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sábado, 12 de outubro de 2013

o escritor H.G. Wells entrevista Lenin

Entrevistas históricas: o escritor H.G. Wells entrevista Lenin

(o líder comunista e o escritor durante a entrevista)

Em BLOG

O britânico H.G.Wells (1866-1946) já tinha publicado seus famosos romancesA Guerra dos MundosA Ilha do Dr. Moreau e O Homem Invisível quando foi à Rússia, em outubro de 1920, e se encontrou com Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), o líder da revolução ocorrida no país três anos antes. Wells nunca foi marxista nem acreditava na chegada do socialismo ao poder pela via revolucionária. Sim, era socialista, mas um socialista utópico.
No entanto, ganha visível simpatia e admiração intelectual por Lenin nesse encontro que um amigo em comum, o também escritor Máximo Gorki (1868-1936), tornou possível. Wells chega ressabiado, cheio de críticas ao que viu no país até ali e cético com o futuro da União Soviética, mas nada foi capaz de causar tensão entre os dois: o papo flui de maneira agradável até o fim. Era a segunda vez que Wells visitava a Rússia. Ainda iria lá mais uma vez em 1934, quando entrevistou Stalin, a quem também admirou, mas achou “rígido demais”.
A entrevista foi publicada no The Sunday Express (edição de domingo do Daily Express), entre vários artigos que Wells escreveu sobre a viagem. No ano seguinte, saiu em livro, com o título Russia In the Shadows (Rússia nas Sombras). A conversa com Lenin, que traduzi e transcrevo aqui quase na totalidade, ocupa o penúltimo capítulo do livro. A edição original pode ser encontrada online, em inglês. É uma narrativa fascinante, rica em descrições e muito saborosa, que nada deixa a desejar ao “new journalism” que surgiria apenas 40 anos depois. Espero que desfrutem.
***
O Sonhador no Kremlin
Por H.G.Wells
Meu principal propósito ao ir de Petersburgo a Moscou era encontrar e conversar com Lenin. Eu estava muito curioso para vê-lo e estava disposto a ser hostil com ele. Encontrei uma personalidade totalmente diferente de tudo que eu esperava encontrar.
Lenin não é um escritor; seus trabalhos publicados não o retratam. Os pequenos panfletos e ensaios que circulam em Moscou com o seu nome, cheios de falsas ideias sobre a psicologia do trabalho no Ocidente e defensores obstinados da proposição impossível que é a profetizada revolução marxista que aconteceu na Rússia, mostram muito pouco da real mentalidade do Lenin que eu encontrei. De vez em quando há alguns momentos de inspirado brilhantismo, mas em geral estas publicações não mais que abordam as ideias e as frases do marxismo doutrinário. Pode ser que isso seja necessário. Talvez seja essa a única linguagem que o comunismo entenda; uma ruptura em um novo dialeto seria inquietante e desmoralizante. O comunismo de esquerda é a espinha dorsal da Rússia hoje; infelizmente é uma espinha dorsal sem partes flexíveis, uma espinha dorsal que não pode ser dobrada a não ser com extrema dificuldade e que deve ser dobrada mediante adulação e deferência.
Sob o brilhante sol de outubro, entre as folhas amarelas esvoaçantes, Moscou nos impressionou como sendo ao mesmo tempo mais relaxada e mais animada que Petersburgo. Há muito mais movimento de gente, mais comércio e um comparável número de droshkys (carruagens). Os mercados estão abertos. Não há a mesma ruína geral de ruas e casas. Há, isso é certo, muitos rastros dos desesperados enfrentamentos de rua dos princípios de 1918. Um dos domos da absurda catedral de São Basílio, exatamente do lado de fora do portão do Kremlin, estava amassado por um morteiro e ainda necessita conserto. Os bondes que encontramos não carregavam passageiros; estavam sendo usados para transportar comida e combustível. Neste aspecto Petersburgo parece melhor preparada do que Moscou.
As dez mil cruzes de Moscou ainda brilham à luz da tarde. Sobre um pináculo visível do Kremlin as águias imperiais estendem suas asas; o governo bolchevique tem estado muito ocupado ou muito indiferente para tirá-las dali. As igrejas estão abertas, as imagens de santos são uma indústria florescente, e os mendigos todavia cortejam a caridade nas portas. O famoso santuário milagroso da Madona Ibérica, do lado de fora da Porta do Salvador, estava particularmente cheio. Havia muitas mulheres do campo, incapazes de entrar na pequena capela, beijando as pedras do lado de fora.
Do lado oposto, em um painel de gesso colocado em frente a uma casa, está aquela agora célebre inscrição colocada por um dos primeiros governos revolucionários em Moscou: “A religião é o ópio do povo”. O efeito que a inscrição produz é enormemente reduzido pelo fato de que o povo na Rússia não pode ler.
(…)
(Lenin e sua irmã em 1919)
Os arranjos prévios a meu encontro com Lenin foram tediosos e irritantes, mas no fim lá estava eu a caminho do Kremlin na companhia do Sr. Rothstein, uma velha figura dos círculos comunistas londrinos, e um camarada americano com uma câmera enorme que era também, suspeitei, um oficial do ministério das relações exteriores russo.
O Kremlin como eu lembrava em 1914 era um lugar muito aberto, tanto quanto o Castelo de Windsor, com peregrinos e turistas em grupos e casais passeando através dele. Mas agora é fechado e difícil de entrar. Houve uma grande confusão com passes e autorizações antes de que pudéssemos passar ainda pelos portões externos. E nós fomos checados e inspecionados em quatro ou cinco salas de guardas e sentinelas antes de sermos recebidos. Isto pode ser necessário para a segurança pessoal de Lenin, mas o coloca fora de alcance da Rússia e, mais grave talvez, se há de fato uma ditadura, isso põe a Rússia fora de seu alcance. Se as coisas são filtradas até ele, devem ser filtradas abaixo, e então podem vir muitas mudanças no processo.
Encontramos finalmente Lenin, uma pequena figura em uma grande mesa, numa sala bem iluminada com magnífica vista. Achei sua escrivaninha um tanto bagunçada. Sentei-me a um canto da mesa, e o homenzinho –seu pé mal tocava o chão quando ele se sentou na ponta da cadeira– virou-se para conversar comigo, colocando os braços ao redor e sobre uma pilha de papéis. Ele falava um inglês excelente, mas, pensei, era característico da atual condição das relações russas que o sr. Rothstein se metesse ocasionalmente na conversa, fazendo observações e oferecendo ajuda. Enquanto isso o americano começou a trabalhar com sua câmera, e, discreta mais persistentemente, tirava fotos. A conversa, entretanto, estava muito interessante para que isso pudesse ser um incômodo. Esquecemos os cliques bastante rápido.
Eu tinha vindo com a expectativa de discutir com um marxista doutrinário. Não encontrei nada parecido. Tinha ouvido falar que Lenin gostava de dar lições às pessoas; ele certamente não o fez nesta ocasião. Muito se falou de sua risada nas descrições, uma risada que poderia ser prazerosa a princípio e cínica ao final. Esta risada não apareceu. Sua testa me lembrou a de alguém –não pude lembrar quem, até que em uma outra tarde eu vi Sr. Arthur Balfour (ex-primeiro-ministro britânico) sentado e falando sob uma luz fraca. É exatamente a mesma abóbada, o crânio ligeiramente unilateral. Lenin tem uma agradável, mutável, face amorenada, com um vívido sorriso e o hábito (talvez por alguma dificuldade em enxergar) de apertar um olho quando pausa a conversação; ele não se parece muito com as fotografias que você conhece dele porque é uma dessas pessoas cuja mudança de expressão é mais importante que os rasgos; ele gesticulava um pouco com suas mãos sobre os papéis amontoados enquanto falava, e falava rapidamente, muito perspicaz sobre a sua matéria, sem nenhuma pose ou pretensão ou reserva, como um bom homem de ciências falaria.
(Lenin e Trotski no mural “O Homem, Controlador do Universo” do mexicano Diego Rivera)
Nossa conversa esteve alinhavada e unida por dois –como diria? –temas. Um, de mim para ele: “O que você acha que está fazendo da Rússia? Que tipo de Estado está tentando criar?” O outro, dele para mim: “Por que a revolução socialista não começa na Inglaterra? Por que vocês não trabalham pela revolução? Por que vocês não estão destruindo o capitalismo e estabelecendo o Estado Comunista?” Estes temas se entrelaçavam, afetavam um ao outro, iluminavam-se. O segundo trouxe de volta o primeiro: “Mas o que vocês estão fazendo da revolução socialista? Está sendo um sucesso?” E este de volta para o segundo: “Para ser um sucesso o mundo ocidental deve participar. Por que não o faz?”
