma o tema da dívida pública pode ser tratado?
Luciana –
 Hoje, mais de 30% do orçamento do país é destinado a pagar a dívida pública, sendo que a maior parte desse dinheiro vai para aumentar os lucros dos bancos, que estão lucrando muito nos últimos anos. Os bancos lucraram mais no governo Lula e Dilma do que no governo do Fernando Henrique. É uma questão que deveria ser discutida em um plebiscito: é justo que falte dinheiro para se investir em moradia, transporte, passe livre, por exemplo?
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Hoje, mais de 30% do orçamento do país é destinado a pagar a dívida pública, sendo que a maior parte desse dinheiro vai para aumentar os lucros dos bancos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Que outros temas poderiam ser abordados na candidatura?
Luciana – 
Um tema que me sensibiliza muito, até porque sou advogada e estou me especializando na área penal, é a questão da descriminalização das drogas. O modelo uruguaio é limitado, ataca somente um dos pontos das drogas, que é a maconha. Mas deixa de fora a cocaína, que também é importante. Esse debate tem que se abrir. Também poderia ser objeto de um plebiscito com um debate político muito bem feito, para que se trate o problema da droga como uma questão de saúde pública, principalmente em drogas como a cocaína, que são de periculosidade elevada. Acho uma grande hipocrisia que a maconha seja tratada como uma droga proibida, já que tem nível de periculosidade igual ou inferior ao álcool e ao cigarro. Deveria ser uma droga lícita e deveriam ser alertados os perigos, da mesma forma que se alega do cigarro e do álcool.
Sul21 – No Uruguai, o controle estatal sobre a maconha veio com a justificativa de que acabaria com o tráfico.
Luciana – 
Grande parte da tragédia que a gente vive no sistema prisional está relacionadas com a ilegalidade das drogas. A maioria do dinheiro público gasto com segurança é dirigido ao combate ao tráfico. Isso já se demonstrou uma política falida. No mundo inteiro essas políticas estão sendo rediscutidas e o Brasil está atrasado nesse aspecto. É preciso que os problemas de saúde pública e de segurança sejam tratados de outra maneira, a partir da descriminalização. Mas essa é uma posição minha, que vai ter que ser discutida com o partido. A partir de eu ser escolhida como candidata, quero pautar esse debate com o partido e ver de que forma se pode fazer essa abordagem.
“Os problemas que foram colocados pelos movimentos de junho não foram resolvidos em absoluto. A tendência é que se retome essa pauta”

Sul21 – Em relação às manifestações, como tu avalias a resposta do poder público?
Luciana –
 A reação do poder público demonstrou que o conceito marxista e leninista sobre o Estado é mais atual do que nunca: de que o Estado é, em última instância o braço armado da burguesia para garantir seus interesses. O tratamento do Estado, em primeiro lugar, foi policialesco. Isso vale para todo o Brasil. Alguns governos reagiram com mais violência, outros com menos, mas a violência foi generalizada. As medidas concretas para responder aos problemas que foram colocados foram totalmente insuficientes. E as medidas mais “radicais” propostas pela presidente acabaram sendo engavetadas por ela própria, como seria a proposta de uma constituinte exclusiva para discutir a reforma política – que era insuficiente, mas era uma medida positiva. Os problemas que foram colocados pelos movimentos de junho não foram resolvidos em absoluto. A tendência é que se retome essa pauta. Talvez não com a mesma força e magnitude que aconteceu em junho, que foi um fenômeno político muito especial, que não se repete com tanta facilidade. Mas, com certeza – e isso já estamos vendo agora – se abriram as comportas para que as exigências sejam pautadas de forma mais constante. As lutas que vêm surgindo desde aquele momento não pararam mais. E acho que não vão parar.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
É necessário, segundo pré-candidata, organizar indignação de protestos de junho de forma a constituir novas lideranças e movimentos | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – É possível intensificar os movimentos que desaguaram em junho?
