Escrito por Valéria Nader, da Redação - Colaborou Gabriel Brito |
Mensalão e eleição serão, inegavelmente, marcas registradas do
ano de 2012. Daquelas que vêm primeiro à mente ou aparecem de maneira
mais imediata ao senso comum. O primeiro, no entanto, passado o momento
de arrebatamento inicial, repleto de rompantes e querelas políticas,
ficará para a história como mais do mesmo da política nacional, com a
sua equalização por baixo a partir do vale-tudo institucional. E as
últimas eleições municipais tampouco serão capazes de se registrarem
mais qualificadamente na memória coletiva, vez que, no geral, não
chegaram a modificar de modo substancial a atual composição de forças
dominantes.
Na economia mundial, a desaceleração voltou a mostrar força
retumbante em 2012, mais notadamente no continente europeu, às voltas
com as imposições barbarizantes da chamada Troika. Um processo que,
ressalte-se, já vem se delineando bem antes da explosão da crise
financeira internacional de 2008, e que não chega a ser surpreendente
para quem acompanha o desenrolar da vertente econômica dominante –
norteada pela satisfação dos interesses do capital financeiro e das
grandes corporações internacionais.
Se o Brasil pôde, por um bom tempo, passar relativamente incólume
à degringolada do capitalismo mundial, em especial em sua vertente
neoliberal, não foi bem assim em 2012. Estaria aqui uma das novidades do
ano que finda? Sim, mas somente para aqueles que têm carregado a imagem
do Brasil como uma das ‘meninas dos olhos do capital financeiro’ e que
se iludem com a noção de que o país ascendeu socialmente, agora que a
classe média comporia uma boa parte da população. Aos olhos de quem se
atenta para as frágeis bases em que está assentado o modelo econômico
interno, fortemente calcado no consumo de supérfluos, no endividamento
familiar e, portanto, em uma expansão insustentável do crédito, não há
como não antever que, cedo ou tarde, a barbárie vai se instalar em solo
pátrio.
Movimentações e protestos mundiais em reação à forte crise
externa e, especialmente, às medidas fiscais restritivas e pauperizantes
que vêm sendo impostas têm se alastrado por vários países. E no Brasil,
não foi diferente. É certo que, neste ano, houve um forte
recrudescimento da reação popular aos atropelos dos direitos das
populações urbanas vulneráveis e também às agressões aos povos
originários. Os movimentos sindicais mais organizados também irromperam
na arena política exigindo, dentre outros, a recomposição de rendimentos
há longos anos defasados, em função da negligência dos governos com os
setores e o funcionalismo público.
Toda esta movimentação é, sem dúvida, indicativa da agudização da
percepção das mazelas e contradições no seio da sociedade, e de que
possam começar a se mover alguns dos arraigados e retrógrados alicerces
sociais. Trata-se, de todo modo, de uma movimentação ainda incipiente,
carente de amplitude e organicidade. E tão ou mais essencial que este
caráter incipiente, e a ele associada, esta reação tem sido respondida a
partir da lógica vigente em nossa economia e sociedade, qual seja, a
lógica de governos submissos aos interesses econômicos e financeiros. A
repressão e a violência policial têm aparecido, assim, notoriamente como
a resposta mais imediata aos grupos que se organizam na defesa de seus
interesses.
Com esta visão em mente, o sociólogo do Trabalho e professor do departamento de Sociologia da USP, Ruy Braga, é o nosso entrevistado especial neste final de ano. Seus estudos, assim como seu mais recente livro, ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista, são emblemáticos em meio a este cenário, visto lançarem sobre ele um profundo e sensível olhar.
Um dos destacados registros de seu último livro diz respeito ao
processo de concessões reais que embasam aquela que é chamada de
‘hegemonia lulista’, basicamente calcada em um consentimento passivo das
bases sociais e em um consentimento ativo por parte das direções
sindicais. Neste sentido, o sociólogo ressalta que “as condições de vida
e inserção da classe trabalhadora nas cidades e locais de trabalho são
muito precárias. A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por
conta da relativa desconcentração de renda, as condições de vida são
muito limitadas, o que não tem mudado significativamente. Em alguns
casos tem piorado, e muito. Portanto, temos um aumento de consumo e, ao
mesmo tempo, condições de vida e trabalho muito degradantes”.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: A ideia do ‘precariado’ é um dos temas de análise de seu último livro ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista. O que você destacaria como essencial na apreensão deste conceito e o que o motivou a desenvolvê-lo?
Ruy Braga: O conceito sociológico de precariado já
vem sendo utilizado por alguns sociólogos de forma bastante intensa na
Europa, em especial na França e Inglaterra, a fim de se pensar a
formação daquilo que eles próprios denominam uma classe social de novo
tipo. E o que seria uma classe social de novo tipo? Seria aquele
conjunto de indivíduos progressivamente expulsos da proteção do Estado
de bem estar social, tendo em vista o avanço do neoliberalismo e o
aprofundamento da crise econômica.
Significa que, com base nas políticas de ajuste, em especial as
chamadas e debatidas políticas de austeridade impostas pela troika (mas,
antes disso, com base nas políticas de ajuste que viabilizaram a
criação da União Europeia como unidade econômica, a implantação do euro,
o Tratado de Maastricht e tudo o que envolvia o contexto da expansão do
neoliberalismo), houve uma diminuição da chamada proteção social, ou da
amplitude de aplicação dos direitos sociais na Europa.
A flexibilização da contratação de trabalhadores – que em Portugal se
dá via contratos livres, que são aqueles feitos via Pessoa Jurídica
(PJ), de prestação de serviços – acaba produzindo uma diminuição muito
grande do impacto da proteção trabalhista, em especial nos setores mais
jovens dos trabalhadores. É a ampliação daquela franja desprotegida do
mercado de trabalho, que cresceu nos anos 90 e se tornou muito vistosa e
saliente agora, por conta do aprofundamento da crise econômica
europeia. De modo que se identifica essa nova classe social, formada
pelos indivíduos que sofrem a diminuição da proteção social na Europa.
E quanto à motivação para este estudo, havia uma inquietação da minha
parte com relação a tal diagnóstico. Porque, olhando as coisas de uma
perspectiva brasileira ou mesmo norte-americana, vemos que, a rigor, a
insegurança é a regra, sempre foi assim. No Brasil é regra
historicamente estabelecida, através da insegurança do mercado e dos
trabalhadores. Eu olhava para aquela discussão e percebia problemas,
que, diga-se de passagem, têm a ver basicamente com certa sobreavaliação
do papel histórico do chamado compromisso socialdemocrata do
pós-Segunda Guerra. Este compromisso foi de fato muito eficiente pra
proteger aquela fração branca, masculina, nacional, sindicalizada e
adulta da classe trabalhadora. Mas, evidentemente, não foi tão eficiente
assim pra proteger a parcela feminina, jovem, imigrante, não
qualificada e não sindicalizada – mesmo na classe trabalhadora européia,
durante o auge do fordismo. O fordismo socialdemocrata também sempre
teve seus descontentes. Mas isso não era muito discutido, não era tão
exuberante, já que se tratava de trabalhadores periféricos.
A partir de certo momento, essa franja periférica cresceu muito, e
daí vem o precariado. O precariado é nada mais nada menos que a boa e
velha superpopulação relativa da qual já falava Marx, ou seja, aquela
fração da classe trabalhadora composta majoritariamente por aqueles que
entram e saem muito rápido do mercado por falta de qualificação - aquela
parcela rural ou da informalidade, setores formados por jovens no
primeiro emprego e aqueles que têm ocupações tão degradantes que os
obrigam a produzir de forma anormal, ou seja, vender sua força de
trabalho abaixo de seu valor. São todos esses fatores somados.
O que tentei fazer foi uma leitura construtivista, do ponto de vista
da sociologia marxista, dessa parte da classe trabalhadora que podemos
chamar de proletariado precarizado. Procurei separar setores mais
qualificados da classe trabalhadora daqueles setores pauperizados (ou
lumpenizados) e populares, e concentrar a análise neste proletariado
precarizado, formado pelo conjunto de frações da classe trabalhadora. A
isso chamei de precariado, aquela classe trabalhadora permanentemente
pressionada pelo aumento da atual exploração capitalista e a ameaça de
exclusão social.
Correio da Cidadania: Partindo deste olhar, como tem
enxergado, de modo geral, o mundo do trabalho no Brasil, especialmente
no que diz respeito à condução de políticas e medidas nas áreas
trabalhista e sindical nestes dois últimos anos sob o governo de Dilma
Rousseff?
Ruy Braga: Eu argumento no livro que o precariado é
uma parte fundamental do mundo do trabalho no Brasil. Fundamental
especialmente a partir dos anos 90, em função de uma profunda
reestruturação produtiva, com integração da economia brasileira à
economia internacional, através da liberalização comercial e financeira,
mas também pelo fato de que foi a década da multiplicação das formas de
contratação, quando tivemos o aprofundamento da precarização. Foi a
década do desemprego.
Temos, assim, um manto bastante saliente, notável, do setor
precarizado da classe trabalhadora. Viu-se um aumento da informalização,
seguido de aumento do desemprego, da exploração, das formas de contrato
por tempo determinado, enfim, essas formas não canônicas de contratação
- a despeito de a década de 2000 representar certa guinada em algumas
tendências, em especial, notavelmente, da informalização, já que esta
década foi de maior formalização do trabalho. Apesar disso, o aumento da
formalização foi acompanhado do aumento das taxas de volatilidade do
trabalho, de flexibilização, da precarização, da terceirização e,
consequentemente, do aumento daquele que é o aspecto mais visível da
deterioração das condições reais de consumo da força de trabalho, isto
é, o aumento dos acidentes e mortes no trabalho.
Percebo que, apesar desse processo de formalização dos anos 2000,
temos a reprodução da centralidade de tal precariado no mercado de
trabalho brasileiro, que acaba se tornando o principal mecanismo de
ajuste anticíclico das empresas, contratando à vontade e consumindo a
força de trabalho em condições muito duras. Intensificam turnos e assim
têm uma espécie de fórmula de ajuste, com a volatilidade da demanda
concentrada especialmente sobre essa fração precarizada do proletariado
brasileiro.