Antes de 1918 todo o mundo marxista pensava na revolução socialista como um fim. Os trabalhadores do mundo tinham que se unir, derrotar o capitalismo e serem felizes no final. Mas em 1918 os comunistas, para sua própria surpresa, se encontravam no comando da Rússia e desafiados a produzir seu milênio. Eles tinham, na continuidade das condições de guerra, no bloqueio, etcétera, uma pretensa desculpa para o atraso na produção de uma nova e melhor ordem social, mas é claro que começam a se dar conta do tremendo despreparo que implicam os métodos marxistas de pensamento. Em uma centena de pontos –já apontei o dedo em um ou dois deles –eles não sabem o que fazer. Mas o comunista comum simplesmente perde o controle se você se arrisca a duvidar que tudo está sendo feito, sob o novo regime, precisamente da melhor e mais inteligente maneira. Ele é como uma dona de casa irritadiça que quer que você reconheça que tudo está em perfeita ordem no meio de uma ação de despejo. É como uma dessas agora esquecidas “suffragettes” (mulheres que lutaram pelo voto feminino) que costumavam nos prometer o paraíso na Terra tão logo escapássemos da tirania das “leis feitas por homens”. Lenin, por outro lado, cuja franqueza muitas vezes deixa seus discípulos sem fôlego, recentemente desnudou a última pretensão de que a revolução russa seja algo mais do que a inauguração de uma época de experimentação sem limites. “Aqueles que estão engajados na formidável tarefa de vencer o capitalismo”, ele escreveu, “devem estar preparados para tentar método após método até achar aquele cujas respostas atendam melhor a seu objetivo”.
Iniciamos nossa conversa com uma discussão sobre o futuro das grandes cidades sob o comunismo. Eu queria ver até onde Lenin estava acompanhando a morte das cidades na Rússia. A desolação de Petersburgo me trouxe a compreensão de algo que eu nunca tinha me dado conta antes: que toda a forma e a existência de uma cidade são determinadas pelo comércio e pelo mercado, e que a abolição deles torna nove entre dez edifícios, em uma cidade comum, direta ou indiretamente sem significado ou sem uso. “As cidades ficarão muito menores”, ele admitiu. “Elas serão diferentes. Sim, bastante diferentes”. O que, eu sugeri, implicaria em um enorme desafio. Isto significaria riscar todas as cidades existentes e substituí-las. As igrejas e os grandes edifícios de Petersburgo se tornariam então como os de Novgorod o Grande (cidade russa) ou como os templos de Paestum (Grécia). A maioria das cidades se dissolveria. Ele concordou, bastante alegremente. Acho que o confortou achar alguém que entendesse a necessária consequência do coletivismo, o que até mesmo muitos de sua própria gente não conseguiam. A Rússia tem que ser reconstruída inteiramente, tem que se tornar uma nova coisa…
E a indústria também tem que ser reconstruída inteiramente?
Eu me dei conta do que já está acontecendo na Rússia? Da eletrificação da Rússia?
Lenin, que, como um bom marxista ortodoxo, rejeita todos os “utópicos”, sucumbiu afinal a uma utopia, à utopia dos eletricistas. Ele aposta suas fichas em um esquema de desenvolvimento de grandes estações de energia na Rússia para atender todas as províncias com luz, transporte e energia industrial. Dois distritos experimentais já foram eletrificados, ele disse. Alguém pode imaginar um projeto mais corajoso em uma terra enorme e plana, de florestas e camponeses ignorantes, sem energia hidráulica, e com o comércio e a indústria em seu último suspiro? Projetos de eletrificação parecidos estão em desenvolvimento na Holanda e estão sendo discutidos na Inglaterra e, nestes centros densamente povoados e industrialmente desenvolvidos, pode-se concebê-los como exitosos, econômicos e totalmente benéficos. Mas sua aplicação na Rússia representa um ganho ainda maior sobre a imaginação construtiva. Eu não consigo imaginar nada disso acontecendo nesta bola de cristal turva da Rússia, mas este pequeno homem no Kremlin pode; ele vê as decadentes ferrovias substituídas por um novo transporte elétrico, vê novas estradas se estendendo sobre o país, vê um novo e feliz comunismo industrial recomeçando. Enquanto conversávamos ele quase me persuadiu a compartilhar de sua visão.
“E você fará tudo isso com os camponeses fixados em sua terra?”
Mas não somente as cidades serão reconstruídas; toda a agricultura também será.
“Mesmo agora,” disse Lenin, “toda a produção agrícola da Rússia não vem dos camponeses. Nós temos agricultura em larga escala em alguns lugares. O governo já controla grandes propriedades com trabalhadores no lugar de camponeses, onde as condições são favoráveis. Isso pode ser ampliado, primeiro para outra província, e então para outra. Os camponeses em outras províncias, egoístas e ignorantes, não saberão o que está acontecendo até chegar sua vez…”
Pode ser difícil derrotar o campesinato russo em massa; mas por partes não há dificuldade. À menção dos camponeses a cabeça de Lenin chegou perto da minha; seu jeito de falar se tornou confidencial. Como se todos os camponeses pudessem ouvi-lo.
Não é apenas a organização material da sociedade que você tem de construir, argumentei, mas a mentalidade de todo o povo. Os russos são, por hábito e tradição, negociantes e individualistas; suas almas devem ser remodeladas para este novo mundo ser conquistado. Lenin me perguntou o que eu tinha visto do trabalho educativo que está sendo feito. Elogiei algumas das coisas que vi. Ele assentiu e sorriu com prazer. Tem uma confiança ilimitada em seu trabalho.
“Mas são apenas esboços e começos”, eu disse.
“Em dez anos volte e veja o que nós fizemos na Rússia”, ele respondeu.
(o escritor H.G.Wells em sua biblioteca)
Em Lenin eu me dei conta de que o comunismo podia ser, a despeito de Marx, enormemente criativo. Após estes fanáticos chatos da guerra de classes que encontrei entre os comunistas, homens previsíveis tão estéreis quanto o sílex, após numerosas experiências com o orgulho treinado e vazio do devoto homem marxista, este impressionante homenzinho, com sua franca admissão da imensidade e complicação do projeto do comunismo e sua singela concentração sobre a concretização dele, foi muito revigorante. Ele pelo menos tem a visão de um mundo transformado a planejar e construir de novo.
Ele queria mais das minhas impressões sobre a Rússia. Eu lhe disse que achei que em muitos lugares, e mais particularmente na Comuna de Petersburgo, o comunismo estava se impondo muito forte e rapidamente, e destruindo antes de estar pronto para reconstruir. Eles destruíram o comércio antes que estivessem prontos para o racionamento; a organização cooperativa foi  destroçada em vez de ser utilizada, e coisas assim. Isso nos trouxe à nossa diferença essencial, à diferença entre o coletivista evolucionário e o marxista, à pergunta se a revolução é, afinal, necessária, se é necessário destruir um sistema econômico completamente antes que um novo possa começar. Eu acredito que através de uma intensa campanha educativa o sistema capitalista existente pode ser civilizadoem um sistema coletivista mundial; Lenin, por outro lado, se prendeu anos atrás aos dogmas marxistas da inevitável guerra de classes, à derrota da ordem capitalista como prelúdio para a reconstrução, à ditadura do proletariado e coisas do gênero. Ele tinha que argumentar, portanto, que o capitalismo moderno é incuravelmente predatório, perdulário e impossível de reeducar, e que até que ele seja destruído irá continuar a explorar a humanidade estupidamente e sem rumo, que lutará e se prevenirá contra qualquer administração de recursos naturais que seja para o bem geral, e que, porque é essencialmente uma disputa, inevitavelmente fará guerras.
Eu era, admito, um osso duro de roer. De repente, ele sacou o novo livro de Chiozza Money, The Triumph of Nationalisation, que tinha evidentemente lido com muito cuidado. “Veja, se você começa a ter um bom trabalho de organização coletiva com interesse público, os capitalistas destroem de novo. Eles aniquilaram seus estaleiros nacionais; eles não irão deixar vocês trabalharem seu carvão economicamente”. Ele deu um tapinha sobre o livro. “Está tudo aqui”.
E contra o meu argumento de que as guerras vieram do imperialismo nacionalista e não da organizacão capitalista da sociedade ele saiu-se com esta: “Mas o que você pensa do novo imperialismo republicano que vem até nós da América?”
Aqui o Sr. Rothstein interveio em russo com uma objeção a que Lenin não deu importância.
E a despeito da súplica do Sr. Rothstein por reserva diplomática, Lenin continuou a explicar os projetos com os quais pelo menos um americano procurava deslumbrar a imaginação de Moscou. A assistência econômica para a Rússia e o reconhecimento do governo bolchevique. Uma aliança defensiva contra a intervenção japonesa na Sibéria. Uma estação naval na costa da Ásia, e arrendamentos a longo prazo, por 50 ou 60 anos, dos recursos naturais do Kamchatka e possivelmente de outras largas regiões na Rússia asiática. Bem, eu acho que isso seria para a paz? Não seria nada mais que o começo de um novo conflito mundial? O que achariam os imperialistas britânicos deste tipo de coisa?
Sempre, ele insistiu, o capitalismo compete e disputa. É a antítese da ação coletiva. Não pode evoluir para a unidade social ou mundial.
Mas alguma potência industrial poderia vir e ajudar a Rússia, eu disse. Ela não pode se reconstruir agora sem essa ajuda…
Nossos múltiplos argumentos findaram inconclusivamente. Nos despedimos de forma amistosa, e eu e meu colega fomos colocados para fora do Kremlin barreira após barreira, da mesma maneira como entramos.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Qual era a onda da Libelu?

