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terça-feira, 13 de novembro de 2012

Zumbi Vive!

Escrito por Mario Maestri no CORREIO DA CIDADANIA  

Em 20 de novembro de 1695, Nzumbi dos Palmares caía lutando em mata perdida do sul da capitania de Pernambuco. Seu esconderijo fora revelado por lugar-tenente preso e barbaramente torturado. Mutilaram seu corpo. Enfiaram seu sexo na boca. Expuseram a cabeça do palmarino na ponta de uma lança em Recife. Os trabalhadores escravizados e todos os oprimidos deviam saber a sorte dos que se levantavam contra os senhores das riquezas e do poder.
***
Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Nordeste, os lusitanos lançaram expedições para repovoar os engenhos com os cativos fugidos ou nascidos nos quilombos da capitania. Para defenderem-se, as aldeias quilombolas confederaram-se sob a chefia política do Ngola e militar do Nzumbi. A dificuldade dos portugueses de pronunciar o encontro consonantal abastardou os étimos angolanos nzumbi em zumbi, nganga nzumba, em ganga zumba. A confederação teria uns seis mil habitantes, população significativa para a época.

Em novembro de 1578, em Recife, Nganga Nzumba rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia oferecida apenas aos nascidos nos quilombos, em troca do abandono dos Palmares e da vil entrega dos cativos ali refugiados ou que se refugiassem nas suas novas aldeias.

Acreditando nos escravizadores, Ganga Zumba deu as costas aos irmãos de opressão e aceitou as miseráveis facilidades para alguns poucos. Abandonou as alturas dos Palmares pelos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros de Serinhaém. Foi seduzido por lugar ao sol no mundo dos opressores, pelas migalhas das mesas dos algozes.

Então, Nzumbi assumiu o comando político-militar da confederação.

Para ele, não havia cotas para a liberdade ou privilegiados no seio da opressão! Exigia e lutava altaneiro pelo direito para todos!

Não temos certeza sobre o nome próprio do último nzumbi que chefiou a confederação após a defecção de Nganga Nzumba. Documentos e a tradição oral registram-no como Nzumbi Sweca.
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Nos derradeiros ataques aos Palmares, as armas de fogo e a capacidade dos escravistas de deslocar e abastecer rapidamente os soldados registravam o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais do escravismo, apoiadas na superexploração dos trabalhadores feitorizados. As tropas luso-brasileiras eram a ponta de lança nas matas palmarinas da divisão mundial do trabalho de então.

Não havia possibilidade de coexistência pacífica entre escravidão e liberdade. Palmares era república de produtores livres, nascida no seio de despótica sociedade escravista, que surge hoje nas obras da historiografia apologética como um quase paraíso perdido, onde a paz, a transigência e a negociação habitavam as senzalas. Palmares era exemplo e atração permanentes aos oprimidos que corroíam o câncer da escravidão.

Como já lembraram, nos anos 1950, o historiador marxista-revolucionário francês Benjamin Pérret e o piauiense comunista Clóvis Moura, a confederação dos Palmares venceria apenas se espraiasse a rebelião aos escravizados dos engenhos, roças e aglomeração do Nordeste, o que era então materialmente impossível.

Palmares não foi, porém, luta utópica e inconsequente. Por longas décadas, pela força das armas e a velocidade dos pés, assegurou para milhares de homens e mulheres a materialização do sonho de viver em liberdade de seu próprio trabalho. Indígenas, homens livres pobres, refugiados políticos eram aceitos nos Palmares. Eram braços para o trabalho e para a resistência.

A proposta da retomada da escravidão colonial em Palmares, com Zumbi com um “séquito de escravos para uso próprio”, é lixo historiográfico sem qualquer base documental, impugnado pela própria necessidade de consenso dos palmarinos contra os escravizadores. Trata-se de esforço ideológico de sicofantas historiográficos para naturalizar a opressão do homem pelo homem, propondo-a como própria a todas e quaisquer situações históricas.

Palmares garantiu que milhares de homens e mulheres nascessem, vivessem e morressem livres. Ao contrário, em poucos anos, os seguidores de Ganga Zumba foram reprimidos, reescravizados ou retornaram fugidos aos Palmares, encerrando-se rápida e tristemente a traição que dividiu e fragilizou a resistência quilombola.

A paliçada do quilombo do Macaco foi a derradeira tentativa de resistência estática palmarina, quando a resistência esmorecia. Ela foi devassada em fevereiro de 1694, por poderoso exército, formado por brancos, mamelucos, nativos e negros, entre eles, o célebre Terço dos Enriques, formado por soldados e oficiais africanos e afro-descendentes. Não havia e não há consenso racial e étnico entre oprimidos e opressores.

O último reduto palmarino, defendido por fossos, trincheiras e paliçada, encontrava-se nos cimos de uma altaneira serra.
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A serra da Barriga e regiões próximas, na Zona da Mata alagoana, com densa vegetação, são paragens de beleza única. Quem se aproxima da serra, chegado do litoral, maravilha-se com o espetáculo natural.

O maciço montanhoso rompe abruptamente, diante dos olhos, no horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando as terras baixas, cobertas pelo mar verde dos canaviais flutuando ao lufar do vento.

Se apurarmos o ouvido, escutaremos os atabaques chamando às armas, anunciando a chegada dos negreiros malditos. Sentiremos a reverberação dos tam-tans lançados do fundo da história, lembrando às multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia, não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados de reais, nos verdes canaviais dessas terras que já foram livres, que a luta continua, apesar da já longínqua morte do general negro de homens livres.

Mario Maestri é professor do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Venezuela: Socialismo triunfa e enche América Latina de esperança

 



Com 54,42% dos votos, o presidente Hugo Chávez Frías foi reeleito na Venezuela e governará o país no período de 2013 a 2019. Há 14 anos no poder, este será o seu terceiro mandato. O candidato da oposição, Henrique Capriles, obteve 44,97% e ganhou em apenas quatro dos 24 estados que compõem a Venezuela. Em uma verdadeira festa cívica, 81% dos venezuelanos compareceram às urnas, mesmo o voto não sendo obrigatório no país.

Por Vanessa Silva* e Leonardo Wexell Severo, de Caracas-Venezuela no VERMELHO



AVN
Chávez vitória Multidão saúda vitória de Chávez no Palácio de Miraflores: "foi a vitória perfeita", afirmou Chávez

Apesar da expectativa de que o candidato da oposição pudesse não reconhecer o resultado revelado pelas urnas, Capriles admitiu sua derrota e rejeitou a ação de setores radicais. O candidato fez também um chamado para que "nosso povo não se sinta perdedor. Quem foi derrotado fui eu”, afirmou. E agradeceu aos mais de seis milhões de venezuelanos que votaram nele.

Diante de dezenas de milhares de manifestantes que tomaram a frente e as imediações do Palácio de Miraflores na noite de domingo (7), o presidente Hugo Chávez agradeceu aos mais de oito milhões de venezuelanos que lhe garantiram um novo mandato.

Acompanhado pela família e por lideranças no balcão presidencial, o líder bolivariano agradeceu à multidão e ressaltou que o povo "votou pela revolução, pelo socialismo e pela grandeza da Venezuela”.

Independência e integração

Chávez fez questão de ressaltar que o primeiro e principal objetivo de seu novo mandato já foi alcançado, sendo “não outro que ter conservado o bem mais precioso que conquistamos depois de 500 anos de luta: a independência nacional”.

A expressiva vitória nas urnas, enfatizou o presidente, demonstra que “não haverá força imperialista, por mais forte que seja, que possa com o povo bolivariano. A Venezuela nunca mais voltará ao neoliberalismo, seguirá transitando para o socialismo bolivariano do século 21". E reiterou que “hoje ganhou a América Latina”.

Imediatamente, milhares de vozes entoaram o grito “alerta, alerta que caminha a espada de Bolívar pela América Latina”, fazendo tremular bandeiras do Brasil, Cuba e Argentina, entre outras, num colorido que expressava o espírito da integração solidária do continente.

Cordialidade

Em tom cordial, Capriles pediu que Chávez trabalhe por todos os venezuelanos e parabenizou o comandante por sua vitória. “O que o povo diz está dado e respeito sua palavra”. Por sua vez, o presidente também fez um “reconhecimento especial à oposição, que não fez planos desestabilizadores. Assim que se joga na democracia”, exclamou.

* Vanessa Silva é jornalista, enviada especial do Vermelho a Caracas, e integrante do ComunicaSul
** Leonardo Wexell Severo é jornalista e integra em Caracas a equipe do ComunicaSul

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A linguagem da verdade na luta de massas


Miguel Urbano Rodrigues


 
Em situações históricas como a actual os responsáveis pelas crises optam pelo auto elogio, enquanto se preparam para responder com a repressão ao protesto popular. Os Passos, Relvas e Companhia Lda esquecem que no movimento de fluxo e refluxo da História as grandes crises desembocam quase sempre numa contestação torrencial quando os povos, atingido um limite, não podem mais suportar a opressão da classe dominante e se mobilizam para lhe por termo.

As medidas anunciadas pelo primeiro-ministro no dia 7 de Setembro - ostensivamente inconstitucionais - assinalaram uma vertiginosa galopada para a direita do governo mais reaccionário do País desde a Revolução de 1974.
Passos Coelho pelo que disse, pela hipocrisia e até pelo tom, fez-me recordar falas de ministros de Salazar. Deles se diferencia não pelo conteúdo ideológico da «mensagem», mas porque alguns eram inteligentes e porque o que resta da herança de Abril não lhe permite ir tão longe quanto desejaria na destruição de conquistas históricas dos trabalhadores e na ofensiva contra direitos e liberdades.
Os novos impostos e a descida da taxa social única (800 milhões oferecidos na prática às grandes empresas) inserem-se numa estratégia dita de «austeridade», mas que transcende as próprias exigências da troika. Foi concebida para favorecer o grande capital e atingir brutalmente os trabalhadores.
O complemento da agressão fiscal tornado público pelo ministro Vítor Gaspar, tutor ideológico de Passos, amplia os contornos do pesadelo.
O fracasso do projecto em desenvolvimento é, porém, tão transparente – o défice não desceu, o desemprego disparou, o PIB caiu – que pela sua irracionalidade e consequências desastrosas ao levar o pais à ruína abriu fissuras nas forças da direita que inicialmente o apoiaram maciçamente.
Destacadas personalidades políticas do sistema, tradicionalmente vinculadas ao imperialismo, como Adriano Moreira, Freitas do Amaral, Alberto João Jardim, Bagão Félix, Mário Soares, Pacheco Pereira criticaram com maior ou menor clareza o pacote fiscal do governo. Até Catroga se distanciou.
O Presidente da República, esse, permaneceu mudo até ao momento em que escrevo.
Na hierarquia da Igreja levantam-se vozes condenando aquilo em que identificam o arrogante desprezo do governo pelo povo.
A Saúde e a Educação serão brutalmente golpeadas. Entre os reformados a maré da revolta cresce. Não há mentira oficial que possa ocultar a evidência: o governo pretende destruir a Previdência, arrasar a Segurança Social.
O indigitado secretário-geral da UGT apelou à denúncia dos compromissos assumidos pela sua organização com o governo e o patronato e agora exige a rejeição das medidas anunciadas.
A própria CIP desaprova a estratégia do Executivo, e Belmiro de Azevedo, o patrão da SONAE (que vai poupar muitos milhões de euros com a descida da taxa social única), demarcou-se do governo. Foi categórico ao afirmar que o brutal aumento da carga fiscal sobre o trabalho, longe de atingir os objectivos fixados, vai contribuir para o agravamento da crise.
Influentes «analistas» da burguesia, como Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Sousa Tavares, habitualmente prudentes nas críticas ao governo, desancaram agora Passos Coelho e a cruel farsa da «austeridade».
Não esperava o Primeiro-ministro que o seu medonho pacote fiscal fosse mal recebido por parlamentares e dirigentes do PSD e do CDS. Mas teve uma surpresa.
«Sinto uma grande revolta no PSD - declarou ao jornal «Publico» um deputado desse partido - porque o Primeiro-ministro foi longe demais».
No CDS o mal-estar aumenta a cada dia e alguns «barões» falam abertamente da necessidade de por termo à coligação, cimento da maioria parlamentar.