Na transição do governo Lula para o governo Dilma, não tivemos
grandes novidades do ponto de vista do mercado de trabalho, que continua
relativamente estável, a despeito das ameaças de demissão de 2011.
Estas ameaças foram contornadas por políticas específicas do governo,
principalmente desonerações da folha de alguns setores estratégicos, que
consomem muito trabalho, como notoriamente o faz a construção civil. A
não ser no contexto da famosa desaceleração econômica, o que
evidentemente coloca mais pressão sobre o desemprego e pressiona as
empresas a demitirem, não temos percebido um mercado de trabalho muito
diferente do que era no governo Lula.
Do ponto de vista sindical, a partir de 2008, percebe-se nitidamente
uma elevação do número de greves no Brasil. Tem-se uma retomada da
mobilização grevista, que, diga-se de passagem, se acentuou de 2010 para
2011, com um aumento de 27% do número de greves. Algumas delas de
abrangência nacional, como a dos bancários e dos Correios. Foram greves
longas e com pautas bastante agressivas, exigindo reajustes reais,
ganhos e participações, melhorias da condição de trabalho, com forte
adesão dos seus trabalhadores. Acredito que esta seja uma tendência para
os próximos anos, até porque é uma tendência que vem de 2008.
Portanto, acredito que o futuro aponta para uma retomada da mobilização grevista.
Correio da Cidadania: Ainda neste sentido, um dos registros
profundos de seu último livro diz respeito ao processo de concessões
reais que embasam aquela que é chamada de ‘hegemonia lulista’,
basicamente calcada em um consentimento passivo das bases sociais e em
um consentimento ativo por parte das direções sindicais. Nesta linha de
raciocínio, o que teria a dizer quanto ao atual patamar das lutas
trabalhistas e sindicais e a direção para a qual têm apontado?
Ruy Braga: Eu costumo dizer que o precariado se
encontra relativamente satisfeito com o modo de regulação lulista, isto
é, com as políticas públicas. Mas, quando nota as relações de trabalho,
percebe os limites do modelo de desenvolvimento pilotado por essa
burocracia lulista e setores oriundos dos sindicatos.
O argumento é simples: o precariado se sente relativamente integrado
pelas políticas públicas (Bolsa-família, aumento do salário mínimo,
ampliação do sistema federal de ensino superior, políticas de ampliação
do crédito consignado), através de um progresso material relativo e a
desconcentração da renda. O precariado percebe tais questões.
Mas, ao mesmo tempo, se dá conta de que, a despeito de tudo isso,
aumenta também o endividamento das famílias trabalhadoras. Apesar de
existir emprego, é de baixa qualidade; apesar da formalização, ganha-se
muito mal. Pra se ter uma ideia, durante o governo Lula foram criados
2,1 milhões de empregos por ano. Porém, destes, 94% (2 milhões)
remuneram até 1,5 salário mínimo, ou seja, até 980, 1000 reais. São
muitos empregos, mas remuneram muito mal, porque não se requer uma força
de trabalho qualificada e sequer é necessária uma qualificação
especial. Absorve-se bastante gente, mas em condições degradantes, com
salários ruins.
O precariado percebe esta situação, pois a vive no dia a dia. Assim,
desenvolve uma relação ambígua com o conjunto do modelo de
desenvolvimento formado pelo modo de regulação e o nível de exploração.
Esse é o meu argumento.
Correio da Cidadania: Como analisa o nível de inserção
sindical, auto-organização e também leitura da realidade dessa parte
mais precarizada de nossa classe trabalhadora?
Ruy Braga: O nível histórico de sindicalização da
classe trabalhadora brasileira é baixo, historicamente baixo, em
especial em setores privados da economia. Se encontrarmos setores com
10%, 15%, de sindicalização, já pode ser considerado muito elevado. Isso
mudou profundamente na última década, quando, com o aumento do emprego
formal, aumentou-se também o nível de sindicalização. Porém, ainda tem
baixo impacto.
Mas o ponto que considero mais importante da questão diz respeito
basicamente ao processo de reorganização sindical. Porque, afinal de
contas, com um sindicato integrado à estrutura de governo, pelo fato de
ter acontecido uma certa fusão entre sindicalismo e Estado, os
trabalhadores se veem inseridos numa relação que é mais ou menos a
seguinte: por um lado, não podem colocar muita pressão nos governos,
porque são aliados; por outro, têm de satisfazer reivindicações de suas
bases, pois o sindicalismo está lá pra isso e quem está no comando pode
ser substituído numa eleição interna – deixando de lado, obviamente, a
questão do gangsterismo sindical.
No entanto, o fato é que o poder sindical precisa de consentimento
das bases, o que tem colocado pressão sobre alguns setores, até mesmo do
sindicalismo governista. Isso pôde ser percebido na greve nacional
bancária, na greve dos Correios, e em várias questões que dirigiram
greves de outros trabalhadores. E mesmo sindicalistas lulistas,
governistas, se veem pressionados em suas bases e precisam dar resposta -
afinal, representar os interesses das bases é uma questão elementar do
sindicalismo.
De todo modo, essa integração sindicatos-Estado coloca uma série de
problemas. Se pegarmos os dados de greve, vemos que ela é muito forte no
BB e na Caixa. E a negociação tende a ser bem mais favorável aos
trabalhadores quando a economia cresce a 4%, 5% ao ano, como ocorreu até
2008, diferente de agora, com um crescimento na casa de 1,5%, 1,6%.
Essa diferença se viu entre os governos Lula e Dilma. O governo que
espera crescer 1% ou 2% ao ano vai endurecer a negociação, em comparação
ao que ocorre quando a economia crescia 6%, 7%. Tal fato tem
acrescentado tensões dentro do sindicalismo, o que vem levando a uma
relativa reorganização do movimento sindical, com o reaparecimento de
algumas centrais descoladas do governismo, como a Conlutas e a
Intersindical.
Temos uma reacomodação do sindicalismo brasileiro e uma dinâmica mais tensa no sindicalismo governista.
Correio da Cidadania: Tomando os conflitos sociais de forma
mais abrangente, o ano de 2012 marca-se de forma relevante por uma série
de confrontos, envolvendo, além dos movimentos grevistas de categorias
sindicais, a luta pelos direitos indígenas, movimentações sociais em
várias esferas e embates das periferias urbanas pela conquista e/ou
reconquista de seus direitos. O que poderia dizer sobre 2012 neste
quesito e, principalmente, da forma com que os vários níveis de governo,
municipal, estadual e federal, têm enfrentado tantas e legítimas
demandas sociais?
Ruy Braga: Os governos estaduais e municipais são um
desastre total. Governos que militarizaram o conflito social, colocaram
a PM pra reprimir famílias de trabalhadores, como no Pinheirinho,
enviaram 400 policiais pra desocupar uma reitoria ocupada por 70
estudantes, entre outras repressões policiais. É desastroso do ponto de
vista social. Isso evidentemente vai cobrar seu preço, haja vista que em
São Paulo já cobrou, com o governo municipal tendo sido conquistado
pela oposição petista. E acho que o mesmo acontecerá no nível estadual, a
fatura vai ser cobrada.
Isso porque as condições de vida e inserção da classe trabalhadora
nas cidades e locais de trabalho são muito precárias, devemos ressaltar.
A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por conta da relativa
desconcentração de renda, as condições de vida são muito limitadas, o
que não tem mudado significativamente. Em alguns casos tem piorado, e
muito.
Portanto, temos um aumento de consumo e, ao mesmo tempo, condições de
vida e trabalho muito degradantes. E evidentemente nada será resolvido
com PM atirando bala de borracha em família de trabalhador. Trata-se de
uma forma absolutamente desastrosa, trágica e equivocada de se lidar com
a questão social.
O governo federal é um pouco diferente no quesito, mas também não
vejo avanços realmente significativos nessa esfera de poder. Não existe
reforma agrária séria, por exemplo. Pelo contrário, o governo federal
legalizou terras griladas, esqueceu demandas históricas por terra e,
através do Ministério das Cidades, fez muito pouco em termos de
legalização de terras ocupadas.
Assim, não sou muito otimista quanto à relação entre governos e movimentos, em questões como moradia e luta pela terra.
Correio da Cidadania: 2012 foi também um ano de eleições
municipais. O que os resultados dos pleitos municipais de 2012
enunciaram, a seu ver, quanto ao andamento e composição das forças
políticas de nosso país?
Ruy Braga: Acredito que houve uma vitória do
governismo, consolidando a hegemonia lulista nesse campo da sociedade,
na versão micro, mais próxima do cidadão. Mas temos alguns movimentos
contraditórios. Eu chamaria a atenção para que os setores populares,
plebeus, mais empobrecidos, de fato procuram alternativas. Aqui em São
Paulo houve a visibilidade estrondosa da candidatura Russomanno,
especialmente em regiões periféricas, o que mostra certa disposição da
parcela mais popular em buscar alternativas àquelas que são as opções
mais tradicionais, representadas no caso por Haddad e Serra. O
desempenho eleitoral do PSOL também mostra um pouco disso, uma
aproximação de setores mais plebeus a opções mais descoladas do establishment,
inclusive em São Paulo. Os eleitores do Russomanno mantiveram a postura
de procurar alguém mais permeável a suas demandas, de modo que
repassaram seus votos para o Haddad no segundo turno.
Estabeleceu-se uma hegemonia lulista, mas ela se reproduz em terreno não tão firme quanto se acredita.
Correio da Cidadania: Inescapável é a constatação de que 2012
se encerra também marcado pelo chamado mensalão. O que este episódio,
com toda visibilidade e repercussão de que foi alvo, te diz a respeito
de nosso contexto político?
