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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Uruguai: a aldeia gaulesa da América do Sul....


O Uruguai, a aldeia que salva o mundo


uruguai Renato Dalto (*)
Caía a tarde naquela praia pequena e os músicos davam o tom num palco improvisado. Até que um deles, o jovem bandoneonista de jeans e sem camisa, resolveu solar no tecladoAdios Noniño. Fez-se então aquele esparramar de notas melancólicas, aquela agudeza de dilacerar das notas de Piazzolla e a vida seguiu assim, na calma daquele crepúsculo. Em vez de buzinas, som bate-estacas, burburinho, viam-se na volta pais e filhos passeando na areia, cachorros brincando, as primeiras luzes ensaiando a noite e mais um fim de dia em Punta del Diablo. Naquela pequena aldeia, gente de todos os lados, como se buscasse apenas isso: um entardecer com notas suaves, uma noite descendo aos poucos, um elo perdido que deixou pra trás os silêncios, as caminhadas serenas, os passeios pela beira do mar. O mar de Galeano, que descreve o menino vendo-o pela primeira vez, agarrado à mão do pai, e faz um pedido diante da imensidão: “Me ajuda a olhar”.
Dizem que agora os olhos do mundo se voltam para esse país-aldeia de meninos e idosos que se dão ao luxo de andar sozinhos à noite na capital do país. Montevidéu é a vida em festa nas noites, tardes ou manhãs. Espoucam no sul brasileiro cartazes expondo um “Uruguay natural”, como se convidassem a uma visita ao que naturalmente se perdeu neste mundo de encontros virtuais, cartões de crédito, automóveis em excesso e níveis insuportáveis de monóxido de carbono. Poderia até haver outras chamadas dizendo, por exemplo: Venha ao Uruguai encontrar o que você achou que não existia mais.
O Uruguai expõe ao mundo um presidente, Pepe Mujica, que em seu discurso de posse anunciou: “Meu governo terá quatro prioridades: educação, educação, educação e educação”. Educação civilizatória, é bom que se diga. A Frente Ampla, um governo de esquerda, está em seu segundo mandato histórico no país. E desde então, os donos de sempre- banqueiros, latifundiários e privilegiados em geral – foram taxados em suas fortunas e vem se exercendo justiça tributária. E também as crianças da escola ganharam computadores, e nos rincões mais distantes há professores pagos pelo governo para ensinar filhos de camponeses. O poder dos salários dos trabalhadores aumentou e o salário do presidente, voluntariamente, diminuiu.
Mujica doa mais de 80% do que ganha às instituições de caridade, mora na sua pequena chácara, dispensa a liturgia e o formalismo e segue o que sempre foi: um homem fiel às ideias de justiça, igualdade e liberdade. Não exerce o poder em nome próprio, mas sim como o seguidor de uma cartilha que acredita. Uma das afirmações de Mujica: As ideias são mais importantes que os nomes.
Uma bela idéia de país, quase de um conto de fadas, é de que há direitos fundamentais não escritos mas que deveriam sempre ser respeitados. Como, por exemplo, ter consideração e cuidado com os mais velhos, ter liberdade de ir e vir sem temer assaltos, caminhar seguro pelas praças, respeitar e ser respeitado em lugares públicos. Na noite uruguaia, é comum se ver famílias inteiras se divertindo juntas, num saudável encontro de gerações. País pequeno e verde, campesino, produtor de carne, vinhos e lacticínios mas, sobretudo, produtor de bons hábitos e de direitos que envolvem reciprocidade e educação – o respeito começa em casa e se propaga pelas escolas, ruas e praças. Parece que nada é mais encantador do que essa batida da simplicidade regulando a vida.
A mídia que voltou os olhos para isso tem como o acender da fogueira a eleição doThe Economist, o jornal inglês dos ricos que elegeu o Uruguai o país do ano. Houve estranhamento nisso, observações pejorativamente preconceituosas, como se essa simplicidade toda incomodasse nessa guerra de informações e lorotas que virou o mundo e sua aldeia hi tech. O Uruguai é uma aldeia onde vale muito um aperto de mão, um olho no olho, um buenos dias sincero.
Volta a imagem de Adios Noniño, uma obra-prima de Astor Piazzolla cuja história remete a algo assim: um menino de 12 anos chamado Astor tocava na noite porteña, num bar. Todas as noites o avô, el noniño, o levava pela mão e ficava numa mesa, num canto, esperando o neto terminar de tocar. Depois o levava pra casa, pela mão, carregando também na outra mão o bandoneon. Quando Astor cresceu, e se tornou célebre, um dia recebeu a notícia da morte do avô. Estava longe demais, mas na noite melancólica daquela perda, se debruçou sobre o bandoneon e compôs Adios Noniño.
Essas notas do adeus, dilacerantemente belas e arrebatadoras, ganharam o mundo, os corações, comovendo gente em todos os lugares. Naquela praia pequena, de uma aldeia que agora ganha o mundo, aquele bandoneonista jovem e descontraído relembrava a céu aberto, respeitosamente, tudo o que essas notas significam. A tarde caiu mais bela nesse dia num pedaço de mar uruguaio. Um mar de respeito e silêncios. Um mar que a gente tem que aprender a olhar.
*jornalista

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Nação-pobreza: como os EUA criaram um pântano de baixos salários




Durante décadas, ambos os partidos norte-americanos suplantaram um impulso para salários mais elevados com auxílios públicos bem-intencionados. O resultado: calamidade.

Por Joan Walsh*, na revista Salon


 
Foto: NBC News
2013 é o ano em que muitos norte-americanos descobriram a crise dos trabalhadores pobres. E essa também é a crise dos pobres que vivem de benefícios. Isso é difícil para nós: os norte-americanos que notoriamente detestamos assistencialismo, a menos que seja chamado de outra coisa e/ou nos beneficie pessoalmente. Nós achamos que isso é para os preguiçosos, vagabundos e para pessoas que não fazem a sua parte.

Portanto, não temos certeza de como lidar com o fato de que um quarto das pessoas que têm emprego hoje ganham tão pouco dinheiro que elas também recebem alguma forma de assistência pública, ou benefícios – uma proporção que é muito maior em alguns dos setores de maior crescimento da força de trabalho. Ou que 60% dos adultos beneficiários de auxilio alimentação estão empregados.

Um total de 52% das famílias dos trabalhadores de fast-food recebe assistência pública – a maior parte dela vem do Medicaid [1], vale-refeição e do crédito de imposto sobre rendimento (EITC) [2] – até a quantia de US$7 bilhões anuais, de acordo com uma nova pesquisa do Centro de Pesquisa do Trabalho da Universidade da Califórnia-Berkeley e da Universidade de Illinois.

Segundo o estudo, somente os trabalhadores do McDonald's recebem US$ 1,2 bilhão em ajuda pública. Essa é uma indústria, a propósito, que no ano passado faturou US$ 7,44 bilhões em lucros, paga US$ 52,7 milhões aos seus altos executivos e distribuiu 7,7 bilhões em dividendos e reaquisição de ações. Mesmo assim, “o recebimento de recursos públicos é a regra, e não a exceção, para essa força de trabalho", concluiu o estudo.

Depois, há o Wal-Mart, que, como Josh Eidelson, da Salon, informou recentemente, vangloriou-se numa conferência do Goldman Sachs que "mais de 475 mil" de seus 1,3 milhão de trabalhadores ganham mais de US$ 25mil por ano – o que nos permite inferir que quase 60% ganham menos.

Os democratas do Comitê de Educação e Força de Trabalho estimaram que as gigantescas cadeias de varejo de baixo custo beneficiam-se de muitos bilhões de dólares em financiamentos de assistência pública; um "hipermercado" do Wisconsin custa aos contribuintes pelo menos US$ 1 milhão por ano em assistência pública para as famílias dos trabalhadores. Lembre-se, também, que seis membros da família Walton possuem a riqueza equivalente a de 48 milhões de norte-americanos juntos.

Mas não é só fast-food e Wal-Mart: um em cada três caixas de banco recebe assistência pública, revelou o Committee for Better Banks, na semana passada, a um custo de quase US$ 1 bilhão por ano em ajuda federal, estadual e local. É isso mesmo: uma das indústrias mais rentáveis, privilegiadas e de alto prestígio do país, a do ramo bancário, paga a um setor de seus trabalhadores salários chocantemente baixos e depende dos contribuintes para tirá-los da pobreza. Só em Nova York, 40% dos caixas de banco e seus familiares recebem assistência pública, custando US$ 112 milhões em benefícios estaduais e federais.

Os CEOs dos bancos ganham vários milhões de dólares em bônus quando os lucros aumentam, enquanto milhões de caixas são tão pobres que recebem assistência social. Há algo de errado nisso.

