Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Lições de Castells sobre indignação


 Juremir Machado no Correio do Povo
Indignação e (des)esperança
Muita gente boa não está entendendo coisa alguma do que anda acontecendo no mundo. Alguns continuam achando que ainda estamos no tempo de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan. O problema é que, como dizia uma música, o tempo não para. E as modas passam. O sociólogo espanhol Manuel Castells veio a Porto Alegre falar no ciclo de palestras “Fronteiras do Pensamento”. Já num opúsculo intitulado “Redes de indignação e esperança – movimentos sociais na era da internet”, ele detonou as convicções dos que persistem em criminalizar os movimentos sociais.
Castells sustentou o óbvio que mesmo parte da mídia não quer admitir: a internet está liquidando o monopólio da opinião e da informação. As primaveras árabes não ficarão restritas aos seus pontos de origem. Os indignados espanhóis e os ocupantes de espaços públicos norte-americanos aparecem por toda parte e por diferentes motivos. No Brasil, embora Castells não tenha dito isso, eles vêm se organizando contra o aumento abusivo de passagens de ônibus. Em Porto Alegre, atuaram também contra o corte das árvores da avenida Edvaldo Pereira Paiva. Chamá-los marginais não resolve mais. Só revela a um sintoma de um profunda mal-estar da sociedade. Segundo Castells, “torturar corpos é menos eficaz que moldar mentalidades”. Essa era a tarefa da mídia com seus discursos sobre a responsabilidade e a sensatez. Acabou. Ou disso só restam fantasmas turbulentos.
As redes sociais servem de contrapoder. Castells destaca a “autocomunicação de massa”, o uso horizontal da rede para “a construção da autonomia do ator social”. E explica: “É por isso que os governos têm medo da internet, e é por isso que as grandes empresas têm com ela uma relação de amor e ódio, e tentam obter lucros com ela, ao mesmo tempo que limitam seu potencial de liberdade”. A rede é emancipadora. Ela permitiu, por exemplos, aos indignados e aos desesperados, “os 99% sacrificados em benefício do 1% que controla 23% da riqueza” dos Estados Unidos, passarem a sua mensagem.
Castells torpedeia: “De onde vêm os movimentos sociais?” As respostas podem sair da boca de uma criança, mas dificilmente dos lábios de um colunista da Veja ou do Estado de S. Paulo, salvo se for um prêmio Nobel como Paul Krugman: “Da exploração econômica, pobreza desesperançada, desigualdade injusta, comunidade política antidemocrática, Estados repressivos, judiciário injusto, racismo, xenofobia, negação cultural, censura, brutalidade policial, incitação à guerra, fanatismo religioso (frequentemente contra crenças religiosas alheias), descuido com o planeta azul (nosso único lar), desrespeito à liberdade pessoal, violação da privacidade, gerontocracia, intolerância, sexismo, homofobia e outras atrocidades da extensa galeria de quadros que retratam os monstros que somos nós”. Parte da mídia zomba disso tudo.
Os fatos acontecem, a mídia os aborda e parte dela não os compreende. Noticia-se o futuro de olho no passado. Nichos conservadores regalam-se com a defesa dos seus privilégios e preconceitos. Enquanto isso na internet os jovens indignados ocupam a primeira página e exigem mudanças.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O canibalismo comunista da Veja



Praticamente nenhuma pessoa séria leva a revista Veja a sério. 
Sabe-se que é uma publicação humorística. Faz um humor meio sem graça,
 apelativo, rasteiro, como é o humor dominante na mídia brasileira atual.
 Mas há um traço de original nesse humor: ele é ideológico. Nesta semana, 
porém, Veja caprichou no ridículo. O texto “Os ossos do socialismo” 
é uma obra-prima de charlatanismo, de reacionarismo delirante e de besteirol 
histórico. Segundo o repórter, que assina a matéria, há uma relação direta
 entre canibalismo e comunismo.
 Em 1609, os primeiros colonos ingleses instalados em Jamestown, na América,
 loucos de fome, comeram os seus semelhantes.

Arqueólogos descobriram os ossos de Jane, vítima do canibalismo 
dos seus parceiros de aventura no Novo Mundo. 
A revista Veja não tem a menor dúvida: “Jane foi devorada por seus 
pares como consequência do fracasso do modelo de produção coletiva 
implantado nos primeiros anos da colonização dos Estados Unidos.
 A propriedade era comunitária, e o fruto do trabalho era dividido 
igualmente entre todos. Era, portanto, uma experiência que 
antecipava os princípios básicos do comunismo. Deu no que deu”. Uau! A 
cadeia estabelecida é imperativa: o coletivismo levou à preguiça, 
que levou à improdutividade, que levou à fome, que levou ao canibalismo. 
A saída viria com a propriedade privada. É reportagem
 para prêmio Esso de estupidez. Longe de mim defender o comunismo.
 O buraco é mais embaixo. Vejamos.

O autor tem a segurança dos tolos encantados com o lugar que 
ocupam na escala social: “Se não fosse o sistema fracassado, 
a situação dificilmente teria chegado a esse ponto”. 
Todos os demais aspectos de adaptação e de conjuntura
 são desconsiderados. O reducionismo ideológico surge 
como uma iluminação. A solução chega com um novo administrador, 
que impõe à propriedade privada: “A decisão despertou os traços
 hoje bem conhecidos do capitalismo americano: o empreendedorismo
 e a aptidão para a competição”. Disso teria decorrido que, 
em 1775, os americanos “já eram mais altos que os ingleses”.
 Tem gente batendo os dentes nos consultórios de dentista, onde
 Veja é campeã de leitura, de tanto rir. É um riso nervoso.

Nem os primatas do Pânico fariam melhor.

Para a pragmática revista Veja, no coletivismo, entre trabalhar
 e comer seus semelhantes, as pessoas escolhem a segunda opção.
 Um colono comeu a esposa grávida. Veja, enfim, descobriu a
 origem da expressão “comunista comedor de criancinha”. 
Na verdade, encontrou algo mais grave, o comunista comedor de feto. 
Sem contar que Duda Teixeira chegou ao elo perdido,
 a origem sempre procurada do capitalismo, o estalo: 
“Foi essa mudança, nascida do trauma de um inverno 
em que colonos caíram na selvageria que permitiu aos
 Estados Unidos se tornar o maior gerador de riqueza do planeta 
e o berço do capitalismo moderno”. 
O capitalismo nada mais é que uma reação ao canibalismo comunista. Agora é científico.

Não fosse grosseiro, eu diria: é a coisa mais idiota que li.