Ruy Braga: O mensalão representa um pouco a
constatação de que a política está muito igual, ou seja, o vale-tudo
político-institucional absorve as mais diferentes forças políticas e
sociais e equaliza tudo por baixo. O mesmo esquema de compra de votos
utilizado pelo governo FHC foi também usado pelo PT, e com os mesmos
operadores. Com isso, temos um nivelamento por baixo da política.
O grande problema é que a população não vê muitas alternativas, até o
momento, a essa polaridade. Todo mundo sabe que é mais ou menos tudo
farinha do mesmo saco. Mas o PT se destaca mais pelas políticas sociais e
públicas, com uma interlocução maior com o movimento sindical e
popular, o que evidentemente o coloca muito à frente do PSDB nesse
quesito. O PT consegue representar e empunhar uma agenda (a despeito de
todos os seus limites) da diminuição da desigualdade social. O PSDB não
consegue fazer isso porque é tradicionalmente o partido da desigualdade.
De todo modo, prevalece a noção do vale-tudo eleitoral, que equaliza
todo mundo por baixo - o cenário fica sem muita diferença. Assim, entre
as opções existentes, a população se atrai mais para o lado de quem se
apresenta com uma agenda de diminuir um pouco a desigualdade.
Correio da Cidadania: Pensando um pouco em termos mundiais,
estamos diante do que se pode chamar de repique da crise de 2008, com a
evidente e atual desaceleração da economia mundial, impactando a Europa
de modo avassalador, e já reverberando notavelmente nos países em
desenvolvimento, entre eles, o Brasil. Como vê esse cenário e o que
pensa da conduta do governo Dilma na condução da política econômica
interna, essencialmente no que diz respeito ao caráter das medidas que
vêm sendo tomadas para evitar uma desaceleração maior da economia?
Ruy Braga: A crise mundial é muito intensa e o
modelo de desenvolvimento brasileiro durante os anos 2000 foi se
deslocando aceleradamente para aqueles que hoje são os principais
motores da acumulação de capital no país: bancos, mineração,
agronegócio, petróleo, siderurgia, construção civil... Muitos deles
dependem notoriamente do mercado internacional. Agronegócio e mineração,
dois motores importantes, dependem efetivamente de encomendas externas.
Com uma recessão mundial estabelecida, a economia brasileira é
obviamente atingida. O governo tentou por um tempo aplicar medidas
anticíclicas apoiadas no crédito, o que teve seu fôlego, mas, a partir
de certo momento, começou a claudicar, pois as pessoas começaram a se
intimidar e ver que não iriam conseguir pagar suas dívidas. O governo
modificou, portanto, tal agenda, não radicalmente, mas acrescentando os
investimentos em infraestrutura. Nos últimos quatro, cinco anos, a
partir de 2008, isso se intensificou, com anúncios de obras de
infraestrutura, integração da malha viária, qualificação dos portos,
construção de barragens, concessão de aeroportos...
São medidas importantes, mas não têm capacidade de, por si mesmas,
equacionarem o grande problema de uma economia com as características da
brasileira, isto é, o investimento capitalista. O principal investidor é
o próprio governo, através do BNDES. Fora ele, o investimento privado é
muito baixo. O investidor privado efetivamente não se arrisca, até
porque não precisa, além de buscar remunerações bastante generosas.
Agora que a taxa de juros tem caído, o investidor se sente mais obrigado
a investir o dinheiro, mas continua covarde. O que, então, acontece
hoje? O governo não consegue seduzir o investidor privado, que por sua
vez não é capaz de equacionar sozinho o problema do investimento no
país.
A realidade é que crescemos pouco. Não estamos em recessão, mas
vivemos um momento de flagrante desaceleração econômica, no qual
praticamente só se vê um único jogador em campo, o governo. E ele não é
capaz de resolver sozinho o problema.
Qual a solução? Ou se nacionalizam os grandes meios de produção, com a
estatização dos grandes intermediários financeiros ou... Vai ser
difícil.
Correio da Cidadania: Você possui uma visão esperançosa das
movimentações sociais que vêm rondando o mundo, desde a primavera árabe
até a grande quantidade de movimentos ‘Occupy’ que têm varrido diversos
países, passando por alguns protestos massivos na Europa?
Ruy Braga: Eu costumo citar Antonio Gramsci, sendo
muito pessimista na razão e otimista na vontade. Sinceramente, não
coloco muita esperança nos movimentos ‘Occupy’, muito espontaneístas e
pouco orgânicos. A primavera árabe é um processo diferente, no qual a
palavra final não foi dada ainda, mas que ocorre num contexto muito
contraditório, com várias forças internacionais assumindo protagonismo a
partir de dado momento. Na Europa, sou mais otimista com as
movimentações dos trabalhadores e da juventude, mas vejo grandes
barreiras nacionais.
Assim, é necessário internacionalizar tais lutas, especialmente na
Europa, onde há mais base para tal. Mas não tem ocorrido este contexto.
Os trabalhadores gregos lutam na Grécia, os trabalhadores espanhóis
lutam na Espanha... Não há até, o momento pelo menos, o desenvolvimento
de um internacionalismo mais agudo e radical. Minha esperança é de que
não fique assim, que haja uma internacionalização das lutas, em escala
regional no caso da Europa, e em escala mundial, acrescentando-se EUA,
países árabes, latinos...
Correio da Cidadania: Finalmente, 2012 acaba sob forte
desaceleração econômica e 2014 é ano de Copa e eleições presidenciais. O
que você espera pra 2013, no sentido de medidas a serem tomadas pelo
governo para sanear as contas públicas e promover crescimento, visto o
reduzido espaço que terá para empreender tais tarefas no ano seguinte?
Ruy Braga: O governo ainda tem mecanismos, bala na
agulha pra gastar. O BNDES é um dos maiores bancos do mundo, o governo
tributa muito fortemente, tem condições de reforçar mecanismos
anticíclicos...
Quanto aos direitos trabalhistas, a pressão por flexibilização é
grande, haja vista as propostas que têm pipocado, como o Acordo Coletivo
Especial (onde deve prevalecer o negociado sobre o legislado), pressões
do empresariado por desonerações em todos os setores, com impacto sobre
a previdência, pressões pela diminuição do “custo Brasil”,
flexibilização em contratações...
É o que eu digo, o mercado de trabalho brasileiro é excessivamente
flexível, não é pouco, longe disso. O trabalhador precisa de mais
direitos, não menos. Só que não vejo muita decisão do governo de atacar
tal problema, pelo contrário. Se for aprovado o acordo especial,
acredito que o princípio do acordado sobre o legislado, que vigoraria a
partir de então, vai diminuir ou eliminar direitos para a grande parcela
dos trabalhadores que não são representados nos sindicatos fortes.
Ao mesmo tempo, não vejo, como disse, disposição do governo em
ampliar direitos trabalhistas. Afinal, passamos todo o período de
crescimento econômico nos anos Lula sem ver nenhum novo direito
acrescentado. Acho que há um único ponto que foge à regra histórica de
não criação de novos direitos, que é a legislação sobre a empregada
doméstica, a ser discutida e votada. Esta talvez seja a única iniciativa
do governo que possa eventualmente ser alinhada aos ganhos de direitos.
Fora isso, do ponto de vista dos direitos sociais e trabalhistas,
tivemos uma era perdida.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
2012: acirram-se os conflitos, face a uma era perdida para os direitos sociais e trabalhistas
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segunda-feira, 26 de novembro de 2012
“Nova classe média”: preferências econômicas e políticas
Embora o adensamento das camadas intermediárias seja um fenômeno incontestável, a maior parte das pesquisas que captam essa mudança incorre em dois erros: há uma associação superficial entre renda individual e classe social e há uma relação inadequada entre renda média e estrato médio. Para compreender essas mudanças em sua inteireza é preciso empreender uma análise que incorpore outras variáveis. O artigo e de William Nozaki.
William Nozaki (*) no CARTA MAIOR
Classe C e Nova Classe Média
Em
comparação com os últimos cinqüenta anos, o Brasil convive atualmente
com uma experiência inédita na transformação de sua estrutura social. As
políticas de elevação real do salário mínimo, de expansão da oferta de
crédito e de ampliação dos programas de transferência de renda
estimularam o crescimento do PIB com base no avanço do mercado interno e
originaram um tripé socioeconômico virtuoso caracterizado pelo aumento
do mercado formal de trabalho, pela redução da pobreza e pela melhora na
distribuição de renda.
Essa combinação de fatores tem como uma de suas principais conseqüências um fenômeno nem sempre analisado com o devido cuidado e rigor: o crescimento daquilo que se chama de modo inapropriado de “classe C” ou “nova classe média”.
Embora o adensamento das camadas intermediárias seja um fenômeno incontestável, a maior parte das pesquisas que captam essa mudança incorre em dois erros:
(i) Há uma associação superficial entre renda individual e classe social. O fato, por exemplo, de um trabalhador industrial qualificado e um professor universitário auferirem a mesma renda pode ser encarado como um indicador macroeconômico de redução da desigualdade. Mas, sociologicamente, diz muito pouco, ou quase nada, sobre seus estilos de vida distintos e seus hábitos de consumo diferentes. Tais ganhos, certamente, serão utilizados a partir de referências culturais e entre redes sociais que não garantem nenhum laço de pertencimento de classe, pelo contrário: o mais provável é que a realização do consumo revele status sociais ainda muito desiguais. Nesse sentido, há muitas diferenças entre o estilo de vida da classe média estabelecida e da chamada “nova classe média” que estão longe de ser transpostas.
(ii) Há uma relação inadequada entre renda média e estrato médio. Na maior parte das vezes, os estudos que abordam o assunto referem-se à média em seu sentido algébrico, ou seja: média é a posição matemática daquilo que está igualmente distante dos pontos extremos. Como a distribuição de renda no país é historicamente severa, como há uma distância muito grande entre os muito ricos e os extremamente pobres, o agrupamento intermediário orbita numa vasta faixa de rendimentos que vai, aproximadamente, de R$ 1000 a R$ 5000. Essa zona de estratificação dilatada impede análises mais criteriosas. Sendo assim, as denominações “classe C” e “nova classe média” são infelizes, posto que transmitem a impressão de que o Brasil está se tornando aquilo que não é: um país em que os remediados são a maioria e no qual a pobreza vai tornando-se um problema residual.