A repulsa pelas empresas rentáveis que pagam salários em nível de pobreza está ajudando a alimentar uma onda de organização há muito esperada e a protestar em nome dos trabalhadores com baixos salários, desde greves de trabalhadores de fast-food que varreram o país até protestos contra o Wal-Mart nessa temporada de férias. Os contribuintes recuam diante da ideia, mas também muitos trabalhadores. "Eu pensei que eu poderia me virar por conta própria. Isso não aconteceu”, disse a funcionária do Wal-Mart Aubretia Edick, ao Huffington Post, que ganha US$ 11,70 por hora e ainda recebe assistência pública. É por isso que ela se juntou a uma greve de um dia. "O Wal-Mart não paga o meu salário", disse. "Você paga o meu salário."

Os EUA agora tem a maior proporção de trabalhadores com baixos salários do mundo desenvolvido, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Um em cada quatro norte-americanos ganha menos de dois terços do salário médio, que é a mesma proporção que depende da ajuda pública. Está se tornando mais amplamente aceito que a disseminação e persistência de empregos de baixos salários esteja por trás do aumento da desigualdade de renda e redução da mobilidade social. O que é menos conhecido é o papel que os democratas têm desempenhado na criação dessa armadilha.

Aumento da desigualdade

Em seu discurso amplamente admirado sobre a desigualdade de renda, do dia 4 de dezembro, o presidente Obama parecia compartilhar todas essas preocupações.

"Nós sabemos que há os trabalhadores do aeroporto, os trabalhadores de fast-food, os auxiliares de enfermagem e os vendedores do varejo que trabalham duro e ainda vivem na pobreza ou um pouco acima dela", disse ele.

Baseado em grande parte naquele discurso e em alguns sussurros vindos da Ala Oeste da Casa Branca, a revista Político anunciou na sexta-feira (13) "O presidente Obama volta-se para a esquerda". Mas, à parte de dizer mais uma vez que é hora de aumentar o salário mínimo, o presidente ainda não colocou muita força em uma agenda de “esquerda” para os trabalhadores com baixos salários.

Também seria bom que Obama reconhecesse: o fato de que tantos norte-americanos "trabalham duro e ainda estão vivendo na pobreza ou um pouco acima dela" e que recebem assistência pública não é apenas um acidente infeliz. É o resultado de uma política pública apoiada por muitos democratas – e ele não tem feito muito para mudá-la ou desafiá-la. Na verdade, o presidente do Conselho de Assessores Econômicos de Obama fez a sua defesa mais vigorosa.

A verdade é que um consenso bipartidário que surgiu na década de 1990 dizia que um emprego, praticamente qualquer emprego, era melhor do que a assistência pública a longo prazo para os chamados adultos "capacitados fisicamente", incluindo as mães com crianças pequenas. Isso levou à controversa reforma da legislação da previdência, que teve ramificações muito além do domínio dos benefícios sociais.

Os republicanos exigiam trabalho de beneficiários da previdência social, a maioria dos democratas concordou, mas exigiu um novo suporte para trabalhadores de baixa renda: uma expansão do EITC, Medicaid e elegibilidade do vale-refeição mais amplos, novos (embora não suficientes) subsídios para cuidados infantis. (Como senador do estado de Illinois, Obama era crítico da ideia, mas, mais tarde, aprovou o acordo.) Os novos programas de apoio também ajudaram milhões de trabalhadores de baixa renda, que nunca tinham necessitado de benefícios; enquanto os salários continuaram estagnando e até mesmo diminuindo, mais pessoas passaram a ser elegíveis.

Mas quando os defensores trabalhistas começaram a perceber e protestar que os empregadores estavam contando com os contribuintes para apoiar a sua força de trabalho há uma década, alguns liberais lhes disseram para não se preocuparem com isso. Respondendo a uma onda anterior de organização contra as práticas trabalhistas do Wal-Mart, o presidente do Conselho de Assessores Econômicos (CEA, na sigla em inglês) do presidente Obama, Jason Furman, escreveu um artigo muito influente em 2005 intitulado "Wal-Mart: uma historia de sucesso progressista" (Oito anos depois, isso soa como se ele estivesse debochando de nós.) O ex-conselheiro econômico de Clinton argumentou que os preços baixos das grandes redes ajudaram os pobres, e que a dependência de seus funcionários à assistência pública não foi um erro, mas uma característica da política social progressista.

Furman reconheceu o presidente Clinton como aquele que presidiu "a transformação da nossa rede de segurança social de um suporte para os indigentes para um sistema que faz o trabalho pagar (…) expansões em apoio aos trabalhadores de baixa renda, incluindo um crédito de imposto sobre rendimento (EITC) mais generoso e esforços para garantir que as crianças não perdessem o seu Medicaid se seus pais conseguissem um emprego de baixa remuneração". Essencialmente, a dependência dos empregados do Wal-Mart em tais programas representou uma boa política social-democrata, Furman argumentou. E em uma troca memorável com Barbara Ehrenreich no site Slate, ele repreendeu os críticos progressistas do Wal-Mart por "brincar com os instintos primitivos antibenefício, antigoverno, anti-imposto de alguns conservadores". (Deixe para um democrata da era Clinton culpar os progressistas pelos bem estabelecidos "instintos primitivos antibenefícios" da direita.)

Embora o artigo de Furman sobre o Wal-Mart seja de oito anos atrás, ele foi amplamente citado como uma razão para os progressistas para questionar a sua nomeação como presidente do CEA no início deste ano (embora economistas progressistas desde Jared Bernstein a Paul Krugman endossaram a sua seleção). Apenas alguns meses atrás, quando a câmara municipal de Washington aprovou uma lei exigindo que grandes varejistas não-sindicalizados pagassem um salário mínimo de 12,50 dólares por hora, o Wal-Mart enviou aos repórteres o artigo de Furman na defesa.

Curiosamente, eu nunca vi Furman defender ou qualificar ou atualizar o artigo, mesmo em face de uma nova onda de movimentos anti-Wal-Mart. Eu não estava completamente confortável em usar um documento de oito anos de idade para defender seus pontos de vista, então pedi aos funcionários de comunicação da Casa Branca se ele falaria comigo sobre isso. Eu não obtive resposta.

Como social-democrata, eu não acho que Furman esteja errado em defender o papel dos programas sociais em melhorar a vida dos trabalhadores de baixa renda. Muitos progressistas acreditam que devemos separar o plano de saúde do emprego por completo, por exemplo, e torná-lo um benefício universal pago por impostos corporativos e impostos de valores máximos, mais as contribuições individuais de escala móvel. Em todo o mundo desenvolvido, os trabalhadores de quase todos os níveis podem contar com planos de saúde, puericultura, formação profissional e de treinamento, e até mesmo (em níveis salariais mais baixos) suplementos salariais financiados pelo governo.

Mas não é calvinismo punitivo ou vergonha dos benefícios em questionar até que ponto que agora é certo que trabalhadores de baixa renda tenham que contar com o vale-refeição e outras intervenções públicas, muitas vezes por um longo tempo, talvez permanentemente. Por não exigirem também aumentos regulares do salário mínimo ou colocar mais força na organização sindical, os democratas ajudaram a criar um vasto conjunto de empregos de baixos salários que paira um pouco acima da linha de pobreza, e às vezes ainda abaixo dela, graças à assistência pública, e não tem a força econômica e política para melhorar os salários e as condições de trabalho. Isso não pode ser bom para ninguém.

Na verdade, a noção de que tantos milhões de pessoas trabalham tão duro e ainda são pobres o suficiente para receber ajuda pública está aumentando: ela ajuda a mostrar que os salários baixos, não a falta de esforço ou "dependência", são, em parte, aquilo que está fazendo encolher a classe média. Não apenas os contribuintes, mas também os trabalhadores de baixa renda acham que sair da pobreza, com a ajuda de vale-refeição, Medicaid e o EITC, deve ser apenas uma vitória temporária a caminho de um lugar sólido no mercado de trabalho onde o trabalho é devidamente remunerado.

Eu certamente não estou demonizando a assistência pública. Nós ainda gastamos uma ninharia para ajudar os trabalhadores de baixos salários em comparação com o apoio social desfrutado por seus pares em outras nações prósperas. Os progressistas certamente estão orgulhosos de um estudo recente que mostrou que os programas de combate à pobreza, de fato, tiram as pessoas da pobreza – cerca de um quarto dos americanos viveriam abaixo da linha da pobreza se não fosse pelo apoio social, em oposição a um triste 16 por cento hoje. Isso deve obliterar a história infundada de Reagan de que "nós lutamos uma guerra contra a pobreza, e a pobreza venceu".