Luciana -
 A tendência é que se possa avançar, tanto em termos de conquistas como também em termos de organização. A grande necessidade que se tem a partir do que aconteceu em junho é organizar a indignação. O PSOL é parte desse processo de tentar ajudar a organizar essa indignação, mas é claro que não é algo que passa só pelo PSOL. Desde que o PT ganhou a presidência da República, houve uma cooptação das lideranças dos movimentos sociais, e, portanto, um refluxo das lutas. Junho foi uma “revolução” porque mostrou que o PT já não controla mais os movimentos como conseguiu nos últimos dez anos. Isso possibilita que surjam novas lideranças e novos movimentos, ou que os movimentos que já existem ganhem novos contornos e deixem de se enjaular pelo governo.
Sul21 – O mês de junho foi de contestações ao governo quase diárias. Também exigiu respostas dos partidos em vários setores. Na tua opinião é uma oportunidade para que o PT tente se reinventar?
Luciana 
– O PT não consegue mais se reinventar, porque já não tem mais oxigênio interno para se renovar. O ponto de corte foi a nossa expulsão. Foi a mensagem clara de que não havia espaço dentro do PT para quem não se alinhasse com as necessidades do governo. Quem ficou no PT – e eu não digo os eleitores, mas os dirigentes – aceitou essa lógica de submissão dos interesses do povo às necessidades do governo. O PT tem oxigênio eleitoral, e é possível que a Dilma ganhe novamente as eleições. Mas, enquanto um partido de transformação, o PT está morto. Pode ser um partido de eleições, de governos que são instrumentos para aplicação das medidas necessárias para a reprodução do capitalismo. Não vai além disso.
Sul21 – Tu falaste que as manifestações demonstram que exige uma base social que contesta o sistema e a política tradicional. Mas algumas análises dizem que, em alguns momentos, as manifestações tiveram grande presença da direita e de uma classe média que acaba reproduzindo anseios apolíticos. Tu tens essa avaliação ou acreditas que as manifestações são a expressão de uma massa que reflete mais o pensamento da esquerda?
Luciana –
 Não acho que seja uma massa que reflete o pensamento da esquerda. Mas acho que essa história do “golpe” foi uma invenção do PT para tentar desacreditar o movimento e tentar explicar sua própria impotência diante de um movimento que o transbordou completamente. As pessoas que acreditavam no PT ou as que ainda viam na política uma forma de transformação se desiludiram. Viram o PT – que era um partido que se construiu contestando a corrupção e a submissão do país aos interesses do capital – chegar ao poder e fazer exatamente aquilo que contestou a sua existência inteira. Então essas pessoas chegam à conclusão de que política é tudo igual, partido é tudo igual e nenhum serve para nada. O apoliticismo foi alimentado pelo próprio PT.
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Luciana Genro não identificou discursos de direita em protestos: “o que houve foi uma repulsa aos partidos, inclusive os do campo de esquerda que tentavam se impor” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Outro aspecto, gente de direita existe no Brasil, sempre existiu e sempre vai existir. Isso faz parte do espectro político de qualquer sociedade. Acho até que nas manifestações isso apareceu de forma muito tímida, porque se a gente for analisar todas as reivindicações que surgiram nos cartazes feitos pela população, não tinha nenhuma consigna de direita, tipo “militares voltem”, ou contra o aborto, no campo dos “costumes”, digamos assim, ou “fora os homossexuais”. O que teve de fato foi uma repulsa aos partidos, que atingiu inclusive os partidos de esquerda que tentavam se impor. O PSOL muito pouco, porque a nossa linha foi não aparecer enquanto partido. Nós fomos, e eu participei, inclusive tomei bomba de gás lacrimogêneo da Brigada Militar aqui em Porto Alegre, e participei em São Paulo também. E fui como indivíduo, fui muito bem recebida pelas pessoas que me reconheceram. O PSTU tentou se impor como partido, com bandeiras, e teve até confronto físico.
Claro, teve setores da direita que se aproveitaram desse sentimento anti-partido. Mas a maioria das pessoas (com esse sentimento) não eram necessariamente da direita, mas pessoas que não queriam que os partidos políticos se apropriassem de um movimento que não era organizado pelos partidos.
“Heloísa Helena foi fundamental no processo de construção do PSOL. Mas ela faz política muito mais com o fígado do que com o cérebro. Então ela acabou numa rota de colisão com Ivan Valente”

Sul21 – Em uma década de existência, o quão heterogêneo é o PSOL hoje?