Para compreender essas mudanças em sua inteireza é preciso empreender uma análise que incorpore outras variáveis como estrutura ocupacional, acesso a mercadorias privadas e a serviços públicos, padrões de consumo, entre outros.
Perfil e preferências econômicas:
Essa combinação de fatores tem como uma de suas principais conseqüências um fenômeno nem sempre analisado com o devido cuidado e rigor: o crescimento daquilo que se chama de modo inapropriado de “classe C” ou “nova classe média”.
Embora o adensamento das camadas intermediárias seja um fenômeno incontestável, a maior parte das pesquisas que captam essa mudança incorre em dois erros:
(i) Há uma associação superficial entre renda individual e classe social. O fato, por exemplo, de um trabalhador industrial qualificado e um professor universitário auferirem a mesma renda pode ser encarado como um indicador macroeconômico de redução da desigualdade. Mas, sociologicamente, diz muito pouco, ou quase nada, sobre seus estilos de vida distintos e seus hábitos de consumo diferentes. Tais ganhos, certamente, serão utilizados a partir de referências culturais e entre redes sociais que não garantem nenhum laço de pertencimento de classe, pelo contrário: o mais provável é que a realização do consumo revele status sociais ainda muito desiguais. Nesse sentido, há muitas diferenças entre o estilo de vida da classe média estabelecida e da chamada “nova classe média” que estão longe de ser transpostas.
(ii) Há uma relação inadequada entre renda média e estrato médio. Na maior parte das vezes, os estudos que abordam o assunto referem-se à média em seu sentido algébrico, ou seja: média é a posição matemática daquilo que está igualmente distante dos pontos extremos. Como a distribuição de renda no país é historicamente severa, como há uma distância muito grande entre os muito ricos e os extremamente pobres, o agrupamento intermediário orbita numa vasta faixa de rendimentos que vai, aproximadamente, de R$ 1000 a R$ 5000. Essa zona de estratificação dilatada impede análises mais criteriosas. Sendo assim, as denominações “classe C” e “nova classe média” são infelizes, posto que transmitem a impressão de que o Brasil está se tornando aquilo que não é: um país em que os remediados são a maioria e no qual a pobreza vai tornando-se um problema residual.
Para compreender essas mudanças em sua inteireza é preciso empreender uma análise que incorpore outras variáveis como estrutura ocupacional, acesso a mercadorias privadas e a serviços públicos, padrões de consumo, entre outros.
Perfil e preferências econômicas:
Sob essa
perspectiva o que se evidencia é que o mais adequado é denominar o
estrato que ascendeu socialmente e economicamente nos últimos anos de
nova classe trabalhadora urbana. Do ponto de vista ocupacional, trata-se
de vendedores, balconistas, motoristas, motoboys, profissionais de
telemarketing, os diversos tipos de auxiliares que atuam em empresas e
comércios, recepcionistas, cabelereiros, garçons e uma heterogeneidade
de trabalhadores qualificados.
Do ponto de vista da educação, seus integrantes na maioria são aqueles que utilizam as escolas públicas ou escolas particulares com mensalidades mais baixas; e do ponto de vista da saúde, são aqueles que necessitam dos hospitais públicos ou de planos de saúde mais baratos. Esse balanceio instável entre os serviços públicos e as possibilidades privadas mais “em conta” se reproduz em outras esferas: habitação, transporte, segurança, alimentação, cultura, lazer, entretenimento etc.
Por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida que se queixa dos impostos inadvertidamente, a nova classe trabalhadora percebe com contrariedade o aumento de impostos, taxas e tarifas pois sua elevação lhe afeta mais diretamente o poder de compra, mas ela também reconhece a importância e a necessidade dos serviços públicos pois depende deles mais frequentemente.
Essa nova classe trabalhadora, em grande medida, trabalha de 10 a 14 horas por dia, tem dois ou mais empregos, trabalha de dia enquanto estuda a noite, e nas grandes cidades enfrenta horas de transporte público enquanto se desloca entre a casa e o trabalho. Também por esses motivos, ao contrário da classe média tradicional que tudo atribui ao mérito individual, a nova classe trabalhadora percebe sua ascensão como fruto do esforço individual e de privações, mas sabe que precisa contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços fraternos entre os amigos e os vizinhos.
Mais do que outros estratos, esse grupo se beneficia da expansão do crédito ao consumidor e está satisfeito com a possibilidade de adquirir novos bens considerados indispensáveis para o conforto doméstico e para a melhora na qualidade de vida na cidade, esse grupo está disposto a encontrar sua sociabilidade pelos caminhos do consumo.
Idéias e preferências políticas:
Do ponto de vista da educação, seus integrantes na maioria são aqueles que utilizam as escolas públicas ou escolas particulares com mensalidades mais baixas; e do ponto de vista da saúde, são aqueles que necessitam dos hospitais públicos ou de planos de saúde mais baratos. Esse balanceio instável entre os serviços públicos e as possibilidades privadas mais “em conta” se reproduz em outras esferas: habitação, transporte, segurança, alimentação, cultura, lazer, entretenimento etc.
Por esses motivos, ao contrário da classe média estabelecida que se queixa dos impostos inadvertidamente, a nova classe trabalhadora percebe com contrariedade o aumento de impostos, taxas e tarifas pois sua elevação lhe afeta mais diretamente o poder de compra, mas ela também reconhece a importância e a necessidade dos serviços públicos pois depende deles mais frequentemente.
Essa nova classe trabalhadora, em grande medida, trabalha de 10 a 14 horas por dia, tem dois ou mais empregos, trabalha de dia enquanto estuda a noite, e nas grandes cidades enfrenta horas de transporte público enquanto se desloca entre a casa e o trabalho. Também por esses motivos, ao contrário da classe média tradicional que tudo atribui ao mérito individual, a nova classe trabalhadora percebe sua ascensão como fruto do esforço individual e de privações, mas sabe que precisa contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços fraternos entre os amigos e os vizinhos.
Mais do que outros estratos, esse grupo se beneficia da expansão do crédito ao consumidor e está satisfeito com a possibilidade de adquirir novos bens considerados indispensáveis para o conforto doméstico e para a melhora na qualidade de vida na cidade, esse grupo está disposto a encontrar sua sociabilidade pelos caminhos do consumo.
Idéias e preferências políticas:
Esse
conjunto de ambigüidades leva a crer que a nova classe trabalhadora não
necessariamente tem uma consciência conservadora. Pelo contrário, esse
setor está potencialmente disponível e aberto a visões mais
progressistas, seus valores e seu voto podem ser conquistados pela
esquerda.
Para compreender a relação entre as preferências econômicas e políticas dessa nova classe trabalhadora é fundamental considerar que o aumento do poder de compra possibilitou o acesso a novos canais de formação e informação, mais do que isso: tais canais têm sido ocupados, sobretudo, por um número significativo de jovens, é a partir desse grupo que se irradiam certas opiniões políticas e eleitorais.
A progressiva ampliação do acesso à educação e à internet tem promovido uma importante mudança em suas exigências e interesses políticos. No atual contexto, o eixo da formação de opinião se deslocou dos pais ou de velhas lideranças locais (representantes comunitários, padres e pastores) para os filhos.
A maior parte desses jovens tem níveis de escolaridade mais elevados do que os dos pais, estão conquistando uma melhor inserção profissional e seguem atentos para as mudanças tecnológicas, por isso eles são ouvidos com maior atenção dentro das suas famílias e comunidades, atuando como referências prioritárias para a formação de opinião, de forma mais incisiva do que as propagandas e a própria televisão.
Os pais dessa nova geração enxergavam o mundo pela ótica da carência que marca a periferia, observavam os políticos considerando aquilo que não havia sido feito e permaneciam mais suscetíveis à promessas de campanhas eleitorais. Já essa nova geração, ao circular por novos espaços como a universidade e as redes sociais, enxerga o mundo por uma ótica mais ampla, dispõem de um maior número de referências para operar comparações, avaliam os políticos e os partidos considerando aquilo que deveria ter sido feito e nutrem maior desconfiança com relação a promessas de campanhas eleitorais. Vale ainda notar que, se, por um lado, eles não desejam o estilo de vida da elite, por outro lado, eles desejam continuar ascendendo socialmente.
Essa disposição para a mudança, entretanto, passa por marcos ambivalentes: esses jovens acreditam na política, mas não crêem em partidos; reconhecem a importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas idéias, mas são também pragmáticos. Em suma, esse novo caldo cultural exigirá renovações tanto na forma como se realiza a política partidária quanto no conteúdo das políticas públicas que se implementam.
A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora.
A nova classe trabalhadora entendida como um novo sujeito político pode fazer toda a diferença nos embates sociais, políticos, ideológicos e eleitorais que serão travados de agora em diante.
(*) William Nozaki é Sociólogo e Economista, professor da Universidade Mackenzie e doutorando em desenvolvimento econômico (IE/Unicamp).
Para compreender a relação entre as preferências econômicas e políticas dessa nova classe trabalhadora é fundamental considerar que o aumento do poder de compra possibilitou o acesso a novos canais de formação e informação, mais do que isso: tais canais têm sido ocupados, sobretudo, por um número significativo de jovens, é a partir desse grupo que se irradiam certas opiniões políticas e eleitorais.
A progressiva ampliação do acesso à educação e à internet tem promovido uma importante mudança em suas exigências e interesses políticos. No atual contexto, o eixo da formação de opinião se deslocou dos pais ou de velhas lideranças locais (representantes comunitários, padres e pastores) para os filhos.
A maior parte desses jovens tem níveis de escolaridade mais elevados do que os dos pais, estão conquistando uma melhor inserção profissional e seguem atentos para as mudanças tecnológicas, por isso eles são ouvidos com maior atenção dentro das suas famílias e comunidades, atuando como referências prioritárias para a formação de opinião, de forma mais incisiva do que as propagandas e a própria televisão.