Under Creative Commons License: Attribution

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Crime e Castigo

Crime e Castigo
(Crime and Punishment)
Schuld und Sühne (1998)
Poster
Sinopse
São Petersburgo, 1859. Ródia Raskólnikov é um estudante que acaba de ser suspenso da universidade acusado de fazer parte de um grupo anarquista. Inteligente, ele tem uma teoria: acredita que certos indivíduos são superiores, a exemplo de Napoleão, dispostos a realizar façanhas grandiosas, que estão acima da lei e capazes de cometer qualquer tipo de transgressão sem sofrer punição. Raskólnikov acredita ser um desses. Dúnia, sua irmã, está disposta a se casar com um homem rico e desprezível; Sônia, uma moça ingênua e doce, decide prostituir-se para sustentar sua família que encontra-se à beira da miséria. Transtornado, decide matar uma agiota, mulher que considera inútil e que vive a usurpar as pessoas, inclusive ele, afim de provar sua teoria e conseguir algum recurso. Incapaz de livrar-se do sentimento de culpa, Raskólnikov passa a viver atormentado por visões e pesadelos de seu ato. Porfiri, o investigador de crimes, com paciência e estratégia irá conduzir o caso a sua maneira, prolongando o final aguardado. E Ródia encontrará no amor incondicional de Sônia a redenção necessária para se redimir do crime que cometeu.
Sinopse: carloschagas
Screenshots (clique na imagem para ver em tamanho real)

Elenco
Informações sobre o filme
Informações sobre o release
Patrick Dempsey - Ródia Raskólnikov
Ben Kingsley - Porfiri
Julie Delpy - Sônia
Eddie Marsan - Dimitri
Lili Horvath - Dúnia
József Gyabronka - Lújin
Richard Bremmer - Arkadi
Carole Nimmons - Marfa
Gênero: Drama
Diretor: Joseph Sargent
Duração: 87 minutos
Ano de Lançamento: 1998
País de Origem: Estados Unidos da América
Idioma do Áudio: Alemão
IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0144041/
Qualidade de Vídeo: DVD Rip
Vídeo Codec: XviD
Vídeo Bitrate: 2.016 Kbps
Áudio Codec: MPEG1/2 L3
Áudio Bitrate: 128 kbps 44 KHz
Resolução: 704 x 512
Aspect Ratio: 1.375
Formato de Tela: Tela Cheia (4x3)
Frame Rate: 25.000 FPS
Tamanho: 1.394 GiB
Legendas: Em anexo
Curiosidades
- O filme foi rodado na Polônia, reproduzindo com proximidade o cenário da São Petersburgo de Dostoiévski.
- O filme, diferente de outras versões para o cinema, enfatiza as cenas de pobreza e abismo social entre as classes.
Coopere, deixe semeando ao menos duas vezes o tamanho do arquivo que baixar.

Arquivo(s) anexo(s)


Este post foi editado por mfcorrea:

domingo, 11 de novembro de 2012

Eduardo Galeano: "Ao trabalhador, restam a angústia e o desemprego"

          

Celebrado escritor uruguaio realizou a conferência de encerramento do congresso do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), realizado na capital mexicana, em que tratou do tema “Os direitos dos trabalhadores: um tema para arqueólogos?”. Em sua fala, Galeano demonstrou como esses direitos são resultado de uma árdua luta com 200 anos de história, mas têm sido cada vez mais violados por governos e grandes corporações.



       Cidade do México – O escritor uruguaio Eduardo Galeano encerrou na noite de sexta-feira (9) o congresso do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), realizado na capital mexicana, com uma concorrida conferência pautada em um tema caro para os cientistas sociais: a decadência do mundo do trabalho.

Intitulada “Os direitos dos trabalhadores: um tema para arqueólogos?”, a intervenção de Galeano, assistida por ao menos mil pessoas, que lotaram auditório e salas anexas do hotel onde acontecia o congresso, foi construída como um “mosaico” de histórias essenciais sobre os “200 anos de lutas dos trabalhadores do mundo”.

A maior parte delas está disponível no último livro do escritor, “Os filhos dos dias", lançado neste ano no Brasil. Galeano tratou, por exemplo, da greve operária de Chicago em primeiro de maio de 1886, violentamente reprimida pelas forças de segurança. A data tornou-se o Dia do Trabalho em muitos países, mas não nos Estados Unidos.

“Há sete ou oito anos estive em Chicago e pedi aos amigos que me receberam que me levassem onde aconteceram os protestos. Mas me surpreendi porque eles não conheciam a história”, disse ele. “Só recentemente recebi uma carta deles contanto que tinha acabado de haver uma manifestação na cidade, para lembrar as greves daquela época”, completou.

O escritor, de 72 anos e mundialmente conhecido pela obra "As veias abertas da América Latina", também lembrou o médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714), precursor da medicina do trabalho. Segundo o uruguaio, o médico natural de Pádua escreveu o primeiro tratado do gênero, vinculando tipos de ocupações laborais com enfermidades específicas.

“Mas ele também escreveu que pouco poderia ser feito com as condições de vida daquelas pessoas, que comiam mal e trabalhavam de sol a sol”, afirmou. Ainda sobre a dureza do trabalho, Galeano lembrou que em 1998 a França reduziu a jornada a 35 horas por semana, mas a medida já foi desfeita.

“Era o sonho de Thomas Morus. Para que servem as máquinas, senão para ampliar nossos espaços de liberdade? Mas acabou em apenas 10 anos. Para o trabalhador, restou desemprego e angústia”, disse o uruguaio, lembrando a crise financeira global iniciada em 2008.

Galeano ainda citou o pouco interesse dos países e grandes empresas pelos 189 acordos e convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dos quais só 14 foram ratificados pelos Estados Unidos.

“Justamente o país em que o primeiro de maio não é celebrado”, destacou. Ao encerrar sua participação, Galeano contou a história de Maruja, trabalhadora doméstica e moradora de Lima, no Peru, também disponível em seu último livro. É esta que segue:


"Marzo, 30, Día del servicio doméstico"

"Maruja no tenía edad.
De sus años de antes, nada contaba. De sus años de después, nada esperaba.
No era linda, ni fea, ni más o menos.
Caminaba arrastrando los pies, empuñando el plumero, o la escoba, o el cucharón.
Despierta, hundía la cabeza entre los hombros.
Dormida, hundía la cabeza entre las rodillas.
Cuando le hablaban, miraba el suelo, como quien cuenta hormigas.
Había trabajado en casas ajenas desde que tenía memoria.
Nunca había salido de la ciudad de Lima.
Mucho trajinó, de casa en casa, y en ninguna se hallaba. Por fin, encontró un lugar donde fue tratada como si fuera persona.
A los pocos días, se fue.
Se estaba encariñando."