GRANDES LUTAS NO HORIZONTE

A presente crise – é uma certeza – vai aprofundar-se muito. Inseparável da crise global do capitalismo, a actual, que lançou milhões de portugueses no desemprego, na pobreza e na miséria, difere de todas as anteriores não apenas pelas seus efeitos sociais e económicos, mas pela ideologia e projecto dos representantes do capital que controlam o governo e o Parlamento.
É significativo que o ministro Relvas, envolvido numa cadeia de escândalos sórdidos, tenha aproveitado a sua visita ao Brasil para fazer no Rio declarações provocatórias, de elogio irrestrito à devastadora e criminosa política fiscal de Passos Coelho. Insolente, maltratando inclusive o idioma, sugere aos que dela discordam a apresentar uma alternativa, para concluir que ela não existe e proclamar que a recusa da estratégia do governo seria o caos.
Não é inédito o seu arrogante desafio. Em situações históricas como a actual, os responsáveis pelas crises optam pelo auto elogio, enquanto se preparam para responder com a repressão ao protesto popular.
Os Passos, Relvas e Companhia Lda esquecem que no movimento de fluxo e refluxo da História as grandes crises desembocam quase sempre numa contestação torrencial quando os povos, atingido um limite, não podem mais suportar a opressão da classe dominante e se mobilizam para lhe por termo.
Não há dois processos iguais. As revoluções e as transições marcadas por reformas revolucionárias diferem de sociedade para sociedade, evoluindo em função de factores que não cabe analisar num artigo como este.
Isso ocorreu no 25 de Abril.
Transcorridos 38 anos, frustradas as grandes esperanças da Revolução Democrática e Nacional, uma grande burguesia dependente, mais sofisticada do que a anterior, e mais intimamente ligada ao imperialismo, encontra-se novamente instalada no Poder.
Sob alguns aspectos a luta contra o sistema é hoje mais difícil do que na época de Salazar e Caetano porque as condições subjectivas são menos favoráveis.
As instituições existentes (deformadas por sucessivas reformas da Constituição) levam milhões de portugueses, a maioria da cidadania, a crer que o regime português é democrático.
Ora, na prática vivemos sob uma ditadura da burguesia de fachada democrática. Mas somente uma pequena minoria de portugueses tem consciência dessa realidade.
Em Portugal, a resistência dos trabalhadores a políticas neoliberais de sucessivos governos do PSD e do PS tem sido uma constante. Sobretudo nos últimos anos. Expressou-se em gigantescas manifestações de protesto, em greves gerais e sectoriais realizadas com êxito, em lutas de numerosas categorias profissionais, com destaque para as dos professores.
Mas o controle dos media pelo capital e a influência hegemónica do imperialismo na Internet dificultam extraordinariamente a compreensão pela maioria dos portugueses da complexidade da crise mundial e dos desafios que se colocam ao povo português. Os mecanismos da alienação são uma fonte de ilusões, favorecendo a direita (na qual incluo os dirigentes do PS).
A ilusão de que é possível às forças progressistas chegar ao governo através de eleições está muito difundida. Tal convicção é utópica.
A engrenagem montada pelas forças do capital foi concebida e funciona de modo a que alternadamente obtenham maioria parlamentar e cheguem ao governo, exibindo uma falsa representatividade popular, ora o PSD (levando a reboque o CDS), ora o PS.
A ruptura com essa engrenagem, para produzir efeitos, para ser real, não pode consumar-se dentro do sistema, tendente à sua democratização. Terá de ser uma ruptura contra o sistema. Por outras palavras, é imprescindível deixar transparente que o inimigo é o capitalismo e que este é irreformável pela sua natureza desumana. É possível em Portugal um governo menos reaccionário, mas não um governo progressista.
A linguagem da verdade é uma exigência política e ética no diálogo com as massas.
A ideia de uma volta a Abril é também romântica. A História não se repete. Seria negativo confundir os valores de Abril e o respeito que inspiram com a aspiração ilusória de uma nova Revolução Democrática e Nacional, no actual contexto.
Qual então o carácter da resposta popular, qual o rumo que a contestação ao Poder da burguesia e ao protectorado imperial devem assumir?
A pergunta é formulada com frequência por aqueles a quem são dirigidos apelos para a dinamização da luta de massas. E é pertinente porque a relação de forças na sociedade portuguesa não abre a porta a uma conjuntura pré-revolucionária.
A menos que se produza a nível mundial uma situação revolucionária envolvendo os EUA e a União Europeia, o que não está para breve, uma Revolução social vitoriosa em Portugal é uma impossibilidade.
A luta intensa e permanente contra este governo, que assume já no discurso e na prática matizes neofascistas, não vai desembocar numa Revolução progressista. A serena consciência dessa realidade não justifica uma atitude de pessimismo, de passividade alienante. Em Portugal a participação nas lutas contra o sistema é transversal, abrange já segmentos da pequena e média burguesias, camadas sociais que ainda há poucos anos afirmavam não se ‘interessar pela politica’.
Ao longo da História, muitas gerações bateram-se por transformações revolucionárias que não se produziram durante as suas breves existências. Mas o seu compromisso era com as ideias e não com o calendário. Revoluções tão importantes para o progresso da Humanidade como a Francesa de 1789 e a Russa de 1917 não teriam sido vitoriosas sem a luta, a dedicação, o debate de ideias de uma extensa, maravilhosa cadeia de revolucionários que as imaginaram e para elas viveram.
Afirmar sem rodeios, frontalmente, que a ruptura em Portugal deve ser com o sistema capitalista, rumo ao socialismo distante, esfumado num horizonte de brumas, é seguir o exemplo desses revolucionários, caminhar pelas alamedas que eles abriram combatendo.
Acredito que a luta de massas vai adquirir um ímpeto novo, que a repressão será incapaz de travar, um ímpeto vocacionado para abalar os alicerces do Poder ultramontano.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Álvaro Uribe: O Senhor da guerra

agência PRENSA LATINA
  
Com temerária conduta e absoluto desenfado, o ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe Vélez declarou há alguns dias, num seminário sobre temas vinculados ao conflito armado de seu país, na Universidade de Antioquia que "não teve tempo na presidência para atacar militarmente à República Bolivariana da Venezuela".

  As preocupações do presidente Hugo Chávez Frias em relação à política agressiva e militarista do governo de Uribe Vélez não eram infundadas.

Também prova a impunidade com a qual atua Uribe pois nem o Poder Judicial nem o Legislativo pediram conta de tamanho delito ao colocar o país à beira de uma guerra e mostra seu caráter aventureiro.

Ademais isso explica a abertura do governo colombiano à colaboração militar com os Estados Unidos a partir de seu primeiro mandato que começou a 7 de agosto de 2002 e as razões pelas quais, violando a Constituição de 91, assinou acordos militares com os sucessivos governos estadunidenses.

Ao extremo de aceitar o estabelecimento permanente de forças militares norte-americanas em sete bases enclavadas no território colombiano e que não só são um perigo hoje para a Republica Bolivariana da Venezuela, mas também apontam a qualquer outro país de nossa região e especialmente da América do Sul e do Caribe se algum não é do agrado de Washington.

A opinião pública deve conhecer as verdadeiras motivações de Uribe Vélez para sustentar a política guerreirista batizada com o nome de "segurança democrática".

Sua essência residia em subordinar a política interior e exterior aos interesses dos Estados Unidos e assim evitar que Washington fizesse valer o expediente que as autoridades do país do norte abriram contra ele em uma lista de extraditáveis de 1991 com o número 82.

Revista Newsweek deu a conhecer no começo de 2003 a lista de pessoas a solicitar em extradição entregues pela U.S Intelligence Tied Colombia: Uribe to Drug Trade in 91 Report.
Segundo a publicação "N 82 ALVARO URIBE VELEZ POLITICO E SENADOR COLOMBIANO DEDICADO A COLABORAR COM O CARTEL DE MEDELLIN NOS ALTOS NÍVEIS DO GOVERNO. URIBE SE VINCULOU A UM NEGÓCIO ENVOLVIDO NAS ATIVIDADES DOS NARCÓTICOS NOS ESTADOS UNIDOS.
SEU PAI FOI ASSASSINADO NA COLÔMBIA POR SUAS CONEXÕES COM OS NARCOTRAFICANTES. URIBE TEM TRABALHADO PARA O CARTEL DE MEDELLIN E É AMIGO INTIMO DE PABLO ESCOBAR GAVIRIA".
É evidente que em troca de evitar seu ajuizamento e extradição, Uribe entregou o país aos Estados Unidos.
A escura e tenebrosa política de "segurança democrática" esteve baseada no pagamento de recompensa por delações, extorsões e crimes políticos cometidos por bandos paramilitares, agrupados sob o nome de Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), a serviço do governo e particularmente de Uribe Vélez com o respaldo de poderosos meios de comunicações nacionais propriedade dos grandes oligarcas e magnatas do país e dos sistemas mediáticos das multinacionais norte-americanas e europeias.

