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quinta-feira, 5 de julho de 2012

Edgar Morin: “Se não procurarmos o inesperado, não vamos encontrá-lo”

Em palestra realizada em São Paulo, sociólogo destaca que o sistema atual é incapaz de lidar com os problemas vitais da humanidade
Por Felipe Rousselet na REVISTA FORUM
 
Edgar Morin participou de palestra no Sesc Consolação, São Paulo.

Ontem (3), o sociólogo e filósofo francês Edgard Morin ministrou uma palestra no Sesc Consolação com o tema “Consciência Mundial: por um conceito de desenvolvimento para o século XXI”. Morin, pai da teoria da complexidade, defende a interligação de todos os conhecimentos, combate o reducionismo instalado em nossa sociedade e valoriza o complexo.
Morin iniciou sua palestra abordando quatro questões fundamentais: o que eu posso saber; o que eu posso esperar; em que posso acreditar e o que posso fazer. A partir destes questionamentos, o sociólogo abordou os problemas fundamentais da humanidade. Para ele, é preciso unir os inúmeros saberes dispersos a que temos acesso em prol dos problemas vitais da humanidade.
Todas as tentativas de mudança da humanidade somente a partir de sistemas político-econômicos como o socialismo, comunismo e o liberalismo foram fracassadas. “Não se pode mudar apenas a estrutura econômico-social. É preciso mudar também as nossas vidas”, afirmou. Havia uma fé de que o progresso era um movimento irreversível para um mundo melhor, mas hoje essa crença desintegrou-se e o que o futuro nos reserva é angústia e incertezas.

Segundo Morin, se não mudarmos o caminho da humanidade, estamos fadados à tragédia. “O sistema atual é ineficaz para lidar com problemas básicos”, frisou. Para ele, a “nave humanidade” caminha para o desenvolvimento econômico descontrolado e para o egoísmo, porém, lembra que nunca antes a humanidade teve uma causa única, traduzida na própria causa humana, na solidariedade. Ao falar sobre a globalização, Morin citou aspectos positivos e negativos. Os positivos são expressos na capacidade do indivíduo de ser autônomo e na criação de ilhas de prosperidade em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde populações antes miseráveis formam hoje uma nova classe média. Por outro lado, a globalização também gerou exploração comercial de povos por multinacionais e por outros povos, e expulsou os camponeses de suas terras, criando uma população de 1 bilhão de pessoas morando em favelas.

Desenvolvimento e hegemonização

Segundo o pensador, a noção de desenvolvimento aplicada de forma igual em diferentes culturas está equivocada, uma vez que não respeita suas individualidades. Morin afirma que em vez de destruir as culturas por meio da hegemonização, deveríamos fazer um processo de simbiose, de união entre o melhor da civilização ocidental com o melhor de povos de culturas diferentes.
Ao falar sobre a Rio+20, o sociólogo aponta para o que considera um fracasso esperado, uma vez que os líderes de Estado recusam-se a tirar os olhos do próprio umbigo. Para ele, é impossível dissociar os problemas ambientais das outras questões vitais da humanidade e o passo a frente dado pela Rio+20 foi a participação da sociedade civil.
Por fim, Morin deixou uma mensagem de esperança. Lembrou que mesmo diante de um presente que parecia sólido e imutável, a sociedade humana sempre se transformou. “Se não procurarmos o inesperado, não vamos encontrá-lo”, disse. Para ele, o início de grandes mudanças sempre ocorreu de forma modesta. Lembrou do início de três grandes religiões (budismo, cristianismo e muçulmana), que começaram pela ação de indivíduos. “Quando achamos que o presente é eterno, nos enganamos”, afirmou. Para uma transformação da humanidade que evite o seu colapso, o inteletutal sugere um consciência global fundamentada na solidariedade e no sentimento de que fazemos parte de uma “Terra Pátria”, e, a partir desta nova consciência, surgirá um modelo totalmente novo de sociedade. “Vocês tem uma causa justa, que é a solidariedade, e devem levantá-la”.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A história é o inimigo quando as psy-ops se tornam notícia

por John Pilger
Manifestação nos EUA contra a Dow Chemical. 















Ao chegar a uma aldeia no Vietname do Sul, deparei-me com duas crianças que testemunhavam a mais longa guerra do século XX. Suas terríveis deformidades eram familiares. Ao longo do rio Mekong, onde as florestas foram petrificadas e silenciadas, pequenas mutações humanas viviam o melhor que podiam.

Hoje, no hospital pediátrico Tu Du em Saigon, um antigo anfiteatro é conhecido como a "sala da colecção" e, não oficialmente, como a "sala dos horrores". Ali há prateleiras com grandes garrafas que contêm fetos grotescos. Durante a sua invasão do Vietname, os Estados Unidos pulverizaram um herbicida desfolhante sobre a vegetação e aldeias a fim de negar "cobertura ao inimigo". Era o Agente Laranja , o qual continha dioxina, venenos com tal poder que provocavam a morte fetal, abortos, danos cromossomáticos e cancro.

Em 1970, um relatório do Senado dos EUA revelou que "os EUA despejaram [sobre o Vietname do Sul] uma quantidade de produtos químicos tóxicos que se eleva a seis libras [2,72 kg] per capita da população, incluindo mulheres e crianças". O nome de código para esta destruição maciça, Operação Hades, foi alterado para o mais amistoso Operação Ranch Hand. Hoje, cerca de 4,8 milhões de vítimas do Agente Laranja são crianças.

Len Aldis, secretário da Sociedade de Amizade Britânico-Vietnamita, retornou recentemente do Vietname com uma carta ao Comité Olímpico Internacional escrita pela União das Mulheres do Vietname. A presidente da união, Nguyen Thi Thanh Hoa, descreveu "as graves deformações congénitas [provocadas pelo Agente Laranja] de geração para geração". Ela pedia ao COI que reconsiderasse a sua decisão de aceitar patrocínio das Olimpíadas de Londres pela Dow Chemical Corporation, que foi uma das companhias a fabricar o veneno e que se recusou a indemnizar as suas vítimas.

Aldis entregou a carta em mãos no gabinete de Lord Coe, presidente do Comité Organizador de Londres. Não houve resposta. Quando a Amnistia Internacional denunciou que em 2001 a Dow Chemical adquiriu "a companhia responsável pela fuga de gás de Bhopal [na Índia em 1984] que matou 7 mil a 10 mil pessoas de imediato e 15 mil nos 20 anos seguintes", David Cameron descreveu a Dow como uma "companhia respeitável". Aclamações, portanto, para as câmaras de TV ao longo dos painéis decorativos de £7 milhões [€8,75 milhões] que orlam o estádio olímpico: são o resultado de um "acordo" de 10 anos entre o COI e um destruidor tão respeitável.

A história é enterrada juntamente com os mortos e deformados do Vietname e de Bhopal. E a história é o novo inimigo. Em 28 de Maio, o presidente Obama lançou uma campanha para falsificar a história da guerra no Vietname. Para Obama, não houve Agente Laranja, nem zonas de fogo livre, nem disparos sobre indefesos (turkey shoots), nem encobrimentos de massacres, nem racismo desenfreado, nem suicídios (pois muitos americanos acabaram com as suas próprias vidas), nem derrota frente à força de resistência de uma sociedade empobrecida. Ela foi, disse o sr. Hopey Changey, "uma das mais extraordinárias histórias de bravura e integridade nos anais da história militar [dos EUA]".

No dia seguinte, o New York Times publicou um longo artigo a documentar como Obama selecciona pessoalmente as vítimas dos seus ataques drone por todo o mundo. Ele faz isto nas "terças-feiras de terror" quando folheia álbuns com fotos de rostos numa "lista da morte", alguns deles adolescentes, incluindo "uma garota que parecia ainda mais jovem do que os seus 17 anos". Muitos são desconhecidos ou simplesmente em idade militar. Guiados por "pilotos" sentados frente a écrans de computador em Las Vegas, os drones disparam mísseis Hellfire que sugam o ar para fora dos pulmões e explodem pessoas em bocados. Em Setembro último, Obama matou um cidadão americano, Anwar al-Awlaki, puramente na base de rumor de que ele estava a incentivar terrorismo. "Este aqui é fácil", ele é citado por ajudantes como dizendo isso ao assinar a sentença de morte do homem. Em 6 de Junho, um drone matou 18 pessoas numa aldeia no Afeganistão, incluindo mulheres, crianças e um idoso que estavam a celebrar um casamento.

O artigo do New York Times não foi uma fuga ou uma revelação. Foi uma matéria de relações públicas concebida pela administração Obama para mostrar num ano de eleição quão duro o "comandante em chefe" pode ser . Se reeleito, a Marca Obama continuará a servir a riqueza, a perseguir os que dizem a verdade, a ameaçar países, a propagar vírus de computador e a assassinar pessoas toda terça-feira.

As ameaças contra a Síria, coordenadas em Washington e Londres, escalam novos picos de hipocrisia. Ao contrário da propaganda primária apresentada como notícia, o jornalismo investigativo do jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung identifica os responsáveis pelo massacre em Houla como sendo os "rebeldes" apoiados por Obama e Cameron. As fontes do jornal incluem os próprios rebeldes. Isto não foi completamente ignorado na Grã-Bretanha. Escrevendo no seu blog pessoal, de modo extremamente calmo, Jon Williams, o editor de notícias mundiais da BBC, efectivamente serve a sua própria "cobertura", citando responsáveis ocidentais que descrevem a operação "psy-ops" [operação psicológica] contra a Síria como "brilhante". Tão brilhante quanto a destruição da Líbia, do Iraque e do Afeganistão.

E tão brilhante quanto a psy-ops mais recente do Guardian com a promoção de Alastair Campbell, o colaborador chefe de Tony Blair na criminosa invasão do Iraque. Nos seus "diários", Campbell tenta salpicar sangue iraquiano sobre o demónio Murdoch. Há em abundância para encharcar todos eles. Mas o reconhecimento de que os medida respeitáveis, liberais, bajuladores de Blair, foram um acessório vital para um crime tão gigantesco é omitido e permanece como um teste singular de honestidade intelectual e moral na Grã-Bretanha.