* Viagem realizada a convite do Clacso

sábado, 20 de outubro de 2012

80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky

 


Andrei Tarkovsky (1932-1986): apenas sete filmes lhe garantiram um lugar central na história do cinema | Foto: Divulgação
Publicado na Revista Continente
 
Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.
Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.
O apuro visual de A infância de Ivan (1962) | Foto: Divulgação
Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.
O épico Andrei Rublev: obra-prima absoluta | Foto: Divulgação
Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.
Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.
O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.
“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas” | Foto: Divulgação
Ídolo e ícone
No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.
Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.
Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.
1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.
Foto: Divulgação

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A NOITE DA BORBOLETA DOURADA - TARIQ ALI


Blog da MILU DUARTE

No final de 2011, foi lançado no Brasil o quinto  e último livro do chamado "Quinteto Islâmico" do escritor paquistanês Tariq Ali. Com o título de "A noite da borboleta dourada"(336 páginas), este livro foge da temática histórica do universo islâmico abordada nos outros livros do quinteto, que tratavam dos mouros, do Império Otomano, das Cruzadas. A 'Borboleta'  trata da China dos séculos XX e XXI, apresentando o mundo islâmico em rápidas pinceladas atuais e/ou históricas.

Como disse em entrevista ao gaúcho "Correio do Povo" o próprio autor, este livro "não  é um romance histórico; é um romance que atravessa algumas fases da história recente do Paquistão e da China".

 Eu ainda não li o romance: acabo de adquiri-lo por R$ 35,47 (preço de oferta da Livraria da Travessa). A sinopse a seguir foi extraída da Editora Record, responsável pelo seu lançamento no Brasil.

" Em A noite da borboleta da dourada, ele mais uma vez lança mão de sua habilidade para transgredir, de forma sutil, figuras e instituições tradicionais do Paquistão.

Logo no início do romance, o narrador é lembrado de uma dívida de honra. O credor é Mohammed Aflatun, conhecido como Plato. Um irascível, mas talentoso pintor, que vive num Paquistão onde a dignidade humana é artigo escasso. Depois de anos evitando os holofotes, Plato quer que sua trajetória de vida seja contada. Assim, somos apresentados à Alice Stepford, sua amiga londrina, agora uma crítica musical radicada em Nova York; à senhora Latif, dona de casa de Islamabad, cuja predileção por generais a leva até Paris; e à Jindie, a borboleta, seu primeiro amor.

Tariq revela fragmentos do islã contemporâneo, o cotidiano dos paquistaneses, tudo isso entremeado à vida da família de Jindie — um de seus antepassados, Dù Wènxiú liderou uma rebelião muçulmana no século XIX e governou a região por quase uma década como sultão Suleiman. Suas ações despóticas servem de espelho para a situação atual do país. A noite da borboleta da dourada é uma história de radicalismo secular que ajuda na compreensão das crises contemporâneas. O fecho perfeito para uma das mais belas séries da literatura atual."

Mais informações sobre o autor ver neste blog, no post http://livroquetequero.blogspot.com.br/2011/01/resenha-de-hoje-mulher-de-pedra-tariq.html

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Karl Marx manda lembranças

 

Por César Benjamin no GRABOIS




As economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas. Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os economistas chamam "comportamento racional". Dizem coisas complicadas, pois a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação.

 
Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria.
Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente, superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D - D" essa forma de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um agente organizador da sociedade.
Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder destrutivo.
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D - D". Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.
* César Benjamin, 53, é editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006)

Morre o historiador marxista Eric Hobsbawm aos 95 anos

  Marina Mattar | Redação do OPERA MUNDI
   
Um dos principais intelectuais do século XX, sua obra é reconhecida mundialmente

     
Agência Efe (28/01/20018)

O historiador, Eric Hobsbawm, desenvolveu pesquisas e estudos até os 94 anos, sendo responsável por extensa análise dos séculos XIX e XX e suas principais transformações
Um dos maiores historiadores do século XX e respeitado marxista, Eric Hobsbawm faleceu nesta segunda-feira (01/10) em Londres, aos 95 anos, segundo um comunicado de sua família divulgado em jornais britânicos. O estudioso deixou um amplo legado de pesquisas e análises sobre a história do mundo moderno a partir do viés marxista.

O intelectual estava internado no hospital Royal Free e não resistiu a uma pneumonia.  Sua filha, Julia Hobsbawm, informou que o historiador estava passando por um longo período de doenças, mas não deu outros detalhes sobre seu quadro de saúde.

"Ele fará falta não apenas para sua esposa há 50 anos, Marlene, e seus três filhos, sete netos e um bisneto, mas também por seus milhares de leitores e estudantes ao redor do mundo", acrescentaram seus familiares em comunicado.
 
Responsável por obra de quatro volumes sobre a história contemporânea, Hobsbawm é considerado um dos principais historiadores dos séculos XIX e XX. Seus estudos abrangem de 1789, data da revolução francesa, a 1991 com a queda da União Soviética e enfatizam, sobretudo, as transformações políticas e sociais do mundo por meio de seus principais marcos históricos.

O imperialismo das potencias sobre os continentes asiático e africano, a revolução russa e o estabelecimento dos regimes burgueses na Europa também foram objetos de estudo do marxista.

Para o historiador Niall Ferguson, os livros “A Era da Revolução” (1789 – 1848), a “Era do Capital” (1848 – 1875), “A Era dos Impérios” (1875 – 1914) e “A Era dos Extremos (1914 – 1991) são “o melhor ponto inicial para qualquer pessoa que deseje começar a estudar a história moderna”.

O trabalho de Hobsbawm, no entanto, não se limitou a essa série de estudos e a idade parece não ter impedido o historiador de continuar com suas pesquisas e análises. Tendo em vista recentes acontecimentos mundiais como os atentados terroristas do 11 de setembro e a guerra dos Estados Unidos “contra o terror”, Hobsbawm publicou “Globalização, Democracia e Terrorismo” em 2007, uma compilação de palestras e conferências.

Em 2011, aos 94 anos, o historiador fez sua ultima contribuição e análise aos estudos do pensamento e da história marxista com o livro “Como mudar o mundo”. Prefácios, artigos, conferências e ensaios reunidos na obra explicitam a preocupação central do historiador em refletir sobre as transformações e nesse caso, sobre uma teoria que alicerça a revolução.