Estas fizeram crer à opinião publica nacional e estrangeira que com a dita política se tinha conseguido pacificar o país, debilitar a insurgência colombiana, transitar livremente pelas estradas e caminhos sem ser molestado pela guerrilha, opinião que hoje segue argumentando o ex-presidente para criticar o atual Governo de não continuar sua "segurança democrática".

Também questiona um possível gerenciamento de paz do presidente Juan Manuel Santos e realiza uma forte campanha para convocar uma Assembleia Constituinte com o objetivo de se habilitar e assim conseguir sua possível aspiração presidencial e se reeleger em 2014.

Com a ruptura do processo de paz que se desenvolvia entre as forças insurgentes das FARC-EP e o governo de Andrés Pastrana Arango em fevereiro de 2002, o novo governo instalado na Casa de Nariño começou a desenvolver uma implacável política de hostilidade não só às forças insurgentes, como também ao movimento social e político colombiano.

As cifras durante os dois períodos de governo e de acordo com informações de organizações de Direitos Humanos assinalam em 70 mil os desaparecidos e três mil os jovens assassinados que eram feitos prisioneiros em cidades e campos e, depois de mortos, eram uniformizados e apresentados como guerrilheiros caídos em combate, o que se conhece como os "falsos positivos" executados por setores criminosos das Forças Militares.

Enquanto mais de três milhões de colombianos foram deslocados de suas terras no período uribista, há mais de oito mil presos políticos nas prisões acusados de guerrilheiros, enquanto as FARC-EP e o ELN admitem a identidade de só mil encarcerados, o resto são militantes de organizações populares e de esquerda presos por manter uma opinião política opositora.

Mais de 300 sindicalistas e dirigentes populares foram assassinados durante os oito anos do governo presidido por Uribe Vélez. Um balanço de governo nada diferente ao sucedido durante a ditadura de Pinochet no Chile.

O verdadeiramente objetivo é que o governo de Uribe Vélez, nem debilitou a guerrilha, nem pacificou o país, nem resolveu o livre trânsito pelas estradas colombianas.

Foi a guerrilha das FARC-EP a que desde 10 de janeiro de 2002, ainda antes de que se cancelassem as conversas com o Governo, decidiu retirar suas frentes guerrilheiras à profundidade da selva; colunas e forças e passaram da guerra regular à guerra de guerrilha e até hoje mantêm suas forças em constante movimento.

Isso eliminou praticamente suas incursões e detenções nas estradas, por isso Uribe não pode reivindicar como um sucesso de seu Governo o livre trânsito da população.

No meio de 2003, o início do conhecido Plano Patriota terminou em um grande fracasso pois militarmente a guerrilha não foi derrotada, a morte natural do Chefe das FARC-EP, Manuel Marulanda, e o criminoso bombardeio ao acampamento de Raúl Reyes em território equatoriano em franca violação ao direito internacional e as posteriores quedas dos comandantes Iván Rios, Jorge Briceño e Alfonso Cano, não afetaram o curso de ação da guerrilha e demonstraram tal organicidade que resulta muito difícil admitir a debilidade das ditas forças guerrilheiras.

Por mais que manipule e declare à rede de rádio Caracol que durante seu Governo "se desmobilizaram entre 17 ou 18 mil guerrilheiros", se essa cifra fosse verdadeira, a guerrilha se teria extinguido e, por outra parte, onde estão esses reinseridos?

Uribe mente descaradamente e suas declarações à jornalista Diana Calderón estão muito bem orientadas a desinformar a opinião publica nacional e internacional, obstruir o atual Governo e ofender a inteligência do povo colombiano.

É evidente que na Colômbia o que se requer é um processo de diálogo e negociação ao conflito social e armado que ali existe há 50 anos, pois não conseguirão a derrota militar da insurgência e esse interesse do presidente Santos de iniciar um processo de paz é o que está tratando de evitar Uribe.

O ex-mandatário tem uma forte vocação para a guerra pois sabe que num palco de paz, seria desnudado todo o horror a que foi submetido o povo colombiano durante seu governo.

* Jornalista, politólogo e analista de temas internacionais. Colaborador da Prensa Latina

sábado, 11 de agosto de 2012

Não há tempo a perder*


Rui Paz
Rui Paz 
Os EUA procuram a todo o custo uma saída militar para a crise do capitalismo. O hipócrita Obama confirma-se como um inimigo da paz e um criminoso ainda pior do que Bush. A ambição de domínio mundial e a agressividade do imperialismo levam a guerra a zonas cada vez mais alargadas do planeta, e colocam a humanidade perante a ameaça de uma tragédia global sem precedentes.

Nas últimas semanas temos vindo a assistir ao agravamento da tragédia da guerra contra a Síria. A aliança entre o imperialismo norte-americano, sionistas, ditaduras monárquicas do Golfo e brigadas de mercenários terroristas pretende destruir mais um Estado e um regime, activo apoiante da luta do povo palestiniano. Exactamente no momento em que o carácter sanguinário desta santa aliança é cada vez mais evidente, Obama autoriza que se torne público a existência de directivas secretas à CIA para o seu envolvimento em operações encobertas contra a Síria. Agora é oficial. Os norte-americanos «missionários da democracia» e os déspotas reaccionários da península Arábica são os organizadores daquilo que durante mais de um ano os media nos venderam como sendo actos de resistência da oposição interna ao regime de Damasco.
Entretanto famílias sunitas são atraídas com pacotes de prendas enviados pelo Emir do Qatar a abandonar os seus lares onde vivem em paz e a deslocarem-se para outras regiões e campos de refugiados na Turquia. O objectivo é a paralisação da actividade na Síria e a intensificação do processo de desestabilização. Mesmo assim Obama e Hillary Clinton estão furiosos. Durante a chamada conferência dos «amigos da Síria» que se realizou no início de Julho em Paris, Clinton proferiu ameaças contra a Rússia e a China por aqueles dois membros permanentes do Conselho de Segurança recusarem dar o aval a mais uma agressão militar, respeitarem a Carta da ONU e as normas do direito internacional. Washington já se esqueceu que no caso da Resolução contra a Líbia, Obama, Sarkozy e Cameron ludibriaram não só Moscovo e Pequim mas o mundo inteiro ao fazer crer que queriam proteger as populações civis, tendo, afinal, a NATO acabado por assassinar aqueles que apregoava querer proteger.
O especialista da Aliança Atlântica, Rainer Rupp, relembra que o então comandante das forças militares da NATO, mais tarde candidato à presidência dos Estados Unidos, General Wesley Clark, numa intervenção no Commonwealth Club of California (03.10.2007) revelou que a administração do presidente George Bush (2001-2009) tinha planeado substituir os regimes no Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irão (JW. 03.08.2012). O objectivo não é só o controlo pelos Estados Unidos de uma zona energética e geográfica da maior importância estratégica, mas o prosseguimento de um plano de penetração na Ásia desenvolvido pelo actual conselheiro de Obama, Zbigniew Brzezinski, com vista ao domínio mundial do imperialismo norte-americano. Nesse plano, exposto já em 1997 numa publicação intitulada «O Grande Tabuleiro de Xadrez» (The Great Chessboard), o iniciador no Afeganistão da aliança entre o Pentágono e o antigo chefe da Al-Qaeda, Bin Laden, que Obama acaba de assassinar, prevê o controlo pelos Estados Unidos da região do Mar Cáspio, a segunda mais rica do mundo em fontes de energia, e o desmembramento da Rússia em três repúblicas: «uma Rússia Europeia, uma Rússia Siberiana e uma Rússia do Extremo-Oriente». Como demonstram as provocações constantes contra Pequim a propósito do Tibete, os planos de Washington para criação do caos na China não são diferentes.
O imperialismo não tem as mãos inteiramente livres para consumar todos os seus planos de opressão mundial. Há forças suficientes para travar e fazer retroceder esta marcha sanguinária. Mas não há tempo a perder. É tempo de os povos tomarem consciência e agirem, antes que seja demasiado tarde.
Aqueles que foram ludibriados pelas pregações de Obama e não se aperceberam de que o actual presidente foi eleito para lavar a cara ao imperialismo norte-americano completamente desacreditado pelos mandatos de Georg Bush, ainda estão a tempo de compreender que os Estados Unidos procuram a todo o custo uma saída militar para a crise do capitalismo. Saída que não sendo travada atempadamente poderá representar grandes perigos para a Humanidade.

*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2019, 9.08.2012

sábado, 4 de agosto de 2012

As quatro crises e a teoria da grande unificação


Vaz de Carvalho
 
A compreensão profunda da realidade só é conseguida numa teoria que mostre a unidade e as contradições dos diversos fenómenos sociais do mundo atual e que estude as suas transformações. Essa teoria é o marxismo.