Até quando devemos sujeitar-nos a um tal "governo invisível"? Esta expressão para a propaganda insidiosa cunhada por Edward Bernays – o sobrinho de Sigmund Freud que inventou as modernas relações públicas – nunca foi tão adequada. A "realidade falsa" exige amnésia histórica, a mentira por omissão e a transferência de significância para o insignificante. Deste modo, sistemas políticos que prometiam segurança e justiça social foram substituídos pela pirataria, "austeridade" e "guerra perpétua": um extremismo destinado ao derrube da democracia. Aplicado a um indivíduo, isto identificaria um psicopata. Por que aceitamos isto?
21/Junho/2012
O original encontra-se em www.johnpilger.com/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 2 de junho de 2012

Mundo tem 20,9 milhões de vítimas de trabalho forçado, diz OIT





Relatório divulgado nesta sexta (1o), pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), aponta que 20,9 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado em todo o mundo, sujeitas a emprego impostos através de coação ou de fraude, dos quais elas não podem sair. Do total, 11,4 milhões são mulheres e meninas e 9,5 milhões são homens e meninos. Cerca de 5,5 milhões possuem menos de 18 anos;
A organização, ligada às Nações Unidas, não divulga o cálculo por país mas por macrorregiões. A margem de erro é de 7%, ou seja, a estimativa – considerada conservadora por seus realizadores – vai de 19,5 milhões a 22,3 milhões. Alguns dados do estudo:
- Do total, 18,7 milhões (90%) são explorados no setor privado. Destes, 4,5 milhões (22%) são vítimas de exploração sexual forçada e 14,2 milhões (68%) de exploração do trabalho forçado em atividades econômicas, como agricultura, construção civil, trabalho doméstico ou industrial;
- Outros 2,2 milhões (10%) estão sujeitos a formas de trabalho forçado impostas pelo Estado, como o que ocorrem em algumas prisões ou em forças armadas rebeldes ou exércitos nacionais;
- A incidência por mil habitantes é maior na Europa Central, no Leste Europeu e na região da Comunidade de Estados Independentes (ex-União Soviética), com 4,2 casos/mil habitantes e na África, com 4/mil. É mais baixa nos países com economias desenvolvidas e na União Européia (1,5/mil);
- Em termos absolutos, a região da Ásia e Pacífico apresenta o número mais alto de trabalhadores forçados no mundo: 11,7 milhões (56% do total). O segundo maior número é registrado na África, com 3,7 milhões (18%), seguido pela América Latina, com 1,8 milhão de vítimas (9%). Nas economias desenvolvidas e na União Européia existem 1,5 milhão (7%) de trabalhadores forçados, enquanto que nos países da Europa Central e Leste Europeu e na Comunidade de Estados Independentes são registrados 1,6 milhão (7%) de pessoas. No Oriente Médio, o número de vítimas é estimado em 600.000 (3%);
- Há 9,1 milhões de vítimas (44%) que se deslocaram, seja dentro de seus países ou para o exterior. A maioria, 11,8 milhões (56%), está submetida a trabalho forçado em seus países de origem ou residência. Os deslocamentos entre fronteiras estão estreitamente vinculados com a exploração para fins sexuais.
Em nota divulgada pela OIT, a diretora do Programa Especial de Ação para Combater o Trabalho Forçado, Beate Andrees, afirma que “tivemos progresso ao assegurar que a maioria dos países tenha uma legislação que penalize o trabalho forçado, o tráfico de seres humanos e as práticas análogas à escravidão”. Contudo, segundo ela, “ainda é complicado ter êxito em processos judiciais contra indivíduos que causam tal sofrimento a tantas pessoas”.
Para ilustrar, no Brasil, há cerca de quatro dezenas de casos que resultaram em condenações criminais por conta de trabalho escravo contemporâneo em um universo de mais de 3 mil fazendas fiscalizadas por denúncias relativas a esse crime e 42 mil trabalhadores libertados desde 1995. Não há informação de empregador que tenha cumprido pena na cadeia após sentença transitada em julgado.
De acordo com a OIT, a metodologia utilizada pela instituição, em 2005, para estimar que o mundo tinha, ao menos, 12,3 milhões de pessoas submetidas ao trabalho forçado foi revista e melhorada. O dado anterior por exemplo, tinha margem de erro de 20%, em comparação aos 7% da estimativa divulgada hoje. Por isso, não é possível afirmar que o número de escravos aumentou.
“Produzimos estas novas estatísticas em nível regional e mundial utilizando uma grande variedade de fontes secundárias, complementadas pelos resultados de nossos estudos nacionais realizados em colaboração com contrapartes locais, o que nos permite extrapolar dados provenientes de meios de comunicação ou de outras fontes indiretas. No entanto, ainda estamos longe de uma situação ideal na qual os países possam realizar suas próprias medições. A OIT poderá apoiar o fortalecimento das capacidades necessárias para cumprir esta difícil tarefa”, afirma Andrees.
Em 2001, a Comissão Pastoral da Terra, organização ligada à Igreja Católica e uma das mais importantes no combate ao trabalho escravo no país, propôs 25 mil como o número mínimo de trabalhadores rurais que, anualmente, eram submetidos à escravidão na Amazônia brasileira. Essa estimativa resultava de interações entre os números anuais de pessoas encontradas pela fiscalização, a observação do fluxo de trabalhadores migrantes e a uma análise da instituição de que para cada pessoa libertada outras três continuariam em cativeiro. A preocupação da CPT foi de alertar a sociedade com um número que sinalizasse a relevância numérica do problema sem cair num exagero insustentável cientificamente.
Na falta de outra, a estimativa foi aceita e utilizada por várias entidades. Em 2003, o governo brasileiro endossou o número ao colocá-lo no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Em 2004, uma delegação brasileira nas Nações Unidas reconheceu também o número de 25 mil como estimativa mínima e, posteriormente, a própria Organização Internacional do Trabalho. Outra estimativas apareceram, como a de 40 mil ou 100 mil trabalhadores nessas condições, mas nenhuma delas foi utilizado pelas principais entidades estatais ou da sociedade civil que atuam no combate a esse crime.
Apesar do esforço estatístico trazido pela Comissão Pastoral da Terra, ele não seguiu normas científicas ou passou por uma atualização. A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que reúne instituições públicas e da sociedade civil para monitorar as políticas públicas contra esse crime no país, parou de utilizar a estimativa da CPT e qualquer outra em 2007.
No ano passado, a OIT ofereceu ao Brasil apoio técnico para o desevolvimento de uma estimativa do número de escravos no país. Os custos de tal levantamento estão sendo analisados pela Conatrae e o governo brasileiro.
Por outro lado, devido às informações dos trabalhadores colhidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego no momento do resgate, há um perfil traçado de quem é a vítima no Brasil. Por exemplo, no caso de exploração econômica, entre 2003 e 2009, os libertos foram homens (95%), entre 18 e 44 anos (82%), analfabetos ou com até quatro anos de estudo (68%), oriundos de Estados como o Maranhão e o Pará.

domingo, 27 de maio de 2012

A política da linguagem e a linguagem da regressão política


Os capitalistas subverteram em grande medida ganhos fundamentais da classe trabalhadora e estamos a cair outra vez em direção ao domínio absoluto do capital


James Petras no BRASIL DE FATO

O capitalismo e os seus defensores mantém a dominação através dos "recursos materiais" sob o seu comando, especialmente o aparelho de Estado, e suas empresas produtivas, financeiras e comerciais, bem como através da manipulação da consciência popular via ideólogos, jornalistas, acadêmicos e publicitários que fabricam os argumentos e a linguagem para enquadrar as questões do dia.

Hoje as condições materiais para a vasta maioria dos trabalhadores deterioram-se drasticamente, pois a classe capitalista descarrega todo o fardo da crise e da recuperação dos seus lucros sobre as costas das classes assalariadas. Um dos aspectos gritantes deste contínuo rebaixamento de padrões de vida é a ausência, até agora, de um grande levantamento social. A Grécia e a Espanha, com mais de 50% de desemprego na faixa etária dos 16-24 anos e aproximadamente 25% de desemprego geral, experimentaram uma dúzia de greves gerais e numerosos protestos nacionais com muitos milhões de pessoas; mas não provocaram qualquer mudança real de regime ou de políticas. Os despedimentos em massa, os salários penosos, os cortes em pensões e serviços sociais continuam. Em outros países, como a Itália, França e Inglaterra, protestos e descontentamento manifestam-se na arena eleitoral, com governantes afastados e substituídos pela oposição tradicional. Mas no decorrer da agitação social e da profunda erosão socioeconômica das condições econômicas e de vida, a ideologia dominante que informa os movimentos, sindicatos e oposição política é reformista: apelos para defender benefícios sociais existentes, aumentar despesas públicas e investimentos, pela expansão do papel do Estado onde a atividade do setor privado deixou de investir ou empregar. Por outras palavras, a esquerda propõe conservar um passado em que o capitalismo estava arreado com o Estado previdência.

O problema é que este "capitalismo do passado" foi-se e um novo capitalismo mais virulento e intransigente emergiu forjando uma nova estrutura mundial e um poderoso aparelho de Estado obstinado e imune a todos os apelos por "reforma" e reorientação. A confusão, frustração e má direção da oposição popular de massa é, em parte, devido à adoção por escritores, jornalistas e acadêmicos de esquerda dos conceitos e linguagem adotados pelos seus adversários capitalistas: linguagem concebida para obscurecer as verdadeiras relações sociais de exploração brutal, o papel central das classes dominantes na reversão de ganhos sociais e as ligações profundas entre a classe capitalista e o Estado. Publicitários, acadêmicos e jornalistas elaboraram toda uma litania de conceitos e termos que perpetuam o domínio capitalista e desviam seus críticos e suas vítimas dos que perpetram o seu drástico deslizamento rumo ao empobrecimento em massa.

Mesmo quando formulam suas críticas e denúncias, os críticos do capitalismo utilizam a linguagem e os conceitos dos seus apologistas. Na medida em que a linguagem do capitalismo entrou no linguajar geral da esquerda, a classe capitalista estabeleceu a hegemonia ou dominação sobre os seus antigos adversários. Pior, a esquerda, ao combinar alguns dos conceitos básicos do capitalismo com a crítica aguda, cria ilusões acerca da possibilidade de reformar "o mercado" para servir objetivos populares. Isto faz com que falhe a identificação das ideias mestras das forças sociais que devem ser expulsas dos comandos da economia e do imperativo de desmantelar o Estado dominado pela classe. Enquanto a esquerda denuncia a crise capitalista e os salvamentos do Estado, a sua própria pobreza de pensamento mina o desenvolvimento da ação política de massa. Neste contexto, a "linguagem" da ocultação torna-se uma "força material" – um veículo do poder capitalista, cuja utilização primária é desorientar e desarmar seus críticos intelectuais através do uso de termos, estruturas concetuais e linguagem que dominam a discussão da crise capitalista.