Hobsbawm também se encontrou no ano passado com o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e opinou sobre a situação política brasileira. “Lula ajudou a mudar o equilíbrio do mundo ao trazer os países em desenvolvimento para o centro das coisas", opinou o historiador.

O historiador, de origem judaica, nasceu no ano de 1917 em Alexandria, no Egito, mas cresceu em Viena, capital austríaca, e em Berlim, capital alemã. Junto de sua família, se mudou para Londres em 1933 quando Hitler chegou ao poder na Alemanha. Hobsbawm desenvolveu seus estudos no King’s College, na capital britânica, e em Cambridge. Em 1947, começou a lecionar na Universidade de Birbeck, onde, anos depois, acabou por se tornar o reitor.

O posicionamento político de Hobsbawm era público e muito conhecido, pois, em plena Guerra Fria, ele se afiliou ao Partido Comunista britânico. O historiador disse, anos depois, que “nunca tentou diminuir as coisas que aconteceram na Rússia”, informou o jornal britânico Guardian.

“Mas, acreditava que um novo mundo estava nascendo em meio a sangue, lagrimas e horror: revolução, guerra civil e fome. Por conta do colapso do Ocidente, nós tínhamos a ilusão de que mesmo que brutal, o sistema funcionaria melhor do que o ocidental. Era isso ou nada”, contou o historiador.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Juremir: “Muitos comemoram a Revolução mas não conhecem sua história”


Juremir Machado da Silva publicou "História Regional da Infâmia" em 2010 | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

O jornalista e historiador Juremir Machado da Silva publicou em 2010 o livro “História Regional da Infâmia”, no qual relata, através de documentos, uma série de fatos pouco divulgados sobre a Revolução Farroupilha. Dentre eles, o de que ela foi financiada com a venda de negros.
Nesta entrevista ao Sul21, Juremir fala sobre as constatações do livro e o processo de mitificação que se deu em cima da história da revolução. “Os republicanos positivistas tinham noção de que uma identidade se constrói a partir de um mito fundador. Era preciso uma mitologia época para construir essa unidade”, explica.
Bastante criticado por expor visões “pouco gloriosas” sobre a Revolução Farroupilha – um dos principais elementos na construção da imagem do gaúcho brasileiro -, o jornalista conta que muitos historiadores deixam de pesquisar o tema por causa da repercussão negativa e hostil de seus trabalhos no Rio Grande do Sul. “Recebi e-mails e torpedos de pessoas dizendo que iam me capar. Senti hostilidade em muitas situações”, comenta.
“Ninguém tinha dito que a Revolução Farroupilha se financiou com a venda de negros no Uruguai”
Sul21 – Como surgiu a ideia de escrever “A História Regional da Infâmia”?
 
Juremir Machado – Por muitas razões. Uma delas é a inconformidade com esse culto tradicionalista mal embasado em fatos históricos. Como fiz faculdade de História, tinha acompanhado desde sempre as polêmicas provocadas, primeiro, pelo Tau Golim. Em seguida, por Moacyr Flores, Mário Maestri, Décio Freitas… Todos os historiadores que mexeram com isso foram muito atacados, criticados e, às vezes, até estigmatizados. Mas em determinado momento me veio a ideia de fazer um livro, na medida em que comecei a encontrar documentos que me pareciam interessantes. Um grande amigo meu, Luiz Carlos Carneiro, que tinha sido meu professor de História no cursinho universitário, lá por 1980, tinha se tornado diretor do Arquivo Histórico do RS, que tinha todo o acervo sobre a Revolução Farroupilha. Então pude fazer a pesquisa com toda a tranquilidade. E as pessoas que trabalhavam lá me ajudaram muito fazendo transcrição de documentos.

Sul21 – Quanto tempo durou a pesquisa?
 
Juremir - Eu li toda a bibliografia existente e fui às fontes. Li mais de 15 mil documentos e trabalhei com mais de 12 pessoas. Foram três anos de pesquisa com estagiários, bolsistas de iniciação científica, pessoas que contratei em Pelotas, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Debulhamos 15 mil documentos, alguns que nunca tinham sido trabalhados.

Sul21 – Que tipo de reações o livro provocou?
 
Juremir - Meu livro provoca dois tipos de polêmica: aqueles que dizem que tudo é falso e que eu preciso estudar mais; e aqueles que dizem que o livro não traz nada de novo. Isso é falso. É claro que o livro não parte de coisas que ninguém nunca tinha examinado, mas aprofunda muitas dessas coisas e descobre coisas novas. Eu chamo de documento infame toda a documentação referente ao financiamento da Revolução Farroupilha, à compra de munição, de fardamento, de alimentação com a venda de escravos no Uruguai. Ninguém tinha dito que, em determinado momento, por obra de Domingos José de Almeida, a Revolução Farroupilha se financiou com a venda de negros no Uruguai. Em algum momento se falou que teriam vendido alguns negros para comprar uma impressora para o jornal “O Povo”. A venda de negros para financiar a revolução gerou, inclusive, um processo judicial. Depois que deixou de ser ministro da Fazenda, Domingos José de Almeida entrou na Justiça da República pedindo o ressarcimento de tudo o que tinha investido. Ele detalha, briga, insulta e polemiza. Quer de volta o dinheiro dos negros que vendeu. Ele dá os nomes e todas as informações sobre as vendas.
"Meu livro provoca dois tipos de polêmica: aqueles que dizem que tudo é falso e que eu preciso estudar mais; e aqueles que dizem que o livro não traz nada de novo. Isso é falso" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como era a relação dos líderes da revolução com os negros? Havia uma retórica pretensamente abolicionista e uma prática diferente?
 
Juremir – Todos eram proprietários de escravos e viviam em uma sociedade escravista. Então eles podiam ser escravistas, seriam simplesmente homens de seu tempo. Mas em outros lugares estavam acontecendo revoltas pela libertação dos negros, como no Maranhão. No Uruguai e na Argentina, o processo de libertação dos negros estava muito mais acelerado. Era um tempo de escravismo, mas não da mesma maneira em todos os lugares. Falamos de Rivera e de Rosas como se fossem caudilhos hediondos, mas eles eram muito mais avançados, progressistas e iluministas. Nossos fazendeiros gostavam de se aliar com eles, mas tinham medo das coisas que eles faziam, como reforma agrária e libertação de negros. Eles eram muito mais adiantados e “perigosos” nesse sentido.
“Os farroupilhas não eram abolicionista e não pretendiam ser. Só queriam usar os negros”
Sul21 – Há o mito consagrado de que os farroupilhas eram abolicionistas.
 