1 – METAFÍSICA NEOLIBERAL VERSUS MATERIALISMO DIALÉTICO
A ciência é pela sua própria natureza materialista e dialética. A ciência representa o esforço para compreender e explicar os fenómenos naturais, tanto no nosso mundo terrestre como no universo, procura as relações entre esses fenómenos, estuda as suas transformações. Uma fórmula da física é por si só um exemplo de dialética: as diversas variáveis estão unidas entre si num resultado, essa unidade exprime as contradições internas – as variações de umas opõem-se às de outras; as transformações quantitativas dão origem a transformações qualitativas. Por exemplo, conforme a escala em que se processam os fenómenos à física clássica sucede a da relatividade generalizada (escala do universo) ou a quântica (ao nível das partículas atómicas e subatómicas); conforme a pressão e temperatura um gás pode passar ao estado líquido, ao sólido ou tornar-se plasma.
Assim, as ciências sociais se pretendem ser ciência, só podem ser materialistas e dialéticas. Pelo contrário a ideologia conservadora, seja de direita, seja dita reformista da social-democracia, na defesa do sistema capitalista, adopta a metafísica. (1)
A metafísica opõe-se à dialética, no sentido em que analisa os fenómenos de forma parcial ou isolada, independentes das suas relações objetivas, considera o seu circunstancialismo invariável, remete vulgarmente a sua explicação para condicionalismos subjetivos ou imateriais, não reconhece mudanças qualitativas nem explica as contradições internas dos sistemas. É essencialmente estática. O raciocínio metafísico constitui na atualidade o instrumento da ideologia reacionária para a manipulação e alienação das populações, de que é exemplo a “austeridade”, atribuindo as causas da crise ao endividamento ao Estado, responsabilizando os desempregados pelo desemprego, atribuindo aos “custos salariais” e direitos dos trabalhadores a falta de incentivos que o capital especulador teria para proporcionar investimento.
A análise do défice e do endividamento do Estado, mesmo estando tecnicamente correcta no seu detalhe, mas não estabelecendo as relações com todas as outras componentes do sistema económico e social e as suas contradições, revela-se especulação de natureza metafísica. Em consequência verificamos o falhanço das previsões e a incapacidade de evitar o prolongamento e agravamento das crises, embora - pelo menos desde Aristóteles e da sua Lógica - se saiba que raciocínios baseados em verdades parciais conduzem a conclusões falseadas…
Um dos aspetos mais evidentes da desconexão da realidade a que a metafísica neoliberal procede é a dissociação entre o económico e o financeiro, que se manifesta nas proclamações de manter a austeridade, a ”consolidação orçamental”…para ter crescimento. É como se estas variáveis ou fossem independentes ou estivessem relacionadas por simples equações lineares.
Desligada das verdadeiras causas – como a especulação bancária e a distorção na repartição dos rendimentos - a crise é apresentada ora como um somatório de “inevitabilidades” contra as quais nada se pode fazer senão submeter-se aos “mercados” e reduzir as prestações sociais do Estado “despesista”: Chamam a isto: “rigor orçamental”, enquanto se desbarata a riqueza nacional nas PPP e concessões, nas rendas do sector energético, nas absurdas privatizações de empresas lucrativas, na livre transferência de lucros e rendimentos para paraísos fiscais.
O raciocínio metafísico em economia é evidente ao considerarem “os mercados” como entidades abstratas, absolutas, independentes da vontade humana, às quais nos teríamos de sujeitar.
“As pessoas são levadas a acreditar que a economia tem uma lógica por si própria a qual depende da livre inter-actuação de forças de mercado e que os poderosos atores financeiros não poderiam, sob quaisquer circunstâncias, ter deliberadamente influenciado o curso dos acontecimentos económicos” (2)
A análise metafísica da crise e das suas causas acentua os processos de austeridade a que se associa o presidente da República demarcando-se em público do que aprova no gabinete; ou o governador do Banco de Portugal num “estudo” em que se diz ser necessário reduzir a “rigidez laboral”; ou o ministro das finanças que vê a crise financeira como “insuficiente liquidez de capital” e “aversão ao risco” e não fruto da especulação e da corrosão económica permitida pela ausência de controlo sobre o movimento de capitais e pela proliferação dos paraísos fiscais, forma de fuga aos impostos e sabotagem das finanças públicas.
A política de direita assume a sociedade capitalista como “eterna” sem considerar as suas contradições, concluindo pelo conformismo das “inevitabilidades” antisociais e pelas consequências de uma globalização neoliberal considerada imutável e acima de quaisquer outros critérios.
O neoliberalismo é uma metafísica destinada a defender interesses inconfessáveis sob o eufemismo da “economia”. Daqui os apelos à “ética” e aos “sacrifícios para todos”, como soluções. A sua argumentação e compreensão das causas das crises assemelha-se à das querelas medievais sobre as quais se faziam extensos tratados e teses de doutoramento, como a questão dos “universais” ou de saber se “um porco conduzido para a feira é seguro pelo camponês ou pela arreata”.

2 - AS QUATRO CRISES (3)

O capitalismo mergulhou o mundo em 4 crises insuperáveis neste sistema que apenas as agrava: a crise económica e financeira, a crise social, a crise ambiental e a crise extreminista.
A crise económica e financeira atual é consequência das teses monetaristas de criar dinheiro a partir de dinheiro, sem valor acrescentado pelo trabalho. O endividamento generalizado através do apelo ao crédito, foi o entorpecente que levou largas camadas das populações a aceitarem que era possível o aumento do consumo sem passar pela produção e pelo seu rendimento salarial, entregando o seu poder de decisão – e o seu futuro - na mão de mixordeiros da política populista e dita reformista
O valor acrescentado nas empresas, passou a ser absorvido pelos accionistas, pelo sector rentista e especulador – a “engenharia financeira” - em vez de dar lugar à correspondente retribuição salarial e ao investimento produtivo. Desde o predomínio neoliberal as crises sucederam-se de forma praticamente ininterrupta através do mundo inteiro: bolsa de Nova York em 1987; falências de instituições de crédito EUA em 1989-1990; Japão 1990; México, 1994-95; crise asiática 1997-98; Rússia 1998; crise bolsista de 2000 – 2001; Argentina em 2001-02. As medidas adoptadas apenas prolongaram e agravaram estas situações até que a partir de 2007 a crise atingiu os EUA e a UE.
A crise económica e financeira que se tornou e endémica é consequência da criação de capital fictício, apenas números nas contas dos bancos, sem contrapartida de valor real criado na produção, dando origem a dívidas absolutamente impossíveis de serem pagas. Trata-se, pois, de uma crise sem fim nem solução dentro do sistema actual. A austeridade é a forma de transformar o capital fictício em valor real aumentando a taxa de exploração e apropriando-se do património público.
Sabe-se como o BCE promove e financia a especulação cujas custas recaem sobre os povos, financiando a banca a uma taxa de juro muito baixa (1%), não sendo impostos quaisquer condicionamentos à utilização desse dinheiro, para depois os bancos obterem lucros extra à custa de elevadas taxas de juro que cobram aos Estados, às famílias, às empresas.
Sem regulação, em nome de uma hipotética eficiência, o grande capital financeiro criou um caos de corrupção e especulação. A economia, a vida política e social foi colocada ao sabor de gente egoísta, corrupta, fraudulenta que se disfarça com a mistificação de “os mercados”.
Apesar dos biliões de dólares aplicados em “resgates financeiros “ e “políticas de estímulo” - mais de 13 biliões de dólares nos EUA e 4,5 biliões de euros na UE - estas economias permanecem estagnadas ou em recessão; a pobreza e o desemprego não param de aumentar.
A crise social tem origem no facto dos sectores monopolistas e financeiros drenarem em seu benefício a riqueza criada. A estagnação económica resulta assim da insuficiência dos investimentos produtivos e da desequilibrada distribuição dos rendimentos nacionais, cuja evidência são as crescentes desigualdades e o empobrecimento relativo e absoluto das camadas trabalhadoras, de pequenos empresários e profissões liberais, temporariamente camuflado pelo crédito barato.
Em termos sociais podemos dizer que existe estagnação sempre que o crescimento não pode absorver a força de trabalho disponível e que existe recessão quando o desemprego tem tendência a aumentar. Apesar dos imensos progressos tecnológicos o desemprego, a pobreza, as desigualdades aumentaram entre as pessoas e entre os países. A livre circulação de capitais é ouro sobre azul para o crime organizado e para a corrupção que vive paredes meias com as intocáveis entidades financeiras, que os povos acabam por ter de salvar em nome do “risco sistémico”. Contudo, o único risco “sistémico” para os povos é o prosseguimento das actividades especuladoras que se sobrepõem ao tecido produtivo e aos direitos sociais. O avanço dos dogmas do mercado livre traduzido na “globalização” representou mais pobreza, mais crise global: “mais comércio livre mais fome” (4)
O sistema, incapaz de assegurar o pleno emprego e direitos sociais, apresenta-os quer como miragens quer como intoleráveis “privilégios”. Em nome dos dogmas da competitividade e da “eficiência” do mercado livre afirma-se então (como o presidente da República) que não possível manter o “Estado social”. Claro que não, atendendo à crescente riqueza levada para fora do país: mais de 73 mil milhões de euros nos últimos quatro anos.
A OIT considera que mais de 200 milhões de trabalhadores estão desempregados, situação que aumenta de ano para ano. Nas presentes condições, será praticamente impossível encontrar trabalho para os 80 milhões de pessoas que nos próximos dois anos se estima aumentarem o exército de reserva da força de trabalho, designado por “mercado de trabalho”.
A crise social trazida pelo sistema é uma crise de direitos; de desemprego e de precariedade – a patologia crónica do sistema capitalista. O neoliberalismo – o capitalismo da actualidade – não é democracia: é pauperização e depredação. “Milhões de crianças morrem cada ano porque os ricos recusam-lhes alguns centavos de ajuda”, escrevia Noam Chomsky em “A globalização excludente”.
“O principal objectivo das classes dominantes não é simplesmente administrar as consequências da crise financeira. Elas têm um plano a longo prazo para esmagar totalmente a classe trabalhadora, deitar abaixo o consumo e remodelar as expectativas de como o ser humano tem direito de viver. Como mencionou um responsável do Tesouro Britânico ao Financial Times: “Isto é uma oportunidade que só ocorre uma vez numa geração de transformar o modo como o governo funciona.” (5)
“Um quarto de todo o rendimento criado nos EUA vai para a 1% da população, enquanto a classe trabalhadora tem menores rendimentos que há uma década. Os mais ricos viram os seus impostos reduzirem-se, a desigualdade social disparou e arrancou uma ofensiva antisindical. Na UE há 115 milhões de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, 23% da população. Contudo nos últimos 15 anos os ativos dos 3 milhões de milionários europeus cresceu mais que a soma total das dívidas dos países europeus. Estes capitais poderiam resolver de uma assentada a crise das dívidas dos países europeus, porém a atual aristocracia financeira tem tão pouca intenção de ceder seus privilégios como a aristocracia francesa antes da revolução de 1789. (6)
A crise ecológica tem origem no sistema baseado numa competição que visa exclusivamente o aumento dos lucros das empresas dominantes do comércio mundial, segundo os critérios da OMC. Em consequência, verificamos o esgotamento dos recursos naturais. Apesar da pobreza e da fome (1 200 milhões de pessoas com rendimento inferior a 1,25 dólares por dia) o consumo de recursos naturais é superior em 57% à capacidade do planeta. Apesar dos cerca de 48 milhões de pobres nos EUA se toda a população mundial tivesse os mesmos níveis e padrões de consumo médios dos EUA seriam necessários 4,5 planetas. Seguindo as mesma vias de “sucesso” e “eficiência” da “economia de mercado” o Global Footprint Network estima que em 2030 sejam necessários 2 planetas para satisfação das necessidades. Registe-se que nos relatórios GEO das Nações Unidas, todas as medidas apontadas para defesa do ambiente incluem o reforço do papel do Estado e uma sua maior independência dos poderes privados.
É neste contexto que têm de ser avaliadas as ilusões de prosperidade pela “livre iniciativa privada”.
O esgotamento dos recursos naturais imporá alterações drásticas no modo de vida e no funcionamento das sociedades. Trata-se do fim da era da energia barata (peak oil); do esgotamento dos recursos naturais como a água, as florestas, os solos férteis, a pesca, que afectará milhares de milhões de pessoas. Mil milhões de seres humanos numa centena de países estão ameaçados pela desertificação. A biodiversidade declina rapidamente; milhões de toneladas de solo fértil são perdidos. Muitos minerais fundamentais atingem o ponto de esgotamento, implicado a sua extração cada vez maior dificuldade e maiores custos.
A incompreensão do que são custos e benefícios sociais e, por consequência também ambientais, está bem expressa pela afirmação de um dos homens mais ricos de Portugal, que se congratulava por ser possível colocar – nos seus supermercados – pescado fresco do Chile em 36 horas ou frutos tropicais em 9 horas, transportados de avião. Para ele e para quem pensa como ele “eficiência”” e “criação de valor” é isto, que represente desemprego na pesca e na agricultura nacionais, endividamento do país que tão superlativamente criticam, não parece ser relevante tal como os custos ambientais de tal “eficiência”.
A WWF, organização internacional para a conservação da natureza, lista 16 prioridades que passam pela alteração dos padrões de consumo, a valorização económica do capital natural ou a criação de estruturas legais e políticas para promover a gestão ao acesso equitativo à água, alimentos e energia. “Enquanto a biodiversidade revela uma tendência decrescente, a pegada ecológica aumenta, ilustrando bem como a nossa crescente procura pelos recursos naturais se tornou insustentável”.
De salientar ainda o impacto da urbanização, pois estima-se que em 2050 duas em cada três pessoas vão viver em cidades, o que implica uma forma completamente diferente da atual na gestão dos recursos naturais, mas também dos aspetos económicos e sociais.
A globalização corresponde à necessidade que o capitalismo tem de constante alargamento dos mercados, mas é também uma guerra para extorsão de mais-valia a nível mundial por um capitalismo decadente. Um sistema totalmente absurdo, atendendo aos limitados recursos materiais de que o planeta dispõe. Porém a economia conduzida sob a égide do FMI, da OMC e do BM, promove a chantagem da maximização do lucro privado, bloqueando controlos, fiscalização, autoridade eficaz. Os organismos que o poderiam fazer acabam por ficar ao serviço dos interesses privados sem interferência nos comportamentos que deviam regular.
O Prémio Nobel, Gary Becker afirmava que “O direito ao trabalho e a proteção do ambiente tornaram-se excessivos na maior parte dos países desenvolvidos. O comércio livre vai reprimir alguns destes excessos, obrigando cada um a tornar-se competitivo.” (7)
A crise exterminista, consiste nas crescentes agressões e ameaças militares, levadas a cabo pelos “EUA e os seus fantoches da NATO” (Paul C. Roberts) “Não há preocupações com o orçamento quando se trata de guerras ilegais ou ocupações militares que o governo dos EUA leva a efeito em pelo menos 6 países ou na ocupação de 66 anos no Japão e Alemanha ou o anel de bases militares construídos à volta da Rússia. O valor total do orçamento militar e segurança dos EUA anda à volta de 1,1 a 1,2 biliões de dólares, 70 a 75% do défice federal (8)
Em vez de segurança e justiça social para os povos encontramos “pirataria, “austeridade” e “guerra perpétua”: um extremismo destinado ao derrube da democracia. Aplicado a um indivíduo, isto identificaria um psicopata. Por que aceitamos isto? (9)
Os EUA dispõem de um número indeterminado de instalações militares espalhados por todo o globo que se estima serem mais de um milhar. O fim da URSS não representou mais segurança e paz para o mundo, pelo contrário, o orçamento militar dos EUA (5% da população mundial) aumentou, representando mais de 42% do total mundial procedendo a guerras “preventivas” e à “defesa de direitos humanos” com bombardeamentos sobre indefesas populações civis.
A corrida armamentista foi acelerada com a persistente instabilidade no Médio Oriente, a intenção do “escudo antimíssil” na Europa, a proliferação de bases militares. Recentemente a Rússia testou a sua última geração de mísseis intercontinentais dotados de múltiplas ogivas nucleares hipersónicas, e de contra medidas electrónicas que se considera tornar ultrapassado o escudo antimíssil que a na NATO pretende instalar. Poderão ser lançados de submarinos atómicos de 4ª geração.
Os EUA são um Estado falido que só o poder militar e a exacção sobre o resto do mundo através da aceitação do dólar como moeda global vão escondendo e adiando e que arrasta o esfrangalhado capitalismo da UE para as suas aventuras.
Os custos das guerras no Iraque e no Afeganistão custaram já mais de 1,3 biliões de dólares, porém considerando os custos assumidos em substituição de material, tratamentos médicos, pensões aos combatentes ou famílias, juros, etc., aquele valor, dentro do calendário estipulado pelo congresso, pode atingir globalmente uns 5 biliões de dólares.
Será bom lembrar que a História nos mostra que o destino de todas as nações agressoras foi destruírem-se também a si próprias.