Eufemismos chave ao serviço da ofensiva capitalista

Os eufemismos têm um duplo significado: o que os termos implicam (conotação) e o que eles realmente significam. Concepções eufemísticas sob o capitalismo implicam uma realidade favorável ou comportamento aceitável e atividade totalmente dissociada do engrandecimento da riqueza da elite e da concentração de poder e privilégio. Os eufemismos disfarçam o impulso das elites do poder para impor medidas específicas de classe e para reprimir sem serem adequadamente identificados, responsabilizados e opostos pela ação popular de massa.

O eufemismo mais comum é a palavra "mercado", a qual é dotada de características e poderes humanos. Como tal, dizem-nos que "o mercado exige cortar salários", desligado da classe capitalista. Mercados, intercâmbio de mercadorias ou compra e venda de bens, têm existido há milhares de anos em diferentes sistemas sociais em contextos altamente diferenciados. Eles têm sido globais, nacionais, regionais e local. Envolvem diferentes atores socioeconômicos e compreendem unidades econômicas muito diferentes, as quais vão desde casas comerciais gigantes promovidas pelo Estado até ao nível de aldeias camponesas de semi-subsistência e praças de cidades. Existiram "mercados" em todas as sociedades complexas: escravocratas, feudais, mercantis e em primitivas ou tardias sociedades capitalistas competitivas, monopolistas industriais e financeiras.

Ao discutir e analisar "mercados" e compreender as transações (quem beneficia e quem perde), deve-se claramente identificar as classes sociais que dominam as transações econômicas. Escrever na generalidade acerca de "mercados" é enganoso porque os mercados não existem independentemente das relações sociais que definem o que é produzido e vendido, como é produzido e que configurações de classe modelam o comportamento dos produtores, vendedores e do trabalho. A realidade do mercado de hoje é definida por corporações e bancos multinacionais gigantescos, os quais dominam o trabalho e os mercados de commodities. Escrever de "mercados" como se operassem numa esfera acima e para além das brutais desigualdades de classe é esconder a essência das relações de classe contemporâneas.

Fundamental para qualquer entendimento, mas ignorado pela discussão contemporânea, é o poder incontestado dos proprietários capitalistas dos meios de produção e de distribuição, a propriedade capitalista da publicidade, os banqueiros capitalistas que concedem ou negam crédito e os responsáveis do estado nomeados pelos capitalistas que "regulamentam" ou desregulamentam relações de troca. Os resultados das suas políticas são atribuídos às eufemísticas exigências do "mercado" as quais parecem estar divorciadas da realidade brutal. Portanto, como insinuam os propagandistas, ir contra "o mercado" é opor-se ao intercâmbio de bens. Isto é claramente absurdo. Em contraste, identificar exigências capitalistas sobre o trabalho, incluindo reduções em salários, bem-estar e segurança, é confrontar uma forma exploradora específica de comportamento de mercado onde capitalistas procuram ganhar lucros mais altos contra os interesses e o bem-estar da maioria dos trabalhadores assalariados.

Ao confundirem relações de mercado exploradoras sob o capitalismo com mercados em geral, os ideólogos alcançam vários resultados: eles disfarçam o papel principal dos capitalistas quando evocam uma instituição com conotações positivas, isto é, um "mercado" onde pessoas compram bens de consumo e "socializam-se" com amigos e conhecidos. Por outras palavras, quando "o mercado", o qual é retratado como um amigo e benfeitor da sociedade, impõe políticas presumivelmente penosas para o bem-estar da comunidade. É o que os propagandistas dos negócios querem que o público acredite ao mercadejarem sua virtuosa imagem do "mercado"; eles mascaram o comportamento predatório do capital na caça por maiores lucros.

Um dos eufemismos mais comuns lançado em meio a esta crise econômica é "austeridade", um termo utilizado para encobrir as duras realidades de cortes draconianos em salários, pensões e bem-estar público e o aumento drástico de impostos regressivos (IVA). Medidas de "austeridade" significam políticas para proteger e mesmo aumentar subsídios do Estado a negócios, criar lucros mais altos para o capital e maiores desigualdades entre os 10% do topo e os 90% da base. "Austeridade" implica autodisciplina, simplicidade, parcimônia, poupança, responsabilidade, limites em luxos e gastos supérfluos, evitar a satisfação imediata em benefício da segurança futura – uma espécie de calvinismo coletivo. A conotação da palavra é o sacrifício compartilhado hoje para bem-estar futuro de todos.

Contudo, na prática "austeridade" descreve políticas que são concebidas pela elite financeira para implementar reduções no padrão de vida de uma classe específica e em serviços sociais (tais como saúde e educação) disponíveis para trabalhadores e empregados assalariados. Significa que fundos públicos podem ser desviados numa extensão ainda maior para pagar altos juros a possuidores de títulos ricos enquanto sujeitam a política pública aos ditames dos senhores do capital financeiro.
Ao invés de falar de "austeridade", com sua conotação de severa autodisciplina, os críticos de esquerda deveriam descrever claramente as políticas da classe dominante contra o trabalho e as classes assalariadas, as quais aumentam desigualdades e concentram no topo ainda mais riqueza e poder. Políticas de "austeridade" são portanto uma expressão de como as classes dominantes utilizam o estado para comutar o fardo do custo da sua crise econômica para cima do trabalho.
Os ideólogos das classes dominantes apropriaram-se de conceitos e termos, os quais a esquerda originalmente utilizou para o avanço de melhorias em padrões de vida e que se voltaram contra si. Dois destes eufemismos, tomados da esquerda, são "reforma" e "ajustamento estrutural". "Reforma”, durante muitos séculos, referia-se a mudanças, as quais diminuíam desigualdades e aumentavam a representação popular. "Reformas" eram mudanças positivas que promoviam o bem-estar público e a restrição do abuso de poder por regimes oligárquicos ou plutocráticos. Ao longo das últimas três décadas, contudo, importantes acadêmicos, economistas, jornalistas e responsáveis da banca internacional subverteram o significado de "reforma" transformando-o no seu oposto: agora refere-se à eliminação de direitos do trabalho, ao fim da regulamentação pública do capital e à redução de subsídios públicos que tornavam a alimentação e o combustível acessíveis aos pobres. No vocabulário capitalista de hoje "reforma" significa reverter mudanças progressistas e restaurar os privilégios de monopólios privados. "Reforma" significa acabar com a segurança de emprego e facilitar despedimentos maciços de trabalhadores pelo rebaixamento ou eliminação da indenização por despedimento. "Reforma" já não significa mudanças sociais positivas; agora significa reverter aquelas mudanças arduamente conquistas e restaurar o poder irrestrito do capital. Significa um retorno à fase primitiva e mais brutal do capital, antes de existirem organizações de trabalhadores e quando a luta de classe era suprimida. Portanto "reforma" agora significa restaurar privilégios, poder e lucro para os ricos.
De um modo semelhante, os cortesões linguísticos da profissão econômica puseram o termo "estrutural", como em "ajustamento estrutural", ao serviço do poder desenfreado do capital. Ainda na década de 1970 a mudança "estrutural" referia-se à redistribuição da terra dos grandes latifundiários para os destituídos de terra; uma mudança de poder dos plutocratas para as classes populares. "Estruturas" referia-se à organização do poder privado concentrado no Estado e na economia. Hoje, contudo, "estrutura" refere-se às instituições e políticas públicas, as quais tiveram origem nas lutas do trabalho e da cidadania para proporcionar segurança social, para proteger o bem-estar, saúde e aposentadoria de trabalhadores. "Mudanças estruturais" são agora o eufemismo para esmagar aquelas instituições públicas, acabar com os constrangimentos ao comportamento predatório do capital e destruir a capacidade do trabalho para negociar, lutar ou preservar seus avanços sociais.
O termo "ajustamento", como em "ajustamento estrutural" (AS), é em si próprio um eufemismo suave que implica sintonia fina, a modulação cuidadosa de instituições e políticas públicas que apoiam a saúde e o equilíbrio. Mas, na realidade, "ajustamento estrutural" representa um ataque frontal ao setor público e um desmantelamento geral de legislação protetora e de agências públicas organizadas para proteger o trabalho, o ambiente e os consumidores. "Ajustamento estrutural" mascara um assalto sistemático aos padrões de vida do povo em benefício da classe capitalista.
A classe capitalista tem cultivado uma safra de economistas e jornalistas que apregoam políticas brutais em linguagem suave, evasiva e enganosa a fim de neutralizar a oposição popular. Infelizmente, muito dos seus críticos "de esquerda" tendem a apoiar-se na mesma terminologia.
Dada a corrupção generalizada da linguagem, tão difusa nas discussões contemporâneas acerca da crise do capitalismo, a esquerda deveria cessar de se apoiar neste conjunto enganoso de eufemismos apropriados pela classe dominante. É frustrante ver quão facilmente as expressões seguintes entram no nosso discurso:

"Disciplina de mercado" - O eufemismo "disciplina" denota uma fortaleza de caráter sério e consciente em face de desafios em contraposição ao comportamento irresponsável, escapista. Na realidade, quando vai a par com "mercado", refere-se a capitalistas a aproveitarem-se de trabalhadores desempregados e utilizarem sua influência política e o poder de despedirem massas de trabalhadores e intimidar os empregados remanescentes para maior exploração e excesso de trabalho, produzindo, portanto, mais lucro por menos pagamento. Ela também cobre a capacidade de grandes senhores capitalistas de elevarem sua taxa de lucro cortando os custos sociais de produção, tais como proteção ambiental e do trabalhador, cobertura de saúde e pensões.

"Choque de mercado" - Refere-se a capitalistas ocupados com maciços e abruptos despedimentos brutais, cortes em salários e eliminação de planos de saúde e pensões a fim de melhorar cotações de ações, aumentar lucros e assegurar maiores bônus para os patrões. Ao ligar o termo suave e neutro de "mercado" com "choque", os apologistas do capital disfarçam a identidade dos responsáveis por tais medidas, suas consequências brutais e os imensos benefícios desfrutados pela elite.

"Exigências do mercado" - Esta frase eufemística é destinada a antropomorfizar uma categoria econômica, afastar a crítica de proprietários reais de carne e osso, dos seus interesses de classe e do seu despótico estrangulamento do trabalho. Ao invés de "exigências de mercado", a frase deveria ser lida: "a classe capitalista ordena aos trabalhadores que sacrifiquem seus próprios salários e saúde para assegurar mais lucro para as corporações multinacionais" – um conceito claro que provavelmente despertará a ira daqueles adversamente atingidos.