Os pais dessa nova geração enxergavam o mundo pela ótica da carência que marca a periferia, observavam os políticos considerando aquilo que não havia sido feito e permaneciam mais suscetíveis à promessas de campanhas eleitorais. Já essa nova geração, ao circular por novos espaços como a universidade e as redes sociais, enxerga o mundo por uma ótica mais ampla, dispõem de um maior número de referências para operar comparações, avaliam os políticos e os partidos considerando aquilo que deveria ter sido feito e nutrem maior desconfiança com relação a promessas de campanhas eleitorais. Vale ainda notar que, se, por um lado, eles não desejam o estilo de vida da elite, por outro lado, eles desejam continuar ascendendo socialmente.
Essa disposição para a mudança, entretanto, passa por marcos ambivalentes: esses jovens acreditam na política, mas não crêem em partidos; reconhecem a importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas idéias, mas são também pragmáticos. Em suma, esse novo caldo cultural exigirá renovações tanto na forma como se realiza a política partidária quanto no conteúdo das políticas públicas que se implementam.
A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora.
A nova classe trabalhadora entendida como um novo sujeito político pode fazer toda a diferença nos embates sociais, políticos, ideológicos e eleitorais que serão travados de agora em diante.
(*) William Nozaki é Sociólogo e Economista, professor da Universidade Mackenzie e doutorando em desenvolvimento econômico (IE/Unicamp).
sábado, 24 de novembro de 2012
O governo paga para ser criticado nas “linhas editoriais” de direita da grande imprensa
Daniela Novais no BRASILIA EM PAUTA
Crédito : Patricia Piccinini
A
distribuição da verba publicitária do governo federal no Brasil é feita
da seguinte maneira: 70% fica nas mãos dos dez maiores veículos de
informação, entre jornais, rádios e tevês. Não passa despercebido o fato
de que os maiores são também os mais conservadores e direitistas do
país, apelidados de “PIG” – Partido da Imprensa Golpista. O jornalista e
escritor Rui Martins resumiu o fato da seguinte maneira: O governo
financia a direita.
Martins
vive atualmente em Berna na Suíça. Foi exilado durante a ditadura, é
líder emigrante, membro eleito do Conselho Provisório e do atual
Conselho de emigrantes (CRBE) junto ao Itamaraty, criou os movimentos
Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, escreveu o livro
“Dinheiro Sujo da Corrupção”, em que fala sobre as contas suíças
secretas de Maluf. Trabalhou em veículos como CBN e Estadão e hoje
colabora com o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.
“O
Brasil padece de sadomasoquismo, mas quem bate sempre é a direita e
quem chora e geme é a esquerda”, escreve em um artigo que analisa o
financiamento público a uma imprensa de factoides e manipulação,
preterindo a imprensa esquerdista. Reproduzimos o artigo na íntegra e
recomendamos não só a leitura, mas principalmente a reflexão.
O governo Financia a direita
Rui
Martins – Berna – Suíça - Daqui de longe, vendo o tumulto provocado com
o processo Mensalão e a grande imprensa assanhada, me parece assistir a
um show de hospício, no qual os réus e suspeitos financiam seus
acusadores. O Brasil padece de sadomasoquismo, mas quem bate sempre é a
direita e quem chora e geme é a esquerda.
Não
vou sequer falar do Mensalão, em si mesmo, porque aqui na Suíça, país
considerado dos mais honestos politicamente, ninguém entende o que se
passa no Brasil. Pela simples razão de que os suíços têm seu Mensalão,
perfeitamente legal e integrado na estrutura política do país.
Cada
deputado ou senador eleito é imediatamente contatado por bancos,
laboratórios farmacêuticos, seguradoras, investidores e outros grupos
para fazer parte do conselho de administração, mediante um régio
pagamento mensal. Um antigo presidente da Câmara dos deputados, Peter
Hess, era vice-presidente de 42 conselhos de administração de empresas
suíças e faturava cerca de meio-milhão de dólares mensais.
Com
tal generosidade, na verdade uma versão helvética do Mensalão, os
grupos econômicos que governam a Suíça têm assegurada a vitória dos seus
projetos de lei e a derrota das propostas indesejáveis. E nunca houve
uma grita geral da imprensa suíça contra esse tipo de controle e
colonização do parlamento suíço.
Por
que me parece masoca a esquerda brasileira e nisso incluo a presidente
Dilma Rousseff e o PT ? Porque parecem gozar com as chicotadas
desmoralizantes desferidas pelos rebotalhos da grande imprensa. Pelo
menos é essa minha impressão ao ler a prodigalidade com que o governo
Dilma premia os grupos econômicos seus detratores.
Batam,
batam que eu gosto, parece dizer o governo ao distribuir 70% da verba
federal para a publicidade aos dez maiores veículos de informação
(jornais, rádios e tevês), justamente os mais conservadores e
direitistas do país, contrários ao PT, ao ex-presidente Lula e à atual
presidenta Dilma.
Quando
soube dessa postura masoquista do governo, fui logo querer saber quem é
o responsável por essa distribuição absurda que exclui e marginaliza a
sempre moribunda mídia da esquerda e ignora os blogueiros, responsáveis
pela correta informação em circulação no país.
Trata-se de uma colega de O Globo, Helena Chagas, para quem a partilha é justa – recebe mais quem tem mais audiência! diz ela.
Mas
isso é um raciocínio minimalista! Então, o povo elege um governo de
centro-esquerda e quando esse governo tem o poder decide alimentar seus
inimigos em lugar de aproveitar o momento para desenvolver a imprensa
nanica de esquerda ?
O
Brasil de Fato, a revista Caros Amigos, o Correio do Brasil fazem das
tripas coração para sobreviver, seus articulistas trabalham por nada ou
quase nada, assim como centenas de blogueiros, defendendo a política
social do governo e a senhora Helena Chagas com o aval da Dilma Rousseff
nem dá bola, entrega tudo para a Veja, Globo, Folha, SBT, Record,
Estadão e outros do mesmo time ?
Assim,
realmente, não dá para se entender a política de comunicação do
governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma
somos paspalhos ?
Aqui
na Europa, onde acabei ficando depois da ditadura militar, existe um
equilíbrio na mídia. A França tem Le Figaro, mas existe também o
Libération e o Nouvel Observateur. Em todos os países existem opções de
direita e de esquerda na mídia. E os jornais de esquerda têm também
publicidade pública e privada que lhes permitem manter uma boa qualidade
e pagar bons salários aos jornalistas.
Comunicação
é uma peça chave num governo, por que a presidenta Dilma não premiou um
de seus antigos colegas e colocou na sucessão de Franklin Martins um
competente jornalista de esquerda, capaz de permitir o surgimento no
país de uma mídia de esquerda financeiramente forte ?
Exemplo
não falta. Getúlio Vargas, quando eleito, sabia ser necessário um órgão
de apoio popular para um governo que afrontava interesses
internacionais ao criar a Petrobras e a siderurgia nacional. E incumbiu
Samuel Wainer dessa missão com a Última Hora. O jornal conseguiu
encontrar a boa receita e logo se transformou num sucesso.
O
governo tem a faca e o queijo nas mãos – vai continuar dando o filet
mignon aos inimigos ou se decide a dar condições de desenvolvimento para
uma imprensa de esquerda no Brasil ?
terça-feira, 13 de novembro de 2012
O governo Dilma financia a direita
Assim, realmente, não dá para se
entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós
jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos?
Berna
(Suíça) – Daqui de longe, vendo o tumulto provocado com o processo
mensalão e a grande imprensa assanhada, me parece assistir a um show de
hospício, no qual os réus e suspeitos financiam seus acusadores. O
Brasil padece de sadomasoquismo, mas quem bate sempre é a direita e quem
chora e geme é a esquerda.
Não vou sequer falar do mensalão, em
si mesmo, porque aqui na Suíça, país considerado dos mais honestos
politicamente, ninguém entende o que se passa no Brasil. Pela simples
razão de que os suíços têm seu mensalão, perfeitamente legal e integrado
na estrutura política do país.
Cada deputado ou senador eleito é
imediatamente contatado por bancos, laboratórios farmacêuticos,
seguradoras, investidores e outros grupos para fazer parte do conselho
de administração, mediante um régio pagamento mensal. Um antigo
presidente da Câmara dos deputados, Peter Hess, era vice-presidente de
42 conselhos de administração de empresas suíças e faturava cerca de
meio milhão de dólares mensais.
Com tal generosidade, na verdade
uma versão helvética do mensalão, os grupos econômicos que governam a
Suíça têm assegurada a vitória dos seus projetos de lei e a derrota das
propostas indesejáveis. E nunca houve uma grita geral da imprensa suíça
contra esse tipo de controle e colonização do Parlamento suíço.
Por
que me parece masoca a esquerda brasileira e nisso incluo a presidente
Dilma Rousseff e o PT? Porque parecem gozar com as chicotadas
desmoralizantes desferidas pelos rebotalhos da grande imprensa. Pelo
menos é essa minha impressão ao ler a prodigalidade com que o governo
Dilma premia os grupos econômicos seus detratores.
Batam, batam
que eu gosto, parece dizer o governo ao distribuir 70% da verba federal
para a publicidade aos dez maiores veículos de informação (jornais,
rádios e tevês), justamente os mais conservadores e direitistas do país,
contrários ao PT, ao ex-presidente Lula e à atual presidenta Dilma.
Quando
soube dessa postura masoquista do governo, fui logo querer saber quem é
o responsável por essa distribuição absurda que exclui e marginaliza a
sempre moribunda mídia da esquerda e ignora os blogueiros, responsáveis
pela correta informação em circulação no país.
Trata-se de uma colega de O Globo, Helena Chagas, para quem a partilha é justa – recebe mais quem têm mais audiência!, diz ela.
Mas
isso é um raciocínio minimalista! Então, o povo elege um governo de
centro-esquerda e, quando esse governo tem o poder, decide alimentar
seus inimigos em lugar de aproveitar o momento para desenvolver a
imprensa nanica de esquerda?