3 - A TEORIA DA GRANDE UNIFICAÇÃO NO CAMPO POLÍTICO E SOCIAL É O MARXISMO

A ciência atual mais avançada procura na física unir na mesma teoria, num mesmo sistema de equações, as quatro forças fundamentais da natureza. (10) O mesmo se deveria passar com a análise social ao tratar das atuais crises.
Análises, medidas, comentários normalmente apresentados na comunicação social sobre a crise ou as crises esforçam-se por não pôr em causa o sistema capitalista. Admite-se uma crise económica e financeira, uma crise social, uma crise ambiental, uma crescente insegurança bélica a nível mundial, como se pudessem ser resolvidas de forma independente.
É neste contexto que o esquema financeiro, defendido contra a ineficiência e despesismo do Estado – nas prestações sociais, mas não na corrupção e na fiscalidade distorcida – se tornou responsável pelas graves crises que atingem os diversos países como uma forma de espoliação da mais-valia produzida, com uma redistribuição do rendimento em desfavor dos trabalhadores e pequenos e médios empresários, em nome da do dogmatismo da ortodoxia financeira.
O “despesismo” do Estado está bem documentado com a entrega de biliões de euros ao “racional e eficiente” sector bancário, às grandes transnacionais e na entrega de serviços públicos a oligopólios.
A questão é na sua essência simples. Não há solução para estas crises no sistema capitalista. As propostas apresentadas – imposições de troikas – são confessadamente apenas para resolver os problemas que a especulação provocou, aliás com as medidas que lhes deram origem. Fazer as mesmas coisas à espera de resultados diferentes configura um quadro de insanidade mental (um mundo dirigido por loucos…) caso não se tratasse de puro dogmatismo para uns, de oportunismo para outros, de ganância sobretudo para os que controlam estes.
Vemos títeres criticarem aquilo que efectivamente defenderam e praticam, enunciarem promessas de reformas e fazerem apelos à ética, fraseologia oca de conteúdos concretos, inconsequente e irrelevante, como o “ganhar credibilidade” – o que quer que isto queira dizer – obviamente perante “os mercados”, que o ministro espanhol das finanças considerou agora agirem de forma “irracional”.
O sistema capitalista não tem quaisquer soluções para resolver os problemas das 4 crises, pelo contrário é a sua própria natureza, as suas leis fundamentais que as provocam, ignorando custos e benefícios sociais, funcionando em função do lucro privado, precisamente em sentido contrário do que seria desejável e necessário.
O sistema capitalista nas nossas sociedades, já não tem condições de criar emprego senão em precariedade e sem direitos – a “flexibilidade” - nem garantir serviços sociais, nem proporcionar mais democracia, uma significativa redução do desemprego está confessadamente fora de causa.
Este sistema é imune à ética e ao reformismo, porque a questão não reside em razões práticas, ou de competência dos seus medíocres dirigentes, que são aqueles que o grande capital define e apoia, colocou-se, na sua deriva metafísica, à margem da realidade.
A evidência dos factos mostra que a questão de reforma ou revolução está ultrapassada. O que se designa por “reformas” são tão-somente retrocessos civilizacionais de décadas, largas décadas em muitos casos, cuja tendência é a generalização do trabalho sem ou com um mínimo de direitos: trabalho semiescravo. O mito social-democrata de criar mais riqueza para melhor a distribuir, sem ter em conta as relações de produção, cai pela base com a livre circulação de capitais, o domínio dos paraísos fiscais e dos critérios de especulação financeira.
As crises exprimem a incapacidade do capitalismo para criar valor real, estando a acumulação capitalista atulhada de capital fictício e de ativos tóxicos. “Além disto, sendo os recursos naturais limitados, a necessidade de crescimento constante do capitalismo é estritamente impossível. Manter o capitalismo indefinidamente é matematicamente impossível. O seu desaparecimento é imperativo” (11)
A análise não dogmática, materialista e dialética da realidade, permitiu prever com exactidão o ocorrer da crise e sua evolução, quando a propaganda ao serviço da oligarquia a negava, afirmando o seu fim sempre adiado de ano para ano. Agora se evidencia que mais austeridade só traz mais austeridade, o governo e os seus propagandistas, continuam a propagar uma metafísica de equilibrar as contas públicas – custe o que custar. A única entidade que reconhecem é uma abstração a que chamam “mercados” - a especulação financeira de indivíduos corruptos, mais uma vez comprovada no caso do Barclays Bank - a ditadura à qual os povos são submetidos.
A compreensão profunda – materialista e dialética – da realidade só é conseguida numa teoria que mostre a unidade e as contradições dos diversos fenómenos sociais do mundo atual e que estude as suas transformações. Essa teoria é o marxismo.