"Livre empresa" - Um eufemismo que é a combinação de dois conceitos reais: empresa privada para lucro privado e competição livre. Ao eliminar a imagem subjacente do ganho privado para os poucos contra o interesse dos muitos, os apologistas do capital inventaram um conceito que enfatiza as virtudes individuais de "empresa" e "liberdade" em oposição aos vícios econômicos reais da cobiça e da exploração.

"Mercado livre" - Um eufemismo que implica competição livre, justa e igual em mercados não regulados encobrindo a realidade da dominação de mercado por monopólios e oligopólios dependentes de maciços salvamentos do Estado em tempos de crise capitalista. "Livre" refere-se especificamente à ausência de regulamentações públicas e intervenção do Estado para defender a segurança dos trabalhadores bem como a do consumidor e a proteção ambiental. Por outras palavras, "liberdade" mascara a destruição desumana da ordem cívica por capitalistas privados através do seu exercício desenfreado do poder econômico e político. "Mercado livre" é o eufemismo para o domínio absoluto de capitalistas sobre os direitos e meios de vida de milhões de cidadãos, na essência uma verdadeira negação da liberdade.

"Recuperação econômica" - Esta frase eufemística significa a recuperação de lucros pelas grandes corporações. Ela disfarça a ausência total de recuperação de padrões de vida para as classes trabalhadora e média, a reversão de benefícios sociais e as perdas econômicas de detentores de hipotecas, devedores, os desempregados a longo prazo e proprietários de pequenos negócios em bancarrota. O que é encoberto na expressão "recuperação econômica" é como a pauperização em massa se torna uma condição chave para a recuperação de lucros corporativos.

"Privatização" - O termo descreve a transferência de empresas públicas, habitualmente aquelas lucrativas, para capitalistas de grande escala privados, bem conectados, a preços bem abaixo do seu valor real, levando à perda de serviços públicos, emprego público estável e custos mais elevados para os consumidores, pois os novos proprietários privados elevam preços e despedem trabalhadores – tudo em nome de outro eufemismo: "eficiência".

"Eficiência" - Eficiência aqui refere-se apenas ao balanço de uma empresa; não reflete os custos 
pesados da "privatização" arcados por setores relacionados da economia. Exemplo: "privatizações" dos transportes aumentam custos de negócios a montante e jusante tornando-os menos competitivos em comparação com competidores de outros países; "privatização" elimina serviços em regiões que são menos lucrativas, levando ao colapso econômico local e ao isolamento dos mercados nacionais. Frequentemente, responsáveis públicos, que estão alinhados com capitalistas privados, desinvestem deliberadamente em empresas públicas e nomeiam compadres políticos incompetentes como parte da política clientelista, a fim de degradar serviços e fomentar descontentamento público. Isto cria uma opinião pública favorável à "privatização" da empresa. Por outras palavras, a "privatização" não é um resultado das ineficiências inerentes das empresas públicas, como os ideólogos do capital gostam de argumentar, mas um ato político deliberado destinado ao ganho do capital privado às custas do bem-estar público.

Conclusão

Linguagem, conceitos e eufemismos são armas importantes na luta de classe "dos de cima", concebidos por jornalistas e economistas capitalistas, para maximizar a riqueza e o poder do capital. Na medida em que críticos progressistas e de esquerda adotam estes eufemismos e seu quadro de referência, as críticas e alternativas que propõem são limitadas pela retórica do capital. Colocar "aspas" em torno dos eufemismos pode ser um sinal de desaprovação, mas isto não promove o quadro analítico diferente que é necessário para o êxito da luta de classe dos "de baixo". Igualmente importante, deixa de lado a necessidade de uma ruptura fundamental com o sistema capitalista, incluindo sua linguagem corrompida e seus conceitos enganosos. Os capitalistas subverteram em grande medida ganhos fundamentais da classe trabalhadora e estamos a cair outra vez em direção ao domínio absoluto do capital. Isto deve relançar a questão de uma transformação socialista do Estado, da economia e da estrutura de classe. Uma parte integral desse processo deve à rejeição total dos eufemismos utilizados pelos ideólogos capitalistas e a sua substituição sistemática por termos e conceitos que verdadeiramente reflitam a implacável realidade, que claramente identifiquem os perpetradores deste declínio e que definam as agências sociais para a transformação política.
O original encontra-se em http://petras.lahaine.org/?p=1898
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, 20 de maio de 2012

A Doutrina Espírita e as Transformações Sociais

  •  Maria Solange Guarino Tavares no PENSE

  • Objetivo:
    O objetivo deste trabalho é a discussão da participação da Doutrina Espírita nas Transformações Sociais, com os estudos de Allan Kardec, na França., ou seja a interação entre o social e o espiritual.

    Etimologia:
    Sociologia é um vocábulo composto:
    – da palavra latina societas (sociedade, socius = companheiro) e
    – da palavra grega logos (estudo, ciência).
    A Sociologia é, então, a ciência da sociedade ou da associação ou do companheirismo.
    Assim, a Sociologia é o estudo científico das formas fundamentais da convivência humana, ou ainda segundo, Santos, T M dos, citado por GREGÓRIO, em seu Manual de Sociologia, Sociologia é:
    – a ciência que tem por objeto o estudo dos fatos sociais;
    – um grande complexo de relações humanas ou;
    – um sistema de interação.

    O objeto da Sociologia é estudo dos fatos sociais, considerando-se como fato social:
    "O fato social são todas as formas de associações humanas e as maneiras de agir, sentir, e pensar, padronizadas e socialmente sancionadas; ou em uma palavra, os modos de ser, sentir, pensar e agir comuns aos grupos sociais".

    A Sociologia limita-se a estudar os fatos sociais tais como são e inteirar-se de como é a sociedade e não se propõe de como deve ser. Em síntese mostra o que é a sociedade e não como deve ser.

    Histórico:
    O homem é um animal social e a sociedade está em constante transformação que embora ocorram muito rapidamente, é possível historicamente registrar-se historicamente grandes mudanças sociais que marcaram época.

    Os períodos de transformações mais marcantes estão relacionados com as grandes descobertas ou com as revoluções nos paradigmas vigentes.

    A revolução tecnológica e industrial se iniciou com o domínio do fogo e das técnicas de agricultura, causando as primeiras grandes renovações no comportamento social do ser humano. A agricultura fixou o homem em pontos estratégicos, garantindo uma subsistência mais duradoura. Ao desfrutar de interesses comuns, ele se organizou socialmente e passou a defender com mais empenho o seu território.

    As descobertas de imprensa, da máquina a vapor, do motor a combustão, do rádio, do cinema, do telefone, da televisão, do computador entre outras provocaram transformações vultosas exigindo novas sistemáticas de organização para o trabalho e para a hierarquia da sociedade. Essas conquistas instrumentalizaram o homem, permitindo que ele multiplique sua força, amplie sua velocidade, economize seu tempo, difunda suas ideias, divulgue seus costumes, e enfim, concretize seus sonhos.

    A revolução dos paradigmas científicos ocorreu em épocas diversas, repercutiu também no comportamento e nos costumes das sociedades humanas. Tanto na Antiguidade Clássica quanto na Idade Média as relações sociais não chegavam a apresentar um "problema" a ser investigado. Além do mais o deve ser prevalecia sobre o que é.

    O surgimento da Sociologia só foi possível como resposta aos abalos provocados pela Revolução Industrial, pelas novas condições de existência por ela criadas.

    Num espaço de 150 anos, ou seja, de Copérnico a Newton, a ciência passou por notável progresso, mudando até mesmo a localização do planeta Terra no cosmo. Assim, as contribuições dos pensadores para a mudança do deve ser para o que é foram:
    – Nicolau Copérnico (1473-1543) desloca o centro da terra para o Sol.
    – Francis Bacon (1561-1626) diz que a teologia deve ceder lugar à dúvida metódica. Para ele a observação e a experiência ampliariam infinitamente o poder do homem e deveriam ser estendidas e aplicadas ao estudo da sociedade. Quis realizar experimentos a fim de descobrir e formular leis gerais sobre a sociedade.
    – Vico (1668-1744) expressa que o homem produz a própria história. Apoiando-se nesse ponto de vista, afirmava que a sociedade podia ser compreendida porque, ao contrário da natureza, ela constitui obra dos próprios indivíduos.
    – Montesquieu (1689-1755), iluminista, estabeleceu uma série de observações sobre a população, o comércio, a religião, a moral, a família etc. O intuito, ao estudar as instituições de sua época, era demonstrar que elas eram irracionais e injustas, que atentavam contra a natureza dos indivíduos e, nesse sentido, impediam a liberdade do homem.
    – Revolução Francesa (1789-1799) desorganiza o Estado tradicional.
    – Pensadores franceses como Saint-Simon, Comte, Le Play e outros concentrarão suas reflexões sobre a natureza e as consequências da revolução. A tarefa que esses pensadores se propõem é a de racionalizar a nova ordem, encontrando soluções para o estado de "desorganização" então existente. Mas para estabelecer a "ordem e a paz", pois é a esta missão que esses pensadores se entregam, para encontrar um estado de equilíbrio na nova sociedade, seria necessário, segundo eles, conhecer as leis que regem os fatos sociais, instituindo, portanto, uma ciência da sociedade.

    Neste ponto, cabe lembrar que filósofos sociais como Voltaire, Montesquieu, Diderot, Rousseau(1995), Locke, Beccaria, desenvolveram os princípios ético-políticos da organização social democrática, os quais serviram de base para as lutas que deflagram a Revolução Francesa (1789). Sendo esta uma revolução tipicamente de classe na qual a Burguesia soube mobilizar as outras classes sociais (camponeses, proletários urbanos, nobres insatisfeitos, intelectuais etc.) em favor de seus objetivos e com o intuito de derrubar o “Ancien Regime”, a sociedade do arbítrio, dominada pela desigualdade política, pelo despotismo e pela tradição.

    Neste sentido, a experiência social da modernidade, fundada em pressupostos democráticos de igualdade, reciprocidade de direitos e deveres dos cidadãos perante a lei, liberdade econômica para empreender e gerir negócios, possibilidade de desenvolver habilidades técnicas no sentido do progresso individual e social, são desdobramentos político-sociais trazidos pela Revolução Francesa, e que tiveram sua origem nas concepções ideológicas do Iluminismo.

    O pensador Augusto Comte (1798-1857), criador do vocábulo "Sociologia", pretendeu oferecer uma coexistência pacífica entre a ordem dos conservadores e o progresso dos revolucionários.