O Brasil de Fato, a revista Caros Amigos, o Correio do Brasil fazem
das tripas coração para sobreviver, seus articulistas trabalham por
nada ou quase nada, assim como centenas de blogueiros, defendendo a
política social do governo e a senhora Helena Chagas com o aval da Dilma
Rousseff nem dá bola, entrega tudo para a Veja, Globo, Folha, SBT, Record, Estadão e outros do mesmo time?
Assim,
realmente, não dá para se entender a política de comunicação do
governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma
somos paspalhos?
Aqui na Europa, onde acabei ficando depois da ditadura militar, existe um equilíbrio na mídia. A França tem Le Figaro, mas existe também o Libération e o Nouvel Observateur.
Em todos os países existem opções de direita e de esquerda na mídia. E
os jornais de esquerda têm também publicidade pública e privada que lhes
permitem manter uma boa qualidade e pagar bons salários aos
jornalistas.
Comunicação é uma peça-chave num governo, por que a
presidenta Dilma não premiou um de seus antigos colegas e colocou na
sucessão de Franklin Martins um competente jornalista de esquerda, capaz
de permitir o surgimento no país de uma mídia de esquerda
financeiramente forte?
Exemplo não falta. Getúlio Vargas, quando
eleito, sabia ser necessário um órgão de apoio popular para um governo
que afrontava interesses internacionais ao criar a Petrobras e a
siderurgia nacional. E incumbiu Samuel Wainer dessa missão com o Última Hora. O jornal conseguiu encontrar a boa receita e logo se transformou num sucesso.
O
governo tem a faca e o queijo nas mãos – vai continuar dando o filet
mignon aos inimigos ou se decide a dar condições de desenvolvimento para
uma imprensa de esquerda no Brasil?
Rui Martins é escritor e jornalista, vive na Suíça, e é colaborador do Brasil de Fato.
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
Em Palmasola se falar o bicho pega, se calar o bicho come
Por Andrea Dip e Tatiane Ribeiro*
A Pública entrou em uma inacreditável
cidade-prisão na Bolívia onde brasileiros convivem com tortura, extorsão
– e o abandono do Itamaraty
Um muro alto e quatro horas de fila me separam do interior de um
dos maiores presídios da Bolívia, onde vivem mais de 4.400 pessoas. A
temperatura passa dos 35oC e o chão de areia aumenta o
desconforto das muitas mulheres que esperam ali e tentam dar conta de
seus sapatos de saltos altos, crianças pequenas e sacolas. Não é dia de
visitas no Centro de Rehabilitación Santa Cruz Palmasola na cidade de
Santa Cruz de La Sierra, na Bolivia. Ainda assim, elas esperam
pacientemente pelo encontro com seus companheiros. Sabem que o passe
será liberado com o pagamento de dez pesos bolivianos (cerca de 3 reais)
aos policiais.
As horas vão passando e o abatimento vai surgindo, algumas histórias
tristes começam a ser contadas e a cumplicidade aumenta. Logo todas
estarão dividindo chicletes, garrafas de água e maquiagem para o
retoque, já que a pintura caprichosa vai se desmanchando sob o sol
quente. Uma moça pergunta a quem vou visitar. “Uns amigos brasileiros”
respondo de forma vaga, ao que ela conclui rapidamente: “Mil ocho
certamente, como a maioria aqui” referindo-se à lei 1008, que endureceu
as regras para tráfico de drogas, instituída em 1988, sob forte pressão
do governo americano. A “milocho” determinou sentenças mais duras e
longas para quem comete delitos relacionados ao narcotráfico – do
cultivo, consumo e transporte da folha de coca, tradicional cultivo do
país, à sua transformação em cocaína. As penas chegam a 20 anos de
prisão, sem grandes distinções entre traficantes e usuários.
A moça diz que o companheiro “caiu” pelo mesmo motivo, mas após 4
meses em prisão preventiva, ainda não havia tido sequer uma audiência.
História parecida chamou recentemente a atenção da imprensa
internacional: Jacob Ostreicher, empresário americano de 53 anos, preso
há 17 meses por suspeita de lavagem de dinheiro e envolvimento com o
crime organizado – e ainda sem sentença.
O companheiro da visitante, assim como dezenas de brasileiros, não
tiveram a mesma sorte: suas histórias continuam desconhecidas. Segundo o
advogado criminalista Hernán Mariobo, 80% dos detidos em Palmasola
estão em prisão preventiva, aguardando julgamento. Muitos há mais de
três anos, que é o máximo permitido por lei. “Estamos falando de mais de
mil pessoas que estão com seus processos parados e, por consequência,
tendo seus direitos humanos violados. Outros tantos que já poderiam ter
saído ou poderiam responder em liberdade. Mas a Defensoria Pública em
Santa Cruz tem no máximo 20 pessoas para dar conta de todos estes
processos, e é claro que a coisa se complica ainda mais para os
estrangeiros, que são colocados no fim da lista”. Para um advogado que
pediu para não ser identificado, temendo que seus clientes sejam
prejudicados, o problema é que todo o sistema está imerso em corrupção:
“Lamentavelmente em nosso sistema de justiça, especialmente em Santa
Cruz – e dói reconhecer isso como advogado boliviano – a corrupção tem
se proliferado muito. Para se tirar um xerox de documento para marcar
uma audiência tem de se falar com o secretário, com o juiz, eles
argumentam que a agenda está cheia, te pedem dinheiro”, diz. “Para fazer
as notificações é ainda pior. É um eterno sofrimento. Tenho um cliente
espanhol de 70 anos que teve a audiência cancelada 5 vezes porque chegou
5 minutos atrasado ou porque o juiz teve um problema na escola do
filho, ou ainda porque era o dia do juiz e todas as audiências do dia
foram canceladas sem aviso prévio”.
Enquanto esperamos na fila, alguns homens chegam algemados de táxi e
de moto: não há um veículo oficial para entrar e sair dali. O preso deve
pagar o táxi até Palmasola e, quando tem audiência marcada, precisa
pagar escolta policial e o transporte de ida e volta. Subitamente, um
policial aparece à porta da prisão e diz que “ninguém deve pagar um peso
sequer” para entrar. As mulheres comemoram e apontam para um jornalista
que espera a saída de um preso famoso com uma câmera em punho como
motivo para a “gentileza”.
A administração de Palmasola não se parece em nada com o modelo
penitenciário que conhecemos no Brasil. Passada a pequena porta se vê um
grande descampado lotado de lixo e urubus, cortado por uma rua que
separa os pavilhões: um de segurança máxima, conhecido como
Chonchocorito – referência a um presídio de segurança máxima da capital
La Paz – outro reservado às mulheres, um terceiro para presos “comuns”;
um para portadores de doenças contagiosas e o finalmente uma “área vip”
para policiais e autoridades.
Todos são trancados. Mas a polícia fica do lado de fora. Lá dentro,
quem garante a segurança são os próprios presos, que uma vez por ano
elegem a “Regência”, espécie de administração penitenciária própria que,
por sua vez, escolhe seu exército, conhecido como “Disciplina”, homens
com penas perpétuas ou longas que andam uniformizados, armados com
porretes, e garantem o cumprimento de leis estipuladas por eles. Leis
que não estão em nenhum papel, segundo detentos, advogados e
pesquisadores, mas que se não forem cumpridas, podem ser pagas até com a
vida – como no caso de estupro ou abuso de crianças – ou com castigos
exemplares.
Mas é dificil se aprofundar no assunto, já que maior lei é a do
silêncio: o que acontece dentro de Palmasola, fica em Palmasola. Quem
fala demais também é castigado. Ao que parece, a polícia não interfere
da porta para dentro a não ser em casos extremos que podem repercutir de
forma negativa. Foi assim no começo de 2012, quando uma equipe de
reportagem da TV americana ABC filmou a realidade vivida por Jacob. A
reportagem exibiu o rosto de crianças e homens usando cocaína. Quando
foi ao ar, causou alvoroço nos EUA. Alguns dos detentos afirmam ter sido
torturados e levados ao pavilhão de segurança máxima como castigo.
Uma cidade entre muros
Ainda na zona que separa os pavilhões, encontro Darly Franco,
advogada paulista que vive em Santa Cruz e há 6 anos milita pela causa
dos brasileiros presos ali. Na sua tese de mestrado, ela sugere a
modificação do código penal para estrangeiros que cometeram delito de
narcotráfico. “Na verdade, para qualquer delito penal o procedimento é o
mesmo. Os artigos principais são o 233, 234 e 235 que dizem que a
pessoa não vai em detenção preventiva se tiver trabalho, família,
domicilio. Mas como a gente faz isso com estrangeiro? Existe um decreto
que diz que nenhum turista pode exercer atividade econômica, então como
vamos demonstrar que ele tem trabalho? Se eu estou de passagem e me
pegam no aeroporto, como vou ter domicilio? Assim, é pouco provável que
essa pessoa consiga responder em liberdade. Foi pego, vai preso. E se
você não tem dinheiro, vai ficar lá, por causa de todo o esquema de
corrupção, golpes de advogados fajutos e a lentidão da justiça”.
Muito respeitada pelos detentos, principalmente os brasileiros aos
quais defende como pode, mesmo que paguem pouco ou nada, Darly conduz a
reportagem pelos pavilhões. Assim que chega, os presos imediatamente se
oferecem para carregar suas pastas de documentos, andam ao seu redor,
fazem mil perguntas. “Praticamente vivi em Palmasola quando escrevi
minha tese e desde então venho ao menos uma vez por semana para tentar
fazer estes processos andarem”, explica.
Para entrar no “PC4”, maior pavilhão masculino, precisamos pagar
cinco pesos a um policial que nos carimba o pulso. Assim entramos no
maior pavilhão, onde estão, naquele dia, 70 homens brasileiros, a
terceira maior população de estrangeiros, segundo Darly, atrás dos
peruanos e colombianos. De cara é possível notar que não há celas e os
homens caminham livremente ali dentro. Os brasileiros nos recebem na
porta.