Mas a cada dólar que o contribuinte paga para subsidiar as empresas que pagam salários de miséria é um dólar não gasto em programas de primeira infância, na construção de universidades ou no financiamento da educação universitária. Sim, precisamos de redes de segurança, mas também precisamos de escadas de oportunidade. O gasto do governo que construiu a classe média depois da Segunda Guerra Mundial foi em educação e pesquisa, e foi apoiado pela mais eficaz iniciativa antipobreza do New Deal: a Lei Wagner, que facilitou a organização sindical.

Hoje, temos uma rede de segurança puída, mas essas escadas de oportunidade são ainda mais frágeis e pouco confiáveis. Nós simplesmente não estamos construindo-as – e é por isso que nós estamos enfrentando uma crise de desigualdade de renda e uma estagnação da mobilidade social, que costumava ser o coração do sonho americano.

Questão trabalhista

O presidente Obama pareceu reconhecer ao menos alguma conexão entre a proliferação de empregos de baixos salários e a crise de desigualdade de renda em seu discurso marcante de 4 de dezembro. Condenando o aumento do número de postos de trabalho que pagam salários a nível de pobreza, ele declarou que "já está mais do que na hora de aumentar o salário mínimo que, em termos reais, agora está abaixo de onde estava quando Harry Truman estava no governo", e acrescentou que "está em tempo de garantir que as nossas leis coletivas de negociação funcionem como deveriam, e assim os sindicatos terão condições de concorrência equitativas para organizar um acordo melhor para os trabalhadores e melhores salários para a classe média". Ele também se comprometeu a reconstruir as "escadas de oportunidade" que fizeram a sua família e milhões de outras, incluindo a minha, subir da classe trabalhadora para a classe média. Dado o balanço de extrema-direita do Partido Republicano, no entanto, não é provável que ele seja capaz de fazer muito disso acontecer.

O que me leva ao outro problema dos trabalhadores de baixa renda que estão sendo obrigados a depender da assistência pública: eles são, infelizmente, vulneráveis a serem bode expiatório político e política baixa. O deputado Paul Ryan chama a rede de segurança de "rede de praia", o que é horrível quando sabemos que muitas pessoas tem pelo menos um, e talvez dois, empregos e ainda permanecem pobres. Mitt Romney investiu contra os 47% dos norte-americanos que não pagam imposto de renda federal, o que inclui milhões de trabalhadores de baixa renda que recebem o crédito fiscal dos rendimentos auferidos (EITC), mesmo que esse tenha sido uma ideia republicana, assinada em lei pelo presidente Gerald Ford e expandida por ambos os presidentes Bush.

Mas os republicanos não estão fazendo pressão para aumentar o salário mínimo ou tornar mais fácil para os trabalhadores de baixa renda organizar sindicatos. A resposta deles é retirar a rede de segurança dos trabalhadores sem a construção de escadas que os fariam subir. E com cortes do vale-refeição, eles estão conseguindo o que eles querem.

Neste momento, a melhor resposta é um movimento operário revigorado em nome dos trabalhadores com baixos salários, e é revitalizando vê-lo se desenvolver. Em um nível, é surpreendente que tenha levado tanto tempo. Muitos empregos de baixos salários têm a vantagem de serem de base territorial, eles não podem se mudar para países em desenvolvimento. Os drones não vão entregar o seu hambúrguer do McDonald's num futuro próximo, e o Wal-Mart não pode vender tudo online, senão ele iria. Os caixas de banco já foram dizimados por caixas eletrônicos e pelos serviços bancários online; aqueles que ainda têm emprego os têm porque são necessários.

Mas também seria importante para mais pessoas – mais democratas – reconhecer o papel que a política tem desempenhado na criação desse pântano de empregos de baixos salários que tem sido um pouco menos miserável devido aos subsídios públicos. Como a desigualdade de renda aumentou, a mobilidade social, marca registrada dos EUA, diminuiu. A crise dos empregos de baixos salários é cada vez mais reconhecida como parte daquilo que está ampliando a desigualdade e retardando a mobilidade social. No quinto ano de sua presidência, Obama está ficando melhor em descrever o problema, mas ele precisa fazer mais para apoiar os trabalhadores que estão tentando pressionar por soluções.

Notas:

1. Medicaid: programa de assistência médica dos EUA para famílias e indivíduos de baixa renda.

2.Earned Income Tax Credit: crédito recebido através do imposto de renda federal dado para trabalhadores ou casais – principalmente aqueles com filhos menores de idade.

*É editor, jornalista e blogueiro

Tradução: Moisés Sbardelotto

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

“Americanos e russos são dois lados da mesma moeda”, diz ativista síria

“Americanos e russos são dois lados da mesma moeda”, diz ativista síria


Samir Oliveira no SUL21
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Não havia problema em sair, mas eu não poderia voltar. Se quisesse voltar, teria que ser clandestinamente” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A ativista síria Sara al-Suri esteve no Brasil durante o ano passado e retornou recentemente ao país com a intenção de promover campanhas políticas contra a ditadura de Bashar al-Assad. Ex-funcionária da ONU em Damasco, ela deixou a Síria em março de 2012 e sua família precisou abandonar o país há sete meses. Com 25 anos de idade, Sara cursava Ciência Política e Sociologia na Síria.
Sara al-Suri observa que os Estados Unidos e a Rússia são “dois lados da mesma moeda” no que diz respeito às negociações em torno do regime sírio. Para ela, as duas potências desejam articular uma negociação política para a saida de Bashar al-Assad do governo. “Todos gostariam de fazer com que Bashar al-Assad, os rebeldes e a oposição burguesa simplesmente sentassem em uma mesa, apertassem as mãos, agendassem eleições para 2014 e fingissem que está tudo resolvido”, critica. Para ela, essa solução apenas levaria a uma “cosmética transição de governo dentro de um país que está em guerra”.
Nesta entrevista ao Sul21, concedida durante sua passagem por Porto Alegre na semana passada, Sara al-Suri também fala sobre a situação das mulheres na Síria. Ela ressalta que tanto os rebeldes quanto os soldados do governo são machistas. “O que a revolução fez foi dar a nós, mulheres, uma chance de sermos ativistas, de lutarmos contra a opressão, contra a exploração e contra a marginalização. Porém, é um engano pensar que a revolução, por si só, nos libertou”, comenta.
“Quanto mais comparecia aos protestos, mais eu conhecia pessoas que não encontraria na universidade ou através dos meus amigos. Era um contexto social completamente diferente”
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“O primeiro protesto que eu participei ocorreu no dia 8 de março de 2011″ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – De que lugar da Síria tu és e quando começaste a lutar contra o regime?
Sara al-Suri - Sou de Damasco, a capital. O primeiro protesto que eu participei ocorreu no dia 8 de março de 2011. Era uma manifestação em favor dos revolucionários líbios, em frente à embaixada da Líbia. Éramos um grupo de aproximadamente 50 a 60 pessoas. Foi um evento muito pequeno e insignificante comparado ao que aconteceu depois, mas muitos de nós fomos presos. Alguns foram presos por poucas horas, outros por alguns dias. Esse foi meu primeiro protesto antes da verdadeira revolução de massa, que começou no dia 15 de março na cidade da Daraa, no sul do país.
Sul21 – O que tu fazias na Síria?
Sara - Eu trabalhava na ONU e era estudante: graduanda em Ciência Política e mestranda em Sociologia. Eu também trabalhava para o World Food, programa de alimentação das Nações Unidas.
Sul21 – Por que e quando tu saíste do país?
Sara - Deixei a Síria em março de 2012. Não havia problema em sair, mas eu não poderia voltar. Se quisesse voltar, teria que ser clandestinamente. No início, minha atuação na Síria era focada na participação nos protestos. Depois, acabei me dedicando ao Comitê de Coordenação Local em Rukn Eldin – um bairro na área central de Damasco -, organizando manifestações, escrevendo panfletos, fazendo campanhas para a liberação de detidos.
Sul21 – Como está a situação deste bairro atualmente?
Sara - Atualmente é uma das maiores áreas armadas dentro de Damasco em que o regime ainda não conseguiu intervir. É um bairro de classe trabalhadora. No início, eu não me senti muito confortável lá. Meu primeiro contato com a revolução envolveu intelectuais e artistas que apoiavam o processo na Líbia. Porém, quanto mais eu comparecia aos protestos, mais eu conhecia pessoas que não encontraria na universidade ou através dos meus amigos. Era um contexto social completamente diferente. Foi aí que comecei meu ativismo. Não íamos ao centro de Damasco, mas, sim, às partes periféricas da cidade, especificamente a um local chamado Dummar, que é agora uma zona liberada. Era muito interessante, pois as pessoas saíam das áreas centrais da cidade para juntarem-se a esses protestos na periferia, já que Damasco ainda estava sob forte controle do regime.

