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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

“A solução de dois Estados não traz justiça ao povo palestino”, defende Jamal Juma’


“A solução de dois Estados não traz justiça ao povo palestino”, defende Jamal Juma’

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Aos 50 anos, Jamal Juma’ vive em uma vila de Jerusalém, onde nasceu, e propaga a campanha por boicote, desinvestimentos e sanções a Israel pelo mundo | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Débora Fogliatto e Samir Oliveira no SUL21
O ativista palestino Jamal Juma’ é um dos fundadores do movimento Stop The Wall, criado em 2002 com o objetivo de impedir a conclusão da muralha erguida por Israel na Cisjordânia, isolando o povo palestino em suas próprias terras. Além disso, Jamal também organizou uma série de comitês populares de resistência na Palestina e é defensor da campanha por boicote, desinvestimentos e sanções ao Estado de Israel(conhecida pela sigla BDS).
No dia 16 de dezembro de 2009, Jamal Juma’ foi detido pelo Exército israelense. Sem acusações formais contra ele, foi mantido preso até o dia 12 de janeiro de 2010 e sua libertação ocorreu graças a uma campanha internacional de pressão sobre o governo de Israel.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Jamal Juma’ entende que os comitês populares de resistência são um mecanismo para pressionar inclusive a Autoridade Nacional Palestina a não fazer novas concessões a Israel | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Jamal Juma’ esteve em Porto Alegre na semana passada para participar das atividades do Fórum Social Temático (FST). Na quinta-feira (23), o ativista visitou a redação do Sul21 e falou sobre o momento atual da luta pela soberania Palestina contra a ocupação de seus territórios por Israel.
Ele acredita que uma solução de dois Estados – em que coexistiram os Estados da Palestina, ainda não existente, e de Israel – não traz justiça a seu povo e é encarada como uma grande concessão. “Claramente Israel não deseja a criação de um Estado Palestino. Yasser Arafat fez uma concessão e abriu mão de 78% de nossas terras históricas por isso, e eles não aceitaram. Eles ainda querem perseguir o que nos sobrou. Eles tornaram essa solução impossível”, reflete.
Para Jamal, as condições sob as quais vive o povo palestino fazem com que uma terceira intifada possa ocorrer a qualquer momento. Nesta entrevista ao Sul21, ele fala sobre a situação dos prisioneiros políticos palestinos em Isarel, sobre o papel do Brasil na pressão pela criação do Estado Palestino e sobre o processo cotidiano de resistência às ocupações territoriais.

”Estamos lutando contra poderes globais maiores que nós, que querem que nossa região seja fragmentada”

Sul21 – Quando tu começaste o teu ativismo pela causa palestina?
Jamal Juma’ – É uma boa pergunta. Como qualquer palestino, eu nasci em uma situação de estar cercado por pontos de controle, de voltar da escola e ver os soldados israelenses batendo nos nossos pais, entrando nas nossas casas e tomando nossas terras. É isso o que significa uma ocupação. Ocupação é o confisco da vida e da liberdade. Nós não somos mais livre, nos tornamos reféns dos ocupantes. Quando eu estava na escola, os soldados sempre solicitavam minha identidade nos pontos de controle. O documento de identidade é algo muito importante.
Não podemos sair de casa sem a identidade que os ocupantes nos dão. Sem ela, não somos nada e devemos ser punidos ou ir para a cadeia. É claro que um adolescente não entende completamente o que isso significa… Até ser golpeado duramente no rosto por não ter esse documento. Mas os adolescentes não entendem porque estão apanhando. Então um dia eu reagi aos soldados que me batiam por causa disso. Seis ou sete soldados me bateram durante quase todo o dia. Esse foi um evento marcante na minha vida.
Sul21 – Quantos anos você tinha?
Jamal – Eu tinha 16 anos. Eles se concentram nas crianças e nos adolescentes. Eles querem nos quebrar. Eles querem matar a nossa dignidade. Mas acontece que isso tem um efeito contrário. Quando somos agredidos em nossa dignidade, isso nos abre os olhos e passamos a pensar: por que eu deveria aceitar isso? Então os palestinos têm resistido à ocupação geração após geração.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Vamos continuar lutando até que conquistemos os direitos que nos foram roubados” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
As gerações de 1967 e de 1948 passaram por grandes catástrofes. Em 1948, 85% do nosso povo foi expulso do país e 550 das vilas e cidades foram implodidas. Foi um dos maiores processos de limpezas étnica que aconteceu a um povo no último século – e vem acontecendo até hoje. Tem gente que ainda está vivendo em favelas e em campos de refugiados, esperando retornar para suas casas, que foram destruídas. É por isso que nossa luta tem que continuar. Estamos lutando pelo direito de retorno do nosso povo, que sofre há gerações. É uma luta por auto-determinação, por liberdade, para viver normalmente como qualquer pessoa no mundo. Por não ter que acordar com comboios militares em frente às nossas casas. E vamos continuar lutando até que conquistemos os direitos que nos foram roubados.
O problema da luta palestina não é isolado, se tornou central. Israel foi um Estado criado pelas forças coloniais após a Primeira Guerra Mundial. Isso ocorreu para que o colonialismo fosse mantido, para que os recursos de uma população inteira pudessem ser controlados. É essa ocupação que estamos sofrendo e ela é apoiada pelas maiores forças imperialistas do planeta. Foi apoiada pelos britânicos na sua criação e, após a Segunda Guerra, passou a ser aliada dos Estados Unidos. Esse país colonial (Israel) é muito importante para poderes colonialistas maiores no mundo. É por isso que Isarel tem sido colocado acima da legislação internacional em todas as esferas. Nunca Israel foi punido por qualquer crime, ainda que cometa crimes todos os dias. Nunca houve sanções ou julgamentos nas cortes internacionais. É por isso que digo que a luta palestina não é qualquer luta. Estamos lutando contra poderes globais maiores que nós, que querem que nossa região seja fragmentada e não apoie as lutas uns dos outros. Por isso que as potências ocidentais apoiaram ditadores no Oriente Médio, como o que aconteceu nas ditaduras da América Latina.