Para conversarmos mais à vontade, o paranaense Mário* – todos os
nomes nesta reportagem são fictícios, para evitar que sofram represália –
um senhor de fala mansa, extremamente educado, nos conduz à igreja onde
mora. Isso mesmo: dentro da prisão. Ele conta que já vivia há mais de
20 anos na Bolivia quando brigou com um funcionário da fazenda onde
trabalhava; matou-o com um tiro de espingarda. Há dez anos em Palmasola,
é o brasileiro mais antigo no PC4. Para sobreviver e pagar os cerca de
30 pesos bolivianos diários que diz gastar com comida e ítens de
higiene, faz redes e artesanato que vende dentro e fora de Palmasola,
através de familiares de outros presos.
No caminho, passamos por tendas de artesanato, lanchonetes, um campo
de futebol, uma universidade de direito e até uma pousada onde
familiares e amigos dos presos podem se hospedar por alguns dias. Todas
as construções são erguidas e administradas por eles e os produtos são
vendidos ali dentro para os companheiros de pavilhão e também para o
grande volume de pessoas que transita ali diariamente. Muitos criam um
verdadeiro patrimônio, com quartos arrendados e pequenos negócios. Aos
que têm condições financeiras é permitido inclusive morar com a família.
Segundo dados da Defensoría del Pueblo em Santa Cruz, há mais de mil
crianças vivendo dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas
próximas – há uma bem em frente ao portão de entrada – e voltam no fim
do dia para dormir na “casa” dos pais.
Não havia muitas crianças transitando durante nossa visita porque
estavam em horário de aula. Mas as que estavam por ali, pequenas,
andavam grudadas nos pais. Os presos em melhores condições financeiras –
que recebem dinheiro da família, de negócios internos ou com o tráfico
de drogas – podem, além de usufruir dos bens de consumo e serviços
produzidos lá dentro, contratar prostitutas que chegam de fora e do
pavilhão de mulheres, consumir drogas e incrementar suas celas com
pequenos luxos como televisão, aparelho de som.
A vida dos brasileiros
Como em uma verdadeira cidade, há “bairros” ricos e pobres. Quem não
tem dinheiro, como a maioria dos brasileiros, que não têm família ou
amigos por perto, tem de se virar com o “rancho”, como é chamada a
comida da detenção. Naquela quarta-feira, o rancho era uma papa de arroz
com lentilha coberta por um caldo laranja não identificado. Para
dormir bem, há de se contar com a ajuda das igrejas –algumas permitem
que os presos pernoitem se ajudarem na limpeza – ou ser um bom jogador
de futebol: “Os bolivianos gostam muito do futebol brasileiro, então
quem joga bem e participa dos campeonatos que a gente faz aqui, recebe
mais ajuda do pessoal” explica Mauro*, em prisão preventiva por
tentativa de estelionato há dois anos e três meses.
Quem não consegue ajuda vive literalmente como sem-teto, dormindo
sobre papelões a céu aberto. “É claro que existe um regime penitenciário
e alguns processos administrativos se encaixam na lei, mas o resto está
totalmente à margem. O que acontece em Palmasola é o que acontece aqui
fora: quem tem mais recursos vive melhor” explica o advogado Hernán
Mariobo. “O que está na lei é o sistema padrão, como o norte-americano,
com celas, horários. Mas os presos criaram seu próprio sistema”.
Antes de entrarmos na igreja, Marcelo*, um moço jovem preso por roubo
na cidade de San Matias, nos leva para conhecer “el bote”, uma cela
pequena e escura, usada como medida punitiva, sem janelas, trancada por
barras de ferro, como as do antigo Carandiru em São Paulo. Lá dentro há
vários homens – nem eles sabem dizer quantos são. Um brasileiro se
apresenta, diz que não se lembra há quantos dias está ali e que foi
trancado porque se atrasou para a chamada que a polícia faz diariamente.
Os outros presos repassam o rancho pela grade.
Marcelo levanta a camiseta para mostrar as costas tomadas por um tipo
de doença de pele, com grandes manchas vermelhas espalhadas e algumas
feridas. “Peguei esse bagulho quando fiquei mais de 70 dias no bote. Uns
brasileiros fugiram e a disciplina nos pegou como exemplo, bateram,
quebraram minha costela na frente de todo mundo e nos trancaram aí”,
diz, apontando para a cela. “Só que para se consultar com o médico tem
que pagar 50 pesos bolivianos. Para ter remédio, precisa pagar. Isso é
horrível e está se espalhando, mas não tenho o que fazer”, lamenta.
As reclamações aparecem num caos de vozes em uma mistura de
português, espanhol e gírias locais. “Nós brasileiros somos tratados
como cachorros aqui”, diz um. “Queria eu ser tratado como perro, somos é
lixo”, retruca o outro. “A comida é ruim, não temos onde dormir, não
temos remédios”, grita um terceiro. Uma criança pequena escuta tudo
atentamente, do colo do pai brasileiro. A mãe, boliviana, está do lado
de fora trabalhando.
A doutora Darly tenta organizar a bagunça, pede que as queixas sejam
feitas por tema. Quase nenhum dos homens ali tem seus documentos,
retidos pela polícia quando foram capturados. Nenhum tem a cópia do
processo, e muitos estão há anos em prisão preventiva por crimes
considerados de bagatela, como tentativa de roubo. Um brasileiro que
está lá há mais de três anos foi pego tentando abrir um carro com um
arame.
A reclamação maior é contra o Consulado brasileiro: “O cônsul não vem
aqui e o advogado representante aparece de vez em quando, mas nunca
resolve nada. Ele só nos traz cestas básicas de três em três meses”, diz
um detento, referindo-se ao advogado boliviano contratado há 12 anos
pelo Consulado para agilizar os processos dos presos brasileiros. O
preso rapidamente pede para não ser identificado. Entredentes, Marcelo
justifica o medo dos companheiros: “tá vendo aquele ali com o colete? É
da disciplina. Nós vamos apanhar hoje porque estamos falando com a
senhora. Eu não me importo, porque a gente precisa de ajuda. Mas se
falarmos demais a coisa pode ficar feia”.
Segundo os presos ouvidos pela reportagem, o assessor jurídico do consulado só aparece a cada três meses.
No começo de outubro, mais de 20 homens escreveram cartas de próprio
punho destinadas ao Consulado brasileiro e ao Itamaraty, reclamando da
negligência e denunciando um suposto esquema de extorsão. Uma delas, à
qual a Pública teve acesso, relata: “Como cidadão brasileiro reclamo
meus direitos a assistência social, médica e um advogado. Não temos nada
disso. Precisamos de ajuda, estamos abandonados, esperamos que nos
atendam como pessoas. Estou sem documentos, com a condicional cumprida”.
Outra carta explica: “Estou preso há 6 anos e nunca tive visita porque
meus pais estão mortos e não tenho atenção médica, não tenho trabalho
firme, não tenho advogado. Por isso peço ajuda do meu país onde vivi. O
advogado do Brasil não está fazendo nada a que nos corresponde (…)
solicitamos a mudança de advogado”. Uma terceira diz: “Denuncio o doutor
Solis que sabendo que cumpri a minha pena não fez nada por mim. Ele é
um mentiroso (…) preciso dos meus documentos, do meu passaporte, estou
esquecido na Bolívia. Doutor Soliz, chega de mentira, preciso de sua
atenção”. As denúncias continuam: “Doutor Solis, deixe de ser mentiroso e
de enganar nós aqui, porque não dá nenhuma informação sobre nossa
situação aqui e quando vem aqui não faz nada. Solicito que troque o
advogado (…) Ademais ele rouba todas as nossas coisas que mandam para
nós aqui. Peço que o cônsul venha nos visitar para que falamos sobre a
nossa situação urgente”.
Você pode ler algumas destas cartas no final da reportagem.
Depois do PC4, fomos a Chonchocorito. Por algum tempo se proibiu a
visita de mulheres ao pavilhão de segurança máxima por risco de estupro.
De qualquer forma, éramos as únicas mulheres ali dentro. Darly estava
calma e ambientada, cumprimentava os homens pelos nomes, perguntava
sobre suas famílias. Um boliviano reincidente veio mostrar seu bebê em
um carrinho dizendo que agora terá de tomar juízo.
Passados dois portões, estavamos por nossa conta. Ali, nada de lojas
ou lanchonetes: Apenas um grande prédio cinza ao lado de um pequeno
campo de futebol improvisado e uma espécie de pátio com bancos à sombra
de um toldo de palha. Um brasileiro vem ao nosso encontro e sai para
chamar outros cinco que vivem lá. Enquanto conversamos, homens passam
armados com pedaços de canos e armas brancas de todo tipo para saber o
que está acontecendo. Todos nos tratam com respeito. A maioria dos
brasileiros caiu ali por tráfico de drogas ou roubo – ao contrário do
PC4, onde muitos estão por assassinato e devem cumprir penas de mais de
20 anos.
Eles contam que quase todos os homens, quando chegam a Palmasola, vão
direto para Chonchocorito. Os que podem pagar cerca de mil dólares são
transferidos para o pavilhão mais cômodo. Entre os que nos recebem em
Chonchocorito está o reincidente João*. Junto com um grupo de 22
brasileiros, em 2003 ele se crucificou e costurou os lábios para chamar a
atenção do Consulado brasileiro para a situação em Palmasola.
“O cônsul veio aqui, prometeu melhorias, saiu em um monte de jornais
no Brasil e depois ficou tudo igual. Igual não, pior na verdade, porque
sofremos represália. Apanhamos mais por ter chamado a atenção, e o custo
de vida aumentou”. Os detentos contam que, se um boliviano ganha 10
pesos por um dia de trabalho (limpando, arrumando, etc.), um estrangeiro
ganha cinco. E que o mesmo acontece com o custo da comida e bebida, que
aumenta para quem é de fora.
