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sábado, 8 de junho de 2013

As prostitutas na história – de Deusas a Escória da Humanidade


POR PATRÍCIA PEREIRA em UOL-Leituras da História
Que a prostituição é popularmente conhecida como a profissão “mais antiga do mundo”, todos sabem. E, desde que o mundo é dito civilizado, sempre houve prostitutas pobres e prostitutas de elite. O lado desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a que temos atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e cultura, e também já foram associadas a deusas – manter relações sexuais com elas era necessário para conseguir poder e respeito. As “mulheres da vida” sempre tiveram um lugar na História, mas, ao longo dos anos, seu status passou de respeitável à condenável.
Maria Regina Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em História, e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. “Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”, diz Maria Regina.
Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, explica Nickie Roberts, no livro As Prostitutas na História. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhecida inicialmente como Inanna e mais tarde como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade. Foi essa preocupação com a prole que, mais tarde, levou ao surgimento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.

Por volta de 3.000 a.C., tribos nômades passaram a criar gado e tornaram-se conscientes do papel masculino na reprodução. As sociedades matriarcais da deusa começaram a ser subjugadas. As primeiras civilizações da era histórica desenvolveram-se na Mesopotâmia e no Egito, e nasceram desse levante. Novas formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar a sexualidade das mulheres, afirma a escritora. “Foi nesse momento da história humana, em torno do segundo milênio a.C.,
que a instituição da prostituição sagrada tornou-se visível e foi registrada pela primeira vez na escrita”, explica Nickie.

AS PRIMEIRAS PROSTITUTAS DA HISTÓRIA
As grandes cidades da Mesopotâmia e do Egito continuaram centralizadas nos templos da Grande Deusa. As sacerdotisas dos templos, que participavam de rituais sexuais religiosos, ao mesmo tempo mulheres sagradas e meretrizes, foram as primeiras prostitutas da História, conta Nickie Roberts. O status dessas mulheres era elevado. Os reis precisavam buscar a benção da deusa, por meio do sexo ritual com as sacerdotisas, para legitimar seu poder. “Nessa época, as prostitutas do mais alto escalão do templo eram, por direito nato, agentes poderosas e prestigiadas; não eram as meras vítimas oprimidas dos homens, tão protegidas pelas feministas modernas”, escreve Nickie Roberts.

A Suméria criou a segregação feminina ao colocar em lados opostos a esposa obediente e a prostituta má.
Julio Gralha, professor do NEA/UERJ, lembra que a visão sobre as prostitutas da época é pouco documentada de forma escrita, mas pode ser inferida pelas imagens das iconografias. “Pela análise da iconografia, a prostituta existia no Egito e atuava de forma remunerada.
Há contos iconográficos, cômicos, em que a prostituta é vista como poderosa, o homem não agüenta. Como aparecem o colar e outros símbolos ligados à deusa, elas são vistas como protegidas. A prostituição não era algo repulsivo ou condenado pela religião”, diz Gralha.

UM NEGÓCIO ORGANIZADO NA GRÉCIA
Com o passar do tempo, a independência sexual e econômica da prostituta tornou-se uma ameaça à autoridade patriarcal. Por isso, a religião da deusa foi combatida pelos sacerdotes hebreus e, aos poucos, suprimida. Os rituais sexuais viraram pecados graves e as sacerdotisas, pecadoras.

“As principais religiões patriarcais que se seguiram – o cristianismo e o islamismo – reconheceram o impacto devastador do estigma da prostituta na divisão e regulamentação das mulheres”, explica Nickie Roberts.
A Grécia antiga foi uma típica sociedade patriarcal. As mulheres não podiam participar da vida política e social. No entanto, como aconteceu a todas as sociedades antigas, os primeiros habitantes da Grécia foram povos adoradores da deusa, afirma Nickie. Os deuses masculinos só vieram mais tarde, por volta de 2.000 a.C., com os invasores indo-europeus. As duas culturas fundiram-se e produziram o híbrido que chegou até nós. Basta lembrar que Zeus, divindade suprema indo-européia, casou-se com Hera, poderosa deusa sobrevivente do culto anterior.

A negação total do poder da mulher na sociedade grega é decorrente do governo de uma série de ditadores homens. Sólon, que governou Atenas na virada do século VI a. C., foi o principal deles, tendo institucionalizado os papéis das mulheres na sociedade grega. Passaram a existir as “boas mulheres”, submissas – e as outras. Foi também Sólon quem, percebendo os lucros obtidos pelas prostitutas – tanto as comerciais quanto as sagradas -, organizou o negócio, criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado. Neles, havia grande exploração das mulheres, que eram praticamente escravas. Junto com os bordéis oficiais, muitas meretrizes independentes exerciam o seu comércio, apesar da legislação de Sólon. “Pela primeira vez na História, as mulheres estavam sendo cafetinadas – oficialmente. (…) Assim, de mãos dadas, nasceram a cafetinagem estatal e privada”, afirma Nickie.
Maria Regina Cândido, historiadora da UERJ, lembra que foi a pressão sobre a terra, com o grande aumento da população grega, que levou Sólon a criar os primeiros bordéis. Isso porque ele trouxe para a região estrangeiros ceramistas, com o intuito de ensinar à população excedente uma nova atividade, já que a agricultura não absorvia mais a todos.
“Para que os estrangeiros não molestassem as esposas e filhas de cidadãos gregos, ele criou um espaço de prostituição oficial na periferia da cidade, os bordéis”, explica a coordenadora do NEA.


Segundo Maria Regina, as prostitutas ficavam em frente ao cemitério, na região do cerâmico, onde estavam instaladas as oficinas dos ceramistas, e também na região do Porto do Pireu, onde eram chamadas de pornes, daí vem a palavra pornografia.

As prostitutas dos bordéis eram estrangeiras, trazidas para a Grécia exclusivamente para cumprir esse papel. Mas muitas mulheres gregas, depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de comportamento, não viam outro caminho a não ser prostituir-se. Essas, estigmatizadas, juntavam-se às estrangeiras nos bordéis oficiais.
SÍMBOLO ÀS AVESSAS
Maria Madalena, famosa prostituta arrependida da Galiléia, representa que, para ser salva, a mulher precisa abandonar a profissão. Conhecida como a ex-prostituta da Galiléia, Maria Madalena foi uma das mais fiéis seguidoras de Jesus Cristo. De acordo com a Bíblia, ela estava presente em sua crucificação e em seu funeral. Foi ela quem encontrou vazio o túmulo de Jesus, ouviu de um anjo que ele havia ressuscitado e foi dar a notícia aos apóstolos.
Prostituta com papel de destaque na história de Cristo – foi, inclusive, canonizada pela igreja católica -, Maria Madalena poderia ter se tornado um símbolo na luta pela aceitação da atividade. Mas o que ocorreu foi o contrário: como personificou o estereótipo de “prostituta arrependida”, acabou por disseminar uma imagem negativa sobre a prostituição, ao reforçar a idéia de que é preciso abandonar a atividade para redimir-se dos pecados e ser perdoada por Deus.

Durante a Idade Média, as prostitutas atuantes eram excomungadas da igreja católica. Mas as que se arrependiam eram perdoadas e aceitas pela sociedade. Houve até um movimento de conversão, em que a igreja estimulou fiéis a “recuperar” prostitutas e casar-se com elas. Também surgiram comunidades monásticas de ex-prostitutas convertidas, que receberam o nome de “Lares de Madalena”. Elas proliferaram pela Europa, tendo sido financiadas, em sua maioria, pelo clero. Além de Maria Madalena, a igreja enalteceu diversas outras prostitutas que salvaram suas almas pelo arrependimento, como Santa Pelágia, Santa Maria Egipcíaca, Santa Afra e outras.
O curioso é que nenhuma passagem na Bíblia afirma que Maria Madalena foi prostituta. Os textos sagrados a mencionam como pecadora, de quem Jesus expulsou sete demônios, mas não especificam qual seria seu passado. Provavelmente, o que a levou a ser vista como prostituta foi a identificação com um relato de Lucas (7:36-50) sobre uma pecadora anônima, descrita de forma a sugerir ser uma prostituta, que em certa passagem unge os pés de Cristo. O relato de Lucas, a respeito de tal mulher arrependida, antecede a citação nominal de Maria Madalena. No Ocidente cristão, a versão de que Maria Madalena seria essa mulher foi a mais difundida. No Oriente, a mulher anônima e Maria Madalena são vistas como pessoas diferentes.
As prostitutas do templo de Afrodite deixaram de ser vistas como sacerdotisas e viraram escravas. Muitas prostitutas eram cultas e instruídas, e cumpriam o papel de entreter os líderes daquela sociedade. Cobravam alto preço por sua companhia e podiam ou não ceder aos desejos sexuais do cliente. São as hetairae, amantes e musas dos maiores poetas, artistas e estadistas gregos, explica Maria Regina. “As hetairae conduziam seus negócios abertamente em Atenas, trabalhando independentemente tanto dos bordéis do Estado quanto dos templos”, diz Nickie.
A prostituição sagrada também sobreviveu, embora timidamente, durante o período da Grécia clássica. Havia templos em toda a Grécia, especialmente em Corinto – dedicado à deusa Afrodite. As prostitutas do templo não mais eram vistas como sacerdotisas, eram tecnicamente escravas. Mas, por serem consideradas criadas da deusa, mantinham a aura de sacralidade e eram homenageadas pelos clientes. “Demóstenes pagava caro por essas prostitutas. Ele ia de Atenas até Corinto só para ter relações sexuais com elas”, diz
Maria Regina.

LIVRES NO IMPÉRIO ROMANO
Roma foi diferente da Grécia. Até o início da República, a prostituição não era tão disseminada no território romano. “Roma ainda era muito provinciana, fechada”, explica Ronald Wilson Marques Rosa, historiador e pesquisador do NEA/UERJ. A prostituição apenas se difundiu com a expansão militar do império romano e a conquista de escravos.
Antes desta expansão, há indícios de que entre os primeiros romanos, que eram povos agrícolas, existia a antiga religião da deusa, diz Nickie Roberts. Ela também afirma que, em tempos posteriores, a prostituição religiosa estava ligada à adoração da deusa Vênus, que era considerada protetora das prostitutas.