”Esse tipo de muro representa claramente um sistema colonial e de Apartheid”

Sul21 – Tu coordenaste um processo de criação de comitês populares de resistência na Palestina. Como funcionam esses comitês?
Jamal – Esses comitês começaram a ser criados imediatamente após Israel iniciar a construção do muro, em 2002. A idéia é baseada em como podemos nos organizar para reagir à opressão, à colonização e ao confisco de terras. É um tipo de ativismo que vem direto das vilas e das comunidades afetadas. Em alguns casos, envolve os agricultores afetados pela tomada de suas terras. Em outros casos, envolve organizações da juventude. A criação desses comitês não foi uma idéia sensacional que surgiu de um dia para o outro. É algo baseado em nossa história. Na primeira intifada, os comitês populares foram um dos principais agentes envolvidos nas ações de rua. E eram clandestinos, o que era muito perigoso, porque se você fosse considerado um líder, era preso. Isso se tornou uma experiência para nós, que foi repassada adiante por ativistas que participaram das intifadas. Então, quando começamos a organizar o movimento de resistência ao muro, queríamos construir um movimento político semelhante. Em períodos em que a situação se agrava, vemos que algumas instituições não dão as respostas que queremos. Temos os partidos políticos e a Autoridade Nacional Palestina, que começaram a adotar políticas neoliberais e se coordenar com o nosso ocupante. Então esses grandes desafios requerem que estejamos organizados para que sejam enfrentados. É por isso que precisamos continuar nos organizando nesses comitês e de todas as formas possíveis.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Israel enjaula pessoas, controla suas vidas, em pleno século 21″ | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Quantos comitês existem atualmente?
Jamal – Dividimos os comitê em comitês distritais. No início, quando começamos, cada vila tinha seu comitê. Em dois anos, tínhamos 54 comitês e não conseguíamos gerenciar tudo. Então começamos a estabelecer comitês centrais nas cidades, e hoje temos dez comitês centrais. Desses dez comitês, são eleitos representantes para nossa assembléia geral. Essa assembléia é responsável por direcionar as políticas do movimento. Nosso trabalho, em geral, é coordenado com o trabalho internacional e com a solidariedade internacional. Devemos essa conexão à campanha do Stop The Wall.
Na primeira e na segunda intifada, a organização e o apoio internacionais não eram tão fortes. Quando começamos a campanha do Stop The Wall, era claro para nós que não poderíamos dar um foco maior à luta interna ou à mobilização internacional: os dois aspectos precisam andar juntos. O muro é uma coisa completamente esquisita, e a comunidade internacional percebe isso. Israel enjaula pessoas, controla suas vidas, em pleno século 21. Isso nos lembra de todos os piores momentos da história da colonização no mundo. Esse tipo de muro representa claramente um sistema colonial e de Apartheid. A solidariedade internacional que recebemos é baseada no que houve na África do Sul. O Apartheid não é algo aceitável.

”Foi necessário destruir a infraestrutura palestina para construir esse projeto colonial massivo”

Sul21 – Você ainda acredita que uma solução de dois Estados seja possível, mesmo após a construção do muro?
Jamal – A solução de dois Estados não traz justiça ao povo palestino. Sinceramente, os palestinos têm encarado a solução de dois Estados como uma grande concessão. O povo palestino não encontramos uma maneira de trazer solidariedade e fazer a questão palestina avançar, então aceitou essa solução e se sacrificou desta forma, como Yasser Arafat (líder palestino, primeiro presidente da Organização para a Libertação da Palestina, falecido em 2004), que dedicou sua vida e reputação a isso. Grandes líderes no mundo, como Mandela, Fidel Castro, Gandhi, se sacrificaram para chegar a uma solução para seus povos. Mas isso não funciona com Israel. Porque claramente Israel não deseja a criação de um Estado Palestino. Yasser Arafat fez uma concessão e abriu mão de 78% de nossas terras históricas por isso, e eles não aceitaram. Eles ainda querem perseguir o que nos sobrou. Eles tornaram essa solução impossível. É preciso que você vá até lá para entender o que estou dizendo.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Começaram a construir o muro em junho de 2002, com 250 tratores e ao mesmo tempo, sem notificar ninguém” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Colocaram um muro em volta de todo um povo, com postos de controle que controlam a nossa movimentação. E atrás desse muro estão os recursos, que são colocados à disposição dos assentamentos, das colônias israelenses. Eles constroem tantas colônias quanto podem. Quando Israel fragmenta os palestinos em guetos, lhes tira os recursos e os transfere aos seus assentamentos. Cria, também, um sistema de Apartheid de estradas. Estão inclusive criando rotas alternativas que conectam os guetos palestinos, para os separarem das colônias. Quando menciono o muro e as estradas do Apartheid, me refiro também às indústrias. Depois de pegarem nossa água e nossa terra, como vamos sobreviver? Os palestinos precisam de uma zona industrial para se manter. Isso significa que querem transformar todo um povo em escravos em suas zonas industriais, para resolver o problema dos sionistas. Como esse sistema sobrevive? Não sei como a existência desse sistema é aceita pelo mundo.
Sul21 – Qual foi a reação do povo palestino quando o muro começou a ser construído? Havia informações a respeito das intenções de Israel?
Jamal – Antes de construir o muro, em março de 2002, Israel invadiu cidades palestinas na Cisjordânia e destruiu a infraestrutura de todas as cidades que estavam sob o traçado do muro. Cometeram massacres como o de Jenin. Ao mesmo tempo, isolaram vilas e desconectaram estradas que as uniam. Cidades que eram separadas por 40 km de estrada e levavam uma hora de trajeto passaram a demandar nove horas, por causa dos postos de controle e dos bloqueios nas estradas. Eles tornaram nossa vida muito difícil. Ao mesmo tempo, começaram a construir o muro. Foi necessário destruir a infraestrutura palestina para construir esse projeto colonial massivo. Começaram a fazer isso sem nenhuma resistência popular, sem avisar às pessoas. Começaram a construir o muro em junho de 2002, com 250 tratores ao mesmo tempo, sem notificar ninguém. Israel não contava que isso viraria uma grande questão, que haveria uma decisão da Corte Internacional de Justiça assegurando que o muro é ilegal. Isso veio da nossa resistência.