Qual era a onda da Libelu?

Me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu
me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão
(Paulo Leminski, Para a liberdade e luta)
O nome é simpático. Lembra o apelido carinhoso de uma moça, a palavra amor em alemão, a corruptela de “libelo”, um poema concreto. Liberdade e Luta: Libelu. A corrente de inspiração trotskista seduziria centenas de jovens em meados da década de 1970, quando o movimento estudantil começava a renascer no Brasil, ainda durante a ditadura militar. Eu não alcancei a Libelu. Na minha época de estudante, mais de uma década depois, só havia duas opções: ser do PCdoB (Viração, a quem chamávamos, na Bahia, de “cururus”) ou anarquista. Gostei mais dos anarquistas, eram mais divertidos e não proibiam a maconha.
Curioso é que, se não conheci nenhum na faculdade, hoje em dia, para qualquer lado para onde olho, vejo um ex-Libelu –à esquerda, mas também à direita. Talvez você não saiba, mas pode haver um Libelu a seu lado neste momento, no jornalismo, nas trincheiras partidárias ou em uma atividade sem nenhuma relação com a política. O ex-ministro Luiz Gushiken, morto no dia 14 de setembro, foi da Libelu, assim como o também ex-ministro Antonio Palocci e Clara Ant, assessora de Lula. Markus Sokol, candidato à presidência na atual sucessão à direção nacional do PT, é outro ex-Libelu.
Na Folha de S.Paulo, onde trabalhei muitos anos, eu nem sabia, mas estava cercada por ex-militantes do braço estudantil da OSI (Organização Socialista Internacionalista), que tinha como um de seus dirigentes Luis Favre. Caio Túlio Costa, que foi secretário de redação e ombudsman do jornal, Matinas Suzuki, Laura Capriglione e Mario Sérgio Conti, entre outros, foram da Libelu. À frente da Folha em sua renovação, no início da década de 1980, Otavio Frias Filho empregou muitos militantes de esquerda no jornal, que tinha, talvez até por isso, um perfil muito menos conservador do que hoje. Além dos ex-Libelu, havia também, ocupando postos importantes na redação, ex-militantes do MR-8 e da Refazendo. Nesta época, a Folha, que apoiara o golpe militar, fez campanha pelas Diretas Já.
Por que havia tantos jornalistas na Libelu? Ao que tudo indica, porque a ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP estava tomada por eles. Caio Túlio, que deixou a militância ao sair da faculdade, em 1979, foi o responsável por levar muitos companheiros de tendência para a Folha. “O Otavio não era simpatizante da Libelu, mas gostava da ‘disciplina’ dos trotskistas. Ele era simpatizante da Vento Novo, uma corrente (de centro) que havia na São Francisco”, conta Caio Túlio. “Fui o primeiro Libelu contratado para começar a renovação do jornal, em 1981. E fui trazendo os melhores jornalistas que conhecia, o Matinas, o Conti (que estava confinado na Câmara dos Vereadores como setorista e eu trouxe para a Ilustrada e o Folhetim), o Rodrigo Naves, a Renata Rangel, o Zé Américo, a Cleusa Turra, o Bernardo Ajzenberg, o Ricardo Melo. Muita gente, não me lembro de todos… Cada um foi trazendo outros. Eram bons, muito bons.”
Com opiniões muitas vezes opostas hoje em dia, Paulo Moreira Leite, hoje na IstoÉ, e Miriam Leitão, comentarista do jornal O Globo, também foram Libelu –sobre Miriam, há controvérsias; há quem diga que era do PCdoB. Uma parte dos ex-Libelu acabaria descambando para a direita mais feroz, como o blogueiro da Veja Reinaldo Azevedo (que também trabalhou na Folha na fase Libelu) e o sociólogo e colunista do Estadão Demétrio Magnoli. Com o nascimento do PT, em 1979, a Libelu se dissolveu. Muitos dos seus quadros migraram para o partido, embora, num primeiro momento, tenham acusado o metalúrgico Lula de ser “pelego”. Alguns foram integrar a corrente O Trabalho com Sokol, e outros, como Palocci e Clara, ficaram no entorno de Lula na Articulação. Outros ainda, como os jornalistas citados, simplesmente deixaram a militância de esquerda.
A Libelu foi, de certa forma, uma corrente à frente de seu tempo. Primeiro por retomar o slogan “Abaixo a Ditadura” antes de todo mundo; depois, por criticar o autoritarismo e as barbaridades dos regimes comunistas muitos anos antes da queda do muro de Berlim ou da Perestroika. Trotskista, a OSI, a quem a Libelu era vinculada, já nasceu fazendo a crítica ao stalinismo. Apoiava os esforços de democratização do socialismo no Leste europeu, denunciou a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia e, mais tarde, fez campanha de apoio ao sindicato Solidariedade na Polônia. Sua visão era de que, sem uma revolução política na União Soviética, haveria uma regressão econômica, através da restauração do capitalismo. E não deu outra.
Apesar de trotskistas, os militantes da tendência não toleravam o culto à personalidade em figuras como o líder chinês Mao Tsé-Tung. “Os Libelu eram muito severos em relação a Mao, ao Livro Vermelho, à revolução cultural, ao culto à personalidade, ao autoritarismo, aos assassinatos etcétera e tal”, conta Caio Túlio Costa. “Mas teve um caso engraçado. Na tentativa de criticar o culto à personalidade, fizemos uma edição do (jornal) Avesso cuja capa era o Mao, num dos retratos do realismo socialista da época, grandão, o povo em reverência, abaixo, e inserimos uns versos de Neruda para distanciar o leitor: ‘Só o espanto era invisível, foi a proliferação daquele impassível retrato que incubou o desmedido’. Evidentemente que ninguém entendeu o espírito crítico atrás da foto e do poema, e a edição esgotou. Contrariamente a todos os nossos intentos, os maoístas fizeram da capa pôster de parede…”
hino da Libelu era uma versão da canção entoada no filme O Incrível Exército de Brancaleone, de Mario Monicelli, com uma sacada divertida: “Branca, Branca, Branca, Leon, Leon, Leon”. Em homenagem a, claro, Trotski. É difundidíssima a versão de que as festinhas da Libelu eram as mais animadas do movimento estudantil e com as garotas mais bonitas, e que havia uma certa liberação no que tange à maconha, ao contrário das demais tendências de esquerda do período. “A Libelu era um curioso e original amálgama político-comportamental, em que o trotskismo convivia com o rock, com o fuminho e com as meninas do pós-queima-dos-sutiãs”, escreveu Matinas Suzuki na Folha de S.Paulo em 1997.
Mas essa concepção festiva não encontra unanimidade entre outros ex-Libelu. “Isso é lenda. As festas da Refazendo eram tão boas quanto às da Libelu. Todos eram muito liberais quanto aos costumes. Não havia Aids. As pessoas estavam sempre muito juntas, fazendo política quase que 24 horas por dia! Eram poucos os que saíam para ‘a noite’. As festas eram nas casas ou repúblicas das mesmas pessoas”, conta Caio Túlio. “Droga era considerada ‘oficialmente’ alienante, mas muitos, muitos, a usavam. Não acredito que a Libelu fosse mais ou menos tolerante do que as outras correntes, onde sempre havia alguém que usava droga, em geral a maconha. Entre a liderança, no entanto, na Libelu, eram pouquíssimos os que usavam drogas.”
“Eu sempre brinco e digo que isto é ‘calúnia’ dos adversários. Fazíamos grandes festas públicas, sempre para arrecadar fundos para o grupo. Havia festas mais fechadas, mas longe do que o mito criou. Sobre os costumes, sim, éramos o grupo mais avançado. Havia respeito e luta pela igualdade de gênero, todos nos considerávamos feministas, defensores da livre orientação sexual”, diz Adeli Sell, ex-vereador do PT-RS e ex-Libelu. “A gente não tinha uma visão moralista do uso das drogas, a restrição era por conta da repressão, porque usando drogas era mais fácil ‘cair’. Até sem usar, muitas vezes a polícia enxertava drogas para uma prisão. Mas muita gente continuava ‘dando uns pegas’ em baseado. Nunca vi nem ouvi falar de outras drogas na época.”