Após a expansão militar e territorial, “os escravos eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização, não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a liberdade”, diz Ronald Rosa.
De acordo com Nickie, Roma foi uma sociedade sexualmente muito permissiva. ”Eles escarneciam de qualquer noção de convenção moral ou sexual e desviavam-se de toda norma que houvesse sido inventada até então”, afirma. A grande expansão urbana favoreceu o crescimento da prostituição. A vida era barata, e o sexo, mais barato ainda, diz a autora. Prostituição, adultério e incesto permearam a vida de muitos imperadores romanos. “Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas mulheres trabalhadoras”, comenta Nickie.
A vida permissiva levava mulheres a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério, proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.

Diferente da Grécia, os romanos não possuíam e nem operavam bordéis estatais, mas foram os primeiros a criar um sistema de registro estatal das prostitutas de classe baixa. Isso resultou na divisão das prostitutas em duas classes, explica Nickie: as meretrices, registradas, e as prostibulae (fonte da palavra prostituta), não registradas.
A maior parte não se registrava, preferia correr o risco de ser pega pela fiscalização, que era escassa.

CONDENADAS NA IDADE MÉDIA
Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana. “As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento – o erótico e os demais – desapareceram durante a Idade das Trevas. (…) a antiga tradição de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para sempre”, afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprime a sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.


Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”, explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, “pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem bordel”.

Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais na cidade, mas desempenhavam uma função.
Nem eram objeto de repulsão social, podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a vida de prostituta.

A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à “crise do Renascimento”. Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. “Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável”, explica Rossiaud. E houve uma revalorização do casal.
Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela Igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, “aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas”, afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. “A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas”, diz Rossiaud. Para o autor, foi o “duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma” que fizeram parecer “decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval.”

UMA PATOLOGIA PARA A MODERNIDADE
Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de “Os Prazeres da Noite”, a prostituição ganhou feições diferenciadas. Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade. Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. “Foram outros modos de vida, nos quais a mulher vai ter maior participação”, diz Margareth. Apesar da modernização dos costumes, a sociedade ainda é conservadora em relação às prostitutas.

Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte nesse período e virou debate médico e jurista. “Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta” , afirma Margareth. De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas. “O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta”, explica Margareth. “Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia” , diz Margareth.
Para a autora de “Os Prazeres da Noite”, podemos diferenciar a imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos dela hoje em dia: ”Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. ”
“A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres”, diz Margareth.

REFERÊNCIAS
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 224 pág.
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008. 360 pág.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Avalanche ‘neoconservadora’ une grande mídia e governo


ESCRITO POR VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO  do CORREIO DA CIDADANIA





Medidas governamentais e noticiários dos últimos dias têm deixado de olhos arregalados uma boa porção daqueles que acompanham e creem no ‘neodesenvolvimentismo’ do governo atual, assim como no progressismo da mídia e na sua defesa diuturna da pluralidade e da liberdade de expressão. Neste sentido, dentre tantos acontecimentos e respectivas versões que têm dominado a pauta de governo e imprensa, dois deles podem ser tomados como ilustrativos: o último aumento da taxa de juros pelo Banco Central e mais um assassinato dentre os povos indígenas.

Voltando o olhar primeiramente para o contexto da nossa imprensa – afinal, quase onipresente na contemporaneidade em ditar as regras de corpos e mentes –, tais acontecimentos foram objeto de extensas reportagens pelos maiores veículos de comunicação nos dias que passaram. O tom maior foi de indisfarçado triunfalismo, no que diz respeito à decisão do Banco Central em elevar os juros para combater a inflação, afinal, uma prova de um governo que estaria tomando ‘juízo’. E quanto aos índios, escancarou-se, em linhas e entrelinhas, a visão dos povos originários como bárbaros invasores.

Grande mídia, Folha de S. Paulo e os juros

Entre estes veículos, os enunciados e análises da Folha de S. Paulo podem ser tomados como termômetro das falas e visões da quase maioria dos grandes órgãos de comunicação, para evitar delongas e a fim de não se cometer alguma injustiça. Afinal, ao contrário dessa maioria de veículos, que escancara seu conservadorismo, trata-se a Folha do órgão de mídia que, não raras vezes, se compraz em sua auto-identificação como progressista. Um coro que tem como portavozes, inclusive, colaboradores e colunistas já escalados para, vez ou outra, verbalizar e lembrar aos leitores das ações do diário em prol da democratização da informação.

No que diz respeito à nova taxa de juros, nas suas edições a partir de quarta-feira, 29 de maio, o diário trouxe extensa lista de matérias, editoriais e reportagens. Mesmo para quem já há bom tempo não mais se ilude com o tal ‘progressismo’ da Folha, chega a surpreender o tom monocórdio de tantas reportagens. Um legítimo ‘samba de uma nota só’, verdadeiro tratado em defesa da agenda conservadora, aquela que dita as regras do mercado financeiro, que tem por trás os grandes grupos econômicos, que obviamente lucram com a subida da taxa de juros em função de suas bilionárias aplicações nos títulos da dívida pública.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista famoso e colunista do jornal, foi dos únicos estudiosos com espaço profuso a emitir sua opinião. No texto chamado ‘Um dia de cão na economia’, de sexta-feira, 31 de maio, aliviou-se com a ideia de que “um novo Banco Central emergiu das cinzas da instituição que comandou com mão de ferro o sistema de metas de inflação nos oito anos do governo Lula”. E comemorou sem volteios o fato de que “os mercados financeiros vão reagir com força à decisão tomada pelo Copom sobre os juros”. Para Mendonça, a presidente Dilma, quiçá, e finalmente, teria entendido que o aumento de juros é a melhor forma de controlar a inflação e promover o crescimento.

Segundo, ainda, o Editorial de sábado, 1 de junho, ‘Alta de credibilidade’, “a decisão do BC, apesar de amarga, vem em boa hora. Talvez consiga devolver alguma firmeza à gestão da economia, perdida em devaneios intervencionistas”. Pregando ainda uma ‘política fiscal mais responsável’ no lugar da ‘frouxidão orçamentária’, conclui que a nova decisão, à medida que incidir na queda da inflação, deve ajudar a presidente na corrida eleitoral do próximo ano. Ideias reforçadas no Editorial de domingo, 2 de junho, o qual, sob o título ‘Um Plano para Dilma’, faz uma série de sugestões, sempre de cunho liberal e privatizante, para o restante de seu mandato.

Engrossando, finalmente, este coro esteve ninguém menos que o ex-presidente do Banco Central sob Lula, o também colunista da Folha Henrique Meirelles. Citando o polêmico e emblemático caso chinês, Meirelles tem uma pista para a solução dos graves problemas do país: “medidas têm sido tomadas para transferir poder de decisão à iniciativa privada, eliminando controles e burocracia para facilitar o desenvolvimento dos negócios. Se exitosas, transformarão a China em competidor ainda mais forte e inovador, com maior equilíbrio no investimento e no consumo”.

E onde estão as vozes dissonantes de reconhecidos estudiosos, não necessariamente identificados à direita ou à esquerda do espectro político, e que têm visão diametralmente oposta, ou ao menos conflitante, com a ideia convencional de que a subida da taxa de juros é a solução para a inflação que se diz estar a galope no país? Aqueles que, por exemplo, ressaltam a influência da especulação nas bolsas de mercadorias de commodities agrícolas na atual oferta e preços de produtos comercializados internamente? E outros mais que destacam que, mediante a queda das exportações de commodities agrícolas e, por conseguinte, o menor resultado no saldo da balança comercial, o aumento da taxa de juros seria a forma de atrair capitais financeiros e especulativos, com o intuito de fechar o balanço de pagamentos? Provavelmente, estão em algum lugar bem distante da rua Barão de Limeira.

A Folha de S. Paulo e os índios

Não fosse pouco um culto escancarado da ortodoxia por aqueles que se dizem arautos da liberdade de expressão, mais atenção chama ainda um enviesamento jornalístico a cada dia mais próximo do obscurantismo na área de direitos humanos.

Após mais um confronto entre policiais e indígenas, envolvendo índios terenas no Mato Grosso do Sul, outro índio foi morto pela polícia. Na sexta-feira, 31 de maio, a chamada para matéria,‘Índio morre em confronto com a polícia’, é no mínimo muito ambígua, uma vez que pode sugerir uma ação mais deliberada dos indígenas – geralmente armados de arcos, flechas, lanças e facas – em seu confronto com a polícia – munida de armas de fogo de algo calibre. No sábado, 1 de junho, nova chamada induz o leitor a enxergar índios como bárbaros e baderneiros, ao dizer que ‘Índios invadem novamente fazenda em MS’. Afinal, estão entrando, e não invadindo, em áreas que lhes pertencem, de direito ancestral, e que somente não ocupam até hoje em função de uma homologação de terras indígenas que nunca se completa.

E aqui nem é preciso ir tão longe na denúncia da estreiteza de visão, desrespeito e afronta aos direitos dos povos originários, reconhecidos pela Constituição, mas secularmente negados pelos governantes de turno. É um dos próprios colunistas do jornal, daqueles poucos que têm independência opinativa em nossa grande mídia, que denuncia, em sua coluna de domingo, 2 de junho, a desconsideração para com estes povos. “A facilidade com que ainda se massacram os direitos e as vidas dos índios é uma homenagem que o Brasil presta ao seu passado genocida (...) As liminares e outros volteios judiciais que facilitam a usurpação de terras reconhecidamente indígenas, como se dá agora com a área Buriti, em Mato Grosso do Sul, são uma via direta para a miséria e a morte das populações indígenas”, declara Jânio de Freitas.

E o governo, por onde anda?

É de se pensar, nesta altura dos acontecimentos, onde está o governo em meio a tal conjuntura.