“Às vezes, eles deixam o prisioneiro sair da cadeia e andar cerca de cem metros para depois o prender de volta”

Sul21 – Tu disseste antes que Israel nunca sofre sanções. Como a Justiça e a comunidade internacional podem agir então?
Jamal – Isso não significa que a legislação internacional seja ruim ou que não possa ser usada. É que depende da luta das pessoas. Em alguns momentos, nem os países amigos defendem Israel. É o que vem acontecendo hoje em dia. Eles não podem defender mais, e Israel não pode continuar desafiando todo o mundo e simplesmente abusar dos direitos das pessoas. Mesmo os amigos mais próximos de Israel começaram a colocar algumas sanções. De uma forma ou de outra, países da Europa estão tratando de diretrizes em relação aos assentamentos e isso está preocupando Israel. É como se esses países dissessem que não podem defender Israel para sempre. Mas as populações desses países precisam travar suas próprias lutas internas neste tema, assim como ocorreu na África do Sul. Sem essa movimento anti-apartheid que começou no mundo, as coisas não teriam mudado no regime sul-africano. Com a pressão interna, os Estados não tiveram saída a não ser adotar sanções. Essas lutas internas forçarão o poder político dos países a tomar uma atitude.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Israel tem bem presente em sua mente o que houve com a África do Sul” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Tu avalias que isso está progredindo em países estratégicos para Israel, como os Estados Unidos? Recentemente, a Associação Americana de Estudos aderiu à campanha de BDS.
Jamal – É isso que faz Israel entrar em pânico. Até nos Estados Unidos a campanha de BDS está crescendo. O mesmo ocorre na Europa. Com o crescimento disso, Israel tem bem presente em sua mente o que houve com a África do Sul. Se acompanharmos a agenda dos políticos israelenses, quase todos os dias há debates, e há notícias nos jornais de como eles estão temendo ser isolados, como lidarão se a situação ficar como na África do Sul. Coisas como o muro não podem ser toleradas para sempre, especialmente com um governo criminoso de extrema-direita como o que comanda Israel atualmente – e que também reflete uma grande parte de sua sociedade.

”Em um mês (na prisão), perdi dez quilos. Quando fui sair, quase não consegui andar, estava tonto, porque não via o sol há um mês e comia muito mal”