Luciana –
 O PSOL é menos heterogêneo do que era o PT em sua fundação, embora seja heterogêneo. Não acho que isso necessariamente seja ruim. É positivo que se tenha diferenças políticas e debates políticos. Mas o PSOL tem uma maioria – e acredito que isso vá se demonstrar no nosso congresso em dezembro – que aprendeu com o processo da expulsão do PT. Ou, melhor dizendo: aprendeu com o processo da falência do PT. Acho que alguns setores, que hoje identifico nessa coalizão em torno do Randolfe, não tiraram todas as conclusões necessárias. Não é casual que eles tenham ingressado depois no partido. Embora haja grupos que vieram depois e que tiraram as conclusões e hoje estão no Bloco de Esquerda. Mas esse setor do Randolfe e do Ivan Valente não tirou todas as conclusões necessárias do processo do PT. Isso não nos impossibilita uma convivência partidária, mas nos impõe uma disputa política. Disputar os rumos do partido com esse setor é fundamental para que possamos fazer do PSOL uma alternativa que seja viável politicamente e, ao mesmo tempo, não repita os erros cometidos pelo PT.
Sul21 – Como tu avalias a saída da Heloísa Helena do partido? Ao que tudo indica ela estaria indo para a Rede.
Luciana –
 É uma perda para nós, caso se concretize. É uma perda muito triste, para mim, em particular, que tenho uma relação de amizade com ela. Ela foi fundamental no processo de construção do PSOL. Mas a Heloísa Helena tem uma característica de fazer política muito mais com o fígado do que com o cérebro. Então ela acabou numa rota de colisão com esse grupo encabeçado pelo Ivan Valente desde aquele momento da escolha do Plínio como candidato à presidência. E desde então ela não conseguiu mais se reinserir com o partido. Isso acabou se combinando com uma relação de amizade e de identidade que ela tem com a Marina (Silva), então ela decidiu ajudar a Marina na construção da Rede. Se o partido conseguir a legalidade, é bem provável que ela vá mesmo para a Rede.
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Eleita pela primeira vez com 23 anos, Luciana acredita que distância dos parlamentos permitiu voltar a fazer política a partir de uma posição de militância | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como foram esses anos sem mandato político e a questão jurídica? Já se encerrou esse processo?
Luciana –
 Se encerrou no TSE e eu perdi no TSE também. Eu acho que fui vítima de uma injustiça, porque se houvesse alguma equidade no sentido aristotélico da palavra, que é observar o caso concreto e fazer justiça no caso concreto, o meu caso teria tido um tratamento diferente. Eu não acho que essa lei em si seja necessariamente ruim e que devesse ser derrubada, acho que o meu caso concreto tinha que ser visto com outros olhos. Infelizmente a nossa justiça ainda é muito positivista, no sentido de olhar a letra fria da lei e não cotejar a lei com a vida real. Mas para mim foi uma experiência até positiva ficar sem mandato, porque tive a oportunidade de estar mais próxima da cidade de Porto Alegre, e ao mesmo tempo tenho ido bastante para São Paulo, fazer política lá. Tive a oportunidade de terminar meus estudos em Direito, estou terminando uma pós-graduação e pretendo fazer um mestrado. Ficar sem mandato me permitiu participar dos movimentos e das atividades partidárias desde uma posição mais de militante do que de parlamentar.
Sul21 – Te dedicaste também a estruturar o Emancipa, certo?
Luciana –
 Exatamente. Esse foi um processo que me satisfez muito. Agora passei para o Marco Viana a diretoria do Emancipa, é uma OSCIP, conseguiu aprovar neste último vestibular mais de 60 alunos da UFRGS, e isso foi muito gratificante. A gente recebe muito o feedback dos jovens que participaram. Para mim é uma nova experiência, porque eu fiquei 16 anos como parlamentar, eu fui eleita com 23 anos pela primeira vez. Então eu já estava um pouco esgotada nesse papel, foi positivo para mim poder continuar fazendo política desde uma outra posição.
* colaborou Igor Natusch