O lugar em que se coloca não é nada mais admirável que aquele ocupado pela mídia, pelo menos para quem se propõe a enxergar a realidade menos desavisadamente, ou com possibilidades de despir-se de noções falseadoras.

No que se refere à temática econômica, o governo Dilma e, anteriormente, o próprio governo Lula, tem sido acusado recorrentemente, pela imprensa e analistas conservadores, de intervencionista, dirigista e outros termos correlatos. Isso de forma a associá-lo a um ente distante dos ideais hipoteticamente criativos e libertadores decorrentes de um funcionamento mais livre das forças de mercado.

A ideia do intervencionismo é, por um lado, evitada pelos próprios governistas, de modo a não se indispor com sua base de apoio mais conservadora; mas, por outro lado, acalentada em meio à noção de neodesenvolvimentismo, sob a qual se tenta erigir a imagem de um governo progressista, que tem papel ativo em incluir os pobres ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento. Qual é, portanto, o teor de verdade dessa ideia de intervencionismo do governo Dilma?

Aqui são novamente os fatos que podem sugerir a melhor resposta. É inegável a maior atenção ao social, ainda que em sua maior parte focada em uma vertente assistencialista, assim como algum grau de ‘provocação’ (e não enfrentamento) ao capital financeiro, promovidos pelos presidentes petistas. Estão aí o Bolsa Família, os reajustes do salário mínimo, taxações impostas sobre a entrada do capital externo especulativo, dentre outros, para comprovar. No entanto, também estão presentes, de modo cabal, e desde o mandato lulista, a privatização das infraestruturas econômicas do país – mais sorrateira e disfarçadamente sob Lula e, agora, de forma mais escancarada. Portos, ferrovias, aeroportos, petróleo, energia e também o que restou das telecomunicações estão, a cada dia, mais distantes não somente das mãos do governo, mas também do controle público, em uma nação em que as agências reguladoras são, comprovadamente, bem mais articuladoras dos interesses econômicos do que dos direitos dos cidadãos. Os maiores beneficiários, ao final, e como a história do país tem confirmado, são os grandes grupos econômicos e privados externos, a partir da posição subalterna e associada do Estado nacional e da burguesia interna.

E a lista de submissão aos poderosos lobbies econômicos não para por aí. A desoneração da folha de pagamento de vários setores da economia interna, assim como uma série de medidas que vêm sendo levadas a cabo sob o rolo compressor da bancada ruralista, implicam no baixo grau de independência e autonomia na tomada de decisões internas de política econômica.

O intervencionismo, ou dirigismo, tão aventados por aí, não passam, assim, de mero jogo de palavras. Palavras, no entanto, com forte poder de persuasão sobre um governo que se perde em meio a uma extensa base de apoio e a poderosos lobbies econômicos. A atual subida da taxa de juros é acontecimento bastante sintomático desse quadro, vez que era a própria presidente Dilma que, até pouquíssimo tempo atrás, negava capitular frente às pressões para a sua elevação.

O chamado ‘neodesenvolvimentismo’ pode, portanto, ser tomado como uma ficção. Face a uma conjuntura internacional fortemente financeirizada e oligopolizada, com a crescente independentização do movimento internacional de capitais, resta exígua margem de manobra para a condução autônoma de políticas econômicas internas. Conjuntura que, obviamente, é agudizada pela dependência e subserviência de governos amparados em extensas e heterogêneas alianças políticas, reféns dessas alianças e, portanto, pouco propensos a promoverem confrontos mais pesados.

E resta uma palavra sobre a questão indígena, no caso, o assassinato de mais um índio no Mato Grosso do Sul, acima referido. Aqui, onde está o governo Dilma?

Certamente, este é tema para bem mais do que mil palavras, cabíveis em novo e profundo artigo. No entanto, forçoso é dizer que o atual mandato petista tem se mostrado, no mínimo, bem menos aberto ao diálogo com os movimentos e demandas sociais em geral do que o anterior. E, no caso em questão, são novamente os fatos que podem falar por si mesmos.

Morta a liderança indígena, a primeira providência do Planalto foi a convocação de uma reunião. Os convidados iniciais foram os interlocutores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), ligados ao Ministério da Agricultura, sabidamente influenciado por representantes da bancada ruralista. A Funai, que tem visto seu papel na demarcação de terras indígenas cada vez mais reprimido, não foi convocada.

Em tempo

Talvez fosse interessante ao governo começar a avaliar uma troca de termos para se autodefinir. O neoconsevadorismo há tempos poderia lhe cair melhor que neodesenvolvimentismo.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Professor vagabundo que faz greve deveria ser demitido



“Vagabundo que faz greve deveria ser demitido.” Algumas poucas vezes me dou o direito de atualizar e republicar certos textos deste blog. Hoje é o caso. Pois, ouvi no trem, uma senhora reclamando destemperadamente com uma amiga dos professores da rede municipal em São Paulo, que estão em greve desde o dia 03 – da mesma forma que doutos senhores espezinhavam a greve de professores das universidades federais, tomando cafezinho nos Jardins, tempos atrás. Pedem 17% de recomposição inflacionária dos últimos três anos. A prefeitura oferece 10,19% agora e mais 13,43% em 2014. Mas os sindicatos alertam que esses valores seriam relativos a outros acordos firmados em anos anteriores para incorporação de abonos.
Contudo, mais do que discutir se o salário dos professores será suficiente para pagar uma esfiha ou um kibe no Habib’s, o que me interessa neste texto é a forma com a qual vemos suas reivindicações e as descolamos da melhoria da educação como um todo.
Quando escrevi pela primeira vez sobre isso vivíamos a greves dos mestres das universidades federais. E, é claro, essa frase nunca vem sozinha: passeata que atrapalha o trânsito? Cacete neles! Protesto em praça pública? Cacete neles! Onde já se viu? Essas pessoas têm que saber seu lugar.
Sindicatos não são perfeitos, longe disso. Assim como ocorre em outras instituições, possuem atores que resolvem voltar-se para os próprios umbigos e tornar a busca pelo poder e sua manutenção de privilégio mais importante que os objetivos para os quais foram eleitos. Ou seja, tá cheio de sindicalista pelego ou picareta, da mesma forma que empresário corrupto e sonegador. Contudo, graças à organização e pressão dos trabalhadores, importantes conquistas foram obtidas para civilizar minimamente as regras do jogo – não trabalhar até a exaustão, descansar de forma remunerada, ter salários (menos in)justos, garantir proteção contra a exploração infantil. Direitos estes que, mesmo incompletos, são chamados por alguns empregadores de “gargalos do crescimento”.
É esquizofrênico reclamar que não há no Brasil quantidade suficiente de força de trabalho devidamente preparada para fazer frente às necessidades de inovação e produtividade e, ao mesmo tempo, chutar feito caixa de giz vazia as reivindicações de professores por melhores condições e remuneração. Como acham que o processo de formação ocorre? Por osmose? Cissipartição? Geração espontânea a partir dos argumentos fedidos desse povo?
Incrível como muitos colegas, ao tratarem sobre greve de professores, chamam sempre as mesmas fontes de informação que dizem, sempre, as mesmas coisas: é hora de apertar os cintos, os grevistas só pensam neles, a economia não aguenta, bando de vagabundos, já para a senzala sem jantar, enfim. Não existe imparcialidade jornalística. Qualquer estudante de jornalismo aprende isso nas primeiras aulas. Quando você escolhe um entrevistado e não outro está fazendo uma opção, racional ou não, por isso a importância de ouvir a maior diversidade de fontes possível sobre determinado tema. Fazer uma análise ou uma crítica tomando partido não é o problema, desde que não se engane o leitor, fazendo-o acreditar que aquilo é a única intepretação possível da realidade.
Infelizmente, muitos veículos ou jornalistas que se dizem imparciais, optam sistematicamente por determinadas fontes, sabendo como será a análise de determinado fato. Parece até que procuram o especialista para que legitime um ponto de vista. Ou têm preguiça de ir além e fugir da agenda da redação, refrescando suas matérias com análises diferentes. Ou alguém acha que é aleatório escolherem sistematicamente o professor José Pastore para analisar direitos trabalhistas?
Apoio os professores. Apoio os metalúrgicos de fábricas de automóveis. Apoio os controladores de vôo. Apoio os cobradores e motoristas de ônibus. Apoio os bancários. Apoio os garis. Apoio os residentes médicos. Apoio o santo direito de se conscientizarem, reconhecerem-se nos problemas, dizer não e entrar em greve até que a sociedade pressione e os patrões escutem. Mesmo que a manifestação deles torne minha vida um absurdo.
O Brasil está conseguindo universalizar o seu ensino fundamental, mas isso não está vindo acompanhado de um aumento significativo na qualidade da educação. Mesmo que os dados para a evolução dos primeiros anos de estudo estejam além do que o governo esperava no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), grande parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos. Enquanto isso, o magistério no Brasil continua sendo tratado como profissão de segunda categoria.
Uma educação de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?
Por fim, estou farto daquele papinho do self-made man cansativo de que os professores e os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual, apesar de toda adversidade, “ser alguém na vida”. Aí surgem as histórias do tipo “Joãozinho comia biscoitos de esterco com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional”. Passando uma mensagem “se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo”. Afe. Daí para tornar as instituições públicas de ensino e a figura do próprio professor cada vez mais acessórias é um passo.
Educação é a saída, mas qual educação? Aquela defendida pelo pessoal do “Amigos do Joãozinho”? Educar por educar, passar dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina e ponto final. Uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter? Para essa tarefa, professores bem formados e remunerados são fundamentais.
Em algumas sociedades, pessoas assim, que protestam, discutem, debatem, discordam, mudam são úteis para fazer um país crescer. Por aqui, são vistas com desconfiança e chamadas de mal-educadas e vagabundas. Ironia? Não, Brasil.
Aproveitando o gancho, há algum tempo aves funestras passam voando por redacões de veículos de comunicação demitindo sem dó.
Mudanças acontecem e a nova geração que, hoje, pega uma revista e, com dois dedinhos, tenta ampliar uma foto como uma tela sensível ou que não entende porque a TV da sala não responde aos seus toques terá um relação diferente com o papel que temos hoje. Jornais vão morrer no meio dessa transição. Outros migrarão para a internet. Veículos novos vão surgir, pensados para plataformas digitais, multimídias, interativas. Quem não se adaptar e não se planejar para essa virada, vai comer capim pela raiz mais cedo. Contudo, temos uma forte produção jornalística em formato de empresa tradicional e, durante muito tempo, ainda teremos. Talvez essa parte nunca mude, garantindo as coisas boas e ruins dessas estruturas. O fato é que isso está sustentado em uma relação capital/trabalho, ou melhor dizendo, patrão/empregado. Sim, colegas jornalistas, apesar de muitos de nós pensarem que não, nós somos operários da notícia. É difícil ouvir isso, mas é a realidade.
De tempos em tempos, somos surpreendidos com notícias de demissões coletivas em veículos de comunicação. Motivos são vários: garantir a sobrevivência do veículo, aumentar a margem de lucro, gerar capacidade de investimento em outros produtos da empresa. Há ainda os casos em que um jornal fecha as portas e boa parte das pessoas simplesmente vai para a rua por má gestão e erros na condução da publicação. Razões podem existir para o encerramento das atividades de um veículo ou a diminuição de sua força de trabalho. Mas o que não entra pela minha cabeça é que isso seja encarado tão bovinamente por todos nós.
E que algumas empresas que defendem a democracia e o diálogo como processo de construção de uma sociedade melhor, ignorem isso quando se trata delas próprias. É um negócio e pertence a alguém? Claro! Mas cresceu graças ao suor de trabalhadores, que deveriam ser consultados e chamados a compartilhar decisões. Quando demissões coletivas ou fechamentos de fábricas acontecem em linhas de montagem de veículos, metalúrgicos mobilizam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, informam a população, além de cruzarem os braços até que uma solução seja encontrada para reverter o corte de vagas ou, pelo menos, criar compensações à altura. Professores vão para as ruas. Nós, não. Vemos colegas irem embora e não fazemos nada. Ou melhor, ficamos com medo de sermos os próximos e choramos sozinhos no banheiro.
Isso não é texto novo. Como já disse, nós, jornalistas, muitas vezes não nos reconhecemos como classe trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais necessários em determinado lugar.
Alguns colegas vão repetir: japa, mas essas mudanças são boas. Agora, os jornalistas vão poder trabalhar por conta própria e criar seus próprios veículos na internet. Como se um grupo de pessoas que, durante toda a vida, trabalhou em uma estrutura empresarial possa, de uma hora para outra, tornar-se um empreendedor de sucesso. Tendo família para sustentar, contas a pagar e sem a disposição de tentar do zero e dar com a cara no muro. Financiamento coletivo, patrocínio cruzado, enfim, há quem lide com isso de forma mais fácil. Mas lembrem-se que a maioria não foi programada para isso. Por isso, temos o chamado “Milagre da Multiplicacão dos Frilas”, que eram assalariados e tornaram-se “chefes de si mesmos”. Alguns são felizes por não terem férias remuneradas. Outros, não.
Talvez o futuro seja um misto de tudo isso, emprego CLT, frilas, empreendedores individuais ou coletivos, pessoas produzindo conteúdo em redes, ONGs, enfim. Mas, hoje, o que me preocupa são os viventes e suas contas a pagar.
O que estou pedindo? Jornalistas do mundo, uni-vos? Que tamancos sejam jogados nas prensas dos jornais? Nem… isso seria muito brega. Ou melhor, kitsch – tenho horror a kitch. O que gostaria de lembrar é que as coisas vão mudar cada vez mais rápido. E temos duas opções: encarar isso sozinhos ou juntos.
Um bom exercício seria tentar entender e relatar as greves de professores como algo que faz parte das necessárias disputas sociais e econômicas e não tema para página policial. O próximo pode ser você, caro jornalista com salário de coxinha e emprego de palha.