“Na Síria a relação entre o regime e o Estado é muito mais próxima. É impossível derrubar o regime ou o governo sem fazer cair todo o sistema”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Ficamos muito felizes por tudo ter começado na Tunísia” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual foi o sentimento das pessoas na Síria quando a primavera árabe começou, quando os primeros protestos tomaram conta da Túnisia?
Sara - Foi inacreditável, porque não podíamos nem comemorar publicamente. Ficamos muito felizes por tudo ter começado na Tunísia. (Mohamed) Bouazizi (o cidadão tunisiano que colocou fogo no próprio corpo) se tornou uma figura importante na Síria, todos usavam sua foto. O regime foi tolo o bastante de permitir isso. O clima ainda era de segurança, então podíamos falar sobre isso, desde que não publicamente. Quando Mubarak caiu no Egito, lembro que as pessoas trocavam mensagens de texto utilizando uma expressão em árabe em que uma pessoa diz “parabéns” e a outra responde “espero que você seja o próximo”. É uma expressão utilizada para felicitações em casamentos e nascimentos de crianças. Foi assim que celebramos em Damasco.
Sul21 – Por que você acha que esses protestos se transformaram em um processo revolucionário mais radical na Síria?
Sara – Penso que a Líbia e a Síria passaram por processos muito similares. Talvez na Líbia o fator “tempo” torne isso um pouco difícil de visualizar, já que lá o processo foi mais veloz. Lá, o regime era mais fraco, menos enraizado, havia os fatores do óleo e do petróleo e houve a intervenção da OTAN. A OTAN se dizia a favor dos rebeldes, mas de maneira alguma sua ação teve efeito na vitória da revolução. Na Síria, o regime é mais poderoso e possui mais aliados em nível regional e internacional — não somente a Rússia. Até o ano passado, os Estados Unidos davam declarações muito tímidas acerca do regime sírio e da revolução. Dizer que os únicos aliados do regime eram a Rússia, o Irã e o Hezbollah é subestimar totalmente o papel dos Estados Unidos no seu fortalecimento, tanto histórica quanto atualmente. Por que se tornou um processo mais radical? Porque na Síria a relação entre o regime e o Estado é muito mais próxima. É impossível derrubar o regime ou o governo sem fazer cair todo o sistema. No Egito, isso é possível, o que significa que a revolução continua e ainda tem um longo caminho a percorrer. Mas na Síria a natureza do regime e a relação que ele tem com o Estado é muito mais forte e ditatorial. O Estado foi construído com base no regime. Não há possibilidade de uma derrubada parcial, ao menos não no sentido de uma revolução democrática. Não se pode derrubar Bashar al-Assad sem desconstruir toda a pirâmide da ditadura.
Sul21 – Tu tiveste a oportunidade de ir até as chamadas “zonas liberadas” da Síria, aquelas áreas sob o controle dos rebeldes. Como é a vida nestes territórios?
Sara - Existem dois tipos de zonas liberadas. Há estados inteiros que já estão liberados e há certas áreas dentro de alguns estados. Existem mais áreas livres no norte e nordeste da Síria do que no sul ou nas fronteiras de Damasco. Em Damasco, temos algumas zonas que estão liberadas, mas sitiadas, já que o regime as cerca. São áreas muito importantes. No norte, temos uma cidade que está completamente liberada. Outra cidade, Aleppo. está repartida ao meio. Hoje existe a Aleppo ocidental e a Aleppo oriental, com estilos de vida diferentes. A travessia entre essas áreas é muito perigosa, há franco-atiradores do regime nas fronteiras. As pessoas estão divididas entre essas zonas. Há famílias de um lado e de outro. Aleppo é uma cidade histórica muito importante que vivenciou uma batalha bastante forte, e os combates ainda estão acontecendo. Trata-se de um grande centro econômico, talvez o maior da Síria, então o regime tem uma relação muito forte com a burguesia local. Ao contrário de Damasco, onde a maioria dos rebeldes é da cidade, em Aleppo aqueles que a liberaram são pessoas do interior do país. Lá a situação é um pouco frágil.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Eu diria que pelo menos 45% do país está liberado, mas é uma estimativa precária” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – É possível estimar a quantidade de território que está nas mãos dos rebeldes?
Sara - Se formos falar não de cidades, mas sim de territórios, eu diria que pelo menos 45% do país está liberado, mas é uma estimativa muito precária, pois,às vezes, esse número avança e, às vezes, retrocede. Os números em si não representam nada. Por exemplo, um deserto sob controle dos rebeldes não faz diferença nenhuma. Mas um pequeno aeroporto militar controlado pelos rebeldes vale por uma cidade inteira. Trata-se mais de uma liberação estratégica do que simplesmente geográfica.

“Somos nós, mulheres, que decidimos onde queremos ir. Não são os homens, quer sejam revolucionários ou não, que decidirão por nós.”

Sul21 – Qual vem sendo o papel das mulheres neste processo e como a vida delas tem sido alterada com a revolução?
Sara – Não podemos presumir que a ordem social que existia durante o regime seja completamente diferente daquela que estamos vivenciando durante a revolução. O que a revolução fez foi dar a nós, mulheres, uma chance de sermos ativistas, de lutarmos contra a opressão, contra a exploração e contra a marginalização. Porém, é um engano pensar que a revolução, por si só, nos libertou. Ela nos libertou politicamente, mas cabe a nós organizarmo-nos e combatermos o machismo. O revolucionário, a quem eu respeito, e o soldado, que é meu inimigo, têm uma coisa em comum: ambos são machistas. Algumas mulheres, depois da libertação, juntaram-se aos combates. Algumas estão atuando através do jornalismo, algumas estão nos comitês de organização local… As mulheres estão atuando em todos os ambientes. Mas, ao mesmo tempo, há certas vilas na Síria que continuam extremamente rurais e extremamente retrógradas, mesmo depois da revolução. Se formos à área rural de Aleppo, constataremos que lá pouca coisa mudou. Há uma revolução e, nesse momento, as mulheres precisam se politizar e se organizar a fim de conseguir o que não poderia ser feito durante o regime de Bashar al-Assad. A questão maior não é em si a emancipação da mulher, mas. Sim, a nova capacidade de o sexo feminino participar da espera política do país.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Quando eu estava em uma área liberada, meu próprio irmão estava segurando uma arma, mas eu me senti muito desconfortável”| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – As mulheres estão se dando conta dessa situação e estão se organizando?
Sara - Sim, mas em certas áreas isso é mais difícil. Isso porque o próprio militarismo é um fenômeno muito machista. Mesmo os rebeldes revolucionários são, por definição, machistas. Quando eu estava em uma área liberada, meu próprio irmão estava segurando uma arma, mas eu me senti muito desconfortável. Afinal de contas, existe essa impressão de que a arma é uma extensão do pênis do homem, e isso é intimidador. Não que eu não esteja disposta a pegar em uma arma e lutar, mas os homens de lá não são simultaneamente rebeldes e ativistas sociais. Na Síria, existe um conservadorismo social. A exploração da mulher e da mulher trabalhadora ocorre não somente dentro dos moldes do capitalismo – com sua proteção à unidade familiar – mas, também, em diferentes setores religiosos que reafirmam o papel secundário da mulher. O problema é que o regime de Bashar al-Assad era concebido como laico, e isso é uma verdade apenas parcial. O regime, por ter um imenso setor público, empregou várias mulheres. Então, para alguns, a emancipação das mulheres está associada com a ditadura, enquanto que a ideia de voltar aos tempos antigos, quando a mulher era mantida dentro de casa, é vista por esses setores como um avanço. É essa mentalidade que temos que combater. Bashar al-Assad nunca foi realmente um libertador. Ele é tão opressor e machista quanto qualquer outro homem da sociedade síria. Somos nós, mulheres, que decidimos onde queremos ir. Não são os homens, quer sejam revolucionários ou não, que decidirão por nós. É um processo longo, está muito longe de terminar e vai ser muito difícil, mas pelo menos agora temos, em algumas áreas, a liberdade política para começar essa luta.

“As mulheres estão atraídas pela revolução porque sentem que se trata não somente da libertação de uma ditadura política, mas, também, da chance de se livrar da própria sociedade patriarcal”.