Juremir - Não, eles não eram. Talvez um ou dois tivessem algum ardor nesse sentido. Mas a maioria não era. Eles prometeram liberdade para os negros dos adversários que aceitassem ser incorporados como soldados. Era uma forma de atrair mão de obra militar. Mas os escravos dos próprios farroupilhas continuaram nas fazendas trabalhando para que eles pudessem fazer a guerra. Quando a Revolução acabou e eles voltaram para casa, continuaram escravistas. Quando Bento Gonçalves morre, deixa um inventário com 53 escravos aos seus herdeiros. Escravos valiam muito. Ele morreu rico, com terras, fazendas e escravos. Quando fizeram, em Alegrete, o texto da Constituição, ela não previa a libertação dos escravos. Se eles tivessem vencido e a Constituição entrado em vigor, o Rio Grande do Sul continuaria sendo uma sociedade escravista. Eles não tinham nada de abolicionistas. Claro, em determinado momento, com a mão de obra militar minguando – principalmente quando o Império começou a mandar mais gente -, tiveram de recorrer aos negros dos adversários. O Domingos José de Almeida, além de ter vendido seus negros ao Uruguai para financiar a revolução, para ele mesmo se sustentar como ministro da Fazenda e cérebro da revolução, continuava alugando outros negros no Uruguai e vivendo das rendas desse aluguel. Os negros trabalhavam no Uruguai para que ele pudesse ser o chefe revolucionário. Existem muitos exemplos de situações mais adiantadas de libertação de escravos. No Brasil, no Uruguai, na Argentina, no Chile… Simón Bolivar tinha libertado os escravos. A libertação de escravos estava acontecendo com frequência. Rivera fez isso e nós não. Os farroupilhas não eram abolicionista e não pretendiam ser. Só queriam usar os negros.
"Muitos historiadores reconhecem que houve traição em Porongos, mas não demonstram como isso ocorreu. A maior parte pula essa etapa" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Teve o episódio da batalha de Porongos…
 
Juremir - É curioso… Muitos historiadores reconhecem que houve traição em Porongos, mas não demonstram como isso ocorreu. A maior parte dos historiadores que examina Porongos pula essa etapa. Em determinado momento essa traição era negada. Como os líderes farroupilhas tinham prometido liberdade aos negros dos adversários, com o fim da revolução começam a ficar preocupados e receosos de que os negros possam querer se vingar caso isso não ocorra. Era um contingente expressivo de escravos. Então os líderes farroupilhas estavam numa contradição, já que esses negros pertenciam a adeptos dos imperiais, que os queriam de volta. Foi aí que veio aquela ideia “maravilhosa” de diminuir esse contingente ao máximo e fazer um pacto para eliminá-los. A cilada de Porongos chega a ser simplória. Os negros foram realmente desarmados e dizimados. Canabarro recebeu o aviso de um possível ataque e desarmou os homens, foi tudo muito preparado. Um outro aspecto que o meu livro vai adiante é em relação ao destino dos negros farrapos. Nem todos morreram. Sobraram alguns deles. Uns escaparam, conseguiram fugir a cavalo, e muitos caíram prisioneiros. Sempre se discutiu o que teriam feito com esses negros. Os farroupilhas dizem que Caxias libertou todos, incorporou ao Exército e conferiu a eles uma condição quase de enobrecimento. E alguns diziam que eles tinham sido enviados para o Rio de Janeiro, para a fazenda imperial Santa Cruz.

Sul21 – O que aconteceu?
 
Juremir - Fui atrás e consegui documentos mostrando para onde eles foram. Eles foram entregues pelos farroupilhas e foram transportados. Consegui documentos sobre como eles foram transportados, até com o nome do navio. Eles foram para o Rio de Janeiro, para o arsenal da Marinha.
“A Revolução Farroupilha foi feita pela Farsul da época com os métodos das Farc”
Sul21 – Politicamente, havia alguma unidade entre os líderes da revolução?
 
Juremir - Era um saco de gatos. Antes de 1835 havia gente que oscilava. Bento Gonçalves, por exemplo, era um monarquista, não era republicano. Neto não era republicano. Bento Gonçalves tinha pendores para fazer uma associação com o Uruguai. Ele se relacionava com o Rivera e pensava, volta e meia, em uma perspectiva de junção com o Uruguai. Mas também não era algo muito convicto. Em 1834 aconteceu a principal causa da Revolução Farroupilha: um surto de carrapatos que devorou o gado. Os fazendeiros ficaram com um prejuízo enorme e fizeram exatamente como os pecuaristas fazem hoje em dia: quiseram repassar o prejuízo ao Império. Mas essa ajuda do governo central não vinha. Por outro lado, havia um contexto de muitos militares no Rio Grande do Sul. Em 1831, quando Dom Pedro I abdicou, muitos militares foram mandados para cá, numa espécie de geladeira, porque tinham se insubordinado. Então se juntam esses militares cansados e insatisfeitos com os fazendeiros que se sentiam prejudicados pelo Império. No começo das conspirações, eles só desejam que o Império atenda às suas reivindicações. Alguns querem ver reconstituída sua dignidade militar e serem transferidos para outros lugares. Nossos fazendeiros queriam atendimento às suas reivindicações econômicas. O movimento vai ganhando vida e eles não conseguem mais recuar. Em determinado momento, surge a perspectiva da República, que nenhum dos líderes tinha em mente. No meu livro, publico uma carta que Neto enviou aos vereadores de Pelotas. Ele, que tinha proclamado a República, disse “não sou republicano”. Eles não eram republicanos, mas aos poucos foram sendo empurrados para aquela situação e acabaram proclamando uma República que o Império nunca reconheceu. Para o Império, sempre se tratou apenas de uma província rebelada.

Sul21 – E por que a guerra durou tanto tempo?
 