“As festas eram boas, em primeiro lugar, porque os militantes eram jovens. Hormônios em altíssima voltagem, num ambiente de nenhum moralismo. Adversária do dirigismo cultural e de qualquer coisa que pudesse lembrar o chamado realismo socialista, a OSI/Libelu não estimulava o preconceito contra o rock, o que era muito frequente naquela época. O pessoal gostava de MPB e ouvia muita Rita Lee, Mutantes e mesmo sucessos estrangeiros. Havia espaço para Cartola e Paulinho da Viola, também. Certa vez, Baby Consuelo, em fase pré-pentecostal, naturalmente, foi a estrela de um dos shows promovidos pela Libelu. Mas ela não era simpatizante. Cobrou cachê”, conta um ex-militante que prefere se manter na clandestinidade até hoje. Segundo ele, a maconha não era nada tolerada e teve até dirigente expulso por ser flagrado puxando fumo. “Nunca se aceitou a noção da contracultura de que as drogas poderiam auxiliar na formação da consciência das pessoas. A visão era de que a consciência se forma por uma compreensão racional da política e da história. As drogas também eram consideradas portas de contato com a polícia e criminalidade, o que deveria ser evitado a qualquer custo.”
“As festas eram ótimas, sim. Nunca pensei que alegria e compromisso social fossem incompatíveis. Mas em outras organizações eram abominadas e seus militantes tinham vida de monastério”, lembra Luis Favre. “Diziam que as mulheres eram mais bonitas, mas o que em realidade acontecia é que elas tinham destaque na disputa política estudantil. Ao mesmo tempo, a juventude vivia sob o impacto do maio de 68 na França, da primavera de Praga, e a Libelu era das poucas que se identificava com ambos os processos, pois condenava não só o capitalismo, como aquele sinistro sistema pretensamente ‘socialista’.” Sobre as drogas, diz Favre, “a condenação era muito estrita na corrente trotskista. Não se brincava com isso, ainda mais no período militar”.
Pergunto aos ex-militantes algo que me deixa particularmente curiosa: como é que alguns membros da vanguardista Libelu foram parar na direita mais reacionária?
Paulo Moreira Leite:
– Acho que em anos recentes os grupos conservadores recrutaram militantes em todas as correntes da esquerda brasileira. Possivelmente por causa de seus laços com a ditadura, nossos conservadores nunca tiveram meios de formar seus próprios quadros civis para atuar numa democracia. O PPS, que era o antigo Partido Comunista, foi em bloco para a direita e hoje se dedica a combater o PT. É sua razão de ser. Muitos quadros do PSDB que fizeram a privatização de estatais no governo de Fernando Henrique Cardoso vieram da Ação Popular e do PCB. Você encontra antigos militantes da ALN de Marighella entre pessoas que são anti-petistas 24 horas por dia. Os principais dirigentes da OSI ajudaram a fundar o PT e quem continuou em sua atividade política na vida adulta continua neste partido. A organização teve uma divisão importante na década de 1980, quando eu já não era mais militante, mas todos ingressaram no PT. Antes, outros fundaram o PCO. Mas é certo que alguns quadros, que foram militantes na juventude, seguiram outra perspectiva na vida e se tornaram intelectuais orgânicos de grupos conservadores. Não vejo nada de muito especial nisso. Não foi a regra. Alguns casos você pode explicar pelos confortos que o conservadorismo pode proporcionar. Ele dá prestígio, promove as pessoas. Mas não só. O país se democratizou, o PT se consolidou. Ocorreram mudanças muito importantes no mundo, a começar pela queda do Muro de Berlim e tudo o que ela representou. Apareceram questões e desafios diferentes para todo mundo.
Adeli Sell:
– Bem, aqui em Porto Alegre tem um aguerrido militante que foi para posições bem à direita, como sei do caso do comentarista da Band. Mas de resto não sei se foram para a direita. Deve ter mais alguns, mas a maioria dos que conheço está no PT. Alguns foram para o PSOL, o que lastimo profundamente, pois foram estes quatro ou cinco militantes que foram fundamentais para a minha entrada na Libelu e minha formação política. Pelo que vejo aqui e dos que encontro espalhados pelo país, a maioria continua com posições avançadas, de esquerda, militando ativamente.
Luis Favre:
– Em todas as organizações juvenis encontramos casos de indivíduos que evoluíram para o extremo oposto de suas primeiras convicções. Mas, pelo contrário, o mais notável no caso da Libelu é que uma grande parte de seus quadros participaram e participam ainda hoje da CUT e do PT. E muitos dos que se afastaram da atividade militante ou política continuam do mesmo lado, em termos gerais, dos ideais que abraçaram na juventude. Encontrei muitos deles acompanhando e despedindo-se do nosso querido Luiz Gushiken.
Caio Túlio Costa:
– Não foram só integrantes da Libelu que mudaram de posição radicalmente na vida. Alguns ex-Libelu chamam a atenção porque eram todos jovens trotskistas, de extrema-esquerda, e se transformaram em pessoas bastante conservadoras. Acho que esses fenômenos fazem parte do movimento normal da vida; não me assusto com isso, não. A rigor, na realidade, veja bem, eles não mudaram, continuam extremistas…
Uma vez Libelu sempre Libelu? Há algo da corrente que permanece nos ex-militantes até hoje?
Caio:
– Em alguns, certamente. A formação política rigorosa (muita leitura, grupos de estudo, reuniões intermináveis, assembleias estudantis, luta política, alinhamento internacional, ceticismo em relação às instituições “burguesas”) deixa marcas profundas. Gushiken, por exemplo, ou alguns dos líderes de então, como o Markus Sokol ou o Julio Turra. Estes serão sempre Libelus autênticos.
Adeli:
– Tem uma liga, uma solidariedade, um profundo companheirismo, carinho, muitas e muitas identificações. Tanto é assim que pretendemos ainda neste ano fazer a grande festa da Libelu. Com a morte do Gushiken, todos impactados com a grande perda, achamos que devemos nos encontrar e festejar o que fizemos.
Luis:
– Uma parte importante da Libelu conseguiu superar suas limitações, sua estreiteza ideológica, seu sectarismo e intelectualismo, em parte desconectado da realidade, para, junto a outros militantes, de outras origens, com outra história, construir uma central sindical e um dos maiores partidos de esquerda do mundo. Ter contribuído um pouquinho no que essa central sindical e esse partido aportou ao progresso social do Brasil, já é fonte de satisfação para os que participamos dessa “nossa” história. Mudamos muito, sem mudar de lado.
Paulo:
– A militância politica é uma experiência única na existência, faz parte de sua memória para sempre. Acontece com a OSI ou outras organizaçãos. Ninguém passa impunemente por isso. Você entra em contato com forças absolutas, tem a nítida sensação, correta ou não, de que está mexendo na roda da história. Dedica as melhores horas de seu dia e possivelmente alguns dos melhores anos de sua vida para construir uma sociedade diferente. Os livros que você lê, os filmes que assiste e até seu trabalho como cidadão comum têm outro sentido. Hoje você pode até achar que estava sonhando, mas aquele momento foi maravilhoso. Os projetos podem ter dado errado, a vida pode ter tomado outro rumo e muitos amigos de antes até se mostraram uma decepção, mas você aprendeu ali algumas verdades que vão te acompanhar pelo resto da vida.
Este post é uma homenagem do blog a Luiz Gushiken (1950-2013), ex-Libelu, homem de esquerda honrado e bacana a quem a imprensa brasileira deve um pedido de desculpas por tê-lo acusado durante anos injustamente. RIP Gushi