    A criação da Sociologia tem o objetivo de separar o conhecimento da teologia e da metafísica, dando-lhe um caráter "positivo". O sentido positivo emprestado à nova ciência, fê-la distinto de outras, tais como a Economia, o Direito e a Política.

    Augusto Comte utiliza-se dos métodos já elaborados pelas ciências naturais e constrói comparativamente os fundamentos da Sociologia, estabelecendo leis invariáveis para a sociedade, da mesma forma que a física e a química. Mostra o que é a sociedade (ciência) e não o que deve ser (filosofia) e deu ênfase ao estado positivo, mas criou o religioso, obedecendo a hierarquia católica, com a diferença de que os seus deuses são os homens célebres que se foram, tais como Sócrates, Platão, César etc.

    São esse os Estados:
    – Teológico ou Fetichista, em que se nota a adoração de totens;
    – Metafísico ou Racional, em que a inteligência já pode tentar a especulação sobre as primeiras causas;
    – Científico ou Positivo, em que não se necessita de forças sobrenaturais, nem de deuses nem de anjos, porque dispõe de recursos para compreender a natureza.

    O Espiritismo de Allan Kardec aceita os três estados citados, mas nos diz que eles coexistem, inclusive, numa comunidade cientifica. Amplia a visão do fato social quando o inter-relaciona com a mediunidade.

    Enquanto para a Sociologia o "fato social" diz respeito ao presente (ela não cogita de Deus nem de Espíritos), para o Espiritismo ele tem uma dimensão cósmica, ou seja, há um entrelaçamento entre o aqui e o agora com o ontem e o amanhã, pois tudo se encadeia na natureza.

    A Sociologia observa, formula hipóteses, experimenta e tira conclusões dos fatos sociais. Não tem a incumbência de emitir juízos de valor. Diz-nos como são os fatos sociais e não como devem ser.

    A atualidade cultural representa um grande desafio à compreensão histórica e social de uma época. Afinal, trata-se da tentativa de “decifrar” os caminhos sociais e as tendências culturais de um período histórico, que em boa medida, é organizado no seu contexto de espaço e tempo. Tal empreendimento de estudo, diz respeito à necessidade de compreendermos o “momento histórico” em que vivemos e as diferentes modalidades de organização da vida nos mundos sociais contemporâneos ao nosso.

    Neste sentido, o contemporâneo é sempre plural, porquanto as tendências culturais de uma sociedade não se repetem necessariamente noutro contexto, podendo inclusive a pluralidade significar diferentes ritmos históricos, econômicos, sociais, comportamentais e éticos. Pode parecer estranho falar de atualidades culturais em termos de tendências plurais, sobretudo nestes tempos de globalização econômica e comunicacional.

    A questão da cultura contemporânea é uma preocupação generalizada da humanidade que experimenta o impacto das mudanças econômicas, tecnológicas, políticas e sociais. E não pode ser menos relevante para nós, espíritas, sobretudo quando consideramos que Allan Kardec, ao organizar o sistema teórico-metodológico do Espiritismo no século 19, manteve um diálogo cultural intenso com as principais tendências filosóficas e científicas do seu tempo, bem como propôs que o Espiritismo “lançasse luz sobre todas as questões da economia social”.

    Kardec em “O Que é o Espiritismo” e na “Revista Espírita” analisou inúmeros problemas filosóficos do seu tempo e esclareceu questões práticas, sociais, buscando apresentar a “Solução de alguns problemas com auxílio da Doutrina Espírita”. (O Que é o Espiritismo, cap.III, Allan Kardec), segundo SOUZA.

    As formas de organização do mundo social contemporâneo e as práticas culturais do nosso tempo têm sido definidas de muitas maneiras: pós-modernidade, sociedades-em-rede, sociedade pós-industrial, sociedade da informação e do conhecimento, sociedades de consumo, sendo que tais denominações foram elaboradas no contexto das mudanças porque passa o mundo na globalização.

    É possível identificar, no contexto da globalização econômica, o esvaziamento político-social de algumas categorias tipicamente modernas: o “estado-nação”, que enfraquecido, perde em controle econômico e fonte social de identidades coletivas; a crise da ciência moderna, enquanto razão universal, face à diversidade de tradições culturais não-ocidentais; o deslocamento do eixo da economia industrial para o âmbito da “informação”. O que se observa é um esforço dos cientistas sociais e historiadores em compreender as consequências políticas, culturais e éticas da formação de uma sociedade mundial.

    A cultura contemporânea em sua complexidade é simultaneamente tecnocientífica e mística, global e local, tecnológica e tradicional, democrática e fundamentalista, racional e dogmática. Assim sendo, ela reflete as novas maneiras de “organizar os mundos sociais” os quais estão ideologicamente fragmentados, esteticamente plurais, voltados ao espírito de “seita” em desfavor da “religião oficial”, economicamente integrados, interligados pelo regime tecnológico da comunicação em redes, com a hegemonia crescente da cultura de consumo e finalmente vivendo a crise de valores da atualidade: a perda das referências nacionais, ideológicas, religiosas, filosóficas, políticas e éticas do nosso tempo. Nestas rápidas considerações, temos algumas características do cenário cultural contemporâneo.

    Na nossa época, a sociedade em que vivemos, continua sendo influenciada pelos ideais iluministas:
    – o sentido social de pertencimento,
    – as identidades culturais que partilhamos com os demais membros da comunidade, ainda são constituídas por influência da nacionalidade que nos abriga;
    – a imprensa, tornada possível pela reprodução tipográfica de Gutenberg, foi a principal responsável pela criação da “esfera pública burguesa”, este espaço democrático de livre intercâmbio de informações e troca de mercadorias;
    – o mercado e o comportamento econômico típicos da sociedade mundial, expansionista, integrada, interdependente, hegemônica, são aspectos que tem origem nos ideais do Pensamento Iluminista;
    – a crise do pensamento religioso, sua precária legitimidade nas modernas sociedades de consumo, remete ao processo de racionalização da vida social promovido pela ciência e técnica modernas;
    – a necessidade política da divisão, autonomia e equilíbrio dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário) como fator de manutenção do regime democrático, faz-nos voltar às páginas de “L’Esprit des Lois” do Barão de Montesquieu, este precursor iluminista da ciência política contemporânea;
    – o caráter secular do pensamento (a laicização da cultura), segundo os Iluministas, uma etapa necessária ao progresso da humanidade; finalmente,
    – a descoberta da “razão histórica” (“leis da história” que controlam o devenir) que nos levaria ao desenvolvimento econômico, social, político e individual, à plena realização da “natureza humana”, da sua racionalidade, do seu progresso intelectual.

    Pelo visto, a influência do Iluminismo sobre o mundo contemporâneo pode ser encontrada nos vários domínios da vida social. Nós, os cidadãos das sociedades democráticas, com seus parlamentos, seu estado de direito, sua economia de mercado, com o incrível avanço tecnológico que logramos, somos herdeiros dos chamados filósofos das luzes.

    Se por um lado é possível associar a herança cultural do Iluminismo ao progresso econômico e social, às liberdades políticas e conquistas democráticas, ao estado de direito, às luzes da razão e da técnica, ao declínio da concepção medieval do mundo (geocêntrica, teocêntrica, clerical, arbitrária), por outro lado, é necessário reconhecer o caráter secular (“desencantamento do mundo” - universo como máquina) da herança intelectual do Iluminismo.

    Em outras palavras, a racionalização da visão de mundo europeia que surge com o trabalho intelectual de iluministas como René Descartes, Francis Bacon, Galileu, Kepler, Newton, promoveu uma cultura baseada na “secularização da consciência”, na “geometrização do espaço” e no “mecanicismo científico”. Estes aspectos da herança iluminista refletem o rompimento com a Ideologia religiosa dominante e, por decorrência, a formação daquilo que foi celebrizado e mitificado na modernidade como sendo a “autonomia da razão”, as “luzes da razão”, uma concepção mecanicista, materialista e desencantada do mundo, da vida e do universo.

    Trata-se do esvaziamento da alma do mundo, da sua explicação por razões estritamente materiais, onde “a matéria explica a matéria” e o universo é unidimensional. Assim, a ciência moderna esta filha legítima do Iluminismo nasce do trabalho científico de Galileu, da aplicação do cálculo aos fenômenos astronômicos e da física clássica desenvolvida pelo físico inglês Isaac Newton. A partir deste modelo do universo regido por leis matemáticas é estabelecido o “materialismo científico”, a ciência objetivista e linear.

    As principais teorias e concepções científicas do século 19, o positivismo, o evolucionismo, o marxismo, tiveram a marca do legado iluminista, ao mesmo tempo progressista, racionalista e experimental. A imagem do mundo projetada por esta cultura científica não contemplava a possibilidade de qualquer realidade fora do domínio “material”. Ou seja, a “matéria objetiva” era a “única dimensão” que poderia ser explicada através do experimento em laboratório, da verificabilidade racional das causas dos fenômenos naturais, do controle de suas variáveis por meio do cálculo, da comprovação das leis que regem os fenômenos naturais, físicos, biológicos ou sociais.

    Neste contexto do século das luzes, na França onde o Iluminismo assumiu sua feição intelectual mais vigorosa, o Espiritismo é elaborado pelo iluminista-romântico Allan Kardec. No “Caráter da Revelação Espírita”, verdadeiro tratado de epistemologia do Espiritismo, Kardec define que a natureza deste último:
    “É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas”. (Kardec, 1990:20)

    Pelo que se observa neste trecho do capítulo I do livro “La Genèse, Les Miracles et Les Prédictions Selon le Spiritisme”, publicado em Paris aos 6 de janeiro de 1868, torna-se evidente a herança intelectual Iluminista do Espiritismo.

    Na segunda metade do século 19 — período do trabalho intelectual-espírita de Allan Kardec (1854 a1869) — já era do domínio científico as principais noções, metodologias e conceitos que foram trazidos pelo Iluminismo: a teoria do progresso da natureza humana, a racionalidade e a experimentação como métodos da Ciência, a racionalização da vida social, a noção de leis universais que regem o desenvolvimento da humanidade, o evolucionismo biológico, as noções de contrato social, educação racional, legalismo e estado de direito, justiça social, direitos individuais e outras.