Juremir - Quando os liberais estavam no poder, no período regencial, eles, no fundo, gostavam dessa gente daqui. Eles não queriam mandar muito efetivo para cá e deixaram a Revolução correr. Quando finalmente Dom Pedro II ganha a maioridade e os conservadores assumem o poder e passam a ter o primeiro ministro, eles enviam muito efetivo para o Rio Grande do Sul. Então por volta de 1842 já está liquidada a fatura. A revolução se transforma em uma guerra de guerrilhas. Os farroupilhas começam a fugir para todos os lados e, de vez em quando, fazem algumas emboscadas. Quando a coisa ficava muito pesada, todo mundo se refugiava no Uruguai. Foi uma guerra de guerrilhas na qual o exército imperial ficava atrás dos rebeldes e, de vez em quando, tinha algum combate. Houve muito pouco combate e morreu pouca gente. Em dez anos de guerra, morreram 2,9 mil pessoas. Morria mais gente de gripe do que de guerra. Passava meses sem que houvesse combate. Claro que houve momentos de heroísmo e momentos de infâmia absoluta, com estupro, degola, sequestro e execução sumária. É por isso que eu digo que a Revolução Farroupilha foi feita pela Farsul da época com os métodos das Farc. Do ponto de vista ideológico, eles eram a Farsul da época, com uma ideologia liberal incipiente. Eram proprietários rurais em defesa dos seus interesses. E utilizavam os métodos que hoje se condena nas Farc: sequestro, apropriação do gado e das terras alheias.
"Um dos grandes problemas da Revolução Farroupilha foi a corrupção", aponta jornalista e pesquisador gaúcho | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Em seu livro, o senhor também aponta casos de corrupção entre os líderes farroupilhas.
 
Juremir – Quando eles se reúnem em Alegrete para fazer a Constituição, estavam totalmente rompidos. Antonio Vicente da Fontoura pertencia à chamada minoria. Ele havia sido ministro da Fazenda, sucedendo Domingos José de Almeida. Quando ele assumiu o Ministério, constatou que a corrupção corria solta. Ele descreve isso fartamente em seu diálogo e os historiadores nunca quiseram dar muita atenção. Os farroupilhas pegavam a fazenda de um adversário e arrendavam e o lucro desse arrendamento desaparecia. Até Neto foi acusado por Antonio Vicente da Fontoura de ter desaparecido com dinheiro. Um dos grandes problemas da Revolução Farroupilha foi a corrupção. Eles brigaram e se separaram por causa disso. O duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires tinha na sua base acusações de corrupção.
“Os cariocas acham esse negócio de Semana Farroupilha quase ridículo, uma espécie de carnaval a cavalo”

Sul21 – Como se pautaram as relações dos farroupilhas com as lideranças uruguaias e 
argentinas? Havia, de fato, a intenção de se criar uma república que anexasse o território do Uruguai e algumas províncias da Argentina?
 
Juremir – Quando viram que Rivera estava libertando escravos e que tinha propensões à reforma agrária, a parceria deixou de ser interessante. A Revolução Farroupilha foi uma espécie de golpe militar. Esse golpe militar sofreu muita influência platina. Houve muita influência desses caudilhos uruguaios e argentinos. Mas depois houve momentos de aproximação e de separação. Essas alianças só não prosperaram definitivamente porque os líderes farroupilhas eram muito mais conservadores que os caudilhos uruguaios e argentinos. Rivera queria uma revolução benéfica para a população uruguaia. Bento Gonçalves e sua turma só entraram em ação por causa dos seus interesses particulares.

Sul21 – Como se deu a construção dos mitos em cima da Revolução Farroupilha?
 
Juremir - São várias etapas. Uma delas é quando Julio de Castilhos e os republicanos positivistas estão trabalhando pela construção da República no Rio Grande do Sul. Julio de Castilhos vai estudar direito em São Paulo e manda uma carta dizendo que é preciso estudar aquela guerra civil, porque ela poderia servir de fundamento para o que hoje nós chamaríamos de construção de uma identidade regional. Na época, a Revolução Farroupilha era chamada de guerra civil. Esses republicanos positivistas tinham bem a noção de que uma identidade se constrói a partir de um mito fundador. Então era preciso uma mitologia épica para construir essa unidade. Isso foi fartamente explorado. Depois, historiadores como Varela e Alfredo Ferreira Rodrigues ajudaram a construir uma ideia épica de revolução, influenciados pela perspectiva histórica dominante no século XIX. Nos anos 1930, os militares ligados ao Instituto Histórico e Geográfico fazem, em plena Era Vargas, uma recuperação dos fatos com interesse cívico de engrandecimento das atitudes militares. O interessante é que a Revolução Farroupilha foi feita por militares e escrita por militares.

Sul21 – E qual o papel dos historiadores na desmistificação da revolução?
 
Juremir – Os grandes historiadores estão desmistificando a Revolução Farroupilha. Nomes como Tau Golin, Moacyr Flores, Mário Maestri, Sandra Pesavento, Margeret Bakos, Décio Freitas… Moacyr Flores talvez seja aquele que trabalhou mais intensamente a Revolução Farroupilha. O livro “O Modelo Político dos Farrapos” é um marco na desmistificação. Tau Golin fez uma espécie de panfleto que teve muito impacto, questionando se Bento Gonçalves seria herói ou ladrão. Margaret Bakos trouxe muitos dados sobre a condição do negro na Revolução Farroupilha. São esses os caras que realmente têm escrito coisas importantes sobre a Revolução Farroupilha. Se fosse na França, esse pessoal estaria sendo destacado. Mas aqui é o inverso. Talvez porque o Rio Grande do Sul, como qualquer lugar, precisa de um mito fundador. E o que tem à mão é esse. A história, nesse sentido, estraga um pouco este prazer. Os fatos históricos não confirmam toda essa grandeza.

Sul21 – O que significa hoje comemorar a Revolução Farroupilha?
 
Juremir – Vale lembrar que a comemoração da Semana Farroupilha, tal qual a fazemos hoje, começa em dezembro de 1964. É uma obra da ditadura militar. O patriotismo servia muito bem nessa época. Acho muito interessante a ideia de que essas pessoas se reúnem para comemorar outra coisa. Comemoram um ideal de vida agropastoril, uma nostalgia da vida no campo, quando éramos realmente gaúchos e tínhamos estâncias. Há também o gosto de estar junto, de conviver e ter algo a compartilhar – algo que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de “tribalismo”. Esse fenômeno pode estar no escotismo, numa torcida de futebol, ou nesse congraçamento anual onde todos se encontram e brincam um pouco de casinha, como dizia Flávio Alcaraz Gomes. A Revolução Farroupilha surge como uma espécie de cimento para fortificar esse interesse de estar junto. Mas ela também tem um componente ideológico conservador. Muitos dos que estão comemorando a Revolução Farroupilha não conhecem grande coisa da sua história. Se for examinar no detalhe, eles não sabem. Conhecem a cartilha do Movimento Tradicionalista Gaúcho, que só destaca aquilo que exclusivamente lhes convém.
Juremir: "muitos dos que comemoram a Revolução Farroupilha não conhecem grande coisa da sua história. Conhecem a cartilha do MTG" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Qual o papel da mídia na consolidação do mito?
 