Sul21 – Tu achas que é possível transformar o processo revolucionário em um processo que também confira autonomia e liberdade às mulheres?
Sara – É um processo que pode nos dar a liberdade política para sermos capazes de trabalhar pela libertação. Em árabe, a palavra “revolução” é feminina. As mulheres estão atraídas pela revolução porque sentem que se trata não somente da libertação de uma ditadura política, mas, também, da chance de se livrar da própria sociedade patriarcal. Existe esse sentimento, mas há muitos desafios. O desafio da superação do regime; o desafio da superação de uma sociedade patriarcal e retrógrada; o desafio da questão religiosa — independentemente de ser islâmica ou não –, já que a religião representa uma proteção à unidade familiar e, portanto, reafirma o papel secundário da mulher. Temos uma série de desafios. Será uma batalha dura para as mulheres.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Estão enfrentando outra espécie de força opressora, que é o fundamentalismo religioso” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual é o programa político dos rebeledes?
Sara - Não há um programa político muito articulado. Há muito poucos partidos políticos oficiais na Síria e muitos destes partidos com um programa político não se engajariam na revolução. Porém, há um processo em curso no qual mesmo os rebeldes estão sentindo que precisam de um programa. É possível notar isso pelas discussões deles. Eles não necessariamente se dão conta disso, mas o que precisam é de um partido político. O programa deles é derrubar o regime, mas no momento estão enfrentando outra espécie de força opressora, que é o fundamentalismo islâmico, como, por exemplo, a Al-Qaeda. Eles estão sendo confrontados agora, e eu acho isso bom. É melhor que eles sejam confrontados nesse momento do que depois, porque ainda se trata de um processo revolucionário radical. Ao serem confrontados pela presença da Al-Qaeda em suas fileiras, eles se perguntam: “o que é isso, como nós podemos lidar com isso?”. Eles entendem que apenas derrubar o regime não vai ser suficiente. Também precisam lutar contra o fundamentalismo religioso, o Conselho Nacional e a oposição burguesa. Sem que os rebeldes percebam, seus inimigos estão se ampliando. Mesmo que falte experiência política e organizacional, há um processo em curso que está se radicalizando, pelo menos em alguns segmentos dos grupos rebeldes. Se a situação, em termos de guerra, não se deteriorar violentamente, pode haver uma chance. O que está impedindo a vitória não é somente a falta de experiência política, mas sim a própria guerra. Não se tem comida, aviões do governo bombardeiam as áreas sob controle rebelde, há destruição e deslocamentos em massa de refugiados. Uma cidade com 300 mil habitantes rapidamente fica com 70 mil pessoas. São condições muito duras e adversas. Se isso continuar, progredir politicamente será muito difícil. A guerra precisa terminar e Bashar al-Assad precisa ser derrubado para que qualquer progresso político e qualquer programa possa ser desenvolvido pelos rebeldes.

“Não é possível ser verdadeiramente marxista e não apoiar a revolução na Síria”

Sul21 – Como você vê essa possibilidade de uma intervenção militar dos Estados Unidos na Síria?
Sara - Se lermos as declarações oficiais dos Estados Unidos e da Rússia desde que as armas químicas foram usadas pelo governo sírio, poderemos notar que a administração americana está sendo extremamente cuidadosa com suas palavras. Eles dizem: “não iremos derrubar o regime, nós vamos puni-lo com um ataque de forma cirúrgica”. É como se estivessem andando nas pontas dos pés quando se trata da Síria e da revolução. O governo estadunidense não sabe mais o que fazer. Os Estados Unidos levaram um tapa no rosto, já que os limites estabelecidos por Obama foram desrespeitados por Bashar al-Assad. Fica claro que os americanos e os russos querem uma negociação política. Neste momento, eles são dois lados da mesma moeda. Nem os Estados Unidos, nem a Rússia querem uma quebra radical do status quo. Ninguém quer ficar inseguro quanto ao que acontecerá nos próximos anos. Todos gostariam de fazer com que Bashar al-Assad, os rebeldes e a oposição burguesa simplesmente sentassem em uma mesa, apertassem as mãos, agendassem eleições para 2014 e fingissem que está tudo resolvido. Porém, isso é ilusão. Mesmo que se tente, não acontecerá. Hipoteticamente, se acontecer, teríamos uma cosmética transição de governo dentro de um país que está em guerra! As cabeças do regime estão cientes de que os Estados Unidos e a Rússia estão muito próximos de chegarem a um acordo. O que me preocupa são os grupos paramilitares de Assad. Se os americanos não atacarem nesse momento, esses grupos vão se sentir fortalecidos. Irão pensar que mesmo Obama não pode derrubar Assad. Neste sentido, creio que ainda veremos muitas atrocidades nas próximas semanas.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“As organizações de esquerda que são contra as revoluções na Síria e na Líbia tornaram-se tão burocratizadas que se afastaram da massa de trabalhadores que dizem representar” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como tu vês os posicionamentos de organizações de esquerda a respeito do que vem acontecendo na Síria? No Brasil, muitos partidos e entidades apoiam o regime.
Sara – Primeiro, há ignorância. Depois, há puro oportunismo. As organizações de esquerda que são contra as revoluções na Síria e na Líbia tornaram-se tão burocratizadas que se afastaram da massa de trabalhadores que dizem representar. Para mim, não são organizações de esquerda. Um militante de um partido comunista brasileiro me disse que a classe trabalhadora que está se juntando à revolução na Síria na verdade é composta por mercenários. Criticam isso enquanto aplaudem o governo brasileiro, que é absolutamente capitalista, baseado na conciliação de classes e não respeita nenhuma minoria: classe trabalhadora, indígenas, negros… São essas pessoas que vêm me dizer que os rebeldes no meu país são mercenários! Não há condições de argumentar. Percorri o Brasil no ano passado em campanha contra o regime sírio e até hoje não conheci nenhum líder de nenhuma organização de esquerda que continuasse apoiando a ditadura depois de saber o que realmente estava acontecendo. Não é possível ser verdadeiramente marxista e não apoiar a revolução na Síria.

“É inconcebível que uma grande potência como o Brasil não tenha uma posição clara sobre a Síria”

Sul21 – Como tu avalias a posição do governo brasileiro a respeito da Síria?
Sara - O governo brasileiro não tem posicionamento. É engraçado… Eu sou uma cidadã síria e meu único passaporte é sírio. Eu tive que implorar pelo visto, tivemos que ligar para amigos que conheciam pessoas e eu precisei esperar na embaixada por sete horas. Foi nojento e muito humilhante. Consegui o visto para apenas um mês, sendo que pretendo ficar no Brasil por um ano. Meu irmão, que é sírio mas também possui passaporte americano, foi até a embaixada brasileira na Turquia e lhe disseram: “não se preocupe, seu visto sairá em cinco dias, está tudo bem”. Então o governo brasileiro não tem posicionamento sobre a Síria. Mas não ter posicionamento já é uma forma de se posicionar. Com relação aos refugiados, é quase impossível para os sírios virem ao Brasil. As pessoas de lá que querem vir ao Brasil são aquelas que costumam ter suas famílias aqui. O governo brasileiro está tornando impossível para os sírios virem ao país e isso é uma das coisas que deveria ser combatida. É algo incompreensível: ser contra o regime de Bashar al-Assad e ao mesmo tempo ser contra os cidadãos sírios. O governo brasileiro afirma que a Síria é um grande país e que precisa ser protegido, mas quando sua população bate às portas do Brasil ele exige que fiquem do lado de fora. Isso é algo muito asqueroso em relação ao Brasil. É inconcebível que uma grande potência como o Brasil não tenha uma posição clara sobre a Síria.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“A história nos prova que mesmo as guerras mais sangrentas podem durar muito” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Quanto tempo tu achas que a guerra ainda poderá durar?
Sara – Acho que pode durar um bom tempo. A história nos prova que mesmo as guerras mais sangrentas podem durar muito. A guerra em sua forma atual talvez não se estenda tanto, mas outras formas de guerra e de caos vão continuar. Mesmo que Bashar al-Assad seja derrubado da presidência, a guerra não acabará. Há grupos paramilitares que não estão dispostos a negociar com ninguém, mesmo que seu presidente esteja. Esses grupos acreditam que a revolução não é uma revolução e que os revolucionários são extremistas sunitas que querem aniquilar todas as minorias religiosas. Eles irão até o fim. Lidar com isso de maneira inteligente também é um desafio para os rebeldes, mesmo que pareça injusto que eles, que estão morrendo, tenham que carregar ainda a obrigação de dizer às pessoas não irão matá-las. Mas precisamos convencer a base social que apoia o regime – pelo menos as pessoas que ainda não sujaram as mãos com sangue – de que Bashar al-Assad não irá protegê-las. Mesmo que elas não se juntem à revolução, pelo menos podem retirar o apoio ao regime. Isso é algo muito difícil. Depois de tanta morte, há muito ódio e sentimentos que nunca serão consertados, especialmente durante esta geração.
Sul21 – Quem está vencendo a guerra atualmente: os rebeldes ou o governo?
Sara – Se levarmos em consideração o equilíbrio de poder, os rebeldes estão perdendo. Mas se você levarmos em consideração o armamento utilizado pelos rebeldes… São armas do tempo da segunda guerra mundial, totalmente disfuncionais. Alguns rebeldes têm armas substanciais, como equipamento antiaéreo, mas são a minoria. Enquanto isso, o regime dispõe de uma poderoa máquina militar. Se considerarmos os equipamentos dos rebeldes e do regime, veremos que a revolução está vencendo. Mas essa é uma equação muito frágil. Precisamos de armas pesadas para que possamos dar um fim nisso. Se a guerra não terminar logo, quanto mais tempo demorar, mais sangrento irá se tornar o confronto e menor será a chance de vitória da revolução. Quem pode fornecer esse aramento para nós? Os Estados Unidos, a Arábia Saudita, o Catar, a Turquia e a França. Esses países não querem armar rebeldes radicais, portanto estamos presos em um ciclo vicioso. Precisamos de armas daqueles que não querem apoiar uma solução radical para o país. É aí que está o perigo: a menos que a revolução seja capaz de avançar e tomar para si o arsenal do regime, o desfecho poderá ser muito ruim.