Em BLOG

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Aprender com a intervenção pedagógica do mestre na escola no filme "Lev Vygotsky"

160913 vygostsky 2PGL - [José Paz Rodrigues] Junto com crianças e alunos, os mestres são o mais importante e fundamental que existe em aulas e escolas. Os seres humanos devem ter preferência sempre a edifícios, computadores, quadros digitais e todo o tipo de recursos didáticos. Todos os grandes pedagogos da história educativa mundial acreditavam que os bons mestres são impagáveis.


Nenhum país, por rico que seja, tem dinheiro suficiente para incentivar os bons docentes. E, que importante é ter bons mestres! Todos e todas podemos refletir no valiosos que foram para nós aqueles nossos mestres de primária, secundária e mesmo ensino superior. Para fazer-nos pessoas de proveito, para as nossas aprendizagens racionais, associativas, motóricas e apreciativas, para o nosso progresso social e para termos valores humanos. Cada um de nós pode refletir sobre aqueles docentes seus que foram importantes para a nossa educação. Porque, ademais de conhecimentos, souberam como ensiná-los e nos motivaram para o avanço no nosso ensino, e tinham verdadeiros valores como pessoas com senso ético, com sensibilidade, com alegria e com o seu apreço pela vida e pelos seus alunos.
Por tudo isto, temos que solicitar uma boa preparação psicodidática dos docentes, que nesta altura não há ou, se há, é muito deficiente. Em primeiro lugar, um plano de formação inicial dos professores adequado, motivador e fomentador da vocação docente. Porque a formação inicial é importantíssima e durante muitos anos no nosso país esteve, e continua a estar, abandonada, subvalorizada, mediatizada e desconsiderada. Bastaria, para melhorá-la, tomar como modelo o Plano Profissional de 1931, adaptando-o aos tempos atuais, que foi o melhor que tivemos, nunca superado. Também poderia valer, em certa maneira, o Plano de estudos de 1967, que, como o anterior, desgraçadamente pouco durou. Em segundo lugar, cumpre uma maior e melhor preocupação pela formação permanente ou em exercício dos docentes. Esta formação também é muito importante e hoje está muito esquecida, com falta de apoio e de regulação idónea. Pouco criativa e inovadora e excessivamente rotineira e aborrecida. Em âmbitos que necessitam com urgência de uma profunda renovação. Infelizmente, longe ficou a exemplar renovação pedagógica dos anos oitenta e noventa do passado século.
Numa conferência pronunciada em Bilbau, no ano 1905, por o para mim maior pedagogo da nossa história, Manuel Bartolomé Cossío, sob o título de “O mestre, a escola e o material de ensino”, ao final da mesma pronunciou umas formosas palavras, com atualidade profunda ainda hoje. Estas palavras foram: ”Concluo, pois, como ali terminava: formade mestres; aumentade os mestres; gastade, gastade nos mestres”. Por isto é muito grave a desconsideração que ultimamente existe sobre os docentes e o poupar dinheiro prescindindo nos estabelecimentos de ensino de mestres e professores. Os mestres são as verdadeiras “almas da escola”, em palavras precisamente dos grandes mestres institucionistas Giner e Cossío.
Para isso, nada como escutar Cossío, quando no mesmo livro antes citado, de forma maravilhosa e tão acertada diz: ”O primeiro material de ensino; o adequado em todo o caso, o que está sempre vivo, o que não se esgota jamais, é a realidade mesma, que generosamente se nos oferece” (…) Rompamos pois os muros da sala de aula. Levemos as crianças ao campo, ao obradoiro, ao museu, como tantas vezes se tem asseverado, ensinemos-lhes a realidade na realidade, antes que nos livros, e entrem na sala de aula só para refletir e para escrever, redigir e desenhar (…) O que é necessário para poder realizar esta escola, imagem da vida? Todos o compreendedes: fazem falta mestres. A eles há que atender antes que ao edifício escolar, como antes que ao material de ensino. Temos que formar bons mestres”.(...) Dade-me um bom mestre e ele improvisará o local da escola sem falta, ele inventará o material de ensino, ele fará que a assistência seja perfeita; mas dade-lhe à sua vez a consideração que merece...”
Ninguém pode duvidar da grande importância que tem para a nossa sociedade contar com bons docentes, com qualidades humanas positivas e bem preparados profissionalmente, nos campos da didática e da psicologia evolutiva e da educação. Quem tinha isto muito claro era o grande psicopedagogo russo Lev Vygotsky (1896-1934). O tema central das suas pesquisas e investigações psicoeducativas foi demonstrar a importância do labor do docente, se a sua intervenção pedagógica é acertada, para o avanço das aprendizagens dos escolares e para o seu desenvolvimento psicossocial. Com roteiro e apresentação da pedagoga Marta Kohl de Oliveira, a Atta Mídia e Educação do Brasil realizou em 2006 um interessante documentário sobre Vygotsky, que serve para centrar o presente artigo da série dedicada aos grandes educadores do mundo.
Ficha técnica do filme-documentário:
Título original: Lev Vygotsky.
Produtora: Atta Mídia e Educação (Brasil, 2006, 45 min., a cores e a preto e branco, documentário).
Editora: Paulus Editora. Coleção: Grandes Educadores.
Roteiro e Apresentação: Marta Kohl de Oliveira (Formada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da USP, fez mestrado e doutorado em Psicologia da Educação na School of Education da Stanford University (California, EUA). Autora de vários livros dedica-se à pesquisa e à docência no ensino superior. O pensamento de Lev S. Vygotsky tem sido importante suporte teórico para as suas pesquisas).
Argumento: Vygotsky preocupa-se em entender o funcionamento psicológico do ser humano, integrando aspetos biológicos e culturais. Com relação à educação, a teoria de Vygotsky enfatiza o papel da aprendizagem no desenvolvimento humano, valorizando a escola, o professor e a intervenção pedagógica. Talvez por isso, as suas ideias têm tido tanta repercussão entre os educadores do ocidente, apesar da sua distância no tempo e espaço (viveu na antiga União Soviética e faleceu há 79 anos). A produção de Vygotsky foi vasta: escreveu cerca de 200 trabalhos científicos que foram pontos de partida para inúmeros projetos de pesquisa posteriores, desenvolvidos pelos seus colaboradores e seguidores, e ainda centrais na agenda de psicologia da educação contemporânea.
Conteúdos do Documentário: Biografia de Vygotsky. Planos Genéticos. Mediação Simbólica. Pensamento e Linguagem. Pensamento Generalizante. Inteligências Prática e Abstrata. Fala Egocêntrica. Desenvolvimento e Aprendizagem. Jogo Simbólico. Visão Prospetiva. Zona de Desenvolvimento Proximal. Intervenção Pedagógica.