terça-feira, 14 de maio de 2013

A REVOLUÇÃO FRANCESA DE MAIO DE 1968





Alan Woods
Alan Woods estava na França em maio de 68 buscando contatar trabalhadores e jovens. Neste relato-análise, publicado pela primeira vez em maio de 2008, ele fala do que viu nesta que foi a maior greve geral da história e que colocou o poder praticamente nas mãos da classe trabalhadora.
Previsão e assombro
O Maio de 1968 foi a maior greve geral da história. Este poderoso movimento aconteceu no ponto culminante do auge econômico capitalista do pós-guerra. Naquele momento, como agora, a burguesia e seus apologistas se vangloriavam, já que, para eles, as revoluções e a luta de classes eram coisas do passado. Então, quando chegam os acontecimentos franceses de maio de 1968, parecem, para eles, relâmpagos em um límpido céu azul. Também a esquerda foi pega de surpresa, já que a maior parte dela havia descartado a classe trabalhadora européia como força revolucionária.
Em maio de 1968, The Economist publicou um suplemento especial sobre a França para comemorar os dez anos do governo gaullista. Neste suplemento, Norman Macrae elogiava os êxitos do capitalismo francês, destacava que os franceses tinham níveis de vida mais altos que os britânicos, comiam mais carne, possuíam mais automóveis e outras coisas mais. Citava a “grande vantagem nacional” da França sobre seu vizinho do outro lado do canal: seus sindicatos eram “pateticamente fracos”. Mal havia secado a tinta do artigo de Macrae e a classe trabalhadora francesa assombrou o mundo com uma insurreição social sem precedentes nos tempos modernos.
Os acontecimentos de maio não foram previstos pelos estrategistas do capital, nem na França nem em nenhum outro lugar. Não foram previstos pelos dirigentes estalinistas nem pelos reformistas. As damas e cavalheiros intelectuais, que se consideravam marxistas (a maioria deles passou décadas falando de “luta armada”, de insurreição, etc.), não só deixaram de prever o movimento dos trabalhadores franceses, eles simplesmente negavam qualquer possibilidade de movimento dos trabalhadores.
Tomemos um dos “teóricos” marxistas acadêmicos, André Gorz. Este indivíduo escreveu em um artigo o seguinte: “no futuro previsível não haverá nenhuma crise do capitalismo europeu radical o suficiente para levar as massas de trabalhadores a greves gerais revolucionárias ou insurreições armadas em apoio a seus interesses vitais” (A. Gorz, Reform and Revolution, Publicado em The Socialist Register 1968, ênfase minha). Estas linhas foram publicadas em meio à maior greve geral revolucionária da história.
Gorz não era o único que descartava a luta revolucionária da classe trabalhadora. O “grande marxista” chamado Ernest Mandel, apenas um mês antes destes grandes acontecimentos, falou em uma reunião em Londres. Durante sua intervenção, falou sobre tudo o que há abaixo do sol, mas não dedicou uma só palavra à situação da classe trabalhadora francesa. Quando na sala uma ou duas pessoas lhe perguntaram sobre esta contradição, sua resposta foi: “os trabalhadores estão aburguesados e ‘americanizados’”; os trabalhadores franceses não protagonizariam nenhum acontecimento deste tipo durante os próximos vinte anos. 
O contexto
O que nenhum destes cavalheiros compreendia era que o longo período de auge capitalista que começou em 1945 transformou a correlação de forças de classe e fortaleceu enormemente a classe trabalhadora européia. Depois da experiência da Comuna de Paris a burguesia francesa passou a ter um medo mortal do crescimento do proletariado e tratou de evitá-lo desenvolvendo uma economia rentista, parasitária muito baseada no capital financeiro, nos bancos e nas colônias. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial a indústria francesa se desenvolveu profundamente e provocou um rápido fortalecimento do proletariado e um declive geral do campesinato.
O desenvolvimento da indústria tornou o proletariado muito mais forte do que nos anos trinta e ainda mais forte do que na época da Comuna de Paris, quando praticamente todos os trabalhadores se encontravam em pequenas empresas. Inclusive, em 1931, quase dois terços de todas as empresas industriais da França não empregavam trabalhadores assalariados e o terço restante empregava menos de dez. Somente 0,5% das empresas industriais empregavam mais de cem trabalhadores.
Na crise revolucionária de 1936 a metade da população francesa obtinha seu sustento da agricultura, hoje a população rural é inferior a 6% da população. Em 1968 a classe assalariada havia crescido não só em número, mas também em termos de seu potencial de luta. Em 1968 essa mudança fundamental pôde ser vista no papel chave desempenhado pelas gigantescas fábricas como a Renault de Flins, com uma planta de 10.500 trabalhadores, dos quais 10.000 participaram dos piquetes e com um mínimo de 5.000 trabalhadores assistindo regularmente às assembléias de greve.
Em 1936, quando a correlação de forças de classe era infinitamente menos favorável, numa situação onde nem um décimo havia avançado, Trotski disse que o PCF e o PSF poderiam ter tomado o poder:
“Se o partido de León Blum realmente fosse socialista, poderia, baseando-se na greve geral, ter derrotado a burguesia, em junho, quase sem guerra civil, com mínimos transtornos e sacrifícios. Porém, o partido de Blum é um partido burguês, o irmão mais novo do podre Radicalismo”. (Leon Trotski. On France, p. 178, ênfase minha).
A correlação de forças em 1968 era imensamente mais favorável. Era possível a transformação pacífica se os dirigentes do PCF tivessem agido como marxistas. É importante insistir neste ponto. Somente a traição dos dirigentes reformistas, que se negaram a tomar o poder quando existiam as circunstâncias mais favoráveis, impediu que os trabalhadores franceses tomassem o poder.
O papel dos estudantes
Os estudantes sempre são um barômetro sensível às tensões que estão se acumulando nas profundezas da sociedade. A onda de manifestações e ocupações estudantis que precederam os acontecimentos de maio foi como um relâmpago que anuncia a tormenta. Nos meses anteriores a maio já havia uma efervescência entre os estudantes que havia se expressado em uma série de manifestações e ocupações.
Frente à onda ascendente de protestos estudantis o reitor da prestigiosa universidade Sorbone decidiu fechá-la, era a segunda vez em seus setecentos anos de história. A primeira vez aconteceu em 1940 quando os nazistas ocuparam Paris. A tentativa da polícia de liberar o pátio da Sorbone em 03 de maio foi a centelha que acendeu o fogo.
A violência irrompeu no Bairro Latino, com o resultado de mais de cem feridos e 596 presos. No dia seguinte os cursos foram suspensos na Sorbone. As principais organizações estudantis, a UNEF e a Snesup, convocaram greves indefinidas. Em 06 de maio houve novos enfrentamentos no Bairro Latino: 422 presos, 345 policiais e uns 600 estudantes ficaram feridos. A repressão provocou uma indignação generalizada.
Os estudantes enfurecidos arrancaram paralelepípedos para arremessar contra os policiais e levantaram barricadas seguindo a boa e velha tradição francesa. Os estudantes das universidades de toda a França saíram em seu apoio.
Na noite de 10 de maio houve uma ampla revolta no Bairro Latino. Os manifestantes levantaram barricadas e a polícia os atacou com grande violência. Os bandidos armados da CRS (polícia anti-distúrbios) tomaram de assalto apartamentos privados e golpearam selvagemente gente simples e corrente, até mesmo uma mulher grávida. Mas, se depararam com uma resistência que não esperavam. Os parisienses de suas janelas bombardearam a polícia com vasos de plantas e outros objetos pesados. Dos 367 hospitalizados, 251 eram policiais. Outras 720 pessoas ficaram feridas e 468 foram presas. Carros foram destruídos ou queimados. O Ministro da Educação insultou os manifestantes: “Ni doctrine, ni foi, ni loi” (Nem doutrina, nem fé, nem lei).
Durante a primeira semana, os dirigentes do PCF haviam menosprezado os estudantes e os dirigentes sindicais e tentaram ignorá-los. L’Humanité publicou um artigo daquele que seria o futuro líder do PCF, George Marchais, com o título: Os falsos revolucionários têm de ser desmascarados. Mas, ante a indignação geral da população e a pressão da base, a burocracia sindical teve que entrar em ação. No dia 11 de maio os principais sindicatos, CGT, CFDT e FEN, convocaram uma greve geral para 13 de maio. Umas 200.000 pessoas manifestaram-se gritando palavras de ordem tais como: “De Gaulle assassino!”.
George Pompidou, então primeiro ministro, regressou rapidamente a Paris e anunciou a reabertura da Sorbone nesse mesmo dia. Pretendia com este gesto abrir as portas para um compromisso visando evitar uma explosão social. Mas, era demasiado pouco e demasiado tarde. As massas entenderam isso como um sinal de debilidade e seguiram adiante.
A greve geral
A efervescência entre os estudantes era apenas a manifestação mais evidente do descontentamento da sociedade francesa. Apesar do auge econômico, os empresários franceses haviam aplicado uma pressão violenta sobre os trabalhadores. Abaixo da superfície de aparente calma existia um enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração. Já em janeiro houve violentos conflitos durante uma manifestação de grevistas em Caen.