Sul2 – Tu foste preso por Israel em 2009 sem acusações e foste solto um mês depois, após uma grande campanha internacional pela tua libertação. Como foi esse momento da tua vida?
Jamal – Eles realmente não tinham nenhuma acusação. Tentaram criar algumas coisas como parte de uma táticapara tentar me quebrar. É isso que eles fazem com os prisioneiros. Mas, de certa forma, quando os confrontamos, não nos escondemos. Vivo dizendo: “sou contra o seu colonialismo, contra sua ocupação, contra seu racismo, contra destruir as terras das pessoas”. Então eles tentaram criar alguma acusação.
A solidariedade e a compreensão internacional colocaram um fim a isso. Se não fosse por isso, nada poderia ter impedido que me mantivessem preso. Existe um sistema de detenção em que Israel pode nos prender por seis meses, sem nenhuma acusação e sem nos levar a julgamento. E eles têm o direito de renovar isso toda vez que quiserem. Alguns palestinos ficam presos por oito anos assim, porque a cada seis meses eles renovam a detenção. Às vezes, eles deixam o prisioneiro sair da cadeia e andar cerca de cem metros para depois o prendem de volta. É também um tipo de tortura. Imagine ser um prisioneiro, estar contando os dias para sair e, no último dia dos seis meses, eles te deixam caminhar poucos metros para te prender de novo? E você então começa a contar desde o início. Eles fazem isso três, quatro vezes, até que se passem anos.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Infelizmente as pessoas não estão tão cientes do quanto é importante lutar pelos prisioneiros palestinos em Israel” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
No meu caso, me transferiram para a detenção, mas a pressão internacional e as campanhas que questionavam o governo cresceram muito. Se fossem me manter na cadeia por seis meses, não sabiam o quanto essa resistência poderia crescer. Internamente, as pessoas começaram a se envolver: organizações de direitos humanos, ativistas israelenses e palestinos, membros palestinos do governo israelense… Então isso se tornou um grande problema e foi melhor para eles se livrar disso, me deixando sair. Desde então, os palestinos começaram a se mobilizar mais em torno do tema das detenções e a ir aos julgamentos, questionar os israelenses a cada prisão que ocorre, especialmente entre a resistência popular.
Sul21 – Há ainda muitos palestinos presos? Qual a situação deles?
Jamal – Os palestinos detidos nas prisões israelenses estão sofrendo cada vez mais. Algumas pessoas estão na cadeia há mais de 30 anos. Apenas agora os israelenses estão começando a negociar suas libertações. Pelo menos 104 prisioneiros estavam na cadeia por mais de 25 anos. Há prisioneiros que estão doentes e apodrecendo na cadeia, morrendo aos poucos. Não é oferecido nenhum tratamento a eles. Essa tortura não é apenas para os prisioneiros, mas também para suas famílias e para nossa sociedade. Há muitas crianças nas cadeias, e não é assim em nenhum outro lugar do mundo. Qualquer prisioneiro que eles não consigam tirar nenhuma confissão, levam para a detenção.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Estamos falando de 4 mil a 5 mil pessoas(palestinos presos em Israel)” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Existe outra coisa que é o isolamento. Não há nada pior do que isolar alguém, deixar alguém em uma sala de 2m² completamente sozinho. Eu estive nessa situação por um mês, mas há prisioneiros palestinos que passam seis meses nessa situação. No isolamento, não vemos pessoas e não conversamos com ninguém. Ficamos numa sala minúscula falando sozinhos. Isso destrói a pessoa, é terrível. E isso eles fazem com quem querem interrogar. Eles não nos batem, mas tudo foi pensado para nos destruir. Até a própria sala é bastante assustadora, há uma luz amarela que fica ligada 24 horas por dia, e há dois buracos de ventilação: um para o ar entrar e outro para o ar sair. Na ventilação por onde o ar entra, eles ficam alternando entre ar quente e frio a cada hora. Os colchões são de plástico, com cinco centímetros de espessura, e os cobertores nunca são lavados. Não podemos tapar o corpo inteiro por causa do cheiro. E não podemos dormir, porque a cada hora eles contam (a quantidade de prisioneiros).
Para realizar a contagem, abrem abrem a portinha de ferro da cela, olham para dentro e fecham de novo. Quando se bate uma porta pesada numa cela minúscula, o barulho é horrível. Em um mês nessa situação, perdi dez quilos. Quando fui sair, quase não consegui andar, estava tonto, porque não via o sol há um mês e comia muito mal. Não posso imaginar como é manter alguém em uma situação assim por seis meses.
O que está acontecendo nas cadeias é horrível, e infelizmente as pessoas não estão tão cientes do quanto é importante lutar pelos prisioneiros palestinos em Israel. Eles não cometeram nenhum crime, são lutadores pela liberdade, todos eles. E estamos falando de 4 mil a 5 mil pessoas. Até hoje, 800 mil palestinos já foram presos em Israel.
Sul21 – Os palestinos são presos em prisões separadas das dos presos israelenses?
Jamal – Sim. Elas são chamadas de prisões de segurança máxima, nos consideram mais perigosos.

“Quando um israelense que vive em uma colônia mata um palestino, consideram que foi autodefesa. Mas uma criança palestina jogando pedras é presa por seis meses”

Sul21 – Quais as acusações que caem sobre os prisioneiros palestinos? Vocês se referem a eles como prisioneiros políticos?
Jamal – Sim, são prisioneiros políticos. As acusações variam, às vezes acusam as pessoas de serem parte de partidos políticos ilegais, ou acusam de jogar pedras nos soldados israelenses, ou nas pessoas que vivem nas colônias israelenses nos territórios palestinos. Há muitas acusações, como carregar pedras e coquetéis molotov, ou participar de manifestações – o que já consideram um crime. Quando falamos sobre o sistema de Justiça em Israel, precisamos mencionar que quando um israelense que vive em uma colônia mata um palestino, ele não é questionado, ele pode ir para casa. Porque eles sempre consideram que foi autodefesa. Mas uma criança palestina jogando pedras é presa por seis meses.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Ver a forma como Israel usa o Brasil para vender seus produtos e armas é muito triste” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – Como tu vês o papel do Brasil nessa situação? Tu achas que a campanha de BDS pode crescer no Brasil e na América Latina?
Jamal – Precisa crescer. Consideramos que nosso maior apoio deveria vir das pessoas no hemisfério sul, pessoas que conhecem o colonialismo, que já passaram pela mesma luta. Vemos agora que a Europa – que criou Israel e é a terra do colonialismo – está aplicando sanções a Israel, e ao mesmo tempo vemos que há acordos econômicos entre países como o Brasil e Israel. Isso é um absurdo, não pode ser aceito. Isso não é o que se espera desses países, que tomem o lado do imperialismo, que apoiem esse país criminoso. Sabemos muito bem que Israel teve um papel na ditadura argentina e ajudou a preparar militares em muitos países na América Latina, apoiando ditaduras.
É inacreditável que Israel diga hoje em dia que sua alternativa comercial é a América Latina. Vocês (latino-americanos) são nossos companheiros, nossos amigos. Eu me sinto relaxado e bem quando estou aqui. Mas ver a forma como Israel usa o Brasil para vender seus produtos e armas é muito triste. Israel está nos matando. As armas que a América Latina compra são testadas em seus irmãos palestinos. A América Latina ser o segundo maior mercado para armas israelenses não é aceitável. Estamos esperando muito do Brasil. Exigimos muito de quem amamos e de quem temos altas expectativas. É nossa responsabilidade, como movimento palestino, nos unirmos aos movimentos brasileiros contra essa ocupação.