Vygotsky, psicopedagogo com ideias inovadoras:
A obra de Vygotsky ressalta o papel da escola no desenvolvimento mental das crianças e é uma das mais estudadas pela pedagogia contemporânea. Lev Semenovitch Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, pequena cidade perto de Minsk, a capital da Bielorrússia, região então dominada pela Rússia (e que só se tornou independente em 1991, com a desintegração da União Soviética, adotando o nome de Belarus). Os seus pais eram de uma família judaica culta e com boas condições económicas, o qual permitiu a Vygotsky uma formação sólida desde criança. Ele teve um tutor particular até entrar no curso secundário e dedicou-se desde cedo a muitas leituras. Aos 18 anos matriculou-se no curso de medicina em Moscova, mas acabou cursando direito. Formado, voltou a Gomel, na Bielorrússia, em 1917, ano da revolução bolchevique, que ele apoiou. Lecionou literatura, estética e história da arte e fundou um laboratório de psicologia, área em que rapidamente ganhou destaque, graças à sua cultura enciclopédica, o seu pensamento inovador e a sua intensa atividade, tendo produzido mais de 200 trabalhos científicos. Em 1925, já sofrendo da tuberculose que o mataria em 1934, publicou A Psicologia da Arte, cuja origem é a sua tese de mestrado. Lev Vygotsky faleceu em 1934, mas a sua obra ainda está em pleno processo de descoberta e debate em vários pontos do mundo, incluindo o Brasil e a Europa.
Em menos de 38 anos de vida, Vygotsky conheceu momentos políticos drasticamente diferentes, que tiveram forte influência no seu trabalho. Nascido sob o regime dos czares russos, Vygotsky acompanhou de perto, como estudante e intelectual, os acontecimentos que levaram à revolução comunista de 1917. O período que se seguiu foi marcado, entre outras cousas, por um clima de efervescência intelectual, com a abertura de espaço para as vanguardas artísticas e o pensamento inovador nas ciências, além de uma preocupação em promover políticas educacionais eficazes e abrangentes. Logo após a revolução, Vygotsky intensificou os seus estudos sobre psicologia. Visitou comunidades rurais, onde pesquisou a relação entre nível de escolaridade e conhecimento e a influência das tradições no desenvolvimento cognitivo. Com a ascensão ao poder de Josef Stalin, em 1924, o ambiente cultural ficou cada vez mais limitado. Vygotsky usou a dialética marxista para a sua teoria de aprendizado, mas a sua análise da importância da esfera social no desenvolvimento intelectual era criticada por não se basear na luta de classes, como se tornara obrigatório na produção científica soviética. Em 1936, dous anos após a sua morte, toda a obra de Vygotsky foi censurada pela ditadura de Stalin e assim permaneceu por 20 anos. "Ele foi um pensador complexo e tocou em muitos pontos neurálgicos da pedagogia contemporânea", diz a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Teresa Rego.
A parte mais conhecida da extensa obra produzida por Vygotsky em seu curto tempo de vida converge para o tema da criação da cultura. Aos educadores interessa em particular os estudos sobre desenvolvimento intelectual. Vygotsky atribuía um papel preponderante às relações sociais nesse processo, tanto que a corrente pedagógica que se originou do seu pensamento é chamada de socioconstrutivismo ou sociointeracionismo. Por serem muito significativas as suas palavras, escolhi aquelas frases e treitos das mesmas para que os educadores e docentes possam refletir sobre elas: "O saber que não vem da experiência não é realmente saber". "O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa por outra pessoa". “ Uma palavra que não representa uma ideia é uma cousa morta, da mesma forma que uma ideia não incorporada em palavras não passa de uma sombra”. “Ao brincar, a criança assume papéis e aceita as regras próprias da brincadeira, executando, imaginariamente, tarefas para as quais ainda não está apta ou não sente como agradáveis na realidade”. “As maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo, aquisições que no futuro se tornarão o seu nível básico de ação real e moralidade”. “O único “bom aprendizado” é o que é para o avanço do desenvolvimento”. “ A estrutura da língua que uma pessoa fala influencia a maneira com que esta pessoa percebe o universo”. “Através dos outros, nos tornamos nós mesmos”. “ O voluntariado, mais do que as atividades altamente intelectuais, diferenciam o homem dos animais mais próximos dele”.
Várias das suas obras foram publicadas na nossa língua nos últimos anos. Entre elas quero destacar aquelas que têm mais interesse para os professores:Construção do Pensamento e da Linguagem (2011); Desenvolvimento Psicológico na Infância (1999); Estudos sobre a História do Comportamento (1997); Formação Social da Mente (1999); Imaginação e Criação na Infância. (2009); Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (1988); Pensamento e Linguagem (1987); Psicologia Pedagógica (2003) e Teoria e Método em Psicologia (2004).