    Conforme visto acima, Allan Kardec não apenas reconhecia o papel fundamental do método positivo no avanço e consolidação da ciência moderna, como também desenvolveu procedimentos para empregar tal método em seus estudos dos fenômenos espíritas. Vivendo à época da ciência positiva, contemporâneo de Augusto Comte, Kardec soube submeter à observação os fatos espíritas objetivos, à comparação, os dados e informações espirituais, aplicar o princípio classificatório na escala espírita, encontrar a causalidade racional dos fenômenos mediúnicos através de estudo rigoroso das suas várias hipóteses de explicação, manter os conceitos espíritas na racionalização lógica e coerente.

    Observando o aspecto metodológico do trabalho investigativo de Allan Kardec, é possível constatar a significativa influência das principais vertentes do pensamento iluminista (racionalismo, experimentalismo, evolucionismo) sobre o Espiritismo.

    Todavia, não apenas no método de elaboração o Espiritismo é herdeiro do pensamento iluminista, o é também em toda a teoria espírita. Em “O Livro dos Espíritos”, obra que contém a formulação da codificação kardeciana resumida em capítulos, encontramos a sua parte terceira dedicada exclusivamente às “Leis Morais”, todas elas concebidas, estudadas, utilizadas e defendidas pelo Iluminismo. Pensadores como Rousseau no seu “O Contrato Social”, Montesquieu em “O Espírito das Leis”, Maquiavel em “O Príncipe”, Descartes em “O Discurso do Método”, Voltaire, Diderot e muitos outros Iluministas escreveram sobre as “Leis históricas do devenir”, Leis da sociedade, Lei do Progresso, de Igualdade, de Liberdade, de Justiça e outras.

    A noção de Leis da História, do desenvolvimento da humanidade, do aperfeiçoamento racional da natureza humana, do progresso da sociedade, foram ideias fundamentais ao pensamento e práxis do movimento intelectual e político das Luzes. A Visão que o Espiritismo proporciona da evolução da humanidade é, neste sentido das leis, iluminista, uma abordagem não teológica do progresso, que rompe com a ideia da suposta intervenção constante e pessoal de Deus na História.

    Ao contrário disso, o Espiritismo assume uma feição naturalista, isto é, concebe a evolução da vida e da humanidade por meio de leis naturais, entre elas a reencarnação e a influência recíproca dos diferentes planos da vida. A Teologia conheceu a sua maior crise na modernidade exatamente porque ignorava as leis naturais, todas elas divinas e progressivamente conhecidas pela humanidade.

    Portanto, o caráter iluminista do Espiritismo aparece no seu método, na sua compreensão da transformação da sociedade através da mudança do nível de consciência e da irresistível força do progresso (moral, social, antropológico), bem como no conhecimento racional das leis espirituais, sua aplicação no campo psicológico, das crenças, dos usos sociais, das instituições e dos valores econômicos, políticos e culturais.

    Em verdade, Allan Kardec, respirando o clima cultural da França do século das luzes, soube transcendê-lo. Trabalhando com um modelo epistemológico que estava à frente de seu tempo, Kardec desenvolveu, no diálogo com os espíritos, uma racionalidade aberta, complexa, integrada, que reunia interpretações filosóficas, dados objetivos da ciência de sua época, relatos etnográficos dos espíritos, empatia espiritual e a vivência de uma consciência religiosa autêntica e profunda.

    Enquanto o modelo da ciência positiva instaurou o império da “razão objetiva”, unidimensional e mecanicista, passando a considerar todo o conhecimento religioso um fóssil do passado, Allan Kardec, no intercâmbio com os “mortos”, descobrira formas de vida e matéria em outras frequências e planos. Deste diálogo com o desconhecido, foi possível desfazer o aparente abismo da transcendência.

    Desta forma, Allan Kardec com sua infidelidade ao paradigma cientificista da sua época, soube construir uma nova ciência, uma nova linguagem, que em muito superou os condicionamentos da ciência newton-cartesiana. Afinal, descrever formas de matéria cujo grau de eterização rompia com a física corpuscular de Newton, em pleno século 19, significou avançar na direção de uma Concepção Quântica do Universo.

    Sendo assim, o Espiritismo é por um lado iluminista, em seu conhecimento racional das leis que regem a evolução bio-psico-sócio-espiritual do gênero humano e por outro, é herdeiro da tradição filosófica do Romantismo, reencantando o mundo com os valores espirituais, com o amor e a fraternidade universais, com o significado profundo de cada nível evolutivo, em cada reencarnação, em cada ser, em toda individualidade, em diferentes esferas e manifestações da vida, na grande teia do universo que não é outra coisa senão o pensamento de Deus.

    O Espiritismo nasceu com a modernidade, no berço cultural da nova civilização industrial e democrática, na França da segunda metade do século 19 e, por consequência, disso traz em sua identidade a marca cultural desse contexto, sua síntese e superação. Graças ao espírito transcendental do pensamento de Kardec, a metodologia original que desenvolveu no estudo dos fenômenos espirituais (análise sintética, interface entre racionalidade e transcendência, verificação experimental e diálogo transcendental com os espíritos, análise dos fatos mediúnicos e interpretação complexa dos fenômenos espirituais em suas múltiplas dimensões), foi possível ao construtor do Espiritismo uma atitude intelectual autônoma face às limitações do materialismo filosófico e científico (Marxismo e Positivismo), ao dogmatismo religioso e a crença tradicionalista na fé cega (cristandade tradicional), SOUZA.

    A busca pelo desenvolvimento, seja dos países capitalistas ou mesmo ditatoriais, consiste em criar um complexo industrial sob o controle do Estado e suas burocracias; mantido pelos verdadeiros intelectuais que auxiliam no desenvolvimento da ciência, tecnologia, produz a literatura, a arte que domina os meios de comunicação.

    Os complexos industriais, estatais e “intelectuais” constituem a força dominante dos países nesse século com a predominância em alguns dos governos, da força estatal e em outros das corporações industriais e até mesmo do aparelho militar.

    Independentemente do rótulo de democracia capitalista ou socialista que detenham, todos buscam expandir seus domínios políticos , econômicos e sociais e com isso explorar sem medidas a natureza, os outros países e os seres humanos com características de expansão e exploração.

    O objetivo do desenvolvimento é o de conseguir um tipo de vida que se convencionou chamar de “boa vida”, que se caracteriza por:
    – eliminar os trabalhos braçais, pesados ou sujos, bem como o caminhar;
    – utilizar: roupas, aparelhos para o conforto extremo, inclusive na presença de alterações climáticas( conforto material );
    – privacidade no sentido de evitar as coisas de uso coletivo, eliminando a diversidade e encorajando os indivíduos a encapsular-se nos grupos iguais, da mesma classe social, profissão, raça, religião e/ou retirar-se em família;
    – amar o diferente, o estrangeiro, ouvir novas ideias, exigir um esforço de tolerância para o qual não se é educado;
    – em relação à segurança utilizar todo um aparato militar, seguro de vida e outros que preservam esse conforto, a privacidade, e o trabalho não braçal de forma a manter-se cada vez mais preservado tudo aquilo que as pessoas conseguiram ou a maioria, sendo a segurança direcionada para a elite ou para a maioria da população relacionada ao enfoque político de cada país e/ou grupo social.

    Foram as estruturas sociais que estabeleceram ao longo da história, através da força e da imposição, o cultivo de metas e valores, os quais estruturam a ideologia dessa mesma sociedade.

    A estrutura ideológica das sociedades do final do século 20, tem por base os seguintes princípios:
    – hierarquia entre os países, os povos e as famílias; aos superiores cabe o domínio, a decisão, a imposição de seus interesses, os quais, irradiam suas determinações para a base ou periferia;
    – progresso pelo crescimento, expansão e exploração leva à crise, conflitos e guerras;
    – conhecimento considerado verdadeiro, é obtido de forma dedutiva, dicotômica e atomística, as coisas são analisadas separadamente;
    – as relações pessoais são verticais e hierárquicas, competitivas e exploratórias;
    – as relações com a natureza são de dominação e exploração.

    O mau desenvolvimento dos países se reflete na sociedade, nos seres humanos, na natureza, nas estruturas comerciais e na sobrevivência.

    Na Sociedade:
    A superprodução, com a mecanização, a informatização e a falta de abastecimento, leva consequentemente ao desemprego, ao trabalho reduzido e à ociosidade. A distribuição é desigual, há injustiça por sexo e idade, os custos recaem sobre os mais pobres.
    As instituições e empresas tendem à centralização, ao aumento, tornando-se setorizadas. Promovem a autoexploração, as pessoas trabalham mais, não participam das decisões, não avaliam os resultados e só executam ordens, além de trabalharem acima da sua capacidade física e mental e, consequentemente, ficam esgotadas e doentes.
    O espectadorismo se reflete no isolamento da juventude e da velhice. As pessoas são mantidas como espectadores no esporte, só assistindo, na arte, vendo, nada para participar, realizar, conviver, ser envolvido.
    Em relação à cultura, a qual domina e é imposta, levando ao desprezo das culturas próprias dos povos indígenas e minorias, isto leva a eliminá-las ou destruí-las.

    Nos Seres Humanos:
    – o corpo: mergulhado no sistema social, trabalhando em serviços desinteressantes, desestimulantes e sem convivência afetiva, desenvolve doenças próprias do sistema como: moléstias cardiovasculares; câncer, enfermidades crônicas, agravadas pela falta de exercícios físicos e alimentação incorreta.
    – a mente: propícia a desordens mentais, suicídios e enfermidades crônicas.
    – o espírito: em consequência da despersonalização imposta pelo trabalho, pela falta de convivência entre as pessoas, especialmente de idades variadas e diferentes grupos sociais, étnicos e culturais, apáticos, com desesperança, refletem a falta de sentido na vida.

    Na Natureza:
    A destruição dos ecossistemas, pela falta de respeito às limitações naturais na busca pelo desenvolvimento, destrói e maltrata a terra, que perde a capacidade de reconstituição e torna a vida consequentemente impossível aos serem que a habitam.

    Nas Estruturas Comerciais Mundiais:
    Considerando que a sociedade deve perpetuar a sua hierarquia e reproduzir o seu sistema de expansão e exploração, mantendo-os, cria-se, através de marketing agressivo, necessidades para os povos dependentes e para o homem em sua individualidade. Ficando o consumidor a serviço da produção, ou seja, com o objetivo de aumentar as suas necessidades para alimentar o sistema. Assim, a ideia de que a produção e o consumo sejam decisivos a partir das necessidades reais das pessoas é uma ideia considerada subversiva, pois levaria a uma gestão econômica de que o máximo das necessidades se fizesse com um mínimo de trabalho, de capital e de recursos naturais.
    Fazer mais e viver melhor com menos, com produtos duráveis que poderão ter por muito tempo, daria ao ser humano possibilidades de se desenvolver como pessoa, ao invés de se preocupar em ter mais coisas e/ou coisas novas, segundo necessidades criadas artificialmente.