“Dizem que é uma guerra civil. É a típica retórica despolitizada promovida pelas grandes mídias burguesas”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Internacionalmente, o noticiário se limita a uma fria contagem do número de mortos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como tu avalias a cobertura da mídia – tanto na Síria quanto da imprensa internacional – a respeito do que vem ocorrendo no país?
Sara – Dentro da Síria chega a ser engraçado. A mídia estatal mostra corpos de rebeldes e diz: “nós matamos os terroristas que queriam pegar vocês”, ao som de música nacionalista. Mostram um exército bonzinho e soldados inofensivos indo falar com crianças pequenas. “Terroristas” é o termo mais empregado para se referir aos rebeldes. O regime detém a mídia tradicional: eles têm a TV, as rádios e os jornais. Os rebeldes não têm nada. Há páginas de Facebook e alguns pequenos jornais locais. O poder da retórica do regime com sua mídia e propaganda é muito mais forte do que qualquer coisa que os rebeldes poderiam produzir. É claro que isso tem efeitos na guerra. Internacionalmente, o noticiário se limita a uma fria contagem do número de mortos, sem adentrar nos pormenores da revolução. Se a cobertura é feita de outra forma, geralmente vem de ativistas, e não de grandes veículos de comunicação. Ou temos a velha retórica de guerra civil. Dizem que é uma guerra civil, que existem dois lados, que os sírios estão matando uns aos outros, que está uma bagunça e que os turistas não devem ir até o país. É a típica retórica despolitizada promovida pelas grandes mídias burguesas. Há também a cobertura feita por veículos do Golfo Árabe. Na Arábia Saudita e no Catar acontece o oposto. A revolução é propagandeada, mas a propaganda veiculada é de uma revolução que não é minha. Eles só filmam os islamitas. Há tantos lados na revolução síria que se torna complicado reportar sobre ela. Em menos de um ano se tornou muito mais difícil falar sobre a revolução síria.
Sul21 – O que tu pretendes fazer no Brasil agora que não podes retornar à Síria?
Sara - Vim ao Brasil no ano passado como uma ativista independente. Conheci muitas pessoas da CSP-Conlutas, do PSTU e fiquei impressionada com a sua organização, com seu grande interesse pela revolução síria e pelas lutas no Brasil, apesar de todos os problemas. Eu senti que precisava dessa dessa experiência de organização, então me juntei à Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT). Meu plano nesse momento é ficar no Brasil por um tempo para que eu possa ganhar mais experiência em termos de organização política. Na próxima semana, outro rebelde chegará ao Brasil. É um jovem de 22 anos que deixou sua universidade, lutou nas linhas de frente e fez parte de um conselho local. Ele é líder de uma das brigadas e passará pelo Brasil, pela América Latina e espero que também pela Europa, tentando estabelecer mais conexões. Sei que o Brasil é um país muito distante da Síria. As pessoas me perguntam por que não fui à Europa. Há organizações de esquerda na Europa. Elas são muito propagandistas e dão declarações muito bonitas. Mas as únicas organizações de esquerda que realmente apoiaram a revolução síria não só politicamente como materialmente foram a LIT e a CSP-Conlutas. Solidariedade não são só palavras, precisamos de dinheiro.

Sul21 – Tua família ainda está na Síria?
Sara – A minha família está em Beirute, no Líbano. Eles deixaram a Síria há sete meses. Meu irmão estava até agora lutando na linha de frente, mas acabou de conseguir o visto e está vindo para o Brasil.

domingo, 15 de setembro de 2013

USA e a SIRIA...

Uma breve história da guerra dos EUA contra a Síria: 2006-2014
Blog Moon of Alabama, EUA

“O Congresso dos EUA desobedeceu ao AIPAC e ao lobby israelense. Foi a primeira vez que isso aconteceu, em 22 anos.”

“A Síria reconquistou a própria independência. O mais provável é que, em 2014, Bashar al-Assad seja reeleito presidente da República Árabe Síria. A história síria o recordará para sempre, como governante civilizado e herói do seu povo.”

“O povo dos EUA, pela primeira vez em décadas, conseguiu fazer parar uma guerra que o presidente desejava. Essa é vitória imensa e um precedente. Que todos os norte-americanos lembrem bem desses dias, quando aparecer outra guerra inventada, ou esse ou aquele país pequeno ou distante levantar-se. Os norte-americanos, nós, temos os meios para fazer parar qualquer guerra.”
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Em 2006 os EUA estavam em guerra no Iraque. Muitas das forças inimigas contra as quais os EUA lutavam furiosamente chegavam ao Iraque através da Síria. No mesmo ano o Hizbullah derrotou Israel, que invadira o Líbano. As forças armadas de Israel eram emboscadas cada vez que tentavam penetrar no Líbano, enquanto o Hizbullah usava foguetes contra as posições do exército israelense e nas cidades. O Hizbullah recebia apoio e suporte da Síria e do Irã, que chegavam através da Síria. Os planos de longo prazo dos EUA e Irã, para manter a supremacia no Oriente Médio dependiam de interromper as vias de abastecimento para o Hizbullah.

Os países sunitas sectários do Golpe, viram seus sunitas serem derrotados no Iraque, e um governo xiita, apoiado pelo Irã assumir no Iraque. Todos esses países tinham motivos para tentar atacar a Síria. E também havia razões econômicas, que tornavam necessário derrubar uma Síria independente. Um gasoduto, do Qatar à Turquia, competia com outro, do Irã à Síria. Grandes reservas de gás natural descobertas nas águas de Israel e Líbano, faziam aumentar muito a possibilidade de que também houvesse gás em águas nacionais sírias.

No final de 2006, os EUA começaram a financiar uma oposição externa ao partido Baath, que governava a Síria.[1]Aqueles opositores eram na maioria exilados da Fraternidade Muçulmana expulsos da Síria depois que fracassaram várias tentativas de golpe de Estado, entre 1976 e 1982. Em 2007, EUA, Israel e Arábia Saudita construíram um plano para “mudança de regime” na Síria. O objetivo do plano era destruir a aliança da “resistência”entre o Hizbullah, Síria e Irã:

“Para minar o Irã, predominantemente xiita, o governo Bush decidiu, de fato, reconfigurar suas prioridades no Oriente Médio. No Líbano, o governo cooperara com o governo da Arábia Saudita, que é sunita, em operações clandestinas que visam a minar o Hezbollah, organização de xiitas apoiada pelo Irã. Os EUA também tomaram parte em operações clandestinas contra o Irã e seu aliado, a Síria. Resultado colateral dessas atividades foi provocar a radicalização de grupos sunitas extremistas, que têm uma visão militante do Islã e são hostis aos EUA e simpáticos à Al-Qaeda.”[2]

Em 2011, três anos de seca, provocada pelo aquecimento global e pela Turquia, que construiu barragens e gigantescos projetos de irrigação na região, haviam enfraquecido a economia síria. Grandes populações, das áreas rurais mais pobres, perderam seus meios de sobrevivência e acorreram às cidades. Esses fatores criaram o terreno fértil a partir do qual lançar um golpe contra o estado sírio.

A parte que coube aos EUA naquele plano foi garantir cobertura “midiática” e o necessário “clima de opinião”, na opinião pública global, para viabilizar o golpe. Para isso, os EUA usaram as ferramentas que conhecem bem, de criar “revoluções coloridas”. “Jornalistas cidadãos” foram recrutados, treinados e armados com o necessário equipamento de vídeo e comunicações bem conhecidos da “mídia comercial” de propaganda, em todo o mundo. Outros foram treinados para organizar “manifestações civis pacíficas”.Os sauditas encarregaram-se da parte mais tenebrosa do plano: financiaram e armaram grupos rebeldes, muitos deles associados à exilada Fraternidade Muçulmana, com a tarefa de instigar movimento mais amplo e atacar forças do estado sírio, além de atacarem também manifestantes civis pacíficos.

Uma manifestação local em Deraa, perto da fronteira da Jordânia, foi usada para iniciar o golpe. Manifestações começaram pacíficas, mas logo começaram os ataques à bala contra manifestantes e contra a polícia. Inevitavelmente, os dois lados escalaram. Grupos armados pelos sauditas passaram a atirar consistentemente contra soldados do estado sírio. Com colegas mortos e feridos, as forças do exército sírio retaliaram contra os manifestantes. Grupos de manifestantes armaram-se, eles também, para enfrentar o exército sírio. 