A mediação pedagógica, básica para a aprendizagem:
Os estudos de Vygotsky sobre aprendizado decorrem da compreensão do homem como um ser que se forma em contacto com a sociedade. "Na ausência do outro, o homem não se constrói homem", escreveu o psicopedagogo. Ele rejeitava tanto as teorias inatistas, segundo as quais o ser humano já carrega ao nascer as caraterísticas que desenvolverá ao longo da vida, quanto as empiristas e comportamentais, que veem o ser humano como um produto dos estímulos externos. Para Vygotsky, a formação dá-se numa relação dialética entre o sujeito e a sociedade ao seu redor, ou seja, o homem modifica o ambiente e o ambiente modifica o homem. Essa relação não é passível de muita generalização; o que interessa para a teoria de Vygotsky é a interação que cada pessoa estabelece com determinado ambiente, a chamada experiência pessoalmente significativa. Segundo ele, apenas as funções psicológicas elementares se caracterizam como reflexos. Os processos psicológicos mais complexos, ou funções psicológicas superiores, que diferenciam os humanos dos outros animais, só se formam e se desenvolvem pelo aprendizado. Entre as funções complexas se encontram a consciência e o discernimento. "Uma criança nasce com as condições biológicas de falar, mas só desenvolverá a fala se aprender com os mais velhos da comunidade", diz. Outro seu conceito-chave é a mediação. Segundo a teoria vygotskiana, toda relação do indivíduo com o mundo é feita por meio de instrumentos técnicos, como, por exemplo, as ferramentas agrícolas, que transformam a natureza, e da linguagem, que traz consigo conceitos consolidados da cultura à qual pertence o sujeito.
Todo aprendizado é necessariamente mediado, e isso torna o papel do ensino e do professor mais ativo e determinante do que o previsto por Piaget e outros pensadores da educação, para quem cabe à escola facilitar um processo que só pode ser conduzido pelo própria aluno. Segundo Vygotsky, ao contrário, o primeiro contacto da criança com novas atividades, habilidades ou informações deve ter a participação de um adulto. Ao internalizar um procedimento, a criança "se apropria" dele, tornando-o voluntário e independente.
Desse modo, o aprendizado não se subordina totalmente ao desenvolvimento das estruturas intelectuais da criança, mas um se alimenta do outro, provocando saltos de nível de conhecimento. O ensino, para Vygotsky, deve antecipar-se ao que o aluno ainda não sabe nem é capaz de aprender sozinho, porque, na relação entre aprendizado e desenvolvimento, o primeiro vem antes. É a isso que se refere um dos seus principais conceitos, o de zona de desenvolvimento proximal, que seria a distância entre o desenvolvimento real de uma criança e aquilo que ela tem o potencial de aprender, potencial que é demonstrado pela capacidade de desenvolver uma competência com a ajuda de um adulto. Em outras palavras, a zona de desenvolvimento proximal é o caminho entre o que a criança consegue fazer sozinha e o que ela está perto de conseguir fazer sozinha. Saber identificar essas duas capacidades e trabalhar o percurso de cada aluno entre ambas são as duas principais habilidades que um professor precisa ter, segundo Vygotsky.
Como Piaget, Vygotsky não formulou uma teoria pedagógica, embora o pensamento do psicólogo bielorusso, com a sua ênfase no aprendizado, ressalte a importância da instituição escolar na formação do conhecimento. Para ele, a intervenção pedagógica provoca avanços que não ocorreriam espontaneamente. Ao formular o conceito de zona proximal, Vygotsky mostrou que o bom ensino é aquele que estimula a criança a atingir um nível de compreensão e habilidade que ainda não domina completamente, "puxando" dela um novo conhecimento."Ensinar o que a criança já sabe desmotiva o aluno e ir além de sua capacidade é inútil", comenta a professora Teresa Rego, interpretando a Vygotsky. O psicólogo considerava ainda que todo aprendizado amplia o universo mental do aluno. O ensino de um novo conteúdo não se resume à aquisição de uma habilidade ou de um conjunto de informações, mas amplia as estruturas cognitivas da criança. Assim, por exemplo, com o domínio da escrita, o aluno adquire também capacidades de reflexão e controle do próprio funcionamento psicológico.

O seu conceito de zona de desenvolvimento proximal:
A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) é um conceito elaborado por Vygotsky, e define a distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado pela capacidade de resolver um problema sem ajuda, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através de resolução de um problema sob a orientação de um adulto (normalmente o docente) ou em colaboração com outro companheiro. Quer dizer, é a série de informações que a pessoa tem a potencialidade de aprender mas ainda não completou o processo, conhecimentos fora do seu alcance atual, mas potencialmente atingíveis. Segundo isto, o indivíduo não pode construir conhecimento novo sem uma estrutura, um fundamento, de aprendizagem prévia. Lev Vygotsky diz que o indivíduo não pode transpor um expediente de aprendizagem sem algum conhecimento anterior cognitivamente relacionado, a fim de conectar e suportar a nova informação.
Vygotsky descreve dois níveis de desenvolvimento, denominados desenvolvimento real e desenvolvimento potencial. O desenvolvimento real é aquele que já foi consolidado pelo indivíduo, de forma a torná-lo capaz de resolver situações utilizando o seu conhecimento de forma autônoma. O nível de desenvolvimento real é dinâmico, aumenta dialeticamente com os movimentos do processo de aprendizagem. O desenvolvimento potencial é determinado pelas habilidades que o indivíduo já construiu, porém, encontram-se em processo. Isto significa que a dialética da aprendizagem que gerou o desenvolvimento real, gerou também habilidades que se encontram em um nível menos elaborado que o já consolidado. Desta forma, o desenvolvimento potencial é aquele que o sujeito poderá construir.
A ZDP muitas vezes é tomada como um dos níveis de desenvolvimento, porém, trata-se precisamente do campo intermediário do processo. Sendo o desenvolvimento potencial uma incógnita, já que não foi ainda atingido, Vygotsky postula sua identificação através do entendimento da ZDP. Tomando como premissa o desenvolvimento real como aquilo que o sujeito consolidou de forma autónoma, o potencial pode ser inferido com base no que o indivíduo consegue resolver com ajuda. Assim, a zona proximal fornece os indícios do potencial, permitindo que os processos educativos atuem de forma sistemática e individualizada.
Temas para refletir e realizar:
Depois de ver o documentário, organizar um debate-papo ou tertúlia, sobre os diferentes aspetos que sobre a figura de Lev Vygotsky aparecem no mesmo. Refletir sobre o seu pensamento psicoeducativo e comentar, dando alternativas concretas, sobre como se poderia pôr em prática hoje nas nossas escolas a sua didática prática, apresentada na famosa ideia de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Poderia pesquisar-se também na Internet sobre as experiências realizadas em diferentes escolas seguindo as suas ideias, entre elas o antigo método denominado “lancansteriano” e os sistemas didáticos de “ensino mútuo”, assim como sobre as suas interessantes e numerosas publicações, editadas postumamente.
Elaborar uma monografia, procurando informações em livros e na Internet, sobre as suas ideias mais importantes, e entre elas a da ZDP. Com fotos, textos, cartazes, retalhos de imprensa e materiais elaborados, poderia organizar-se nas escolas uma magna exposição sobre o modelo pedagógico proposto por ele.
Escolher uma, para lê-la entre todos, das obras básicas, e de maior aplicação à Didática nas aulas, escritas por Vygotsky, publicadas na nossa língua, escolhida entre as citadas antes, para comentá-la e debater sobre as palavras, ideias educativas e propostas práticas que o psicopedagogo bielorusso faz na mesma.

José Paz Rodrigues Académico da AGLP, Didata e Pedagogo Tagoreano.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Medicina cubana...