    Na Sobrevivência:
    As crises mundiais, segundo o modelo econômico que produzem discrepâncias derivam:
    – da grande produção, sem mercado;
    – da ameaça da competição entre países ou instituições;
    – das guerras de comércio, que fomentam guerras locais com motivos religiosos ou não.

    Propostas de mudanças na resolução de sintomas ou problemas criados pelo desenvolvimento que busca essa “boa vida”, surgem na estrutura social para resolvê-los, mas sem mudar de paradigma, ou seja, mantendo o par: expansão x exploração, reforçando a estrutura e a ideologia.

    As bases para as soluções são tentadas pelos governos socialistas ou capitalistas, com pequenas diferenças quanto à ênfase em um ou outro tipo de solução, que apenas mascaram ou encobrem os problemas.

    O poder tem sido exercido quase sempre de maneira autoritária, centralizadora, subjugando povos inteiros e manipulando a consciência humana, impondo regras para os costumes e os comportamentos sociais.

    Mesmo assim, e apesar disso, o livre-arbítrio e a liberdade individual têm sido o ideal e a esperança desejada por todos os povos e, sempre que essas condições deixaram de ser respeitadas, ultrapassando-se o grau de liberdade, o direito de cada um e as tradições de cada povo, o Homem se aviltou e a suja sociedade sucumbiu.

    Talvez, angustiado pela sua fragilidade e perplexo diante da Natureza que o cerca, o homem desenvolveu um caráter místico e transcendente. Ao criar suas tradições e crenças religiosas, ele estabeleceu regras que disciplinaram a ética e a moral fazendo-o distinguir o comportamento certo do errado e o objeto sagrado do profano.

    Porém, a maioria das religiões que deveriam abrir a mente humana favorecendo as conquistas espirituais para todos, quase sempre, se constituiu em doutrinas sectárias que estabeleceram limites rígidos de liberdade física e psicológica. E, quase todas, criaram um sistema de troca de favores com Deus ou com suas divindades, ignoraram o princípio de igualdade entre os homens perante Deus, estabelecendo um sistema hierárquico entre seus sacerdotes e uma escala de privilégios entre seus seguidores.

    Por isso, ainda hoje, o fanatismo religioso serve de argumento para oprimir e segregar a mulher nos países muçulmanos, para separar em dezenas de grupos o mesmo povo na Índia, ou para guerrear e matar na Palestina.

    Na atualidade, uma transformação social profunda através da religião só ocorrerá quando cada um por si mesmo realizar sua reforma interior. O homem terá que desenvolver sua segurança através da sua autoconfiança. Ele terá que se libertar das amarras culturais e dos preconceitos, de mitos, crendices e dos estigmas sociais. Ele terá que saber que pode aprender de tudo, mas só deverá vivenciar o melhor.

    Ele terá que evoluir por experiência própria e decidir por si mesmo os seus caminhos e as suas companhias. Suas relações com seus semelhantes e com o meio onde respira a vida deverão ser de cordialidade, de cooperação, de parceria solidária uns com os outros.

    Por enquanto, o homem ainda vive e convive com os mesmos costumes primitivos que colocam uns contra os outros, na disputa do poder, na ostentação de valores materiais ou na permissividade de vícios ou paixões sem limites.

    Nas últimas décadas, transformações sociais gigantescas e rápidas ultrapassaram qualquer previsão calculada e atropelaram qualquer controle político ou cultural. Curiosamente, ao lado de ganhos tecnológicos espantosos, o homem atual vive um paradoxo de perdas morais. Dispondo de conhecimentos para alimentar todos os que têm fome, ele se entrega à fartura, aumentando a mortalidade pela obesidade por comer demais. Contando com pílulas para controlar a concepção, ele descontrola a licenciosidade sexual e aumenta o número de adolescentes grávidas. Conhecendo as drogas que sanearam a loucura, esvaziando os hospícios, aumentam os que consomem drogas na rua, exigindo, pela violência, que os que são sadios se tranquem em casa para não morrerem.

    Decodificando o DNA para identificar com precisão a paternidade, desconhecemos qualquer código moral que nos oriente no que fazer com milhares de embriões de proveta, que permanecerão sem pais. Mesmo conhecendo os primores da técnica cirúrgica que embeleza, optamos, muitas vezes, por matar um feto malformado.

    O mesmo “laser” que “opera” na sala de cirurgia, para salvar vidas, é usado para matar nas “operações de guerra”.

    A televisão, que difunde cultura e divertimento, ensina as técnicas para matar, os golpes para roubar, as mentiras para enganar, estimula o sexo sem compromisso e exalta a família dissoluta, desunida, sem raízes e que debocha das tradições.

    O computador hoje está no endereço de todas as casas, a Internet destina a correspondência a todos os cantos da Terra, mas o homem parece que perdeu o endereço da sua consciência, do seu Deus e possivelmente do seu futuro.

    Permanecemos com a mesma fragilidade de antes porque sabemos escrever apenas a estória do nosso ontem. Já desvendamos milhões de anos sobre o nosso comportamento social, na mais remota Antiguidade e nos dias contemporâneos, mas somos incapazes de determinar com certeza como será nosso próximo minuto, e menos ainda o nosso amanhã.

    Resta-nos a esperança de uma nova era de transformações sociais mais profundas, que está para ocorrer com base nos valores transcendentes do ser humano, e com direito a todos de usufruí-la.

    Herculano Pires, em “O Espírito e o Tempo”, diz: “O Espiritismo não é nem pretende ser uma religião social, pelo que não disputa um lugar entre as igrejas e as seitas, mas quer ajudar as religiões a completarem a sua obra de espiritualização do mundo”.

    As mudanças radicais que colaboram para o acelerado avanço das tecnologias provocam e continuam gerando mudanças no perfil das pessoas, pelo estonteante desenvolvimento das mesmas e do acelerado volume de informações a que se tem presenciado.

    A antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar ao imaginário, modos de conhecimento e estilos de regulação social, ainda pouco estabilizados, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade inventado, segundo Pierre Lévy, em “As Tecnologias da Inteligência”.

    As tecnologias da informação, certamente, têm uma participação importante no processo de aumento do nível de informação que as pessoas atualmente têm apresentado a algumas décadas, o que pode facilitar o acesso e aumentar o esclarecimento de uma parcela da sociedade sobre certos princípios religiosos que pressupõem a abolição do raciocínio e do livre-arbítrio. O que poderá colaborar para um aprofundamento sobre o Espiritismo, por parte daquele que se dizem espíritas e também atrair outros que têm alguma informação sobre o caráter racional do Espiritismo.

    A sociedade da informação seria uma resposta à dinâmica da própria sociedade, dentro de um enfoque sistêmico, onde a interdisciplinaridade é fundamental.

    Sabe-se que os centros espíritas recebem muitos aflitos, domesticados e assustados com todo esse processo de desenvolvimento e esclarecimento, muitas vezes não coerentes com as formações específicas das religiões no mundo e, principalmente, no Brasil.

    Diante desse “público”, o Espiritismo deve estar preparado para apresentar, através do diálogo, seus princípios verdadeiros, ou melhor, a conduta do verdadeiro espírita: aquele que abraça uma religião em profundidade mas sem ter a garantida da salvação pela obediência, sendo ele responsável pela própria sorte.

    “O atendimento fraterno se caracteriza por aquela recepção que sabe ouvir, entender e encaminhar de forma positiva e sem promessas, ofertando a doutrina do Espiritismo que esclarece e conforta, mas sem obrigar ninguém a seguir esta ou aquela recomendação, decisão essa de foro íntimo de cada um”.

    Para esse atendimento são necessários: Boa vontade; ouvidos para ouvir; conhecimento doutrinário; conhecimento do centro espírita, noções de psicologia, falar apenas quando necessário, incentivando-o a conhecer a doutrina. Aqueles, em sua maioria, cidadãos conscientes que aceitam, em poucas palavras, reconhecer que toda a sua sorte presente é o resultado de suas obras passadas e que a condição de seu futuro, sob as regras do livre-arbítrio, dependem igualmente de suas ações.


    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    DARÉ, Gustavo Leopoldo R. Em busca da paz e da felicidade. USE- Ribeirão Preto, SP- Palestra - 2006.
    LEOPOLDO Marcelo R. O Espiritismo e as transformações Filosóficas nos últimos 150 anos. USE- Ribeirão Preto-SP - Palestra - 2007.
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    GIUMBELLI, Emerson. Heresia, doença, crime ou religião: Espiritismo no discurso de médicos e cientistas sociais. Rev. Antrpol. vol.40, nº 2, São Paulo - 1997.
    GREGÓRIO, Sérgio B. Sociologia e Espiritismo. [www.ceismael.com.br/artigo/76], São Paulo - maio 1996.
    Assistência Social e Espiritismo. [www.ceismael.com.br/artigo/043] - São Paulo - maio 2004.
    Função Social do Espírita. [www.ceismael.com.br/artigo/artigo068.htm] - São Paulo, maio 2004.
    INCONTRI, Dora e BIGUETO, Alessandro C. Socialismo e Espiritismo, aproximações dialéticas. in site Pensamento Social Espírita - PENSE [www.viasantos.com/pense] e na Revista On-line do Histedbr, Unicamp, em dezembro de 2005. [http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revis.html].
    KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. FEB, Rio de Janeiro, 45 ed.
    LARA, Eugenio. A Reencarnação no Plano Social in site Pensamento Social Espírita-PENSE [www.viasantos.com/pense] - SP - nov. 2002.
    LERGOY, Bernardo. Chico Xavier e a Cultura Brasileira. Rev. Antropol. vol. 44, nº1, São Paulo - 2001.
    MAYBURY-LEWIS, David. A Antropologia numa era de confusão.Rev. bras. Cien. Soc. vol.17, nº 50. São Paulo - out. 2002.
    MIGUEL, Luis F. Utopias do pós-socialismo: esboços e projetos de reorganização radical da sociedade. Rev. bras. cie. soc. vol.1, nº 61, São Paulo - jun. 2006.
    PAIVA, Maria Eny R. O Espiritismo e a Sociologia. In “Rumos para uma nova sociedade: O Espiritismo e as Ciências Sociais” (autores diversos). USE. São Paulo, 1996. p.129-144.
    O Espiritismo frente ao Homem da “Sociedade da Informação”. Novidades: Jornal Mundo Espírita, Portal do Espírito. 2003.
    ELAINE M. Reflexões teóricas e históricas sobre o Espiritualismo entre 1850-1930. cópia xerox, Dept. História. FCH. UNICAMP - abril 1997.
    SOUZA, Denizard de. Espiritismo e Iluminismo. ABRADE- Associação Brasileira dos Divulgadores do Espiritismo. DF - 2002.
    O Espiritismo e a Cultura Contemporânea. ABRADE- Associação Brasileira dos Divulgadores do Espiritismo. DF, 2002