“É inacreditável que Israel diga hoje em dia que sua alternativa comercial é a América Latina”

Sul21 – O governo brasileiro oficialmente apoia a criação de um Estado palestino, mas tu achas que o país tem tomado ações concretas para que isso se torne possível?
Jamal – O governo brasileiro não é ruim neste sentido: apoia a causa palestina e está disposto a trabalhar em negociações. O Brasil tem tido um papel muito importante em impulsionar a criação de um Estado palestino. Mas ainda não temos um Estado. Então há muito ainda a ser feito para que isso ocorra. É preciso se levantar contra Israel, impor sanções, pressioná-los, boicotá-los , até convencê-los de que isso não é aceitável.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Há muita raiva dentre os palestinos pelo fato de Israel continuar construindo colônias ilegais mesmo com o início das negociações” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Há algumas coisas difíceis de superar, como o tipo de acordo econômico e militar que o Brasil tem com Israel. Isso é realmente ruim. É preciso tempo para que isso acabe. Mas o mais importante é começar e pensar em alternativas. É isso que os brasileiros precisam fazer. Às vezes, eu penso que o Brasil é como um continente. É um país muito grande. E quem é Israel perto do Brasil? Há um peso no Brasil que não deveria permitir que o país fosse chantageado e subordinado às coisas horríveis que Israel tem feito, permitindo que sua reputação seja destruída. Não queremos permitir isso, por isso precisamos conversar com os brasileiros. Isso beneficiaria vocês também, porque a história dirá o que aconteceu.
Sul21 – Qual a situação política atual na Palestina? O Hamas (que governa a Faixa de Gaza) e a Autoridade Palestina (que governa a Cisjordânia) estão entrando em algum acordo?
Jamal – Acho que a coisa mais importante são as tentativas de negociação com Israel, mediadas pelos Estados Unidos. Eu diria que 2014 será um ano determinante, porque os palestinos foram pressionados pelos Estados Unidos a voltar a negociar com Israel. E há muita raiva dentre os palestinos pelo fato de Israel continuar construindo colônias ilegais mesmo com o início das negociações. Eles ainda evacuam comunidades, destroem casas, invadem lugares sagrados. Há várias coisas que essa negociação não tem conseguido impedir. Nos últimos cinco meses, foi autorizada a construção de dez mil casas em colônias ilegais.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Temos todas as razões do mundo para que isso aconteça(uma terceira intifada)” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Parece que os Estados Unidos estão participando das negociações porque querem ter algum sucesso no Oriente Médio, após o que aconteceu no Egito e na Síria. A Palestina é central para a região, se eles alcançassem algum tipo de sucesso, isso daria uma boa reputação para eles. Então o que querem fazer é forçar os palestinos a aceitaram um acordo que beneficia apenas Israel. Eu não acho que a Autoridade Palestina se atreveria a fazer esse tipo de concessão, a não lutar pelos direitos do nosso povo. Estamos falando de refugiados: 70% dos palestinos são refugiados. Quem está autorizado a abrir mão deles? Quem vai aceitar que façam concessões da terra de Jerusalém, das terras já colonizadas por Israel? Se Mahmoud Abbas e a Autoridade Palestina fizerem isso, estarão colocando um alvo neles próprios.
Por isso eu digo que esse ano será importante, porque não importa o que aconteça nas negociações, isso pode levar a uma nova intifada. Isso será decidido dependendo da situação política. De qualquer forma, dá para ver que as ruas estão em ebulição. Isso pode levar à explosão que estamos esperando.

“Qualquer coisa pode deflagar uma terceira intifada. Esse não é o fim da luta palestina”

Sul21 – Então tu achas que uma terceira Intifada pode acontecer? 
Jamal – Nós temos todas as razões do mundo para que isso aconteça. Nada melhorou, as colonizações israelenses se tornaram piores, a situação econômica não é boa. Nós não vemos uma saída, a frustração só cresce. E isso vai levar a uma explosão, cedo ou tarde.
Pode acontecer a qualquer momento, e o estopim pode ser qualquer incidente. A segunda intifada começou quando Ariel Sharon (ex-primeiro-ministro de Israel, na época líder da oposição israelense e considerado criminoso de guerra pelos palestinos) foi até a mesquita de Al-Aqsa; e a primeira intifada começou quando um caminhão israelense atropelou seis trabalhadores palestinos. Então qualquer coisa pode deflagar uma terceira intifada. Esse não é o fim da luta palestina. Depois de todos esses anos, todos esses sacrifícios, vimos que nada melhora.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Resistência Palestina