1 – A metafísica constitui uma forma de pensamento ultrapassada, no entanto necessária à sua evolução no passado, permitindo a análise e classificação de fenómenos da natureza. Esta designação tem origem em Aristóteles, dado na sua obra filosófica seguir-se à física, significando depois (meta) da física, tratando das questões que ultrapassavam os limites da experiência.
2 A crise económica global A Grande Depressão do século XXI - Michel Chossudovsky e Andrew Gavin Marshall* - www.odiario.info - 20.mai.2010
3 – Não temos a pretensão nem poderíamos desenvolver neste texto o muito que há a dizer sobre as crises do capitalismo. O odiario.info, bem como o resistir.info, têm relevantes textos sobre este tema. Desejaríamos destacar pela abordagem global – e pelo seu nível – como bibliografia, “Crise e Transição Política – Metabolismo social e material”, de Rui Namorado Rosa, Edições Avante.
4 - Más libre comercio, más hambre - Esther Vivas - www.rebelion.org – maio.2008
5 – “Unidos contra nós, divididos entre si” por Ben Hiller - Colaborador de Socialist Alternative O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org
6 – “Alemania en la Gran Desigualdad” - Rafael Pochla – Vanguardia – www.rebelion.org – 24-maio.2012
7 - A Ilusão Neoliberal – René Passet – Ed. Terramar – 2002 - p.109
8 – “An Economy Destroyed” Paul Craig Roberts –July 22 / 24, 2011 – www.couterpunch.org - Paul Craig Roberts was Assistant Secretary of the US Treasury, Associate Editor of the Wall Street Journal, and professor of economics in six universities.
9 – “A história é o inimigo quando as psy-ops se tornam notícia”, John Pilger, www.resistir.info – 23.junho.2012 - O original encontra-se em www.johnpilger.com/…
10 – Trata-se da designada GUT (Great Unification Theory). As 4 forças fundamentais da natureza são: a força electromagnética, a força nuclear fraca, a força nuclear forte e a força gravitacional. Em 1850 James Maxwell estabeleceu no mesmo sistema de equações a força eléctrica e a força magnética, levando ao posterior desenvolvimento teórico e tecnológico da electricidade, electrónica, emissão de ondas electromagnéticas. A força nuclear fraca - responsável por certos tipos de radiação quando algumas partículas atómicas se transformam noutras mais leves (diz-se que “decaem”). Está atualmente unida ao electromagnetismo constituindo a força electrofraca. A força nuclear forte é responsável pela constituição de protões e neutrões e a estabilidade dos núcleos atómicos. As tentativas a associar à força electrofraca não têm sido conclusivas. Quanto á gravitação considera-se um passo final da unificação de que se tem ocupado a física quântica.
11 - Jean Mathieu - http://www.papamarx.wordpress.com - Crise Economique : Un changement d’époque.- Le fruit de la misère ne tombe jamais loin de l’arbre de l’exploitation.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Ultra-capitalismo: do terrorismo ao calote mundial


Por que não podemos classificar o terrorista norueguês como ultra-capitalista? Por que temos que nos conformar com o rótulo na capa da revista Veja, que o chama de ultra-nacionalista, ou com as variantes usadas no restante das corporações de mídia.


Por que não podemos classificar o terrorista norueguês como ultra-capitalista? Por que temos que nos conformar com o rótulo na capa da revista Veja, que o chama de ultra-nacionalista, ou com as variantes usadas no restante das corporações de mídia (atirador, terrorista, extremista e outros tantos, que confundem muito mais do que explicam). São confiáveis esses veículos de comunicação que imediatamente após o tiroteio apontavam o dedo para um providencial “extremista islâmico”? -- versão que, aliás, não resistiu a 24 horas.

Estou sendo radical? O capitalismo não prega genocídios? O capitalismo tem um lado humano?

Quando digo que o marginal norueguês é ultra-capitalista não estou pensando nos postulados de Adam Smith ou naquilo que é permitido que se publique a respeito do sistema que domina o mundo. Estou me referindo ao que é escondido (o trabalho escravo ou semi-escravo e a máquina de moer essa gente que trabalha por um salário mínimo de fome) e ao que está implícito, às sutis formas de produção e reprodução de subjetividades, que interferem nas formas de sentir, pensar e agir dos cidadãos e, conseqüentemente, da própria sociedade em que estes estão inseridos.

O assassino em massa que chocou o mundo agiu influenciado por doutrinas que pregam a concorrência violenta, o ódio ao próximo. Essa teoria que joga a culpa de tudo em estrangeiros, negros, gays, ou em qualquer um que seja diferente. É reducionista, mas funciona. Em vez de reconhecer os próprios defeitos, o que demanda tempo, reflexão e análise, basta jogar a culpa em alguém com quem a pessoa não se reconhece: o outro.

Não me parece casual que o alvo do assassino tenha sido um acampamento da juventude socialista, que reuniu centenas de jovens de todos os cantos do mundo – inclusive do Brasil. O bandido criticava o multiculturalismo e chegou a dizer que esse era o grande problema do nosso país. Essa seria a razão para sermos uma sociedade “disfuncional”, de segunda classe.

É evidente que o genocida norueguês nunca assistiu a um desfile da Estação Primeira de Mangueira. E nem viu um Neymar da vida jogando. Muito menos teve a oportunidade de apreciar uma partida como a de quarta-feira, entre Flamengo e Santos. Ali, na Vila Belmiro, quando todos os deuses do futebol (que não são nórdicos, por suposto) baixaram simultaneamente em campo, ficou provada a existência de milagres. Esses milagres que permitem uma jogada como a do terceiro gol do Santos, quando o miscigenado Neymar fez com a bola algo que desafia a compreensão até mesmo dos deuses. Esses milagres que fizeram com que o Flamengo virasse uma partida após estar perdendo por três gols de diferença, sendo que o miscigenado Ronaldinho fez três e foi chamado de “gênio” pelo melhor jogador do mundo na atualidade. Foi um jogo que será lembrado daqui a cem a nos. Deve ser duro para os racistas ouvirem isso, mas a verdade é que esses milagres nascem justamente com a miscigenação que as teorias nazistas repudiam. Futebol e música soam melhor quando tem mistura, é assim em qualquer lugar do mundo.

A propósito: o nazismo não era capitalista? Se não, o que era?

A dificuldade de se entender o discurso do premiê da Noruega é compreensível. Todos ficaram chocados quando ele afirmou que discursos de ultra-direita são legítimos. Isso porque as corporações de mídia não conseguiram traduzir para o bom português; preferiram fingir que ele não estava se referindo à ultra-direita, ou seja, a versão mais descarada do capitalismo. Para as corporações de mídia é melhor apostar na confusão do que mostrar ao povo brasileiro que seus sócios e amigos defendem, por exemplo, o cercamento de favelas. Ou o abandono da gente pobre. A tortura de traficantes varejistas.

Os tiros disparados na Noruega também ecoam nos Estados Unidos. O extremismo do assassino nórdico tem tudo a ver com o fundamentalismo neoliberal de mercado. Ambos reivindicam para si a verdade, como se existisse apenas uma, a deles. Ambos consideram-se pertencentes a uma casta superior. E ambos agiram com planejamento, método e frieza.

Agora a maior economia do mundo anuncia tranqüilamente que pode dar um calote amplo, geral e irrestrito, mas não aparece um economista para entoar os cânticos de “irresponsável”. Onde estão os fiscais dos fundamentos da economia? Onde os que diziam que Lula quebraria o Brasil? Cadê a turma que defendia o modelo estadunidense como digno de ser seguido? Estão todos quietinhos, debaixo da cama, morrendo de medo das conseqüências, imprevisíveis, de uma moratória dos Estados Unidos.

O mundo não está nessa situação porque de vez em quando aparece um lunático disposto a tudo para fazer valer sua irracionalidade. Chegamos a este ponto porque o modelo de sociedade adotado pela maior parte do mundo não presta. Quem sabe a União de Nações Sul-Americanas – Unasul – aponte uma nova direção.

Marcelo Salles é jornalista, colaborador do www.fazendomedia.com e outros veículos de comunicação democráticos.

domingo, 1 de julho de 2012

Gilson Caroni: Golpes e democracia, a pedagogia do Mercosul


Os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco em favor do aprofundamento do conceito de democracia na América Latina.

 Gilson Caroni Filho no VIOMUNDO

Ao decidir suspender o Paraguai e incorporar a Venezuela como membro pleno do Mercosul, Brasil e Argentina sinalizaram para o aprofundamento do conceito de democracia na América Latina. Uma decisão que nos compromete no fluxo da vida, pela responsabilidade que criamos em relação a novas possibilidades de presente e futuro.
Os donos de colunas fixas na grande imprensa costumavam – e ainda costumam – invocar o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, pelo Mercado Comum do Sul e por seus países associados, que define o regime democrático como condição indispensável para a existência e para o desenvolvimento dos processos de integração. A isso supostamente se aferravam – e ainda se aferram – para protelar a aprovação da Venezuela como membro pleno do bloco.
Usam o argumento de que o “impeachment” de Lugo foi executado dentro das normas legais previstas na Constituição paraguaia, esquecendo-se o que todos sabem: nem sempre legalidade é sinônimo de licitude. O mundo jurídico é especialista em romper com o espírito da lei dentro da letra da lei.
Não houve tempo para o exercício da defesa. O golpe ruralista foi perpetrado e calculado num tempo que impedisse qualquer articulação nacional em defesa do governo democraticamente constituído.
O mesmo vale para o suposto déficit democrático da Venezuela. Nunca é demais lembrar que Hugo Chávez chegou à presidência numa eleição, em 1998, em que obteve 56,2% dos votos. Dois anos depois resistiu a uma tentativa de golpe de Estado orquestrada pelas velhas oligarquias em conluio com o baronato midiático.
Em 2004, venceu o referendo revogatório da oposição para, dois anos depois, renovar seu mandato presidencial com quase 60% dos votos. Em 2008, o secretário geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Insulza, não poupou elogios ao processo democrático venezuelano ao se referir às eleições regionais.
Na ocasião, Insulza parabenizou o governo da Venezuela pela “situação de normalidade” e destacou a participação maciça da população no pleito.
Destacou também o comportamento dos partidos e agradeceu pelos “tempos de paz e tranquilidade”. Em que país os cidadãos participaram mais ativamente de processos decisórios que os 16 milhões de eleitores venezuelanos?
É chegada a hora de os historiadores e os bons jornalistas cumprirem o seu papel em um continente marcado por uma institucionalidade construída por estruturas de dependência entre as oligarquias e os interesses do imperialismo. Comparar o que éramos com o que somos é imperativo.
É fundamental que nós, latino-americanos, nos reconheçamos nas culturas e histórias que moldaram o mundo como o temos, vemos e vivemos hoje. Precisamos confrontar os que – detendo o monopólio da narrativa – impedem o diálogo tão necessário entre sociedades, tempos, histórias, gerações e sujeitos, para continuarmos lutando por um mundo justo e democrático.
Nessa tensão dialética, a vida e seus atores são mobilizados por forças centrípetas e centrífugas, por meio, principalmente, de discursos que se reproduzem no cotidiano social. No sentido dessas forças, refletindo sobre o momento histórico, os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Roussef não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco.
A luta pela hegemonia só é eficaz quando governar é educar para a mudança, desfazendo nós semânticos sobre golpes e democracia.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro

sábado, 30 de junho de 2012

Vivendo no fim dos tempos: o apocalipse do capital



Em seu novo livro, "Vivendo no fim dos tempos" (Boitempo Editorial), Slavoj Zizek defende que o capitalismo global está se aproximando rapidamente da sua crise final.


Ele identifica os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.

Zizek apresenta sua obra como "parte da luta contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que os sustenta".

Não deveria haver mais nenhuma dúvida: o capitalismo global está se aproximando rapidamente da sua crise final. Slavoj Žižek identifica neste livro os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais. E pergunta: se o fim do capitalismo parece para muitos o fim do mundo, como é possível para a sociedade ocidental enfrentar o fim dos tempos?