'Não há dengue em Cuba'

A médica cubana Ceramides Almora Carbonell, 42 anos, falava emocionada da recepção calorosa dos brasileiros, quando concedeu entrevista à Carta Maior nos corredores da Fiocruz, em Brasília, onde médicos brasileiros e estrangeiros que irão atuar no Programa Mais Médicos participam de um curso de formação. Na entrevista à Carta Maior, ela fala sobre sua experiência como médica e sobre a situação da saúde em seu país. Por Najla Passos.

Brasília - A médica cubana Ceramides Almora Carbonell, 42 anos, ainda falava emocionada da recepção calorosa dos brasileiros, quando a encontrei nos corredores da Fiocruz, em Brasília, onde médicos brasileiros e estrangeiros que irão atuar no Programa Mais Médicos participam de um curso de formação. Ela nasceu em Guane, um pequeno município de 35 mil habitantes na província de Pinar del Rio, famosa pela produção dos charutos cubanos. Aos 5 anos, mudou-se para a capital, onde cursou o estudo básico e médio. Com 17 anos de prática médica e experiências internacionais em Honduras e Bolívia, está divorciada há dois anos e não possui filhos. Decidi iniciar por aí nossa entrevista.

- É mais fácil deixar seu país quando não se tem marido e filhos?, questionei.

“Não tenho marido e filhos, mas tenho família: pai, mãe, irmão. Mas mesmo meus colegas que têm filhos, não temem deixá-los porque sabem que, em Cuba, eles serão muito bem assistidos, terão acesso gratuito à educação e saúde de qualidade. Além disso, os colegas médicos que permanecem na ilha criam uma espécie de rede de solidariedade para atender as famílias dos que estão fora. Nossos companheiros policlínicos visitam nossas famílias e cuidam para que sejam assistida nas suas necessidades. Eles ligam para meus pais, visitam minha casa e, assim, posso viajar tranquila”, explicou. 

- Seus pais também são médicos?

“Não. Eles são professores, já aposentados".

- E seu irmão, é médico?

“Não, eletricista. Sou a única médica da família”.

- E como você decidiu fazer medicina?

"Em Cuba, as escolas promovem ciclos de interesse que vão combinando as coisas que você gosta desde pequena. Por exemplo, vão bombeiros, professores, esportistas e vários outros profissionais, dentre eles os médicos. Isso para formar, desde pequeno, conhecimento sobre todas as áreas. Eu sempre gostei sempre da medicina. No ensino médio, participei do ciclo de interesse de cirurgia experimental e, depois, ainda participei do ciclo de medicina geral e integrada, ainda em Pinar Del Rio. Depois passei pela faculdade de medicina, seis anos de muito estudo. Era um período muito duro. Mas consegui nota máxima em todas as disciplinas. Em seguida, prestei os dois anos de serviço social obrigatório em Guane".

- Você voltou a sua cidade natal para clinicar?

"Sim, é uma cidade muito pequena, mas gosto muito de trabalhar lá".

- Não fez nenhuma especialização?

"Depois do serviço social, fiz três anos de especialização em medicina geral e integrada, como todos os médicos cubanos que vieram para o Brasil. Seria o equivalente, aqui no Brasil, a medicina familiar, que ensina ver a pessoa no seu conjunto. Fiz a especialização em dois níveis. Sou mestre em Procedimento e a Diagnósticos Primários de Atenção à Saúde".

- E como você aprendeu o português?

Meu pai morou na Guiné Bissau por um ano e se apaixonou pelo idioma. Ele me ensinava desde que eu era bem pequena. 

- Você disse que, em Cuba, os estudantes escolhem fazer medicina por vocação. No Brasil, os cursos de medicina são os mais caros, nas universidades particulares, e os mais concorridos, nas universidades públicas e, com isso, acaba que praticamente só os mais ricos, que têm como pagar uma educação de maior qualidade, conseguem acesso a eles.

"Em Cuba, a oportunidade é a mesma para todos os cubanos. Primeiro, não há classes sociais diferentes. Todos somos iguais. Não há discriminações por sexo ou raça. Sou mulher, sou mulata, mas estou aqui como todos os outros companheiros da brigada."

- Os brasileiros têm muita dificuldade em entender como vocês podem vir para cá sem receber o mesmo salário pago aos demais profissionais que integram o programa, como vocês aceitam que parte dos seus salários seja retida pelo governo. Como você vê isso?

"Eu conheço essa polêmica capitalista. É que vocês não entendem que nós não trabalhamos por dinheiro, mas por solidariedade, humanismo. O comandante Fidel Castro, nosso líder nacional e também latino-americano e mundial, tem uma frase que diz que “ser internacionalista é saldar nossa própria dívida com a humanidade”. E nós carregamos esse conceito em nosso coração. Desde pequenos, já aprendemos sobre internacionalismo, solidariedade, honradez, bondade, profissionalismo. Eu acho até que o povo cubano não poderia viver sem esses conceitos, que estão na base da sua cultura. Como diz nossa ministra da Saúde, temos um recurso muito grande, que é nosso próprio conhecimento e o amor do nosso povo por outros povos irmãos".

- Você falou que já esteve em outras missões internacionais...

"Sim, trabalhei por dois anos na Bolívia, em Potosí, o departamento mais pobre do país. Um lugar cheio de riquezas, mas onde o povo é muito pobre.
Também atuei em Três Cruzes, uma aldeia muito pequena e pobre. Lá, eu tive o prazer de trabalhar muito e conseguir inaugurar um hospital. Em Honduras, trabalhei em Nova Esperança, em municípios muito pobres.

- E, nesses locais, vocês tinham acesso a equipamentos, infraestrutura e tecnologia para atender adequadamente os pacientes? 

"Não. Nós trabalhávamos com o método clínico. Nós examinávamos os pacientes. Tocávamos as pessoas, conversávamos com os doentes. A falta de tecnologia não é problema para mim e nem para a brigada cubana, que trabalha muito com este método. E é com isso que esperamos melhorar muito a saúde do seu povo. Muitos países não têm dinheiro para pagar a tecnologia avançada. Sei usar um ultrassom, mas pratico muito o método clínico". 

- Outra crítica das entidades médicas brasileiros é que, em Cuba, por conta do longo embargo econômico, o acesso à tecnologia é muito restrito, o que provoca uma defasagem na formação dos médicos e os impossibilita de atuar adequadamente no Brasil. Você concorda com isso?

"Cuba é um país pobre e bloqueado, mas nossos indicadores de saúde são excelentes. E isso não tem a ver com muita tecnologia. Estamos entre os cinco países com menor índice de mortalidade infantil: menos de 4,5 por mil nascidos vivos. Isso é graças ao nosso esforço, porque estudamos muito, investimos em pesquisas, praticamos muito o método clínico, e isso faz a diferença. Também temos uma vigilância epidemiológica muito boa, fundamental para todos. E a saúde cubana é multissetorial: até a população participa. A dengue, por exemplo, é uma doença transmissível. Se o governo não educa sua população, todos morremos. 

- Há dengue em Cuba?

"Não, não há. Eu citei a dengue porque é uma doença comum no Brasil. Já atendi muitos pacientes com dengue, mas em Honduras. Não em Cuba, que temos uma vigilância epidemiológica forte. E nem na Bolívia, porque atuei no altiplano, onde é muito frio".

sábado, 24 de agosto de 2013

O analfabeto politico e o midiático: coisas em comum

O pior analfabeto é o analfabeto midiático


Bancada do Jornal Nacional (Divulgação)

Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões do jornalista Celso Vicenzi em torno de poema de Brecht, no século 21

Celso Vicenzi, no Outras Palavras / Pragmatismo Político

“Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.

Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.

Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.

O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com umaimagem). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.

O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”

O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.

Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.



O analfabeto político

O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.

Bertold Brecht