A greve geral de 13 de maio marcou um ponto de inflexão qualitativo. Centenas de milhares de estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas de Paris. Uma idéia da situação é a descrição que se segue da poderosa manifestação de um milhão de pessoas que tomaram as ruas de Paris no dia 13 de maio:
“Fileiras passavam incessantemente. Havia seções inteiras de trabalhadores de hospitais com seus jalecos brancos, alguns carregavam cartazes onde se podia ler: ‘Où sont les disparus des hôpitaux?' (Onde estão os feridos desaparecidos?). Cada fábrica, cada centro de trabalho importante parecia estar representado. Havia numerosos grupos de ferroviários, carteiros, gráficos, metroviários, aeroportuários, comerciários, eletricistas, advogados, garis, bancários, trabalhadores da construção civil, vidreiros, químicos, faxineiros, empregados municipais, pintores e decoradores, trabalhadores do gás, balconistas, escriturários, trabalhadores do cinema, motoristas de ônibus, professores, trabalhadores das novas indústrias de plástico, todos eles em fila, o sangue da sociedade capitalista moderna, uma massa interminável, uma força que podia arrastar tudo que estivesse em seu caminho, se assim o desejasse”. (Citado em Revolutionary Rehearsals, p.12).
Os dirigentes dos sindicatos esperavam que esta manifestação fosse suficiente para deter o movimento, não tinham intenção de continuar e estender a greve geral. Para eles a manifestação era apenas uma maneira de liberar vapor. Porém, uma vez iniciado o movimento imediatamente ganhou vida própria. A convocatória de greve geral foi como uma grande rocha lançada sobre um lago tranqüilo. As ondas se estenderam a cada canto da França. Ainda que houvesse apenas aproximadamente três milhões de trabalhadores organizados em sindicatos, participaram da greve cerca de 10 milhões e começou uma série de ocupações de fábricas em toda França.
No dia 14 de maio, um dia depois da manifestação de massas em Paris, os trabalhadores ocuparam a Sud-Aviation em Nantes e a fábrica da Renault em Cléon, seguidos pelos trabalhadores da Renault em Flins, Le Mans e Boulogne-Billancourt. Greves foram iniciadas em outras fábricas por toda a França, como em RATP e SNCF. Os jornais não saíram. No dia 18 de maio, os mineiros do carvão pararam de trabalhar e o transporte público ficou paralisado em Paris e em outras cidades importantes. Os trens foram os próximos, depois o transporte aéreo, os estaleiros, os trabalhadores do gás e da eletricidade (que decidiram manter o abastecimento doméstico), os correios e as barcas que atravessam o Canal da Mancha.
Os trabalhadores tomaram o controle dos recursos petroleiros em Nantes, negaram a entrada a todos os caminhões tanques que não tivessem a autorização do comitê de greve. Foi formado um piquete no único fornecedor de gasolina que funcionava na cidade, assim garantiu-se que o único combustível liberado era para os médicos. Foram estabelecidos contatos com as organizações camponesas nas zonas periféricas, organizou-se o abastecimento de comida, os preços foram fixados pelos trabalhadores e camponeses. Para evitar a especulação, as lojas tinham que deixar à vista um adesivo com as palavras: “Esta loja está autorizada a abrir. Os preços estão sob supervisão permanente dos sindicatos”. O adesivo ia assinado pela CGT, CFDT e FO. Um litro de leite era vendido por 50 centavos, seu preço normal era de 80 centavos. O quilo da batata baixou de 70 para 12 centavos. O quilo da cenoura passou de 80 a 50 centavos e assim sucessivamente.
Os estudantes, os professores, os profissionais, camponeses, cientistas, jogadores de futebol, até mesmo as bailarinas do Follies Bergères foram à luta. Em Paris os estudantes ocuparam a Sorbone. O teatro l’Odeon foi ocupado por 2.500 estudantes e os estudantes do ensino médio ocuparam suas escolas:
“A febre de ocupação afetou a intelligentsia. Os médicos radicais ocuparam as sedes da Associação Médica, os arquitetos radicais proclamaram a dissolução de sua associação, os atores fecharam todos os teatros da capital, os escritores encabeçados por Michel Butor ocuparam a Societe de Gens de Lettres no Hotel de Massa. Inclusive os executivos das empresas participaram ocupando durante um tempo o edifício do Conseil National du Patronat Français, depois se deslocaram para a Confederation Generale des Cadres”. (David Caute. Sixty Eight, the Year of the Barricades, p.203).
Como as escolas estavam fechadas, os professores e os estudantes organizaram vigílias, brincadeiras, comidas gratuitas e atividades para os filhos dos grevistas. Foram criados comitês de mulheres de grevistas que tiveram um papel importante na organização do abastecimento de alimentos. Não só os estudantes, como também os advogados profissionais estavam infectados pelo vírus da revolução. Os astrônomos ocuparam um observatório. Houve uma greve no centro de pesquisa nuclear de Saclay, onde a maioria dos 10.000 empregados eram pesquisadores, técnicos, engenheiros e cientistas. Até a igreja foi afetada. No Bairro Latino, jovens católicos ocuparam a igreja e exigiam debates no lugar das missas.
O poder nas ruas
Os distúrbios continuavam em Paris, os trabalhadores e estudantes desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Em uma só noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram incendiar a Bolsa de Paris considerada um símbolo odiado do capitalismo. Um comissário de polícia foi morto em Lyon por um caminhão.
Uma vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão. No dia 25 de maio, a rádio televisão estatal, a ORTF, entrou em greve. Suprimiram as notícias das oito da noite. Os gráficos e jornalistas impuseram uma espécie de controle operário sobre a imprensa. Os jornais burgueses tinham que submeter seus editoriais ao escrutínio e deviam publicar as declarações dos comitês de trabalhadores.
A Assembléia Nacional discutiu a crise universitária e as batalhas do Bairro Latino. Porém, os debates nos salões da assembléia já eram irrelevantes. O poder havia escapado das mãos dos legisladores e agora estava nas ruas. No dia 24 de maio, o presidente De Gaulle anunciou o referendo no rádio e na televisão. O plano de De Gaulle de celebrar um referendo foi frustrado pela ação dos trabalhadores. O general foi incapaz até mesmo de imprimir as cédulas do referendo devido à greve dos trabalhadores das gráficas franceses e a negativa de seus colegas belgas de atuar como fura greves. Este não foi o único exemplo de solidariedade internacional. Os condutores de trens alemães e belgas detinham seus trens na fronteira francesa para não romper a greve.
As forças da reação, até esse momento em estado de choque e obrigadas a estar na defensiva, começaram a se organizar. Foram criados Comitês de Defesa da República, CDR, como tentativa de mobilizar a classe média contra os trabalhadores e estudantes. A correlação de forças de classe não é uma questão puramente numérica do tamanho da classe trabalhadora em relação ao campesinato e da classe média em geral. Uma vez que o proletariado entre na luta decisiva e demonstra ser uma força poderosa na sociedade, atrai rapidamente a massa explorada de camponeses e de pequenos comerciantes que são vítimas dos bancos e dos monopólios. Este fato era evidente em 1968, quando os camponeses levantaram bloqueios nas estradas ao redor de Nantes e distribuíram comida grátis aos grevistas.
O mito do “Estado forte”
O movimento pegou a classe dominante e o governo totalmente desprevenidos. Estavam aterrorizados ante o movimento dos estudantes, Pompidou admitia em suas memórias: 
“Alguns... pensaram que, ao reabrir a Sorbone e ao libertar os estudantes, eu havia demonstrado fraqueza e que havia posto a agitação em marcha novamente. Eu responderia simplesmente o seguinte: suponhamos que na segunda-feira 13 de maio a Sorbone permanecesse fechada sob proteção policial. Quem poderia imaginar que a multidão, avançando até Denfert-Rocearau não conseguiria entrar levando tudo a sua frente como um rio em uma inundação? Preferi dar a Sorbone aos estudantes que vê-la tomada pela força”. (G. Pompidou. Por Rétablir une Verité, pp. 184-185). 
Em outra parte acrescenta:
“A crise era infinitamente mais séria e mais profunda; o regime se manteria ou seria derrotado, mas não poderia ser salvo com uma simples remodelação ministerial. Não era minha posição que estava em dúvida. Era o general De Gaulle, a Quinta República e, até certo ponto, o próprio poder republicano”. (Ibíd., p. 197, ênfase minha).
A que se referia Pompidou quando falava que “o próprio poder republicano” estava em perigo? O que queria dizer é que o Estado burguês estava em perigo de ser derrotado. E, nessa idéia, tinha bastante razão. Mais a frente Pompidou tentou acabar com a crise reabrindo a Sorbone, mas o movimento simplesmente foi além, com uma manifestação de 250.000 pessoas. Aterrorizado com a possibilidade dos estudantes se unirem aos trabalhadores e tomar o Elysée, o palácio presidencial foi evacuado.