Os “cidadãos jornalistas” entraram em cena, com propaganda de que só haveria vítimas entre os “manifestantes pacíficos” e jamais noticiaram o número de vítimas entre os soldados sírios. As agências “ocidentais” de noticiário integraram-se ao esquema. Ativaram-se células já organizadas em outras cidades da Síria. Mais uma vez, a expressão “manifestantes pacíficos” foi apresentada como cobertura para “uma terceira força”, como disse a comissão de investigação da Liga Árabe, que lutava contra as forças do governo sírio e também instigava os manifestantes a armarem-se.

O governo dos EUA ajudou com sua própria campanha de propaganda; por exemplo, quando mentiu[3]sobre ataques da artilharia síria contra manifestantes – que não haviam acontecido. 

Organizações para-governamentais norte-americanas, como Avaaz, Anistia Internacional e Human Rights Watch, uniram-se à campanha contra o governo sírio. E a ciberguerra, movida contra agências noticiosas sírias, suprimiu completamente o outro lado da história. Até hoje, a Agência Sírio-Árabe de Notícias [orig. Syrian Arab News Agencysana.sy] continua expurgada dos resultados [TALVEZ SÓ NOS EUA. No Brasil, encontra-se o que se vê emhttp://syrianfreepress.wordpress.com/tag/syrian-arab-news-agency/, às 19h04, 14/9/2013] se se procura em Google [TALVEZ SÓ NOS EUA. No Brasil, encontramos facilmente o que se vê em http://sana.sy/index_eng.html, às 19h03, 14/9/2013 (NTs)].

Rapidamente se tornou visível que a estratégia concebida para criar uma “revolução colorida” não funcionara.

O estado sírio mostrou-se capaz de resistir do que parecia. O presidente sírio Bashar al-Assad era mais respeitado e querido pelos sírios do que os instigadores do golpe haviam suposto. E o presidente atendeu rapidamente várias das demandas dos manifestantes autênticos. A Constituição síria for reformada, criaram-se novos partidos, houve eleições e as forças de segurança mais violentas e abusivas foram contidas, postas sob controle estrito. As grandes cidades, mesmo aquelas nas quais a maioria era de sunitas, não apoiaram nem se uniram à violência crescente dos milicianos sectários. As deserções do exército sírio e de quadros políticos foram poucas e sem importância. Durante algum tempo, até a economia conseguiu resultados bastante satisfatórios.

Os inimigos da Síria tiveram de aumentar o ‘envolvimento’. Arábia Saudita e Qatar usaram todas as suas capacidades para recrutar jihadis de outros países dispostos a lutar na Síria. A CIA, alimentada com dinheiro saudita, enviou para lá toneladas de armas e munição, recolhida de seus arsenais pelo mundo. Grupos terroristas foram criados, com treinamento e inteligência de combate. E criou-se um grupo de exilados, para começar a ser apresentado ao mundo como futuro governo possível para a Síria.

O governo sírio foi forçado a recolher-se, para preservar seus soldados. Grandes porções da Síria rural foram tomadas pelos grupos terroristas. A população dessas áreas fugiu pelas fronteiras ou para as cidades maiores. Nas áreas urbanas onde os terroristas se acastelaram, tornou-se difícil desalojá-los sem causar vasto dano aos prédios e à infraestrutura. Mas o governo sírio, dessa vez, já sabia o que fazer. Com a ajuda de aliados, unidades armadas do Irã, unidades armadas do Hizbullah foram retreinadas para guerra contra grupos terroristas insurgentes. E criaram-se unidades paramilitares locais, para reocupar as áreas das quais o exército já desalojara os terroristas. A Rússia cuidou de manter o suprimento de artigos necessários à sobrevivência dos civis e armamento para as forças do exército sírio. 

Do lado dos instigadores do golpe as coisas começaram a dar errado. Os Jihadisprovidenciados pela Arábia Saudita mostraram combatentes eficientes, mas fanáticos religiosos, e não encontraram espaço no contexto social da Síria – de governo laico e sociedade multirreligiosa liberal inclusiva. Começaram os confrontos com a população, e com combatentes locais pró-Assad. Ainda hoje chegaram notícias de luta violenta no nordeste da Síria, entre terroristas jihadistas e bandidos locais.[4]

Questões sobre suprimentos de armas a serem recebidas da Líbia, entre os EUA e grupos da Al-Qaeda, mataram o embaixador dos EUA em Benghazi. 

Apesar de ter sido ‘reformatado’ pelo menos três vezes, o planejado grupo para um governo no exílio mostrou-se inefetivo, dadas as disputas internas entre os vários grupos entre si e entre seus patrocinadores. A campanha de imprensa sobre “manifestantes pacíficos” começou a fazer água, à medida que mais e mais imagens e histórias emergiam, mostrando massacres cometidos pelos grupos golpistas, contra soldados sírios. A população nos países que inicialmente apoiara o que supunha ser um levante democrático mudou de opinião, e passou a opor-se a qualquer envolvimento naquele conflito. 

Quando se tornou mais evidente que os golpistas não conseguiriam derrotar o exército sírio, o presidente Barack Obama dos EUA apareceu com sua “linha vermelha” sobre o uso de armas químicas. Foi como um convite aos golpistas, para que usassem armas químicas no cenário da guerra, para em seguida culpar o governo sírio. Assim se criaria a necessidade, dado o que dissera o presidente, de os EUA intervirem militarmente, ao lado dos jihadistas terroristas. Tentaram fazer isso algumas vezes, mas Obama não deu sinal de disposição para usar a força. Para tentar impedir que, no caso de os terroristas conseguirem tomar o governo sírio, eles assumissem o poder, os EUA alteraram o plano: agora, haveria terroristas “moderados”, treinados pelos EUA, que assumiriam o controle dos combates, sobretudo em torno da capital Damasco.

Em meados de agosto de 2013, um grupo de 300 combatentes treinados pela CIA entraram na Síria pela Jordânia.[5](Hoje, o governo Obama está tentando alterar essa data.[6])

A tarefa deles era ir até Damasco e assumir, eles mesmos, a luta contra o governo sírio. Foram impedidos. Pararam, sem conseguir avançar mais, a caminho de um subúrbio de Damasco. Sem o apoio aéreo dos EUA, como havia acontecido na Líbia, o uso de forças especiais treinadas pelos EUA revelou-se inútil. Foi ativado então o plano “linha vermelha”.

Dia 21 de agosto, algum produto químico venenoso foi liberado no ar em alguns subúrbios de Damasco. Instantaneamente surgiram pelo canal YouTube enorme quantidade de vídeos em que se viam cadáveres enfileirados de supostas vítimas de ataque “químico”. Mas os vídeos não indicavam nenhum dos sintomas corretos de vítimas de exposição ao gás sarin, nem os atingidos que se via estavam recebendo os cuidados médicos de protocolo para o caso de ataque real com armas químicas. Tudo era falso. A conclusão de que se tratava de falsa operação ‘armada’para inculpar o governo Assad correu o mundo.[7]

Mas Obama ainda tentou convencer o mundo de que o governo sírio usara armas químicas, e insistiu em distribuir fiapos de evidências, mas, de fato, não exibiu qualquer prova. E convocou aliados para que se unissem a ele numa intervenção militar. 

O Parlamento britânico votou e decidiu que não. O povo britânico, como o povo norte-americano já não tem estômago para mais guerras. Obama viu-se preso num “ardil 22”:[8]podia ir à guerra sem consultar o Congresso; nesse caso, corria o risco de ser tirado da presidência por impeachment, de uma Câmara de Representantes muito hostil; ou pedia autorização ao Congresso para ir à guerra. Em pouco tempo Obama desceu da posição de “faço a guerra sozinho”[9]e pediu autorização ao Congresso. O povo dos EUA já era amplamente contrário a mais uma guerra no Oriente Médio, e os militares também.[10]Pressionados pelos eleitores, e ante o fato de que não havia prova alguma do tal “massacre”, o Congresso negou a licença para matar que Obama lhe pedira. 

O Congresso dos EUA desobedeceu ao AIPACe ao lobby israelense. Foi a primeira vez que isso aconteceu, em 22 anos.

Obama tem agenda urgente a cuidar, no plano doméstico. Há o Obama-care, o orçamento, e disputa já iminente pelo teto da dívida. Depois de perder a guerra no Congresso, Obama não poderia, baseado só em pressupostos poderes presidenciais, ir à guerra. Os riscos eram altos demais: ou um impeachment imediato, ou status de pato manco até o final do mandato. O que fazer?

Foi quando o cavaleiro russo, Vladimir Putin, acorreu em socorro de Obama.