Juremir – A mídia precisa adular esse público para poder fidelizá-lo. É uma estratégia de marketing que reforça os mitos e dificulta a desconstrução feita pelos historiadores. O interesse da mídia nessa questão é meramente comercial. É uma estratégia de reforço de algo que é caro ao público. Ninguém quer brigar com boa parte do Rio Grande do Sul. É melhor dar uma adulada e deixar os universitários e acadêmicos falarem outras coisas. Se o público está feliz, por que estragar o prazer? Além de tudo, a mídia é conservadora. Muitas vezes os jornalistas compartilham esses valores e acreditam nessas histórias porque foram formados nessa matriz. Tudo isso entra no mesmo caldeirão e, ano a ano, as vozes dos historiadores ficam praticamente inaudíveis.

Sul21 – O Rio Grande do Sul tem uma relação mais intensa com seus mitos do que outras regiões do país?
 
Juremir – Talvez, até pelo tipo de construção história do Rio Grande do Sul, com tantas guerras de fronteira. Vários movimentos e situações se aproveitaram disso: a República, os anos Vargas, a ditadura militar e o crescimento do movimento tradicionalista.

Sul21 – Isso contribui para uma imagem mais arrogante do Rio Grande do Sul nos outros estados brasileiros?
 
Juremir – Isso é algo que só nós enxergamos. Os cariocas acham esse negócio de Semana Farroupilha quase ridículo, uma espécie de carnaval a cavalo.

Sul21 – E o nosso hino? Cantamos um hino que fala em uma “ímpia e injusta guerra”.
 
Juremir – Nosso hino é racista, ainda por cima, quando diz que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. É um insulto àqueles que lutaram com os farroupilhas e foram atraídos a eles com a promessa de liberdade.

Sul21 – Até hoje, o senhor ainda recebe críticas por causa do livro?
 
Juremir – Alguns historiadores preferem se afastar desse tema. Cansam de brigar e ouvir insultos. Eu mesmo sofri todo tipo de desqualificação. Diziam que eu não sou historiador e que o meu livro só requenta outras informações. Na época que saiu o livro, a Farsul ameaçou me processar, até por um mal entendido. Acharam que eu tinha dito que a Farsul tinha os métodos das Farc. O que eu disse, na verdade, foi que os farroupilhas tinham a ideologia da Farsul e os métodos das Farc. Recebi e-mails e torpedos de pessoas dizendo que iam me capar. Senti hostilidade em muitas situações. Já perdi a conta do número de insultos que recebi por e-mail, Twitter e Facebook. O maior insulto é a tentativa permanente de desqualificação do teu trabalho.

domingo, 9 de setembro de 2012

Tolstói: o genial escritor que fugiu de casa aos oitenta e dois anos


Tolstói em seu escritório (Clique para ampliar)

Milton Ribeiro no SUL21

Liev Tolstói foi o primeiro grande injustiçado pelo Prêmio Nobel. Nascido em 9 de setembro de 1828, o escritor russo viveu até 1910 — o prêmio começou a ser entregue em 1901 — e, em seus últimos anos de vida, já era uma figura incontornável não apenas da literatura russa, mas da mundial. Ele foi um dos primeiros a entrar numa importante lista de não ganhadores que depois ganharia outros nomes notáveis como Marcel Proust, James Joyce, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Machado de Assis, Émile Zola, Henrik Ibsen e Paul Valéry, para citar alguns. Obviamente, alguns destes nomes apenas tornaram-se importantes post mortem ou, como Machado de Assis, escreviam em línguas menos traduzidas, mas o caso de Tolstói foi bastante estranho, pois, como dissemos, o escritor viveu grande parte de sua vida como uma indiscutível celebridade. Nada mais merecido.
Anton Tchékhov e Tolstói em Iasnaia Poliana

Caso semelhante ao de Dostoiévski, Tolstói foi por anos lido no Brasil em traduções de segunda mão. Isto é, como não havia no país tradutores de russo, ambos eram traduzidos do francês… Apenas nos últimos 30 anos, começaram a aparecer as traduções diretas do russo, as quais revelaram o descuido e o desrespeito com que eram tratados estes autores, além de muitos outros. O elogio mais comum feito a Tolstói era o de que se tratava de um estilista absolutamente impecável. O tradutor Rubens Figueiredo, que recentemente traduziu para a Cosac & Naify seus três principais romances — Anna Kariênina, Guerra e Paz e Ressurreição — obrigou-se a escrever uma série de explicações a respeito de certas estranhezas em seu texto. Ocorre que no original há repetições de palavras bem próximas umas das outras, procedimento que Figueiredo criteriosamente manteve, mas que os antigos tradutores não admitiam. Por exemplo, nas páginas 241-242 de Anna Kariênina (Cosac & Naify) há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Tais repetições não devem ser confundidas com descaso.  ”Gosto daquilo que chamam de incorreção. Ou seja, daquilo que é característico”, dizia Tolstói.  Também o uso de parênteses eram corrigidos pelos tradutores do passado, assim como as frases, muitas vezes longuíssimas, acabavam particionadas.
A famosa edição da Livraria do Globo, em dois volumes (Clique para ampliar)

Desta forma, um dos caminhos para estarmos mais próximos do autor russo é o de procurar as traduções feitas diretamente do original e ignorar as antigas traduções da Editora Globo para Guerra e Paz e Kariênina, por exemplo, as quais traziam um autor distorcido, com maior elegância e polimento do que o original. Pois para expressar o pensamento mais simples de alguns mujiques — os camponeses russos — , Tolstói se utilizava de pouco requinte e de um vernáculo mais limitado. O escritor russo também pensava que, em alguns casos, as repetições davam mais coesão e clareza a certos trechos.
Nestes dois grandes romances, Tolstói demonstra sua arte de forma inequívoca. Ele foi um perfeito contador de histórias polifônicas. Trabalhava com muitos personagens, as interações entre eles, suas ações e pensamentos nunca são artificiais e, de forma profundamente humana, até as paisagens descritas passam pelo filtro do estado de espírito de quem as observa. Guerra e Paz e Anna Kariênina são belíssimas sinfonias para muitas vozes.  Chama atenção o caminhão de realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna, por exemplo, está a léguas de poder aspirar a uma condição de boa pessoa do século XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e ela, passando por cima de Kitty e largando seu marido por pura concupiscência, renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a atitudes muito impulsivas, está longe do ideal virtuoso. Para completar, encontra justificativas para quase todos os seus atos, porém Tolstói não esboça o menor gesto de justificá-la assim ou assado.
Tolstói e Gorki também em Iasnaia Poliana. Foto de 1910. 
 (Clique para ampliar).