De Gaulle, inicialmente, depositou sua confiança nos dirigentes estalinistas para salvar a situação. Disse a seu ajudante de Campo Naval, François Flohic: “Não se preocupe, Flohic, os comunistas os manterão sob controle”. (Phillippe Alexandre. L’Elysée em péril, p.299).
O que essas palavras demonstram? Nem mais nem menos que o sistema capitalista não poderia existir sem o apoio dos dirigentes operários reformistas (e estalinistas). Este apoio lhes é muito mais valioso do que qualquer quantidade de tanques e policiais. De Gaulle, como burguês inteligente, entendia isso perfeitamente. Em uma tentativa de demonstrar sua suprema indiferença em relação aos acontecimentos na França, o presidente De Gaulle fez uma visita de estado à Romênia, onde foi recebido com os braços abertos pelo “comunista” Ceausescu. Contudo, a confiança do general não duraria muito.
A essência de uma revolução, o que a caracteriza, é o fato das massas começarem a participar ativamente dos acontecimentos, começarem a tomar os problemas em suas próprias mãos. Quando voltou à França, os dirigentes “comunistas” estavam perdendo o controle. A bandeira vermelha tremulava nas fábricas, escolas e universidades, nas agências de emprego e até mesmo em observatórios espaciais. O governo era impotente, estava suspenso no ar devido à insurreição. O “Estado forte” gaullista estava paralisado. O poder estava de fato nas mãos da classe trabalhadora.
Os informes da rápida deterioração da situação em Paris chocaram De Gaulle. Frente à maré crescente de rebelião o presidente teve que abandonar sua pose de indiferença, interromper sua viagem a Romênia e regressar rapidamente a França. No palácio de Elysée, o presidente De Gaulle proferiu as palavras imortais: “La réforme, oui; la chienlit, non” (Reforma, sim, crianças pirracentas, não!). A palavra chienlit é difícil de ser traduzida, se refere a uma criança que ainda não aprendeu a utilizar o mictório.
Ao utilizar esta linguagem, De Gaulle expressou seu desprezo pelos “garotos” nas ruas. Porém, o movimento já havia ido mais além da etapa das manifestações estudantis. Era como uma enorme bola de neve descendo uma íngreme montanha, ganhando força e impulso a cada momento. As mais inesperadas camadas sociais se viram arrastadas pelo rodamoinho da luta revolucionária. Os profissionais do cinema ocuparam o festival de cinema de Cannes. Importantes diretores do cinema francês retiraram seus filmes da competição e o corpo de jurados renunciou, obrigando o cancelamento do festival.
Calcula-se que no dia 20 de maio 10 milhões de pessoas estavam em greve, o país estava praticamente paralisado. No dia 22 de maio uma moção de censura apresentada pelos partidos da oposição não foi aprovada, faltaram-lhes 11 votos para obter a maioria na Assembléia Nacional. O governo estava em uma situação instável e De Gaulle recolhido ao desespero. Foi precisamente neste momento que os dirigentes das confederações sindicais lançaram um bote salva-vidas para De Gaulle, fazendo uma declaração, na qual demonstravam sua disposição a negociar com a associação de empresários e com o governo.
A Assembléia Nacional aprovou uma anistia para os manifestantes. Naturalmente! Não conseguiram esmagar o movimento através da repressão, então as autoridades recorreram às concessões para tentar esfriar a situação e ganhar tempo. Desta maneira, tanto o governo como os dirigentes sindicais colaboraram para desviar o movimento revolucionário e conduzi-los a canais seguros. Enquanto ofereciam concessões aos dirigentes estudantis e sindicais, o Estado continuava com a repressão seletiva dirigida contra aqueles que eram considerados elementos subversivos. Como no caso de Daniel Cohn-Bendit, retiraram deste estudante anarquista o visto de permanência no País. Foi um movimento estúpido já que a influência real de Cohn-Bendit no movimento era mínima. Mas a ação do governo conseguiu provocar uma manifestação de massas em Paris para protestar contra esta medida. 
De Gaulle desmoralizado
O biógrafo de De Gaulle, Charles Williams, descreve de maneira gráfica seu estado de ânimo às vésperas de seu discurso a nação no dia 24 de maio:
“Não há dúvidas que depois da excitação na Romênia, o general estava profundamente abalado com o que encontrou em seu regresso a França. Durante os seguintes três dias, a alguém que o visitasse depois de algum tempo o general pareceria velho e indeciso, seu andar encurvado estava cada vez mais acentuado. Parecia que tudo isso estava sendo demais para ele.
“O discurso de 24 de maio, quando se deu, foi um fracasso total. O general parecia e soava pouco sincero, assustado. É certo, anunciou um referendo sobre ‘participação’, mas não estava claro qual seria o conteúdo concreto da pergunta e pareceu um truque para aqueles que lhe escutaram. Disse que era o dever do Estado assegurar a ordem pública, mas faltava a sua voz a velha ressonância e suas frases, ainda que usasse a velha linguagem solene, de alguma maneira já não possuía a mesma convicção. Apresentou-se como um homem velho, cansado e ferido. Sabia que tinha perdido. ‘Não alcancei o objetivo’, disse nesta noite. O melhor que Pompidou lhe disse foi: ‘Poderia ter sido pior’.
“Mas o estado de ânimo de De Gaulle na manhã do dia 25 de maio havia piorado. Estava, nas palavras de um de seus ministros, ‘prostrado, encurvado, envelhecido’. Repetia uma e outra vez, ‘isto é uma confusão’. Outro ministro se deparou com um homem velho que não ‘tinha planos para o futuro’. O general mandou buscar seu filho Phillippe, que encontrou seu pai ‘cansado’ e se deu conta de que quase não havia dormido. Phillippe sugeriu que o pai poderia partir para o porto atlântico de Brest – sombras de 1940 – mas disse a ele que não se renderia.
“Do dia 25 ao dia 28 de maio, De Gaulle permaneceu em um estado de profundo pessimismo. As negociações de Pompidou com os sindicatos foi uma farsa. Simplesmente havia dado a eles tudo o que pediam: grandes aumentos salariais, benefícios sociais e um aumento de 35% para o salário mínimo. O único obstáculo era que, inclusive depois de ter assinado, a CGT insistiu que tinham que ser ratificados por seus militantes. George Séguy, o dirigente da CGT, foi rapidamente ao bairro parisiense de Billancourt, onde 12.000 trabalhadores da Renault estavam em greve. Quando apresentou o acordo aos trabalhadores, estes o humilharam rechaçando-o de imediato. Os ditos acordos de Grenelle foram abortados.
“O conselho de ministros se reuniu às três da tarde do dia 27 de maio, pouco depois dos trabalhadores rechaçarem os acordos de Grenelle. O general presidia o conselho, mas notou-se que seu coração e sua mente estavam longe. Olhava seus ministros sem vê-los, seus braços jogados sobre a mesa a sua frente, ombros caídos, aparentemente ‘totalmente indiferente’ ao que se passava a seu redor. Houve uma discussão sobre o referendo, o general aparentemente só ouviu pedaços da discussão” (C. Williams, The Last Great Frenchman, A life of General De Gaulle, pp. 463-4-5, ênfase minha).
Estes fragmentos da biografia favorável a De Gaulle reproduzem uma imagem intensa de total desorientação, pânico e desmoralização em que estava imerso. Segundo o embaixador norte-americano, De Gaulle lhe havia dito: “o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”.
Intervenção militar?
A situação alcançou um ponto onde já não podia mais ser resolvida por métodos parlamentares normais. O que poderia ser feito? A intervenção militar foi uma das opções cogitadas por De Gaulle desde o começo da greve geral. Nas primeiras etapas da greve, planos foram elaborados para deter e aprisionar mais de 20.000 ativistas de esquerda no estádio de inverno, onde seriam vítimas de um destino similar ao de seus homólogos chilenos cinco anos mais tarde.
Porém, a operação nunca foi posta em prática. Estes planos do governo francês são idênticos aos planos de todas as classes dominantes na história quando se deparam com a revolução. O governo do Czar Nicolau (“o sangrento” como era chamado) era repleto de tais planos militares de contingência antes de fevereiro de 1917. Mas, outra coisa bem diferente era executar esses planos, como descobriu Nicolau a duras penas. O decisivo de uma revolução não são os planos dos regimes, e sim a correlação real de forças na sociedade. De Gaulle era um burguês muito astuto, plenamente consciente da situação real (a princípio, como veremos, subestimou o movimento, o resultado foi um erro muito sério. Como os demais, não esperava que os trabalhadores franceses entrassem em movimento).
De Gaulle estava à beira do abismo. Aterrorizado pelo imenso alcance do movimento, o general estava completamente pessimista. Estava convencido de que os dirigentes comunistas chegariam ao poder. Inúmeras testemunhas confirmam que De Gaulle estava totalmente atônito e desmoralizado, e que pelo menos duas vezes contemplou a idéia de fugir do país. Seu próprio filho havia pedido que ele escapasse por Brest, outras fontes dizem que considerou a possibilidade de permanecer na Alemanha Ocidental, onde visitaria o general Massu. De Gaulle era um político inteligente e calculista que nunca agia por impulsos e raramente perdia os nervos. Disse ao embaixador norte-americano: “o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”. Acreditava nisso. E não era só ele, a maioria da classe dominante também acreditava.