Globo, os palestinos não se veem por aí


Globo, os palestinos não se veem por aí. 19582.jpeg 
Em 19 de dezembro, foi ao ar na chamada "novela das oito" da TV Globo, intitulada "Amor à vida", uma cena que não deixa dúvidas a quem serve a emissora: aos interesses hegemônicos e ao império. A telenovela líder da audiência em âmbito nacional, seguida pelo Jornal Nacional, apresentou na trama um romance entre um palestino, Pérsio (Mouhamed Harfouch), e uma judia, Rebeca (Paula Braun). No capítulo em questão, o primeiro deles declara que pertenceu a uma "célula terrorista" e se diz arrependido: "Eu queria ser um homem bomba.
Achava que era um sacrifício justo pela causa do meu povo. Só não fui porque eu sou filho único, a minha mãe me procurou, insistiu demais pra eu desistir. Mas eu ajudei a organizar um atentado. Um amigo meu, um amigo próximo, foi o homem bomba. Ele entrou num ônibus em Jerusalém e explodiu, matando muita gente. Mulheres, crianças... crianças como o seu irmãozinho, RebecaEu me senti culpado, quando vi o seu irmão, quando falei com a sua família. Eu percebi que a guerra, o terrorismo, atinge pessoas indefesas, crianças. Vendo aquele menino sorrindo, eu percebi que um dia eu quis atacar crianças como ele. Como eu posso dizer que aquele menino é meu inimigo?." Alguns capítulos depois, no dia 30, em uma nova conversa, Rebeca se recusa a falar com Pérsio, a não ser profissionalmente, pelo que ele quis fazer com "seu povo". E em cena no dia 7 de janeiro último, a personagem busca conselhos junto a um rabino, já que teria se apaixonado por "um árabe, um palestino", pertencente a um "grupo terrorista".
O diálogo que inaugura essa farsa é permeado por desinformação, distorção e manipulação da verdade. Rebeca chega a afirmar que há muitos casais judeus e palestinos em Israel, como conviria a qualquer estado democrático. A verdade é que a própria convivência está comprometida.
 
O apartheid imposto aos palestinos impede até que vivam no mesmo bairro. Alguém poderia afirmar que conhece um caso assim na atualidade. Mas não é essa a regra. Os palestinos que vivem onde hoje é Israel (território palestino até 1948, ano da criação desse estado como exclusivamente judeu) são considerados cidadãos de segunda ou terceira categoria, discriminados cotidianamente - há 30 leis racistas contra essas pessoas, que lhes impedem ter os mesmos direitos.
Há dezenas de aldeias em que vivem que sequer são reconhecidas por Israel, o que significa que não lhes são assegurados serviços essenciais, como fornecimento de eletricidade, água, educação e saúde de qualidade.

Quem é o terrorista?
Em 1948, ano que na memória coletiva árabe é conhecido como "nakba", a catástrofe, foram expulsos de suas terras e propriedades cerca de 800 mil palestinos e aproximadamente 500 aldeias foram destruídas para dar lugar a Israel. Massacres exemplares são hoje comprovados. Os palestinos, desumanizados desde o início desse projeto de limpeza étnica e colonização de suas terras, não foram apagados da história graças a sua resistência - apresentada na telenovela da Globo como terrorismo. Resistência reconhecida pelo direito internacional como legítima diante da ocupação.
Ademais, os chamados atentados com homens bomba, atos desesperados perante o silêncio do mundo e a falta de alternativas, há muito foram abandonados. A contextualização histórica sobre o terror de Estado que fabricou esses "homens bomba", durante um tempo determinado, ficou fora da telinha. Assim como os contínuos ataques israelenses, que atingem sobretudo crianças e mulheres, com tecnologias de última geração vendidas depois ao mundo. Os laboratórios humanos em que se transformaram os palestinos no shopping center que se converteu Israel à venda de suas parafernálias militares também não encontraram lugar no diálogo que foi ao ar na "novela das oito".
O autor de "Amor à vida", Walcyr Carrasco, reforçou, assim, mitos que são denunciados pelo historiador israelense Ilan Pappe em seu artigo "Os dez mitos de Israel". Entre eles, de que a luta palestina não tem outro objetivo que não o terror e que Israel é "forçado" a responder à violência. Segundo ele, a história distorcida serve à opressão, à colonização e à ocupação. "A ampla aceitação mundial da narrativa sionista é baseada em um conjunto de mitos que, ao final, lançam dúvidas sobre o direito moral palestino, o comportamento ético e as chances de qualquer paz justa no futuro. A razão é que esses mitos são aceitos pela grande mídia no Ocidente e pelas elites políticas como verdade."
O Brasil não é exceção. Na contramão da campanha global por boicotes ao apartheid israelense, o governo federal se tornou nos últimos anos o segundo maior importador de tecnologias militares da potência que ocupa a Palestina e porta de entrada dessa indústria à América Latina. E sua cumplicidade com a opressão, ocupação e apartheid a que estão submetidos os palestinos é justificada a milhares de espectadores desavisados da novela da Globo, através de um discurso que reproduz a versão falsificada da história e se fortalece perante a representação orientalista - em que os árabes seriam "orientais" bárbaros e atrasados, ante cidadãos pacíficos e civilizados, segundo explicita o intelectual palestino Edward Said em seu livro "Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente".

Democratização já!
Num cenário de concentração midiática, preconceitos como esse - não são os únicos - são especialmente graves. Assim como é bastante preocupante que o tradicional show natalino do cantor Roberto Carlos, exibido na mesma emissora ao final de 2013, tenha sido patrocinado pela marca Café Três Corações, que tem como acionista majoritária uma empresa israelense cuja colaboração com a opressão em terras palestinas já foi amplamente denunciada.
Apesar do crescimento acentuado de usuários da internet - que chegaram à marca de 94,2 milhões ao final de 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) -, a maioria da população brasileira ainda se informa sobretudo pela TV, presente em 96,9% dos domicílios, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). Enquanto a propaganda nesse meio é o principal impulsionador ao consumo, programas de entretenimento como as telenovelas igualmente moldam comportamentos, conceitos e ideias. E a produção desses encontra-se nas mãos de apenas seis famílias, detentoras das concessões públicas que lhes garantem espaço para difundir livremente preconceitos e falsificações históricas. Outorgas concedidas muitas vezes ao arrepio das leis vigentes, renovadas pelo governo brasileiro sem qualquer critério para garantir a pluralidade e diversidade na produção cultural.
Para transformar a realidade, é fundamental reforçar a luta pela democratização das comunicações e denunciar essas distorções que grassam na TV brasileira. É importante se somar às vozes que, nas manifestações de junho de 2013, protestaram contra o monopólio da mídia e elegeram para tanto o lema: "Globo, a gente não se vê por aqui".