    Fonte: União das Sociedades Espíritas (USE) de Ribeirão Preto-SP. Material de apoio a palestras, coordenado pelo departamento de orientação doutrinária.
    URL: [http://www.userp.org.br/roteiros_2007.asp]

    Maria Solange Guarino Tavares, dirigente da USE de Ribeirão Preto-SP, possui graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado em enfermagem pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora titular da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e professora titular da USP.
    E-mail: marciacr@eerp.usp.br

    quinta-feira, 10 de maio de 2012

    Yvonne Maggie: falsificação de citações, adulteração de arquivos e desonestidade intelectual

    Idelber Avelar na REVISTA FÓRUM

    Este não será um texto sobre racismo nem sobre cotas. Escrevo sobre o tema há alguns anos mas, nos últimos tempos, tenho me limitado a divulgar, admirar e comentar os textos em que, com prosa cintilante, pesquisa histórica exaustiva e sensibilidade incomum, Ana Maria Gonçalves se dedica a esmiuçar os caminhos do racismo brasileiro. Não se tratará, aqui, portanto, do já conhecido rosário do negacionismo brasileiro. Distorções e omissões várias são sua matéria cotidiana, mas o tema aqui será algo bem mais grave, a falsificação de citações e a posterior adulteração de um arquivo para tentar encobrir dita falsificação, depois que a mentira foi denunciada, aqui mesmo na Revista Fórum. O caso é sério, especialmente porque sua autora é professora numa das instituições universitárias mais respeitadas do país, a UFRJ. Não se trata de um erro ou de um engano, como se verá adiante.
    Em seu texto “A constitucionalidade das cotas raciais no Brasil”, publicado no portal d’O Globo no dia 23/04, Yvonne Maggie escreveu:

    Em Thirteen ways of looking at a black man, de Henry Louis Gates Junior, professor de Harvard, há uma história reveladora do que se passou depois da lei dos direitos. Neste livro, Harry Belafonte conta que alguns anos depois de 1964 fora convidado para fazer um filme. O produtor, muito animado, lhe dissera: “Harry, será maravilhoso, vamos fazer um filme dirigido e estrelado por negros, produzido por negros, com música feita por negros e vai ser belíssimo”. Ao que o ator, nervoso, respondeu: “Não quero fazer parte disso, passei tantos anos lutando para sair do gueto, não serei eu a me enfiar de novo nele”. Gates conta que durante a entrevista, após esta declaração de Harry, seguiu-se um silêncio constrangedor, só quebrado com uma sonora gargalhada do entrevistado e a seguinte frase: “Eu não aceitei a armadilha, mas é claro que Sidney Poitier aceitou e ficou rico estrelando todos aqueles filmes”.
    "Esse negócio de cota não é legal!", diz o Henry Louis Gates inventado por Maggie
    Pois bem, tudo o que está nesse parágrafo é falso. Nada disso se encontra no livro Thirteen ways of looking at a black man, de Henry Louis Gates. Como está longamente explicado no texto de Ana, Yvonne Maggie simplesmente atribuiu a Henry Louis Gates Jr. algo que ele jamais escreveu. Colocou entre aspas, atribuída a “um produtor”, uma frase que jamais foi dita ao ator Harry Belafonte. Atribuiu ao próprio Belafonte, ativista dos direitos civis, uma frase que ele não pronunciou, e por cuja atribuição ele com certeza poderia processar criminalmente Yvonne Maggie. A suposta paráfrase que começa com “Gates conta que …” também é falsa, e tem como predicado algo que Gates nunca contou. A frase seguinte, entre aspas e atribuída a Harry Belafonte, também é uma fabricação de Yvonne Maggie.
    As falsificações têm como objetivo manipular a voz de dois negros respeitados – ambos ativistas da luta pelos direitos civis e pela cidadania afro-americana – de forma a fazer parecer que eles tivessem corroborado a fantasia de Yvonne Maggie, de que a luta pelas políticas de ação afirmativa é uma forma de “se enfiar de novo no gueto” (expressão jamais atribuída a Harry Belafonte no livro de Henry Louis Gates). Daí a falsificação das datas: as duas histórias a partir das quais Yvonne Maggie constrói sua mentira (e que tem com esta pouquíssima relação) aconteceram por volta de 1959-60. Ela adultera a data para “depois de 1964” de forma que as declarações possam parecer uma recusa da “volta ao gueto” posterior à publicação da legislação dos direitos civis nos EUA. Caso você queira saber o que realmente está escrito no livro de Henry Louis Gates, basta ler o artigo de Ana. Como se verá lá, trata-se de dois episódios, nenhum dos quais tem o conteúdo sugerido por Yvonne Maggie ou contém as frases colocadas por ela entre aspas.
    O parágrafo com as falsificações, que se encontra no texto de Yvonne Maggie … Opa! Peraí. O parágrafo já não está lá! Citado por Ana no texto publicado aqui na Fórum, o trecho foi posteriormente retirado, sem qualquer aviso, justificativa ou crédito a quem havia apontado o seu “engano”. A professora da UFRJ se esqueceu de que havia escrito na Internet, onde blogueiro véio não é bobo. Já acostumados com a desonestidade intelectual do negacionismo brasileiro, fotografamos a página antes da adulteração. Eis aqui o printscreen do texto de Yvonne Maggie com a falsificação agora ocultada. É só clicar e ampliar:
     
    .
    A professora Yvonne Maggie, portanto, não apenas adulterou citações, falsamente atribuindo a líderes negros norte-americanos frases que eles jamais disseram. Quando pega na mentira, adulterou o arquivo que ela mesma havia escrito, sem qualquer reconhecimento da falsificação. Não deixa de ser uma estratégia comum do negacionismo brasileiro: apagar, “branquear” as marcas da barbárie.

    quarta-feira, 9 de maio de 2012

    Classes médias?


    Claudius
    por Silvio Caccia Bava no DIPLO-BRASIL
    As classes médias são algo difícil de entender. Talvez até porque sob essa classificação convivam tribos muito diferentes. E são elas, no entanto, que terão um papel decisivo nas próximas eleições, seja nos Estados Unidos, seja na cidade de São Paulo.

    A disputa de significados não é sem razão. O conceito de classe média que for adotado vai abrir campos de identidades e de alianças.
    O conceito que se impõe, pela força que tem a lógica do mercado, é o da capacidade de consumo. A classe média, nesse caso, se define por sua capacidade de consumo. E como o aumento da capacidade de consumo do brasileiro mais pobre tem se elevado, isso abre espaço para uma operação ideológica, que é chamá-lo de classe média e reforçar a ideia de ascensão social, de que ele está melhorando de vida. Essa visão pretende que o povão apoie o governo e busque, nas eleições, a continuidade dessas políticas que o favorecem. No plano do imaginário social, essa operação é um sucesso, e o apoio ao governo da presidente Dilma demonstra isso. Um Brasil que cresce, que melhora a vida dos mais pobres. Esse é um sentimento compartilhado por uma grande maioria.

    Mas, no plano material, a realidade é outra. As melhorias são bastante limitadas, e o piso do qual partimos é muito baixo. Não estamos falando de uma sociedade de bem-estar. Acima de uma renda de R$ 530 por mês aqui no Brasil, você é classe média. Explico-me: o governo define que a classe média parte de R$ 1.740 e vai até quase R$ 8.000 de renda familiar mensal. O IBGE diz que uma família é composta em média de 3,3 pessoas. Então, façamos a conta: R$ 1.740 dividido por 3,3 pessoas é igual a R$ 527,27. Aí começa a classe média baixa, com uma capacidade de consumo de R$ 17,57 por dia. Esses brasileiros não são classe média, são pobres que melhoraram um pouco de vida. Seus valores, suas referências, são distintos dos da classe média.
    Mas há um esforço midiático para trazê-los à condição de classe média, para afirmar que mudaram de condição de vida, ascenderam socialmente. A aposta política é que eles vão lutar para manter as melhorias em sua condição de vida. O jogo é com o medo de perderem o que conquistaram. Nessa linha, terão de votar no governo, na continuidade das políticas públicas.

    Outra leitura parte de situações de crise, como na Grécia, onde as mobilizações de protesto contra os cortes nas políticas sociais ganharam a adesão das classes médias. Nesse caso, são outras forças políticas e sociais – trabalhadores, jovens, desempregados, aposentados – que puxam as mobilizações. E a classe média adere, atraída pela força do movimento. O recorte não se dá pela capacidade de consumo, mas pela luta para garantir direitos, para mudar as políticas de governo. Mas aí vem o paradoxo: ainda que tenham participado das mobilizações, essas classes médias reafirmaram seu apoio, nas eleições, aos setores conservadores.
    Provavelmente o conceito de classe média como ator político não se sustenta. Não conseguimos explicar com a mesma lógica os distintos comportamentos dos grupos sociais que a integram. Esse conceito tenta pasteurizar diferenças importantes e pode ter sido criado justamente para isso. A grande maioria dos participantes das manifestações que ocuparam as praças da Europa e dos Estados Unidos nos últimos meses é de jovens de classe média. Estariam eles influenciados pela Primavera Árabe, um amplo movimento popular?

    Há todo um conjunto de referências culturais que dão identidade às classes médias. Não é só a capacidade de consumo que as define. Afinal, se temos um torneiro mecânico e um advogado que ganham R$ 6 mil por mês, os dois são classe média?
    A classe média tem acesso à educação, vai ao cinema e à academia, frequenta bares e restaurantes, tem carro, vive em um mundo distinto do popular. E como podemos entender o movimento dos estudantes no Chile pela democratização do acesso à educação? É um movimento de juventude? É um movimento de classe média? Ou é os dois? Eles conquistaram a adesão de professores e sindicatos de trabalhadores para sua luta por uma educação pública, gratuita e de qualidade.
    Provavelmente o que chamamos de classe média também tenha outras identidades – jovem, mulher, gay, estudante etc. –, e talvez sejam essas outras identidades que irão buscar os melhores candidatos para a defesa de seus direitos. A trama eleitoral fica mais complexa.

    Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.