Para explicar porque estaríamos tentando desesperadamente evitar essa verdade, mesmo que os sinais da “grande desordem sob o céu” sejam abundantes em todos os campos, Žižek recorre a um guia inesperado: o famoso esquema de cinco estágios da perda pessoal catastrófica (doença terminal, desemprego, morte de entes queridos, divórcio, vício em drogas) proposto pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, cuja teoria enfatiza também que esses estágios não aparecem necessariamente nessa ordem nem são todos vividos pelos pacientes.

De acordo com Žižek, podemos distinguir os mesmos cinco padrões no modo como nossa consciência social trata o apocalipse vindouro. “A primeira reação é a negação ideológica de qualquer ‘desordem sob o céu’; a segunda aparece nas explosões de raiva contra as injustiças da nova ordem mundial; seguem-se tentativas de barganhar (‘Se mudarmos aqui e ali, a vida talvez possa continuar como antes...’); quando a barganha fracassa, instalam-se a depressão e o afastamento; finalmente, depois de passar pelo ponto zero, não vemos mais as coisas como ameaças, mas como uma oportunidade de recomeçar. Ou, como Mao Tsé-Tung coloca: ‘Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente’”.

Os cinco capítulos se referem a essas cinco posturas.

O capítulo 1, “Negação”, analisa os modos predominantes de obscurecimento ideológico, desde os últimos campeões de bilheteria de Hollywood até o falso apocaliptismo (o obscurantismo da Nova Era, por exemplo).

O capítulo 2, “Raiva”, examina os violentos protestos contra o sistema global, em especial a ascensão do fundamentalismo religioso.

O capítulo 3, “Barganha”, trata da crítica da economia política, com um apelo à renovação desse ingrediente fundamental da teoria marxista.

O capítulo 4, “Depressão”, descreve o impacto do colapso vindouro, principalmente em seus aspectos menos conhecidos, como o surgimento de novas formas de patologia subjetiva.

E, por fim, o capítulo 5, “Aceitação”, distingue os sinais do surgimento da subjetividade emancipatória e procura os germes de uma cultura comunista em suas diversas formas, inclusive nas utopias literárias e outras.

Žižek é otimista quanto ao que pode surgir desse processo de emancipação e apresenta sua obra como parte da luta contra aqueles que estão no poder em geral, contra sua autoridade, contra a ordem global e contra a mistificação ideológica que os sustenta. Para ele, engajar-se nessa luta significa endossar a fórmula de Alain Badiou, para quem mais vale correr o risco e engajar-se num Evento-Verdade, mesmo que essa fidelidade termine em catástrofe, do que vegetar na sobrevivência hedonista-utilitária. Rejeita, assim, a ideologia liberal da vitimação, que leva a política a renunciar a todos os projetos positivos e buscar a opção menos pior.

Trecho do livro

“Essa virada na direção do entusiasmo emancipatório só acontece quando a verdade traumática não só é aceita de maneira distanciada, como também vivida por inteiro: ‘A verdade tem de ser vivida, e não ensinada. Prepara-te para a batalha!’. Como os famosos versos de Rilke (“Pois não há lugar que não te veja. Deves mudar tua vida”), esse trecho de O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse, só pode parecer um estranho non sequitur: se a Coisa me olha de todos os lados, por que isso me obriga a mudar? Por que não uma experiência mística despersonalizada, em que ‘saio de mim’ e me identifico com o olhar do outro? E, do mesmo modo, se é preciso viver a verdade, por que isso envolve luta? Por que não uma experiência íntima de meditação?

Porque o estado ‘espontâneo’ da vida cotidiana é uma mentira vivida, de modo que é necessária uma luta contínua para escapar dessa mentira. O ponto de partida desse processo é nos apavorarmos com nós mesmos.

Quando analisou o atraso da Alemanha em sua obra de juventude Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx fez uma observação sobre o vínculo entre vergonha, terror e coragem, raramente notada, mas fundamental:

É preciso tornar a pressão efetiva ainda maior, acrescentando a ela a consciência da pressão, e tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública. É preciso retratar cada esfera da sociedade alemã como a partie honteuse [parte vergonhosa] da sociedade alemã, forçar essas relações petrificadas a dançar, entoando a elas sua própria melodia! É preciso ensinar o povo a se aterrorizar diante de si mesmo, a fim de nele incutir coragem.”

Sobre o autor

Slavoj Žižek nasceu em 1949 na cidade de Liubliana, Eslovênia. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós‑modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é diretor internacional do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck de Londres.

Vivendo no fim dos tempos é o seu sétimo livro traduzido pela Boitempo. Dele, a editora também publicou Bem‑vindo ao deserto do Real!, em 2003, Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917), em 2005, A visão em paralaxe, em 2008, Lacrimae Rerum, em 2009, Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa, os dois últimos em 2011.

Ficha técnica
Título: Vivendo no fim dos tempos
Título original: Living in the end times
Autor: Slavoj Žižek
Tradução: Maria Beatriz de Medina
Orelha: Emir Sader
Páginas: 368
Editora: Boitempo

Fonte: Redação Carta Maior

sábado, 9 de junho de 2012

Uma esquerda sem graça prospera na Nicarágua


A reeleição de Daniel Ortega confirmou a virada à esquerda de parte da América Latina. Entretanto, a evolução recente do poder sandinista, em especial na questão dos direitos das mulheres, ilumina as armadilhas de uma lógica que conduz forças progressistas a renunciar a certos princípios em nome da manutenção do poder.
por Maurice Lemoine no LeMondeBrasil

(Daniel Ortega discursa em evento que amrca o aniversário de morte do líder revolucionário Augusto César Sandino)

Alguns cantam, uns agitam bandeirolas; outros ainda exortam com grandes gritos as primeiras fileiras a avançar. Neste 3 de dezembro de 2011, próximo ao Conselho Supremo Eleitoral (CSE), em Manágua, a manifestação ocorre sem incidentes. Quando Fabio Gadea toma a palavra, uma calma relativa se estabelece. Representante do Partido Liberal Independente (PLI), segundo colocado na eleição presidencial de 6 de novembro com 31% dos votos, ele contesta a vitória do candidato da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) Daniel Ortega (62,46%), pretendendo ter recebido, ele mesmo, 62%: “Queremos que essas eleições sejam declaradas inválidas e aconteçam de novo, na presença de testemunhas do mundo inteiro!”. É efetivamente para o mundo inteiro – a famosa “comunidade internacional” – que essa mensagem se destina. Na Nicarágua, ela não surte efeito. Os manifestantes tinham anunciado 100 mil pessoas. Vieram 5 mil, talvez 10 mil.

Declarando-se “sandinista”, mas oposição ao poder, Maria López Vigil, editora da revista Envío,sente que os famosos “62% de Gadea” são improváveis (antes das eleições, todas as pesquisas atribuíam a ele cerca de 30%). A jornalista acredita que ela mesma tem mais credibilidade: “Acho que ele teve a igualdade e não sei se esse empate colocaria Ortega um pouco à frente de Gadea ou o contrário. As irregularidades foram tantas... Houve as do dia da votação, mas a mais grave aconteceu antes”. Diretora do Centro de Observação da Comunicação (Cinco), Sofia Montenegro é muito menos sutil: “Ortega é um ditador”. À questão “Mas o que você reprova nele?”, ela rebate sem se preocupar com detalhes: “Tudo!”.

Preto, branco, bem, mal... Desaconselhamos a ida à Nicarágua aos que suportam apenas situações “quadradas”. Ao tradicional abismo entre direita/esquerda acrescenta-se um combate feroz entre irmãos que se tornaram inimigos. E, nesse enfrentamento, nenhum campo pode se pretender completamente inocente.
Depois de ter derrubado a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979, a FSLN teve de enfrentar, durante os anos 1980, o conflito que lhe foi imposto pelos Estados Unidos por contrarrevolucionários interpostos – os contras. A conflagração arruinou o país. Durante as eleições de 25 de fevereiro de 1990, os nicaraguenses roíam as unhas até sangrar: se eles votassem de novo “sandinista”, a guerra se prolongaria até o fim dos dias. Ao eleger Violeta Chamorro, eles permitiram o retorno da direita, mais por esgotamento que por convicção.

O choque foi duro para a FSLN, que não esperava perder o poder. Fortes discussões internas a atravessaram de repente. Tendo dirigido uma guerrilha, depois uma resistência militar à agressão norte-americana, a Frente foi, por necessidade, um partido centralizado, vertical, sem tradição de debate. Com a nova configuração de uma Nicarágua em paz, alguns passaram a desejar transformá-lo. Em 1994, os “ortodoxos” ganharam, liderados por Ortega. Muitos membros, artistas e intelectuais deixaram o partido. Assim, surgiu em 1995 o Movimento de Renovação Sandinista (MRS) criado pelo ex-vice-presidente Sergio Ramírez e a ex-comandante Dora Maria Téllez. Depois, as acusações de “caudilhismo”, “autoritarismo” e de “privatização da FSLN” colaram-se à “gangue Ortega”.1

Partido “moderno”

Mas dito assim – e esta é a versão mais conhecida –, isso contaria apenas a triste história de um partido que perdeu o norte e afundou... O que cobre apenas parcialmente a realidade.
Um calor sufocante impregna o modesto local dos “veteranos” sandinistas, em San Judas, um bairro populoso de Manágua. Membro da guerrilha urbana na época de Somoza, depois das tropas de choque oponentes à contra, Mario José Cienfuegos evoca suas memórias: “No dia seguinte à derrota de 1990, nós, os ‘combatentes históricos’, convocamos Ortega. Ele chegou sozinho, sem escolta. Não era nada de mais, apenas o comandante Daniel. Depois de conversar por muito tempo, decidimos que era preciso continuar a lutar para recuperar o poder”. Mas em que bases? “Tudo isso coincidia com a queda do bloco socialista”, lembra Orlando Núñez, atual conselheiro das relações sociais do chefe de Estado. “Muitos consideraram, dentro da Frente, que era o fim da história. Descobrindo a democracia burguesa que eles não tinham conhecido com Somoza, eles decidiram que o projeto histórico da FSLN estava ultrapassado.” Com o socialismo e o anti-imperialismo “não tendo mais razão de ser”, tratava-se de reposicionar a Frente como um partido “moderno” de centro-esquerda. Esse foi o enfrentamento ideológico que provocou a cisão.