No papel, De Gaulle tinha a disposição uma formidável máquina de repressão. Havia cerca de 144.000 policiais (armados) de diferentes categorias, dos quais 13.500 eram da tristemente famosa polícia anti-distúrbios (CRS), e cerca de 261.000 soldados a postos na França ou na Alemanha Ocidental. Se a questão é abordada de um ponto puramente quantitativo, então deveria ser descartada não só a possibilidade de uma transformação pacífica, como também da revolução em geral, e não somente na França de 1968. Deste ponto de vista, nenhuma revolução jamais poderia triunfar em toda a história. Mas a questão não pode ser colocada desta maneira.
Em toda revolução levantam-se vozes que tentam assustar a classe oprimida com o espectro da violência, o derramamento de sangue e a “inevitabilidade da guerra civil”. Kamenev e Zinoviev falavam exatamente da mesma forma em vésperas da insurreição de Outubro. Hoje, Heinz Dieterich e os reformistas na Venezuela utilizam a mesma linha de argumentação para tentar colocar freios à revolução venezuelana.
“Os adversários da insurreição, até mesmo nas fileiras do Partido Bolchevique, encontravam muitos motivos para suas deduções pessimistas. Zinoviev e Kamenev advertiam que não se podiam subestimar as forças do adversário. ‘Petrogrado decide, mas em Petrogrado os inimigos dispõem de forças importantes: cinco mil junkers perfeitamente armados e que sabem lutar; um Estado Maior; batalhões de choque; cossacos; e uma parte importante da guarnição, mais uma considerável artilharia disposta em leque ao redor de Petrogrado. Além disso, quase seguramente os adversários tentarão trazer tropas do front com a ajuda do Comitê Executivo Central... ”
Trotsky respondeu às objeções de Kamenev e Zinoviev da seguinte forma:
“A lista soa imponente, mas é apenas uma lista. Se um exército, em seu conjunto, é um reflexo da sociedade, então quando a sociedade se divide abertamente, ambos os exércitos são cópias dos bandos em combate. O exército dos possuidores levava dentro de si o verme do isolamento e da desagregação” (Leon Trotski, Historia de la Revolución Rusa, p. 1042).
Vítima do pânico De Gaulle desapareceu de repente, viajou para a Alemanha onde teve uma reunião secreta com o general Massu, o homem responsável pelas tropas francesas a postos em Baden-Wurttemberg. O conteúdo preciso destas conversas nunca foi conhecido, mas não é necessária muita imaginação para se ter uma idéia do que foi perguntado: “Podemos contar com o exército?” A resposta não está registrada em nenhuma fonte escrita por razões óbvias. Contudo, The Times enviou seu correspondente à Alemanha para entrevistar os soldados franceses, a grande maioria era de filhos da classe trabalhadora que cumpriam o serviço militar obrigatório. Um dos entrevistados respondeu à pergunta de se ele abriria fogo contra os trabalhadores: “Nunca! Acho que seus métodos (dos trabalhadores) podem ser um tanto duros, mas sou filho de um trabalhador”.
Em seu editorial The Times fazia a seguinte pergunta: “De Gaulle pode utilizar o exército?” e respondia sua própria pergunta dizendo que talvez pudesse utilizá-lo uma vez. Em outras palavras, bastaria apenas um enfrentamento sangrento para romper em pedaços o exército. Esta era a avaliação dos estrategistas mais duros do capital internacional daquela época. Não há nenhuma razão para duvidar de sua palavra nesta ocasião.
Crise do Estado
No dia 13 de maio uma organização sindical da polícia que representava 80% do corpo policial publicou uma declaração em que “... considera a declaração do primeiro-ministro um reconhecimento de que os estudantes tinham razão, e uma renúncia total às ações da força policial que o próprio governo ordenou. Nessas circunstâncias é surpreendente que não se buscasse um diálogo efetivo com os estudantes antes que se produzissem estes lamentáveis acontecimentos”. (Le Monde, 15/5/1968).
Se esta era a postura da polícia, o efeito da revolução sobre a base do exército seria ainda maior. E assim era, apesar da falta de informação, existiam relatos de efervescência entre as forças armadas e inclusive um motim na marinha. O porta-aviões Clemenceau, deveria ir ao Pacífico para um teste nuclear, de repente deu meia volta e regressou a Toulon sem explicações. Chegaram notícias de um motim a bordo que dizia que haviam sido “perdidos no mar” vários marinheiros (Le Canard Enchiné. 19/6/68; foi publicado um relato completo em Action dia 14 de junho, mas foi confiscado pelas autoridades).
Segundo um famoso aforismo de Mao: “o poder emana da ponta do fuzil”. Porém, os fuzis são empunhados por soldados que não vivem no espaço sideral, estes também são influenciados pelo estado de ânimo das massas. Em qualquer sociedade, a polícia é mais atrasada que o exército. Contudo, na França, a polícia, citando um editorial de The Times (31/5/1968), “ferve de descontentamento”.
“Ferve de descontentamento com o tratamento que o governo lhes dá” dizia o artigo, “e o departamento encarregado da informação sobre a atividade estudantil esteve deliberadamente privando o governo de informação sobre os dirigentes estudantis, em apoio a suas reivindicações salariais.
“... Tampouco a polícia esteve muito impressionada com o comportamento do governo desde que começaram os distúrbios. ‘Estão aterrorizados em perder nosso apoio’ disse um homem.
“Tal descontentamento é uma das razões da aparente inatividade da polícia de Paris nestes últimos dias. Na semana passada, homens de diferentes departamentos locais negaram-se a sair dos cruzamentos e praças da capital” (The Times; 31/5/1968; ênfase minha).
Um panfleto publicado por membros do RIMECA (regimento de infantaria mecanizada) localizado em Mutzig, perto de Estrasburgo, indicava que seções do exército já estavam sendo afetadas pelo ânimo das massas. Incluía os seguintes fragmentos: 
"Como todos os soldados da leva, estamos confinados aos quartéis. Estão nos preparando para intervir como forças repressivas. Os trabalhadores e os jovens precisam saber que os soldados do contingente NUNCA DISPARARÃO CONTRA OS TRABALHADORES. Nós dos Comitês de Ação nos opomos a todo custo que os soldados cerquem as fábricas.
“Amanhã ou depois de amanhã esperam que cerquemos uma fábrica de armamentos, cujos trezentos trabalhadores querem-na ocupar. CONFRATERNIZAREMOS.
“Soldados do contingente, formem vossos comitês! (Citado em Revolutionary Reherasals; p. 26).
A publicação deste panfleto foi claramente um exemplo excepcional dos elementos mais revolucionários entre os conscritos. Mas, em meio a uma revolução de proporções tão massivas, é possível duvidar que a base do exército rapidamente se contagiasse com o vírus da rebelião? Os estrategistas do capital internacional não duvidavam disso, muito menos seus homólogos franceses.
Quem salvou De Gaulle?
Não foi absolutamente o exército nem a polícia (estes estavam tão desmoralizados que inclusive a reacionária inteligência, como vimos, se negou a colaborar com o governo contra os estudantes) que salvaram o capitalismo francês, e sim a atuação dos dirigentes sindicais e estalinistas. Esta conclusão não é apenas nossa, também encontra apoio na Enciclopédia Britânica:
“De Gaulle parecia incapaz de controlar a crise ou de compreender sua natureza. Contudo, os dirigentes comunistas e sindicais proporcionaram-lhe um respiro, opuseram-se a qualquer levantamento mais ousado, evidentemente temiam a perda de seus seguidores frente a seus rivais mais extremistas e anarquistas”.
Acuado, Georges Pompidou aceitou negociar com todos. Quando a classe dominante está ameaçada de perder tudo não se importa em alterar seus planos originais e torna-se disposta a fazer grandes concessões. Para tirar os trabalhadores das fábricas ocupadas e dissolver seu poder não hesitaram em oferecer aos dirigentes sindicais coisas além do que estes últimos pediam originalmente, aumento do salário mínimo, redução da jornada de trabalho e da idade de aposentadoria, restauração do direito de organização, etc.; em uma tentativa de deter os estudantes, Pompidou aceitou a demissão do Ministro da Educação.
Tanto o governo como os dirigentes sindicais estavam alarmados com o alcance do movimento e estavam decididos a detê-lo. No dia 27 de maio chegou-se a um acordo entre os sindicatos, as associações de empresários e o governo. Mas os dirigentes sindicais tinham a árdua tarefa de apresentar o acordo aos trabalhadores. Apesar das grandes concessões, os trabalhadores da Renault e de outras grandes empresas negaram-se a voltar ao trabalho. Lembro-me que estava em Paris em um bar com outras pessoas assistindo as assembléias de massas pela televisão dentro da gigantesca fábrica da Renault, onde se congregava um grande número de trabalhadores, alguns deles sentados nas gruas e nos cavaletes para escutar George Ségui, o secretário geral da CGT, que leu uma lista com aquilo que os empresários ofereciam: grandes aumentos salariais, pensões, redução da jornada e assim sucessivamente. Mas no meio de seu discurso foi interrompido pelos trabalhadores que cantavam: "Gouvernement populaire! Gouvernement populaire!". Lembro-me que ele não pôde terminar sua intervenção.