Já as novelas Sonata a Kreutzer e A Morte de Ivan Ilitch são o extremo contrário. Focadas, com poucos personagens e devastadora análise psicológica, a primeira fala sobre o casamento, a infidelidade e a hipocrisia social e a segunda sobre a morte. Em agosto de 1883, duas semanas antes de falecer, o escritor russo Ivan Turguêniev escreveu a Tolstói: “Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e estou, literalmente, em meu leito de morte. Na realidade, escrevo apenas para lhe dizer que me sinto muito feliz por ter sido seu contemporâneo, e também para expressar-lhe minha última e mais sincera súplica. Meu amigo, volte à literatura”. Tolstói era efetivamente dado a passar longos períodos sem escrever e, diante do pedido do amigo, respondeu com a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch em breves 85 páginas. No texto, é mostrado um rigoroso acerto de contas interno, revelando a inutilidade da vida de Ivan. Preso ao leito, frente à morte certa, Ivan Ilitch vê como a rotina, nosso mais pesado algoz, e a vida burguesa impediram-no de apenas… pensar.
Se considerarmos sua obra como ficcionista, chegaremos à conclusão de que quase tudo aquilo que criou ainda é lido. Os três romances citados, mais as novelas A felicidade conjugalSonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilitch, além de relatos autobiográficos e de contos populares são a parte principal de sua obra. Tolstói foi romancista, novelista, contista, ensaísta e dramaturgo. Mas também foi o filósofo criador do tolstoísmo, uma forma de vida pastoral e pacifista que hoje nos parece bastante aparentada da forma de vida dos hippies dos anos 60 do século XX.
Imagem do excelente A Última Estação, com Christopher Plummer (Tolstói) e Helen Mirren (Sônia) | Foto: Divulgação

Atualmente, o lado filósofico e a vida pessoal de Tolstói fazem a festa de outros autores, de filmes e séries de TV. Só para citar os casos mais conhecidos: em Diário de uma Ilusão, de Philip Roth (cujo título original é The Ghost Writer, o que nos faz pensar nos critérios dos antigos tradutores de nosso retratado), há um capítulo intitulado Casado com Tolstói, que se refere ao contumaz sumiço de um dos cônjuges.  Também houve o bom filme A última estação, onde vemos as causas de uma das tais fugas. É que, para além de ser um gênio, o escritor russo era um puro. Tão puro que gerava suspeitas. Em 1856, ele, que fazia parte da nobreza russa, libertou todos os seus servos e doou-lhes as terras onde trabalhavam. Estes, porém, desconfiados, devolveram as propriedades ao ex-dono. Ele tinha, aliás, uma recorrente inclinação de desfazer-se de seus bens materiais, inclinação que não estava de acordo com a opinião de sua esposa Sônia.
O escritor em 1848

No final da década de 1850, preocupado com a péssima qualidade da educação no meio rural, Tolstói criou uma escola para filhos de camponeses na aldeia onde nasceu e viveu, a célebre Iasnaia Poliana. O escritor mesmo escreveu grande parte do material didático e, ao contrário da pedagogia da época, deixava os alunos estudarem quando quisessem, sem regras excessivas e, estranhamente, sem punições físicas. Educar para libertar. Esse era seu norte pedagógico. Recentemente, parte do material criado para a escola por seu fundador foi traduzido do russo.  Contos da Nova Cartilha é o resultado desta incursão. A obra é uma coletânea de textos extraídos das duas cartilhas elaboradas por Tolstói. São fábulas, histórias reais, contos folclóricos, descrições de paisagens naturais e adivinhações. O estilo é conciso, aproximando-se do ritmo da linguagem oral.
Tolstói e uma de suas filhas 

(Clique para ampliar)
Em 1862, casou-se com Sônia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos. A qualidade do casamento seria melhor aferida por um sismógrafo. Foi neste ambiente que Tolstoi produziu seus principais romances. Guerra e Paz consumiu sete anos de trabalho e é a prova de que um mau casamento pode produzir bons frutos. O autor atormentava-se mais do que habitual em seres humanos com questões sobre o sentido da vida e, após desistir de encontrar respostas na filosofia, na religião e na ciência, deixou seduzir-se pelo estilo de vida dos camponeses. Foi o que ele chamou de sua “conversão”. Após a “conversão”, Tolstói deixou de beber e fumar, tornou-se vegetariano e passou a vestir-se como camponês. Convencido de que ninguém deveria depender do trabalho alheio para viver, passou a limpar seu quarto, a plantar a comida da qual se alimentava e a produzir as próprias roupas e botas. Suas ideias atraíram um séquito de seguidores, que se denominavam “tolstoianos”. Como resultado, Tolstói passou a ser vigiado pela polícia do czar.
Liev Tolstói e sua esposa Sônia em 1910, ano da morte do escritor

Porém, Sônia não o deixava alcançar a simplicidade. Ela lhe cobrava os luxos aos quais estava acostumada. Os filhos davam razão à mãe, que ameaçava matar-se quando o escritor dizia que fugiria de casa. A partir de 1883, houve uma disputa entre sua esposa e Tchértkov, um militar que gozava da confiança do autor e que se tornou um paladino de suas ideias na Rússia. Sônia foi nomeada controladora de seu patrimônio, combatendo o marido, que acreditava nos feitos purificadores da caridade. Obviamente, a bondade de Tolstói levou-o a afastar-se do governo, da justiça e da Igreja Ortodoxa russa; acabou excomungado.
Problemas em casa

No período final de sua vida, acentuou-se a briga entre Sônia e Tchértkov. Agora o motivo eram os direitos autoriais de seus livros. Em 1908, Tchértkov escreveu um testamento em nome de Tolstói, onde outorgava a si mesmo o direito sobre os livros após a morte do autor. O militar foi para história como um mal intencionado que se aproveitava da credulidade do autor de Guerra e Paz. Provavelmente mereceu tal má fama póstuma. O fato é que os anos próximos à morte do escritor foram um inferno familiar. O conflito com Sônia era tal que Tolstói fez o que já fizera em oportunidades anteriores: fugiu de casa. Sônia não se matou, na verdade foi mais uma vez atrás do marido fugitivo. Só que desta vez ele morreu em meio à fuga. Faleceu na aldeia de Astápovo, em 7 de novembro de 1910. Anos depois, Sônia recuperou para a família os direitos sobre a obra de seu marido.
Tolstói em seu leito de morte

Poema da gare de Astapovo, de Mario Quintana

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!