Soraya Misleh* é jornalista, membro da diretoria do ICArabe, da Ciranda Internacional da Informação Independente e do Mopat (Movimento Palestina para Todos)

Fonte: Correio ICAbare

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Dachau, a memória como antídoto contra a barbárie




Najla Passos no CARTA MAIOR
Najla Passos

Dachau - No momento em que o Brasil começa a discutir a pertinência de se criar ou não centros de memória para garantir às novas gerações o conhecimento histórico sobre as barbáries cometidas pela ditadura, um olhar sobre o tratamento destinado pelos alemães aos horrores nazistas pode ser revelador. Lá, como cá, o acerto de contas com o passado está longe do fim, embora infinitamente mais avançado, com julgamentos e prisões em larga escala já efetuados. Mas lá, ao contrário de cá, o resgate da memória é cobrança social, é política de estado, é fato consumado.




 
Lá, como cá, ninguém tem dúvidas que seja difícil ensinar aos jovens que o mundo não é um conto de fadas como pode fazer crer as histórias de reis e rainhas. Mas o fato é que lá, ao contrário de cá, os mesmos adolescentes que visitam o castelo do louco rei Ludovico – aquela obra prima da arquitetura que inspirou Walt Disney a criar o da sua Cinderela - também são estimulados, inclusive por excursões escolares do sistema público de educação, a conhecerem memoriais como o do Campo de Concentração de Dachau, pequeno município de cerca de 40 mil habitantes, a 15 Km de Munique, capital da Baviera, no Sul da Alemanha.

A visita não é fácil. Por isso, os sobreviventes e familiares das vítimas que compõem o comitê gestor do memorial não a indicam para menores de 12 anos e estimulam que as excursões escolares ocorram apenas para maiores de 14. Além dos estudantes, turistas de todas as partes do mundo visitam o local. Segundo os administradores, Dachau recebe, em média, 900 pessoas por dia. Há mapas, placas explicativas e áudio-guias em nove diferentes línguas. No cineteatro construído na antiga sede administrativa, um documentário sobre o campo é exibido em quatro línguas alternadas, com legendas em outras três. Na livraria do memorial, há livros, panfletos, estudos acadêmicos e vídeos em diversos idiomas.
 
Uma biblioteca com 14 mil títulos e um arquivo público com documentos, fotos e relíquias também estão abertos à consulta pública. Só sai de lá sem informação quem quiser. 


Campo modelo

O campo de concentração da cidade de Dachau foi o primeiro inagurado pelos nazistas, em março de 1933, apenas seis semanas após Hitler chegar ao poder e, com o discurso de combater o avanço do comunismo, suspender as liberdades individuais e dar início ao seu estado policialesco. Posteriormente, serviu de modelo para os outros 44 construídos na Alemanha e nos países ocupados. Por ele passaram quase 200 mil prisioneiros. Nos primeiros anos, eles eram os presos políticos que se levantaram contra o nazistas: comunistas, socialdemocratas e sindicalistas, judeus ou não, além de sacerdotes cristãos e testemunhas de Jeová.

 
Em seguida, vieram os classificados como “antissociais”: homossexuais, ciganos, criminosos comuns. Só depois de 1938, com o início do programa genocida batizado de “Solução final”, os judeus começaram a chegar em grande número: foram 11 mil só no primeiro ano. Com a sobrecarga, as péssimas condições de sobrevida no campo tornaram-se ainda mais duras: originalmente construído para seis mil prisioneiros, chegou a abrigar 30 mil ao mesmo tempo.

Não havia espaço para quem não estava apto ao trabalho escravo necessário para o sustento da máquina de guerra de Hitler: prisioneiros em condições precárias de saúde, enfermos graves e pacientes psiquiátricos, eram imediatamente enviados a outros campos onde o extermínio em massa era prática institucionalizada. Mas em Dachau também se morria fartamente. Há registros de 41,5 mil mortes por execução, castigo extremo, desnutrição, fadiga, tifo. E são números parciais: não há informação suficiente, por exemplo, de quantos oficiais soviéticos foram executados ali.

O pequeno crematório instalado em 1938, com um forno, funcionava quase que ininterruptamente e, ainda assim, não dava vazão aos corpos abatidos no campo.
 
Em 1940, foi instalado um maior, equipado com quatro fornos e com uma câmara de gás, disfarçada de chuveiro. Ainda assim, quando os aliados libertaram os 30 mil prisioneiros que sobreviveram ao regime nazista, três mil corpos em estado avançado de decomposição se acumulavam em caminhões. A cena registrada em fotos e filme é uma das mais fortes do documentário.