Nesse momento os trabalhadores já tinham consciência de sua própria força, tinham o poder a seu alcance e não estavam dispostos a abrir mão dele. Às 17 horas, 30.000 estudantes e trabalhadores marcharam desde Boelins ao estádio Cherléty, onde celebraram uma reunião com a presença de Pierre Mendés-France. Nesse mesmo dia a CGT convocou, previamente a este acordo, uma manifestação que conseguiu meio milhão de trabalhadores e estudantes nas ruas de Paris. Uma vez mais, o objetivo dos dirigentes sindicais e do Partido Comunista era proporcionar uma válvula de escape ao movimento, controlar o que deslizava de suas mãos.
A iniciativa passa a reação
No dia 30 de maio no rádio, o presidente De Gaulle anunciou a dissolução da Assembléia Nacional e disse que as eleições seriam realizadas dentro do calendário habitual. George Pompidou continuaria sendo o primeiro-ministro. Insinuou também que usaria a força para manter a ordem, se necessário. Era uma mensagem dirigida aos dirigentes sindicais e ao Partido Comunista. Estava oferecendo a eles a tentadora perspectiva das eleições e uma futura secretaria ministerial sob o regime burguês, e ao mesmo tempo era uma advertência de que a burguesia não entregaria o poder sem lutar.
O gabinete foi remodelado e as eleições convocadas para os dias 23 e 30 de junho. Ao mesmo tempo, De Gaulle tentou mobilizar suas forças fora do parlamento. Algumas dezenas de milhares de apoiadores do governo se manifestaram desde a Concordia até o Étoile. Foram realizadas manifestações similares de apoio ao governo em toda a França. Mas uma olhada mais atenta nas fotografias revelava imediatamente a verdadeira natureza dessas manifestações: prefeitos aposentados enrolados em faixas tricolores, cidadãos de classe média barrigudos, pensionistas e outras figuras parecidas indignadas e insatisfeitas com a sociedade.
Basta comparar estas fotografias com as manifestações massivas do proletariado alguns dias antes para descobrir a verdadeira correlação de forças. Tudo de vivo, forte e vibrante da sociedade francesa se reuniu sob a bandeira da revolução, enquanto que tudo de opaco, velho e decadente estava do outro lado das barricadas. Um bom empurrão bastava para derrubar tudo. O que faltava era um golpe de misericórdia, mas este nunca foi dado.
A classe trabalhadora não pode permanecer em uma situação de agitação constante. Não pode ser ligada ou desligada como uma lâmpada. Quando a classe se mobiliza para mudar a sociedade deve ir até o final ou fracassa. Ocorre o mesmo em uma greve. No início os trabalhadores estão entusiasmados e dispostos a participar nas assembléias de massas. Estão dispostos a lutar e fazer sacrifícios. Mas se a greve não tem um final à vista, o ambiente muda. Começando pelos elementos mais débeis, o cansaço finalmente chega. O comparecimento às assembléias de massas cai e os trabalhadores voltam ao trabalho.
Os dirigentes sindicais fizeram bom uso das concessões cedidas apressadamente pelos capitalistas, como um homem desesperado que lança um salva-vidas de um barco que afunda. O salário mínimo subiu para três francos à hora, os salários aumentaram e foram concedidas outras melhorias. Na ausência de outra perspectiva, muitos trabalhadores aceitaram o acordo que os dirigentes sindicais apresentaram como uma vitória. Na terça-feira, depois de um fim de semana com feriado no início de junho, a maioria dos grevistas pouco a pouco abandonou a luta, e os trabalhadores regressaram a seus trabalhos. 
1968 foi uma revolução
O que é uma revolução? Trotski explica que uma revolução é uma situação tal onde a massa de homens e mulheres normalmente apática começa a participar de maneira ativa na vida da sociedade, quando adquire consciência de sua força e se move para tomar seu destino em suas mãos. Isso é uma revolução. E foi o que aconteceu em uma escala colossal na França em maio de 1968.
Os trabalhadores franceses estenderam os músculos, tiveram consciência do enorme poder que tinham em suas mãos. Vimos aqui o imenso poder da classe trabalhadora na sociedade moderna: não se acende nem uma lâmpada, nenhuma roda se move e nenhum telefone toca sem a permissão dos trabalhadores. O maio de 1968 foi a resposta final a todos os covardes e céticos que duvidam da capacidade do proletariado para mudar a sociedade.
A correlação de forças da classe se expressou, não como um mero potencial ou uma estatística abstrata, e sim como um poder real nas ruas e nas fábricas. Na realidade, o poder estava nas mãos dos trabalhadores, mas eles não sabiam. Como qualquer outro exército, a classe trabalhadora necessita de uma direção. E isso era o que estava ausente em maio de 1968. Aqueles que deveriam ter proporcionado a direção, os dirigentes das organizações de massas da classe, os sindicatos e o Partido Comunista, não tinham a perspectiva da tomada do poder. Sua única preocupação era terminar a greve o mais rápido possível, devolver o poder a burguesia e retornar à “normalidade”.
Uma greve geral é diferente de uma greve normal porque coloca a questão do poder. O que está em jogo não é esse ou aquele aumento salarial, e sim quem é que manda na casa? No transcurso da luta a consciência dos trabalhadores aumentou a uma velocidade vertiginosa. Começaram a compreender que não se tratava de uma greve normal por reivindicações econômicas, mas algo maior. Tiveram consciência do poder em suas mãos e enxergavam a debilidade daqueles que se supunha representar todo o poder do Estado. A única coisa que faltou foi a eleição de delegados em cada centro de trabalho e a vinculação de comitês de greve em cada cidade e região, culminando na formação de um comitê nacional, que poderia ter tomado o poder em suas mãos, arremessando o velho poder estatal na lata de lixo da história.
Porém, nada disso foi feito e o enorme potencial revolucionário do movimento evaporou-se, como o vapor que se dissipa inofensivamente no ar se não há uma câmara de pistões que o concentre. Por fim, os trabalhadores regressaram ao trabalho e a classe dominante concentrou novamente o poder em suas mãos. Quando o movimento começou a minguar, o Estado iniciou sua vingança. Houve incidentes violentos, sobretudo no dia 11 de junho com 400 feridos, 1.500 detidos e um manifestante morto com um tiro em Montbéliard. No dia seguinte, foram proibidas as manifestações na França, pouco depois, os estudantes foram expulsos do Odéon e, dois dias mais tarde, da Sorbone.
Começou então a criminalização. Na cadeia estatal de rádio e televisão, ORTF, foram demitidos 102 jornalistas por suas atividades durante os acontecimentos. Enviaram a polícia às universidades de Nanterre e Sorbone para controlar os documentos de identidade dos estudantes e não saíram de lá antes de 19 de dezembro. Foi aprovado um pacote de medidas de austeridade no dia 28 de novembro na Assembléia Nacional. O Estado que não hesitou em esmagar os crânios dos estudantes e grevistas nas manifestações agora demonstrava clemência para com os fascistas, os terroristas de extrema direita da OAS. Enquanto Cohen-Bendit era expulso da França, Georges Bidault poderia regressar e Raoul Salan era libertado da prisão.
Os dirigentes reformistas e estalinistas foram castigados por sua covardia e a classe dominante negou-lhes os postos que almejavam intensamente. A campanha eleitoral começou em 10 de junho. No primeiro turno das eleições, a federação dos partidos de esquerda e os comunistas perderam terreno. No segundo turno, uma semana mais tarde, os partidos de direita conseguiram uma esmagadora maioria. A esquerda perdeu 61 cadeiras e os comunistas 39. Pierre Mendés-France (uma figura histórica da esquerda francesa) não foi reeleito em Grenoble. O Partido Comunista, que em 1968 era o principal partido da classe trabalhadora francesa, entrou em declínio e foi superado mais tarde pelo Partido Socialista, que em 1968 conseguira apenas quatro por cento dos votos e, portanto, parecia morto. O sindicato comunista, CGT, perdeu apoio frente à CFDT que em 1968 manteve uma posição mais combativa.
O maravilhoso movimento dos trabalhadores terminou em derrota. Porém, as tradições de Maio de 1968 permanecem na consciência dos trabalhadores da França e do mundo. Hoje, depois de um longo período de boom, o sistema capitalista está entrando novamente em crise e sairão à superfície todas as contradições que se acumularam durante os últimos vinte anos. Em toda a Europa estarão na ordem do dia grandes enfrentamentos de classe.
Não temos tempo para aqueles ex-revolucionários pequeno-burgueses que falam de 1968 em termos sentimentais e nostálgicos, como se fosse história antiga sem relevância prática alguma para o mundo em que vivemos. Mais cedo ou mais tarde os acontecimentos de 1968 reaparecerão, mas em um nível inclusive superior. Qual é o candidato mais provável para este cenário? Poderia perfeitamente ser a França, mas também a Itália, Grécia, Portugal ou Espanha ou qualquer outro país, e não só na Europa. Esperamos com impaciência o futuro. Desejamo-lo e nos preparamos para ele. Estamos tentando preparar a vanguarda, assim da próxima vez triunfaremos. E diante deste glorioso aniversário dizemos: A revolução não morreu. Viva a revolução!