Um jovem que foi pego roubando há três meses conta que não teve nem a
primeira audiência com o juiz. “Estou sem documento, sem meus pertences
que foram tirados pela polícia e nunca vi ninguém do Consulado
brasileiro aqui. Sei que existe um advogado porque os outros me
disseram”. No dia seguinte à nossa visita, Chonchocorito entraria em
rebelião pacífica por melhores condições de vida, com uma greve de fome
que foi noticiada apenas na TV local.
Brasileiras, abandonadas
O último pavilhão a visitar – o relógio apontava para as 17h, apesar
do sol a pino que não dava trégua – era o das mulheres. Tensão e
tristeza pareciam deixar o ar mais denso. Ao contrário do PC4, quase não
há visitas. Muitas das 18 brasileiras presas em Palmasola são
dependentes químicas, principalmente de crack e outras variações da
pasta-base da cocaína, inclusive injetáveis.
Elas têm a pele solta no corpo, marcas de agulhas e facadas,
arranhões, hematomas das brigas diárias. Poucas se juntam a nós, a
maioria está dopada demais para conversar. Quando pergunto onde arranjam
dinheiro para sobreviver ali dentro, uma responde: “Roubando. A gente
rouba umas das outras, pede emprestado e não devolve, pega.
Principalmente para as drogas. Eu sou uma viciada, não tenho vergonha de
assumir isso. Só queria ter dinheiro para usar”.
Entre elas está uma senhora que aparenta de mais de 60 anos, presa no
aeroporto transportando cocaína, que age de forma maternal com as
outras, cuidando para que não falem demais, dizendo à doutora Darly que
“pelo amor de Deus arranje ajuda médica para estas meninas”. Ela está
presa por “mil ocho” como a maioria ali. E faz pães que são vendidos nos
pavilhões para juntar algum dinheiro para pagar um advogado já que,
como as outras, diz que não pode contar com o advogado do consulado.
Quando perguntamos sobre ele, elas bufam, dão risada e uma diz: “Eu acho
que nunca vi esse homem aqui”.
Ao final do dia, uma voz masculina em particular, sem rosto, ecoa
sobre as outras: “moça, não sei como, mas eu saio daqui logo. Nem que
seja com os pés gelados”.
Consulado e Itamaraty
Procurado pela Pública, o advogado contratado boliviano que atende em
nome consulado brasileiro, Juan Soliz, diz que ajuda como pode, fazendo
correr os processos, porém a verba é curta e a demanda é muito grande:
“temos bastante indigentes, esses hippies que vem para cá, consumidores
de drogas que decidem cometer alguns delitos, quando são presos ficam
nestes lugares mais humildes. Normalmente minha atividade é centrada
nessa gente. De maneira voluntária, o consulado manda um pouco de comida
a cada dois ou três meses”. Segundo ele, a cesta básica é “voluntária”
porque não é atribuição do consulado. “Hoje temos cerca de cem presos
brasileiros e a verba que temos para custos processuais e de ajuda a
todos é de mil dólares”
Segundo o advogado especializado em direito internacional Claudio
Fikelstein, não há uma lei que determine o que o Consulado brasileiro
deve ou não fazer nestes casos. Mas regularizar a parte de documentos,
avisar a família dos presos e prestar auxílio jurídico adequado é, sim,
uma obrigação do orgão. “O que acontece é que alguns consulados
realmente interferem mais em casos de prisões de brasileiros no
exterior, como os que envolvem pena de morte e casos extremos e outros,
talvez por falta de verba ou de pessoal, se envolvem menos.
Questionado a respeito, o Itamaraty declarou por meio de sua
assessoria de imprensa que “em 2011 foram visitados 120 brasileiros em
Palmasola em 95 visitas de periodicidade quinzenal” – ao contrário do
que dizem os presos – e que o governo brasileiro não tem competência
para representar em corte os brasileiros presos. Explicou ainda que “a
responsabilidade básica da dignidade e bem-estar dos presos é da
autoridade local, mas o cidadão detido pode se comunicar e levar suas
denúncias ao Consulado sempre que necessário e em casos extremos
adquirir artigos básicos como remédios, alimentos e peças de vestuário”.
Tais normas são regidas pela Convenção de Viena sobre Relações
Consulares e no Manual de Normas do Serviço Consular e Jurídico (NSCJ)
que regulamenta a assistência a presos brasileiros no exterior prestada
pelo Itamaraty. Destaque para o artigo 3.10.7 do Manual: “A Autoridade
Consular procurará apurar junto às autoridades locais qualquer fato que
possa, a seu critério, colocar em risco a integridade moral, física e
psicológica do preso brasileiro, solicitando a implementação de
providências nesse sentido”.
Pouco antes do fechamento desta reportagem, a advogada Darly Franco
levou as cartas dos presos ao Consulado brasileiro em Santa Cruz que,
segundo ela, se negou a receber porque os papéis não estavam assinados.
Esta reportagem foi realizada por meio do Concurso de Microbolsas da Agência Pública, em parceria com a Rede Brasil Atual. A repórter da Pública Andrea Dip se uniu à jornalista Tatiane Ribeiro, que atualmente trabalha no site Mural, da Folha de S Paulo. *Todos os nomes são fictícios.
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sábado, 10 de novembro de 2012
Brasil, país dos contrastes
Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Stefan Zweig intitulou Brasil, país do futuro seu livro de
ensaios lançado em 1941, quando veio conhecer o país que o acolheria e no qual
morreria no ano seguinte. Ora, pode ser aplicado ao futuro o que diz Eduardo
Galeano a respeito da utopia: como o horizonte, está sempre ali na frente, mas
não se pode alcançá-la, por mais que se caminhe em sua direção.
Prefiro afirmar que o Brasil é um país de contrastes. Com
população de 192 milhões de habitantes (dos quais 30 milhões na zona rural,
onde predomina o latifúndio com grandes extensões de terras improdutivas),
apenas 6,6 milhões de brasileiros se encontram na universidade. E dos 92
milhões de trabalhadores, quase a metade não tem carteira assinada.
Temos a maior área fundiária da América Latina e nunca se
fez aqui uma reforma agrária. Somos o principal exportador de carne e temos a
segunda maior frota de helicópteros das Américas, e convivemos com a miséria de
16 milhões de habitantes (dos quais 40% têm até 14 anos de idade e 71% são
negros e pardos).
As marcas de 350 anos de escravidão no Brasil ainda são
visíveis no fato de a maioria da população negra ser pobre e, com frequência,
discriminada. O Brasil, considerado hoje a 6ª economia do mundo, ocupa a
vergonhosa posição de 84º lugar no IDH da ONU (2012).
Embora 65% da renda nacional se concentrem em mãos de apenas
10% da população, o país experimenta sensíveis melhoras nesses primeiros anos
do século XXI. Graças aos programas sociais dos governos Lula e Dilma, 30
milhões de pessoas deixaram a miséria. O controle da inflação, o crédito
facilitado e a redução dos juros ampliam o segmento da classe média. A
desoneração da indústria automobilística e dos produtos de linha branca
(geladeiras, máquinas de lavar etc.) dão acesso a bens de consumo.
No entanto, 4 milhões de menores de 14 anos de idade ainda
se encontram fora da escola e submetidos a trabalhos indignos. Cinco milhões de
agricultores sem-terra se abrigam em precários acampamentos à beira de estradas
ou habitam assentamentos com baixo índice de produtividade. Dos domicílios,
47,5% carecem de saneamento básico. Isso abrange um universo de 27 milhões de
moradias nas quais vivem 105 milhões de pessoas.
Há cerca de 25 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo, sobretudo
nos Estados da Amazônia, cujo desmatamento, provocado pelo agronegócio e a
exploração predatória feita por empresas mineradoras, não cessa de despir a
floresta de sua exuberância natural.
Na ponta mais estreita da pirâmide social, os brasileiros gastam,
em viagens no exterior, US$ 1,8 bilhão por mês! O rombo nas contas externas
atingirá, este ano, a cifra recorde de US$ 53 bilhões. Nos últimos anos, a
baixa cotação do dólar em relação ao real afetou a indústria nacional e
favoreceu a entrada de produtos estrangeiros.
Como a economia brasileira está ancorada principalmente na
exportação de commodities, a crise financeira mundial reduz progressivamente as
encomendas, tornando pífio o crescimento do PIB, previsto este ano para 1,2%.
Considerado o segundo maior consumidor de drogas no mundo
(atrás apenas dos EUA), o Brasil convive com expressiva violência urbana. Os
homicídios são a principal causa de mortes de jovens entre 12 e 25 anos.
Embora a situação social do Brasil tenha melhorado
substancialmente na última década (a ponto de europeus afetados pela crise
financeira migrarem para o nosso país em busca de emprego), falta ao governo
implementar reformas estruturais, como a agrária, a tributária e a política.
O sistema de saúde pública é precário e somente neste ano os
deputados federais propuseram dobrar para 10% do PIB o investimento federal em
educação. Convivemos com 13,6% de adultos analfabetos literais e 29% de adultos
analfabetos funcionais (sabem ler e assinar o nome, mas são incapazes de escrever
uma carta sem erros ou interpretar um texto).
Segundo o Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê apenas 4
livros por ano. E apenas 5% da população é capaz de se expressar em inglês, dos
quais a maioria sem domínio do idioma.
O poder público brasileiro, com raras exceções, é avesso à
cultura. O orçamento 2012 do Ministério da Cultura é de apenas R$ 5 bilhões (o
PIB atual do Brasil é de R$ 4,7 trilhões). O que explica o país dispor de
apenas 3 mil livrarias, a maioria concentrada nas grandes cidades do Sul e do
Sudeste do país.
Apesar das dificuldades que o Brasil atravessa, somos um
povo viciado em otimismo. Temos, por hábito, guardar o pessimismo para dias
melhores...
Agora o nosso horizonte de felicidade se coloca na Copa das Confederações
em 2013; na Copa do Mundo em 2014; e nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.
Como o nosso país estará no centro das atenções mundiais, o
governo apressa obras, reforma estádios, aprimora a infraestrutura e promete
festas que nos farão esquecer que ainda somos, socialmente, uma das nações mais
desiguais do mundo.
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