A partir daí, como admite o “renovador” Ramírez, “Daniel demonstrou uma grande tenacidade na adversidade. Quando a ruptura aconteceu, ele ficou sozinho, sem dinheiro nem aparelho de partido. Ele multiplicou as visitas aos barrios [favelas] e aos pueblos [vilarejos], e construiu seu próprio leadership”.2 De fato, o povo sandinista não abandonou seu dirigente.
Em 1996, surgiram o Partido Liberal Constitucionalista (PLC) e Arnoldo Alemán (51% dos votos). A embaixada dos Estados Unidos ameaçou o país com um futuro negro, e Ortega conseguiu apenas 37,7% dos votos. Até então jogando com a reconciliação, a FSLN não tinha orientado seus esforços na direção de seus mais ferozes adversários do passado, a Igreja Católica e os ex-membros de base da contra, essencialmente camponeses. A Frente deu um passo adiante quando, entrando em contato com a direita dura do PLC, chegou a um acordo – o “pacto” – que instaurou uma bipartição de fato. “Ela perdeu a alma com essa história”, estima o pesquisador Angel Saldomando. “Quando os neoliberais acentuaram as reformas de mercado, fazendo desaparecer o setor público, a FSLN, prisioneira de sua aliança, deixou passar. Com o tempo, os que ganharam mais importância lá dentro eram os que faziam business.”

Mudando de contexto, Núñez dá uma explicação para a sequência vivida do outro lado: “No Parlamento, éramos a minoria. Apesar disso, por causa de nossa influência sobre as massas, nossos adversários tinham a clara vontade e o poder de nos destruir. Se não fizéssemos alianças, nos encontraríamos em grande risco de extinção. O método não nos agradava particularmente, mas era uma questão de correlação de força: para poder convencer o povo a nos dar outra vez a maioria, devíamos imperativamente continuar existindo”.

O “pacto” permitiria efetivamente a sobrevivência da FSLN e – para grande proveito do muito corrompido presidente Alemán – a estabilidade política, com a Frente controlando os sindicatos e exercendo uma grande influência no seio da polícia e do Exército. Claro, esse “pragmatismo” antinatural teria um preço: “A estigmatização, a satanização e a perda de legitimidade da Frente perante a esquerda mundial foram muito duras”, admite Núñez. “Mas era necessário, e nós fizemos.” Até na Nicarágua a manobra não foi desvinculada da derrota da eleição de 2001.

Depois do governo de Alemán, o do seu vice-presidente, o conservador Enrique Bolaños, eleito em 2001, continuou com as privatizações, a concentração do capital e a administração do ajuste estrutural, deixando 46% da população na pobreza e 15% na indigência. Além do mais, profundas fraturas enfraqueceram a direita: Bolaños mandou prender seu predecessor Alemán, condenado a vinte anos de prisão por enriquecimento ilícito.3 Como, então, impedir o voto de pender a favor da FSLN em 2006?
Os liberais tiraram da manga um projeto de lei punindo o aborto, incluindo as mulheres em risco de vida ou estupradas. As hierarquias católica e evangélica orquestraram uma campanha e fizeram pressão nos candidatos. Ainda assim, o cálculo político tomou o lugar de qualquer outra consideração: para não perder o apoio da Igreja, a Frente apoiou a proposta.
 
“Cristão, socialista, solidário”

Além de suas funções no Centro de Observação da Comunicação, Sofia Montenegro foi uma das fundadoras do Movimento Autônomo das Mulheres (MAM). Ela não se acalma: “O aborto terapêutico existia aqui quase desde a independência. Até Somoza não tocou nisso! Mas Ortega o suprimiu porque, sinceramente ou por cálculo, ele se converteu em fundamentalista cristão”. O episódio foi muito mal recebido – principalmente dentro de setores progressistas internacionais.
Nesse famoso ano de 2006, Ortega foi eleito no primeiro turno, com 37,99% dos votos.4 Levantando o slogan “Cristão, socialista, solidário”, ele se reelegeu no fim de 2011 com um resultado muito superior. Um de nossos interlocutores sandinistas nos confia: “Temos uma Igreja muito conservadora e forte. Mesmo quando não está de acordo com ela, o povo ainda lhe presta muito respeito. Devemos aceitar a situação”. Chocante quando se proclama progressista? Certamente. Mas Lucy Vargas, membro da Frente no bairro Larreynaga, em Manágua, não esconde a impaciência: “Em muitos países o aborto é livre, mas ninguém se preocupa com a saúde das mulheres e das crianças, e muitas perdem a vida! Aqui, ajudamos as mulheres, nem que seja através da saúde gratuita. Também é um direito”. Métodos de contracepção são colocados à disposição de qualquer mulher que os deseje, sem nenhum pagamento, nos centros de saúde. Além disso – e sem minimizar o problema –, o governo não procura particularmente aplicar a lei: nos hospitais, se a vida de uma mulher grávida está em risco, a comissão de médicos toma geralmente a decisão que se impõe, sem pedir nenhuma autorização.
Cidade-dormitório situada na periferia de Manágua, Ciudad Sandino confirma o assunto com uma bela unanimidade. A saúde? Claro, acessível agora, como os remédios e os médicos cubanos, “nossos compañeros da Alba [Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América], que se deslocam em domicílio quando precisamos”. A educação? Voltou a ser gratuita também. Brincadeiras, gargalhadas, abraços, empurrões... Diante da pequena mercearia que vende produtos de primeira necessidade a preços subvencionados, o burburinho ganha de repente intensidade. “Tem arroz, feijão, óleo, açúcar... A gente só podia comprar um ou outro antes. A libra de feijão [453 gramas – N.T.] era 18 córdobas [R$ 1,45], agora custa 8 córdobas.”
Enquanto a direita continuava sendo a direita e os “renovadores” se atordoavam com discursos e escritos glorificando a “sociedade civil”, o “consenso nacional”, a “identidade cidadã democrática”, as “alianças amplas e pluralistas”, a “governabilidade” e a “institucionalidade”, o governo Ortega lançou uns quarenta programas sociais coordenados por sua esposa, Rosario Murillo, fazendo dela uma espécie de superministra.
“Não me falem da redistribuição de pequenas coisas ao povo”, reage Saldomando, a voz carregada de ironia. “Se somarmos tudo isso e tentarmos construir um projeto político, não vai dar em nada.” Não é o que pensam dezenas de milhares de pobres que, graças à distribuição de 854 mil placas de zinco, puderam cobrir o teto das casas cheias de vazamentos em razão das tempestades tropicais. Não é o que declara Rosalia Suárez, beneficiária do plano “fome zero”. Como 80 mil mulheres, ela recebeu uma vaca, um porco e seis galinhas: “Minha vaca já me deu dois bezerros! Eu vendo o leite que a gente não bebe, minhas crianças comem ovo... antes a gente não tinha nada”. Também não é o que constatam outras mulheres, frequentemente mães solteiras, a quem os créditos do plano “usura zero” ajudaram a montar uma padaria, uma pequena empresa ou até fundar cooperativas.
“O que o governo está fazendo é o mínimo, e apenas para as pessoas que o apoiam”, objeta, levantando os olhos ao céu, uma habitante da capital encontrada no meio da agitação do mercado Muembe. “Os que não estão de acordo com ele não têm direito a nada.”
Quando cada um conta a sua versão, uma realidade com mais nuances se desenha. Yaira Mayorga vivia nos escombros de um prédio destruído pelo terremoto de... 1972. Como seus 360 vizinhos – dos quais mais de um quarto se declara “não sandinista” –, ela passou a ter uma verdadeira habitação. “Olhem como ela é bonita, a minha casa!”, exulta. O plano “alojamento digno” passou por ali.
“Eu não era sandinista nem nada”, salienta a jovem Rosario García. “A política não me interessava. Mas eu vi o que o comandante fez”. Espontaneamente, como muitos outros, o pequeno comerciante e camponês Walter Silva nos confia: “Digo sinceramente: eu era liberal; eles nunca me deram nada. El hombre nos ajudou muito. Por isso, mudei de ideia, e muitos dos meus companheiros me acompanharam”.
 
Fator Chávez

Ninguém, é claro, se aventuraria a falar de “socialismo”. Os investidores estrangeiros e órgãos como o FMI ou o Banco Mundial não encontram nada a dizer sobre a gestão dos cinco anos passados. O setor privado – do qual fazem parte opulentos homens de negócios sandinistas, entre os quais Ortega – está mais do que satisfeito. Ele até encontra seu quinhão nas decisões estratégicas do poder: ao integrar a Alba e se voltar para a América do Sul, ele abriu novos mercados. Estruturalmente, o país então não mudou, mas, e não é pouca coisa, o governo mudou as prioridades do Estado. Ao mesmo tempo, a ajuda maciça da Venezuela de Hugo Chávez permitiu a ampliação e o sucesso dos programas sociais.
Aspirante à vice-presidência, Edmundo Jarquín, que, sob a bandeira do MRS, tinha recebido 6,29% dos votos em 2006, aliou-se dessa vez a Gadea, o candidato do PLI. Este último, muito conservador e dirigente dos contra na costa, era apenas uma fachada para Eduardo Montealegre, banqueiro e ex-ministro de Alemán e Bolaños. Tendo perdido também em 2006 (28,3% dos votos) para Ortega, implicado em um escândalo financeiro, Montealegre dificilmente poderia se reapresentar – e não tinha mais vontade, já que havia tempos o jogo se anunciava perdido. “Essa aliança PLI-MRS não é baseada em um programa. Ela tem por objetivo somente impedir a deriva ditatorial da FSLN e de Ortega”, admitia antes da eleição Maria López Vigil. Uma espécie de “pacto”, de certa forma. Marcada por dezesseis anos de um neoliberalismo sem freios nem amortecedores (1990-2006) que não deseja rever tão cedo, uma maioria dos nicaraguenses fez sua escolha.
Muito à vontade na embaixada dos Estados Unidos, Sofia Montenegro sofre para aceitar a realidade. “De qualquer forma, daqui a seis meses Chávez [que tem câncer] estará morto; quanto a Ortega e Rosario Murillo, eles vão terminar como Ceausescu”, diz. Seria preciso, nesse dia, podar todas aquelas que “colaboraram”? Trinta e quatro mulheres figuram entre os 62 deputados sandinistas eleitos no dia 6 de novembro passado.
Maurice Lemoine
é jornalista ee autor de "Cinq Cubains à Miami ( Cinco cubanos em Miami)", Dom Quichotte, Paris , 2010.


Ilustração: Osvaldo Rivas / Reuters
1 Ler Maurice Lemoine, “Le Nicaragua tenté par un retour au passé” [A Nicarágua tentada por um retorno ao passado], Le Monde Diplomatique, out.1996.
2 El País, Madri, 4 nov. 2011.
3 Essa condenação foi anulada em 16 de janeiro de 2009 pela Corte Suprema de Justiça.
4 A Constituição modificada depois do “pacto” Ortega-Alemán permite ganhar com 40% dos votos ou 35% se uma diferença de cinco pontos separar o candidato em primeiro lugar de seu rival mais próximo.