Putin ofereceu um negócio: a Síria aceitaria entregar armas não convencionais; e os EUA aceitariam que o governo sírio e o presidente Assad permanecessem no poder. Não é ideia nova: apareceu há um ano, em agosto de 2012, quando o ex-senador Richard Lugar propôs exatamente isso, em Moscou.[11]

As armas químicas sírias são praticamente inúteis, no campo tático. Mas podem ser usadas contra centros de população israelenses – e têm, por isso, importante poder dissuasório e de contenção, contra a violência de Israel. Mas nas atuais circunstâncias converteram-se em risco a evitar. Ao mesmo tempo, os mísseis convencionais do Hizbullah já se comprovaram muito efetivos, como força de contenção; e não implicam os mesmos problemas associados às armas não convencionais. A Síria pode, com segurança, entregar parte de seu armamento de contenção dissuasória. E confia que seus aliados Irã e Rússia providenciarão substitutos efetivos, se necessário.

Obama agarrou-se à boia que Putin lançou para ele. Sabia que entrar abertamente em guerra contra oponente bem preparado[12]e aliados significaria guerra longa e incerta. Metera-se em situação de perde-perde, mas agora voltava a ainda parecer vencedor. Resgatou Israel de uma situação em que estava ameaçada por bombas de gás e ainda arranjou a alguma coisinha para fazer trotar seu cavalinho de batalha premiado – o desarmamento de armas de destruição em massa.

Hoje, os ministros de Relações Exteriores da Federação Russa e dos EUA assinaram umas “Linhas Gerais para a Eliminação das Armas Químicas Sírias”[orig. Framework for Elimination of Syrian Chemical Weapons].[13]Exige-se que, sendo possível, todas as armas químicas sírias estejam eliminadas até meados de 2014. 

O documento nada diz sobre o futuro do governo Assad. Mas a Rússia com certeza já providenciou para dar e obter as necessárias garantias. Nem a Síria teria entregado suas armas sem negociação precisa e suficiente. 

A Rússia, tanto quanto a Síria, sabe que Obama tem de manter a imagem, e ninguém falará sobre o real acordo firmado horas antes em Genebra. Agiram, aliás, como Nikita Khrushchev, que manteve silêncio sobre seu acordo com Kennedy, sobre a remoção dos mísseis nucleares norte-americanos da Turquia, depois da crise dos mísseis em Cuba. À parte as garantias anunciadas, o cumprimento das garantias de desarmamento, que pode demorar um pouco mais do que foi acordado hoje, depende da sobrevivência do governo de Assad. Derrubar Assad é assunto que, por hora, os russos proibiram. 

Daqui em diante, Obama começará, aos poucos, a reduzir o apoio aos terroristas na Síria. Pressionará Israel, Arábia Saudita e Turquia para que façam o mesmo. Quanto mais rapidamente a Síria promover a eliminação das armas químicas, mais rapidamente Obama se recolherá. A imprensa-empresa nos EUA rapidamente descobrirá a disputa pelo orçamento e o negócio da espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, que voltarão às manchetes. E, aos poucos, a opinião pública dos EUA esquecerá que existe Síria.

A oposição síria não está gostando do acordo e não deseja que dê certo.[14]O Conselho Militar Sírio fará o possível para que dê errado. Mas logo perceberá que ficou sem apoio político e sem dinheiro. Enquanto isso, as forças locais do CMS combatem contra grupos aliados da al-Qaeda. É bem possível que alguns grupos locais anti-Assad rapidamente se aliem ao exército sírio, contra os terroristas jihadistas. O general Selim Idris talvez consiga algum emprego burocrático de baixo escalão em Dubai ou no Qatar.

O rei saudita odeia os ideólogos da al-Qaeda tanto quanto odeia a Fraternidade Muçulmana e todos os persas. Concordará em pôr fim à guerra e atacará o bolso dos que insistam em continuar a financiá-la. 

O príncipe Bandar, responsável por recrutar terroristas jihadistas, deu-se muito mal (outra vez) e não fez o que foi pago para fazer, porque disse que controlava mas não controlava seus jihadistas alugados. Pode ser mandado de volta para o deserto bravio. Os estados do Golfo seguirão (terão de seguir) o exemplo dos sauditas.

Em Israel, Netanyahoo já viu que, essa, ele perdeu. A derrota do AIPAC no Congresso já o informou disso. Embora esse round contra a Resistência não tenha sido decisivo, é verdade que grande parte da Síria foi destruída e que o arsenal estratégico sírio está, por hora, reduzido. Netanyahoo também concordará com o plano dos EUA de reduzir os latidos pró-guerra, mas exigirá alguma “compensação” imerecida. É o que ele sempre faz, e Obama sempre cede.

O premiê turco Erdogan tentará continuar a apoiar os jihadistas na Síria. É o único estadista do planeta que o faz por razões ideológicas: Erdogan é crente fiel. Mas tem também muitos problemas com outros vizinhos e a economia turca movida a empréstimos externos está à beira de precipício profundo. Há sinais vindos da Rússia e do Irã, de que pode haver algumas dificuldades técnicas, motivadas pelo inverno, com os suprimentos de gás para a Turquia. Provavelmente bastarão para induzir Erdogan a jogar a toalha. Há também gente dentro de seu próprio partido, sobretudo empresários da Anatólia, que já não o aceitam como líder. Podem usar a fraqueza política de Erdogan para trazer outro ator para o palco.

Sem apoio e sem qualquer possibilidade de vencer a luta, a parte síria da oposição que se armou provavelmente deporá armas e tentará algum acordo de anistia com o governo. Os quadros estrangeiros da al-Qaeda continuarão a lutar. Mas têm mínima base ideológica de apoio entre a população síria; e não têm qualquer chance contra exército experiente e plenamente mecanizado. Haverá bloqueio contra seus financiadores. Mas o terrorismo é duro de matar. É possível que, em breve, os EUA ajudem a Síria, com inteligência ou drones, a combatê-los.

Claramente, a Rússia é a grande vitoriosa estratégica na guerra à Síria. Está de volta ao cenário do Oriente Médio, em condições de aí permanecer por algum tempo. Ganhou por larga margem de pontos, a batalha pela opinião pública global. A Gazprom ficará feliz se puder ajudar a Síria na prospecção e na extração de gás de suas reservas oceânicas. Daí virão os fundos para reconstruir e rearmar a Síria. A Gazprom pode também comprar gás do gasoduto Irã-Síria, vendê-lo à Europa e reforçar seu monopólio por ali.

O Irã reforçou seu papel estratégico e está hoje bem posicionado para negociar um bom entendimento com os EUA, que pode pôr fim a 30 anos de hostilidades quentes e frias. Investiu muito na Síria e mais gastará para ajudar a reconstruir o país, mas o resultado estratégico – vitória do “eixo da Resistência” – vale bem o que custou.

A Síria e o povo sírio venceram a guerra e perderam muito. Serão precisos muitos anos para reintegrar os refugiados, para reconstruir o país e esperar que cicatrizem feridas profundas. Mas a Síria também reconquistou a própria independência. O mais provável é que, em 2014, Bashar al-Assad seja reeleito presidente da República Árabe Síria. A história síria o recordará para sempre, como governante civilizado e herói do seu povo.

O povo dos EUA, pela primeira vez em décadas, conseguiu fazer parar uma guerra que o presidente desejava. Essa é vitória imensa e um precedente. Que todos os norte-americanos lembrem bem desses dias, quando aparecer outra guerra inventada, ou esse ou aquele país pequeno ou distante levantar-se. Os norte-americanos, nós, temos os meios para fazer parar qualquer guerra.

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[8] Ardil 22 é título de um famoso romance-sátira da 2ª Guerra Mundial, lançado em 1961, depois, filme [http://www.cineclick.com.br/ardil-22]. O “ardil 22” é uma lei-armadilha pela qual os pilotos-personagens sempre acabavam obrigados a voar em missões de guerra: “Você pode se declarar louco, para não ser mandado voar a missão que eles inventam. Mas se eles perceberem que você não quer voar a missão, prova-se que você não está louco, e eles mandam você voar a missão” (mais sobre o livro, emhttp://www.livrariasaraiva.com.br/produto/347842/ardil-22-(catch-22)[NTs].
[9] De http://www.moonofalabama.org/2013/08/syria-obamas-climb-down.html:“Naquele momento, Obama só poderia ter uma de duas ideias na cabeça: ou (a) ele não quer guerra e espera que o Congresso o salve daquela estúpida “linha vermelha”, armadilha que ele mesmo inventou para si próprio e que foi a causa real da operação clandestina, falsa, no subúrbio de Damasco; ou (b) ele quer guerra e espera que o AIPAC, com seu descomunal lobby, ponha ordem no Congresso e lhe dê sua guerra, para benefício do sionismo universal.”