Visita ácida

O nó no estômago já se instala no antigo portão que dá acesso campo, onde a inscrição “O trabalho liberta” parece afrontar à vida e à história. Dentro da grande área cercada por arame farpado, valas e sete torres de guarda, o clima parece mais frio do que os termômetros são capazes de registrar. Já no início do inverno, o dia amanhece tarde com uma fina camada de gelo cobrindo todo o espaço externo. Impossível acreditar que seres humanos descalços, inadequadamente vestidos e mal alimentados pudessem sobreviver ali por muito tempo. Mais: que ainda conseguissem vencer os trabalhos forçados ou as experiências “científicas” a que eram submetidos.


Na grande área principal do campo, funcionava a administração, em prédio hoje transformado em museu. Mais adiante, 36 galpões abrigavam os prisioneiros, divididos por categorias. Os 2,7 mil sacerdotes de 20 países ali detidos ficavam em galpões específicos. Só os alemães tinham autorização para celebrar a eucaristia.
 
Os de outras nacionalidades, se pegos exercendo sua fé, eram imediatamente executados. Presos políticos e comuns, ciganos, homossexuais, judeus dividiam os outros prédios e trabalhavam na construção de estradas e na indústria bélica. Para isso, outros 36 subcampos de trabalho foram construídos nas imediações de Dachau. O envolvimento da cidade com o extermínio está fartamente documentado no museu do campo.

As condições dos alojamentos eram as piores possíveis. Destruídos pelas tropas aliadas, eles foram reproduzidos em duas unidades idênticas às originais: banheiros coletivos que desrespeitavam qualquer vestígio de crença no caráter humano dos prisioneiros, além de quartos gelados e tão desconfortáveis que mais pareciam poleiros para criação de aves. A alimentação fornecida consistia em sopa rala uma vez ao dia. O índice de morte por desnutrição era altíssimo. Nos últimos anos, o tifo também dizimou muitas vidas.

Do lado esquerdo da cerca de arame farpado, separada do campo principal por um rio gelado, ficava a área do crematório, o chamado Galpão X, operado pelos próprios prisioneiros. Era nesta área que ocorriam também as execuções dos aliados capturados, incluindo os oficiais soviéticos e as mulheres do batalhão britânico que saltaram de paraquedas para ajudar a resistência francesa a lutar contra o nazismo.

Não há registro de que a câmara de gás tenha sido usada em Dachau para assassinatos em grande escala, embora os historiadores não descartem a possibilidade de que tenha sido utilizada para testes do sistema amplamente adotado em outros campos. A propaganda nazista, fartamente documentada no memorial, chega ao extremo de alegar que o crematório foi construído posteriormente pelas tropas aliadas para acusar os oficiais da SS de crimes contra a humanidade. Depoimentos dos sobreviventes e documentos históricos resgatados desmentem a tese.

Vítimas, imprensa e classe médica

O prédio da administração, hoje transformado em museu, se propõe a reconstruir não só a memória das vítimas, com documentos, fotografias e objetos pessoais, mas também a recriar as condições históricas em que o nazismo se implantou na Alemanha. Merece destaque o acerto de contas com a imprensa que, por motivação ideológica, poder, dinheiro ou tudo isso junto, apoiou o regime de Adolf Hitler. São inúmeros os jornais propagadores dos ideais e das mentiras nazistas recuperados e registrados ali, para que ninguém jamais se esqueça.

 Também há farto material sobre as experiências científicas que usaram seres humanos como cobaias, resultando em muitas mortes e nenhuma descoberta digna de nota. Assim como os jornalistas, a classe médica que compactuou com tamanha barbárie também não passa impune à memória histórica ali bem resgatada. Prisioneiros eram submetidos à descompressão, hipotermia, perda de sangue e quaisquer outras técnicas que ajudassem a ciência nazista a detectar os níveis de resistência humana em condições extremas. O objetivo era aplicá-las na guerra, em favor do exército alemão. Também eram cobaias em testes de medicamentos contra a tifo e a malária, por exemplo, que dizimavam as tropas. Muitos morreram assim. Outros ficaram incapacitados para sempre.

Resgate da memória

O memorial do campo foi inaugurado em 1965, por iniciativa dos seus sobreviventes e familiares, reunidos em um movimento que, em uma tradução livre, foi batizado de “Para que não se esqueça”. O governo da Baviera, que havia recuperado a área do campo após o fim da guerra, investiu os recursos necessários. Na memorial, foram construídos diversos monumentos às vítimas, criados por artistas europeus, como o iugoslavo Nandor Glid, que assina uma escultura onde cospos esquálidos se amontoam, erguida em frente ao antigo prédio administrativo. Há também quatro templos religiosos: um católico, um judaico, um ortodoxo russo, um luterano e outro ecumênico.

Ao longo dos anos, as instalações foram sendo aprimoradas e o acervo histórico, ampliado. Ciganos e homossexuais, preteridos em um primeiro momento, também conquistaram seus espaços. Após o término dos 486 julgamentos em tribunais militares e com o avanço das pesquisas acadêmicas sobre o período, a história pode ser melhor contada. Até hoje, nem todos os detalhes tenham sido reconstituídos, mas as pesquisas continuam.

As visitas são gratuitas. A administração cobra apenas pequenas taxas para os interessados em áudio-guias (de 2,5 a 3 euros) ou visitas guiadas (3 euros). Grandes grupos, escolares ou turísticos, pagam 70 euros por visitas guiadas personalizadas. Os sobreviventes que administram o memorial o definem como “espaço de educação cívica”. Mas quem visita Dachau sabe que ele é muito mais do que isso: no mínimo, um local para reflexão do quanto é necessário preservar a memória da barbárie como forma de vacinar as novas gerações contra sua possível reincidência.


Créditos da foto: Najla Passos